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A cidade de Ulisses: literatura, mito e história

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Academic year: 2021

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Elisabete Maria

Bernardo Silva

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Elisabete Maria

Bernardo Silva

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A Cidade de Ulisses – literatura, mito e história

Dissertação apresentada à Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de mestre em Línguas, Literaturas e Culturas, realizada sob a orientação científica da Professora Doutora Maria Fernanda Amaro de Matos Brasete, Professora Auxiliar do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro.

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O júri

Presidente

Arguente

Orientadora

Doutor Carlos Manuel Ferreira Morais Professor Auxiliar da Universidade de Aveiro

Doutor Belmiro Fernandes Pereira

Professor Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Doutora Maria Fernanda Amaro de Matos Brasete Professora Auxiliar da Universidade de Aveiro

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Agradecimentos Agradeço, em primeiro lugar, aos meus pais por tudo o que sempre fizeram por mim e que, mesmo em tempos difíceis, me ensinaram a valorizar a cultura e o saber; agradeço ao João e ao Rodrigo pela paciência e incentivo, nos momentos menos bons.

Não posso também deixar de manifestar a minha eterna gratidão à minha orientadora, Professora Doutora Maria Fernanda Amaro de Matos Brasete, pela disponibilidade, pelas sugestões preciosas de melhoria deste trabalho e por nunca me deixar desistir.

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Palavras-chave Teolinda Gersão, cidade, fundação, mito, Ulisses, Odisseia,

Lisboa, Ulissipo, literatura portuguesa, intertextualidade, história.

Resumo Em A cidade de Ulisses, Teolinda Gersão presta uma

homenagem à cidade de Lisboa, associando, precisamente, a origem etimológica do topónimo ao mito de Ulisses. Neste trabalho, pretende-se, estudar a relação estabelecida entre Literatura, Mito e História no romance, com base na analogia que a narrativa constrói entre a figura épica de Ulisses e a caracterização de Paulo Vaz.

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Keywords Teolinda Gersão, city, foundation, myth, Ulysses, Ulissipo, Odyssey, Lisbon, Portuguese Literature, intertextuality, History.

Abstract In the novel A cidade de Ulisses, Teolinda Gersão pays a tribute

to the city of Lisbon, relating the etymological origin of the toponym to the myth of Ulysses. In this study, it is intended to study the relation between Literature, Myth and History in the novel, based on the analogy that the narrative builds between the epic figure of Ulysses and characterization of Paulo Vaz.

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Introdução ………. 1

I. A cidade de Ulisses: literatura, mito e história 1. Teolinda Gersão: a escritora e a obra ..………....…. 3

2. O romance A cidade de Ulisses: a plasticidade da narrativa ..………..… 9

3. Lisboa, a cidade de Ulisses ………...…………...……….. 17

3.1. Sobre o mito fundacional de Lisboa .….………..……... 17

3.2. Referências mítico-históricas no romance …….………..….…. 22

3.3. Lisboa: entre o mito e a realidade ...…………..………. 27

II. O mito de Ulisses: da metonímia à metáfora 1. Ulisses: um paradigma mítico-literário .………....…. 31

1.1. O herói homérico ..………...………... 31

1.2. A atualização do mito, no romance de Teolinda Gersão …... 37

III. Em torno de A Cidade de Ulisses 1. Sobre o título do romance ………..……..….…. 41

2. A história itinerante do narrador Paulo Vaz …..………..…... 46

3. A temática erótica: Paulo e as mulheres ... 53

4. Lisboa, uma cidade imaginada ………..……….… 61

IV. Considerações Finais ……….………. 65

Referências Bibliográficas ………..………...………. 67

1. Bibliografia da autora ……… 67

2. Outras referências Bibliográficas ……….. 67

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Introdução

Esta dissertação resulta do grande entusiasmo que senti quando li, pela primeira vez, o romance de Teolinda Gersão, A cidade de Ulisses (2011) e do amor que nutro, desde cedo, pela literatura portuguesa.

O mito de Ulisses tem presença assídua no imaginário ocidental, e o seu impacto na literatura tem sido objeto de estudos valiosos. Ligado à fundação de Lisboa desde os autores greco-latinos, o mito de Ulisses manteve uma presença muito forte na literatura portuguesa e serviu de inspiração a este romance que, nas palavras de Miguel Real (2011), é “um hino à cidade” de Lisboa.

Efetivamente, em A cidade de Ulisses, Teolinda Gersão presta uma homenagem à capital portuguesa e recupera, em modo ficcional, a origem etimológica do topónimo tradicionalmente associado ao nome de Ulisses. Neste trabalho, pretende-se analisar a prepretende-sença deste mito no romance, rastreando a analogia traçada entre a trajetória errante do Ulisses homérico e a história de vida do pintor Paulo Vaz, a fim de se compreender a relação dinâmica e significante que se constrói entre Literatura, Mito e História.

Ao longo do romance, é inquestionável a omnipresença do herói homérico, nas várias alusões feitas pelo protagonista, porque “A história de Ulisses falava do amor dos homens e das mulheres, da casa que constroem…” (Gersão, 2011, p.41). A narrativa do protagonista movimenta-se, por via de uma rememoração transfiguradora, na cidade real e imaginada de Lisboa, que constitui o pano de fundo de uma malograda história de amor do passado. Utilizado, simultaneamente, como metáfora e metonímia, o mito de Ulisses apresenta-se, assim, como um referente primordial para a história de amor que uniu Paulo Vaz a sua ex-aluna e falecida amante, Cecília Branco, numa Lisboa do passado. Concedeu-se, por isso, particular atenção à caracterização da personagem-protagonista, um artista plástico lisboeta que, na primeira pessoa e num tom poético e melancólico, dá-nos conta de tempos e espaços que marcaram o seu percurso existencial, tendo como mote uma exposição de artes plásticas, conjeturada com Cecília, Branco sobre cidade das sete colinas e em que “Lisboa era um pano de fundo, em geral desfocado porque a nossa (sic) atenção se dirigia para outras coisas, só por vezes se centrava na cidade.” (Gersão, 2011, p.34).

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A inter-relação entre a literatura e as artes plásticas assume-se como um Leitmotiv estruturante deste romance, pelo que será contemplada na análise dos eixos temáticos que se cruzam na narrativa do protagonista, e que se funda num processo criativo de “remitologização”, com base na complexidade das relações humanas, alicerçadas em tópicos que aproximam a caraterização de Paulo Vaz da figura mítica de Ulisses, como por exemplo: o espírito aventureiro e industrioso, a resistência às adversidades da vida, o amor, a questão da identidade ou perda dela, a existência solitária e o retorno às origens, entre outras.

A presente dissertação encontra-se dividida em três partes, a que se seguem as “Considerações Finais”, e, por fim, as referências bibliográficas. A primeira parte, sob um título muito próximo do escolhido para esta dissertação, foca-se, depois de algumas considerações sobre a vida e a obra e Teolinda Gersão e sobre o romance que constitui o corpus de estudo, na interseção que se opera entre literatura, história e mito, ao nível da diegese que recupera, sob o poder da ficção, a histórica mítico-lendária sobre a fundação de Lisboa, transfigurando a capital portuguesa na “cidade de Ulisses”. No segundo capítulo, a atenção recai, consequentemente, sobre a figura mítica do herói homérico que ficou célebre pelo seu nostos errático e atribulado, e que constitui o paradigma mítico-literário do protagonista do romance. Por último, a terceira parte gira em torno de “A Cidade de Ulisses”, centrando-se a análise na influência exercida pelo mito no romance; e na analogia construída entre a figura épica de Ulisses e a caracterização de Paulo Vaz, tendo em conta as três linhas de força que se entrelaçam no universo diegético – a ficcional, a histórica e a mítica – e que modelizam as existências das personagens, os acontecimentos e os espaços ficcionados.

Em suma, este trabalho pretende analisar a presença do mito de Ulisses neste romance de Teolinda Gersão, estabelecendo um paralelo entre a história de Ulisses e a de Paulo Vaz, numa perspetiva histórico-cultural alargada, que aproxima a Grécia antiga do povo luso, numa viagem errática de retorno à mítica Lisboa.

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I . A cidade de Ulisses: literatura, mito e história

1. Teolinda Gersão: a escritora e a obra

Teolinda Gersão nasceu em 1940, na cidade de Coimbra. Estudou Germanística e Anglística nas universidades de Tuebingen e Berlin, foi leitora de Português na Universidade Técnica, docente da Faculdade de Letras de Lisboa e, mais tarde, professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde ensinou Literatura Alemã e Literatura comparada até 1995. Permaneceu três anos na Alemanha e viveu dois anos no Brasil, na cidade de S.Paulo. Atualmente vive em Lisboa.

O romance e o conto são os géneros de eleição da escritora. Em O Silêncio (1981)1 narra-se a história de Lídia e Franco, um casal que não comunica e descobre que o amor entre os dois chega ao fim. Lídia empreende, então, uma luta contra a tirania do seu marido e da sociedade, e por ideias como a justiça, a igualdade e a liberdade. Paisagem com Mulher e Mar no Fundo (1982) constrói-se a partir da perspetiva de todo um povo que escuta e obedece, durante o período opressivo da ditadura salazarista. A protagonista, Hortense, tal como a do romance anterior, recusa conviver, no seu itinerário existencial, com a falta de liberdade e a censura. O mar é uma presença constante no romance, não como sinónimo de glória, mas como elemento tirânico, aparecendo em constante tensão com as personagens. História do Homem na Gaiola e do Pássaro encarnado (1982) é um livro de literatura infantil que narra a história de um homem que procura os lugares mais bonitos para viver, mas onde não consegue ser feliz. Até que um dia, na floresta, encontra um pássaro encarnado que o faz descobrir de que forma pode alcançar a felicidade. Num género marcadamente híbrido, que se distancia, quer na forma quer no plano do conteúdo, das formas narrativas mais convencionais, Os guarda-chuvas cintilantes, editados pela primeira vez em 1984, apresentam-se como uma das obras mais singulares e revolucionárias da autora que, malgrado apareça sob a classificação de “diário”, constitui um exercício de escrita que não se esgota no esperado registo de factos quotidianos próprios do género. O romance O Cavalo de Sol (1989) tem como tema a relação homem-mulher no Portugal dos anos vinte. A Casa da Cabeça de Cavalo (1995) relata histórias de uma família e do país durante um século e reflete sobre a escrita e a literatura como lugares do tempo e da

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memória. É um romance assaz peculiar, uma vez que as personagens estão mortas e nos narram os acontecimentos mais importantes e os sonhos que tiveram enquanto vivas. A Árvore das Palavras (1997) transporta-nos para a sociedade colonial, dos anos cinquenta e sessenta, em Lourenço Marques, Moçambique. Nesta obra, a escritora explora com grande mestria e de uma forma crítica, a temática do racismo. Os Teclados (1999) relatam a iniciação de uma adolescente na vida artística: Júlia, a protagonista, pretende compreender melhor o mundo que a rodeia através da música. Em Os Anjos (2000)2, oferece-se uma visão do adultério e da família, com base na a perspetiva de uma pré-adolescente. Já Histórias de Ver e Andar (2002) é um conjunto de catorze contos curtos, que pretendem focalizar, geralmente a partir de narrativas na 1.ª pessoa, a natureza deslizante e mutável da sociedade portuguesa contemporânea. As personagens vivem num mundo real que, por vezes, se confunde com o universo onírico, um traço muito característico da poética narrativa da escritora. O título inspira-se numa designação árabe para as narrativas de viagens3 e afigura-se como uma espécie de metonímia de uma arte de contar muito eficaz, sustentada por um ‘olhar’ ziguezagueante e fragmentário. Mensageiro e Outras Histórias com Anjos (2003) é uma coletânea de três contos que inclui a narrativa Os Anjos, já publicada anteriormente em 2000, que nos apresenta histórias sobre temas como o amor, a morte e a revelação. A Mulher que Prendeu a Chuva (2008)4, título do conto que ocupa o lugar central no livro, compreende catorze micronarrativas que cruzam dois universos social e culturalmente diferentes, – o europeu e o africano -, em que os sujeitos vão repensando e questionando o vazio e a rotina da vida quotidiana. Depois de A Cidade de Ulisses (2011) que vai ser objeto deste estudo, foram publicadas mais duas obras: As Águas Livres (2013) e Passagens (2014)5.

A escritora tem marcado o panorama literário português nos últimos 30 anos (1981-2013) com uma escrita fluente mas criativa, que não dispensa a ironia e a crítica, privilegiando frequentemente um discurso coloquial matizado pela espontaneidade, em que expressões populares se combinam com termos mais eruditos, uma dentre as várias estratégias adotadas para seduzir o do leitor:

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Os contos deste livro são reunidos com a novela Os teclados numa edição de 2012, sob o título, Os Teclados & Três Histórias com Anjos, que faz parte do Plano Nacional de Leitura.

3 Vide artigo de Annabela Rita (2011).

4 Esta obra obteve o “Prémio Máxima de Literatura”, em 2008. 5

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Enquanto escritora o meu objetivo é também 'agarrar' o leitor, fazê-lo entrar num mundo diferente, até à última página. A escrita é um jogo de sedução, esperamos que o leitor se deixe seduzir e entre no jogo. Felizes aqueles para quem ler é apaixonante: onde quer que estejam, nunca estarão sozinhos.6

Com uma escrita singular e arrebatadora, a autora pretende tornar o leitor um partícipe ativo, na construção das memórias das personagens, bem como dos enredos que elas criam.

O tempo é um dos elementos estruturantes da sua escrita, que se projeta ou num tempo histórico, sobre o qual reflete, ou num tempo psicológico, denso e múltiplo, porque condicionado pelas vivências de cada indivíduo. A vida nas cidades, a comunicação entre homens e mulheres, a condição humana, o amor, a morte são temas tratados nas obras de Teolinda Gersão, que consegue, deste modo, moldar o tempo histórico, seja ele presente ou passado, à economia da narrativa, criando uma inter-relação ente espaço e tempo, primordialmente a partir da focalização do protagonista, e que se projeta numa cosmovisão fluida e plástica, que emana do que se vê, e do que se sente.

Maria Heloisa Martins Dias, na sua obra O pacto primordial entre mulher e escrita, escreve:

Na verdade, Teolinda Gersão coloca-se ao lado de uma série de escritores para quem a linguagem desfibra ao máximo as suas potencialidades para (des)velar os mistérios da personalidade e expressar o indizível. Proust, Joyce, Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Clarice Lispector…- todos, cada um a seu modo, realizaram a experiência com a palavra, transformando-a numa consciência en abîme , tanto do sujeito quanto do ser da linguagem. Ao potenciarem o intimismo, interiorizando as categorias da narrativa como ação, tempo, espaço (…), fazem da escrita um fluxo permanente de recordações, perceções e aparências fugidias. O resultado é a presença no romance de instantes autónomos, vividos com intensidade e dotados de um sentido que parece pré-existir ao todo. Verdadeira atitude fenomenológica, que exibe o próprio modo de ser da ficção – uma estrutura que se desmonta diante dos olhos do leitor e aprofunda a vivência de suas partes. (Dias, 2008, p 36-37.)

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Sublinha ainda a autora que:

Acompanhar o discurso de Teolinda é estar atento a uma linguagem que se move entre a metafísica poética e a prosa ideológica. (Dias, 2008, p.38)

Outra singularidade da escritora são as suas manifestações de amor declarado à língua portuguesa7. Severas críticas têm sido tecidas por Teolinda Gersão aos rumos tomados pela língua portuguesa ao longo dos últimos anos, principalmente no que se refere aos programas de ensino, à terminologia linguística e às normas estabelecidas pelos governos dos diferentes países de língua oficial portuguesa, no caso especial do famigerado Acordo Ortográfico de 1990. A Cidade de Ulisses foi o seu primeiro romance após a entrada em vigor do AO 1990, mas encontra-se escrito na grafia antiga. Como observou Maria Alzira Seixo (2012) “o que Teolinda faz é escrever a vida”, e também, neste romance, o exercício de escrita denota uma preocupação visceral com a linguagem e com a palavra. Elogiando a escritora pelo “excelente domínio da língua portuguesa”, Miguel Real (2011, p1)8

conclui:

(…) após o silêncio de Agustina e em conjunto com Lídia Jorge, não existe autor português actual que prefaça com tanta mestria o dificílimo equilíbrio entre a escrita clássica do romance e as exigências desconstrutivistas modernistas reveladas na segunda metade do século XX como o faz TG. A Cidade de Ulisses é um brilhante exemplo deste modo de escrita clássico-moderno ou clássico-moderno-clássico (…)

Também notável é a concatenação que se opera, particularmente neste romance, entre as artes plásticas e a literatura. Efetivamente, A Cidade de Ulisses, é um exemplo de diálogo fecundo entre a literatura e as artes plásticas. Essa inter-relação é explorada,

7 Cf. o seu polémico texto, escrito em 2012, no Jornal Público, intitulado “Redacção - Declaração de

amor à língua portuguesa”. Disponível em: http://www.publico.pt/opiniao/jornal/redaccao--declaracao-de-amor-a-lingua-portuguesa-24732348. Dentre as várias reações a este “manifesto” da escritora, refira-se a de Maria Helena Mira Mateus, em “A propósito de um texto de Teolinda Gersão”, artigo publicado também no Jornal Público. (Disponível em: http://www.publico.pt/opiniao/jornal/a-proposito-de-um-texto-de-teolinda-gersao-24834490).

8 O texto, originalmente publicado no Jornal de Letras, está disponível em:

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intencionalmente, pela autora, como justificam as palavras de abertura da “Nota inicial”:

Este livro, que dialoga deliberadamente com as artes plásticas, deve-se ao meu interesse por essa área e a múltiplas conversas ao longo dos anos com amigos artistas plásticos (…. ) (Gersão ,2011,nota inicial).

Sob um impulso pós-modernista9, a escritora constrói este romance como um espaço de diálogo artístico, sendo a “visualidade” uma das molas impulsionadoras do fazer literário, como se pode depreender das seguintes palavras: “Sou muito visual, gosto de escrever as coisas a acontecer naquele momento”10

. O recurso a novas e diversas maneiras de representar a realidade ajuda a tecer um universo narrativo descontínuo e fragmentado, em que confluem diferentes formas de ver e de interpretar temas históricos, sociais e humanos. E no que diz respeito à obra em estudo, poderemos dizer que uma mensagem subjacente à narrativa insinua uma confiança na criatividade artística em geral, enquanto forma de exercício hermenêutico sobre as grandes questões contemporâneas da sociedade portuguesa, da Europa e das pessoas, em suma, da condição humana.

Logo na abertura do romance, o protagonista professa a ideia de que a tendência para a “contaminação” artística é sintomática da contemporaneidade: apesar de a obra plástica não ser por natureza verbalizável podia suportar-se nas palavras, tal como a “literatura o campo da palavra – se alargava e invadia outros domínios, procurava novas formas de se tornar visível, parecia que já não lhe bastava o mundo confinado do livro” (Teolinda Gersão, 2011, p. 22)11

. Esse era o tipo de questões que fascinavam o par de artísticas-amantes (Paulo Vaz-Cecília) e que o protagonista recorda a propósito da carta-convite que recebera do diretor do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (p. 11), sobre o projeto que o casal tinha concebido, no passado: uma exposição plástica sobre Lisboa.

Depois de nos ter habituado a um leque de personagens/protagonistas femininos de que são exemplo Lídia em O Silêncio, Hortense em Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo, Júlia em Os Teclados, Vitória em O Cavalo de Sol, a autora introduz uma

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Para uma conceituação de “Post-modernismo” e suas características em alguns romances portugueses, vd. Arnaut (2002).

10 Vd. entrevista concedida a Paula Moura Pinheiro, no programa Câmara Clara da RTP2, em 29 de maio

de 2011.

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importante inovação na sua obra: o romance narrado no masculino. Na verdade, se os romances anteriores da autora abordam temáticas ligadas a experiências de mulheres e à perceção que elas têm do mundo, sendo o universo visto à luz da subjetividade feminina, mesmo que subjugada a um sistema patriarcal, em A cidade de Ulisses, a autora vai revelar-nos uma visão do mundo na ótica do masculino. Mas a vida ficcionada do protagonista gira em torno de mulheres, especialmente de duas, e de uma cidade, também do género feminino. A polarização masculino/feminino e a visão do mundo de um homem, absolutamente seduzido pelo feminino, enquadra-se, assim, num espaço existencial em que os dois géneros se inter-relacionam, complementando-se nas diferentes etapas do percurso da vida, que como a arte “ – que não era inócua nem inocente. Era perigosa, e implicava um risco.” (p. 23).

Maria Alzira Seixo (2012) sintetiza, com grande agudeza, a estória deste romance, escrevendo:

A Cidade de Ulisses transcende em muito a característica de ser um romance

sobre Lisboa e sobre a reescrita do mito de Ulisses. Admiravelmente bem escrito, o texto revela (…) uma sedução clássica exercida pelo romance novecentista, quer no travejamento coeso dos dados da intriga, quer na composição da personagem dominante (…), proporcionando uma lição de vida de sentido ético-social, que intensamente se comunica, sem preterir o que em Literatura é sempre mais importante: o significado artístico do que se escreve. (…) O livro conta uma história de amor, inebriante e envolvente, entre Paulo e Cecília (…), O que Teolinda faz é escrever a vida.

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2. O romance A cidade de Ulisses: a plasticidade da narrativa

O romance A Cidade de Ulisses, sobre o qual se debruça este estudo, é narrado na 1.ª pessoa, por um artista plástico, o protagonista Paulo Vaz e recupera o mito de Ulisses enquanto lenda fundadora da cidade de Lisboa. O enredo constrói-se a partir de uma história de amor, entre dois artistas plásticos, Paulo Vaz e Cecília, e por uma cidade, Lisboa12:

Situada no Extremo Ocidente, entalada entre o mar e a Espanha, tão amiga quanto inimiga, Lisboa procurou no mar uma saída. E partiu. O verbo partir fazia parte de nós, era o lado do desejo, da insatisfação, da ânsia do que não se tinha. (…)” (p. 47)

O título remete, no entanto, para mais do que essa paixão. Apesar de a obra construir a ficção em torno de problemáticas existenciais humanas (o amor, a liberdade, a identidade, a opressão, a criatividade, entre outras) a verdade é que o andamento da narrativa expõe e debate questões da histórica recente do nosso país, em passagens metaficcionais e autorreflexivas, além de revisitar o mundo da antiga Grécia, nomeadamente o mito de Ulisses e a Odisseia homérica. O leitor será, por isso, convidado a viajar por planos tão divergentes como o mito e a história, a realidade e a imaginação, a literatura e as artes plásticas, o passado e o presente, as relações entre homens e mulheres, a crise civilizacional e a necessidade de repensar o mundo, mas olhando para o passado com um pé no presente. São, deste modo, várias as temáticas privilegiadas neste romance: as viagens, os anseios humanos, os relacionamentos em conflito, a identidade pessoal e nacional, a influência dos ambientes e dos acontecimentos na vida dos homens e, claro, a construção da própria identidade portuguesa, com incidência na origem mítica da capital. Podemos dizer que, no universo diegético deste romance, coexistem três linhas de força – a ficcional, a histórica e a mítica – que modelizam as existências das personagens, os acontecimentos e os espaços ficcionados. É também importante mencionar que, no desenrolar da narrativa, as artes plásticas assumem um papel crucial, sincreticamente corporizados no protagonista

12 Como refere Caretti (2013, p. 50), “Por vezes, temos a impressão de que a cidade é personificada a

ponto de ser confundida com as mulheres de sua vida, tornando-se um organismo feminino, cheio de defeitos e qualidades, que tanto lhe proporciona benesses quanto dissabores”.

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Paulo Vaz, um apelido curiosamente sugestivo, que nos traz à memória o maior poeta português: Luís Vaz de Camões.

Como a pintura e outras práticas artísticas, também a literatura se configura como um discurso metafórico que escapa à pura referencialidade para se oferecer à fruição estética e a uma projeção identitária, capaz de ressemantizar o presente, em interação com o passado e o futuro. Este romance apresenta-se, desde o início, como uma recriação subjetiva de vivências que pintam uma representação realista de um Portugal histórico, em que as artes plásticas surgem como uma presença natural e irresistível, partícipe na recriação de tempos e temporalidades, de espaços e lugares, de figuras e mitos.

A narrativa ficcionada aparece, assim, como um “vibrante hino” (Miguel Real, 2011) à cidade de Lisboa e que, nas palavras da própria escritora, recebeu como inspiração, algumas obras do artista plástico português, José Barrias:13

(…) De um modo muito especial, agradeço a José Barrias: numerosos motivos da exposição referida no Capítulo III – a sedução da escrita, a jangada de Ulisses, Quase romance, a recriação da água imensamente azul, a instalação do Nostos, a carta ao pai, a que chamou A imagem da sombra, são elementos da exposição José Barrias etc. apresentada há alguns anos no CAM, e que aqui reutilizei livremente. O motivo da Ode Marítima manuscrita sobre a fachada da casa natal de Fernando Pessoa é igualmente uma ideia de José Barrias, que em 1995 transcreveu o texto nas paredes do quarto do poeta, na Rua Coelho da Rocha, numa instalação com o título: Um

quarto de página. Devo-lhe ainda o apoio que deu desde o início à aventura

da escrita deste livro, de que foi o primeiro leitor. (Teolinda Gersão, 2011,nota inicial)

13 José Barrias nasceu em Lisboa em 1944 e viveu no Porto entre 1950 e 1967. Frequentou

a Escola Superior de Belas Artes do Porto. Viveu em Paris em 1967-68, tendo fixado residência em Milão a partir de 1968. Participou na Bienal de Paris em 1980 e foi o representante de Portugal na Bienal de Veneza em 1984.Tem exposto com alguma regularidade em Portugal, nomeadamente: Galeria EMI Valentim de Carvalho, Lisboa (1990); Casa Fernando Pessoa, Lisboa (1992); exposição antológica no Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa (1996); Galeria Porta 33, Funchal, Madeira (1997); Museu de Serralves, Porto (2011), consultado em Wikipédia: http:// pt.wikipedia.org/wiki/José_Barrias.

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Importará, talvez, para que se perceba a referência na obra ao artista plástico José Barrias, resumir, em traços muito gerais, o conteúdo temático da sua obra. José Barrias constrói narrativas visuais através do desenho, da pintura, da fotografia e da instalação. A memória íntima articula-se com a memória dos lugares e da História nos seus trabalhos. O tempo como passagem é convocado a partir da acumulação de vestígios e de referências, em que a composição visual resulta da convergência das imagens e das histórias. O romance filosófico adquire assim a dimensão de um romance visual. Ou de «quase um romance…», como diria Barrias, que assume o inacabado como condição da obra aberta que as suas narrativas constituem14.

A exposição a que se refere a autora na nota inicial da obra é precisamente a de José Barrias, etc., realizada em 1996, no Centro de Arte Moderna, e que já recriara plasticamente o paralelismo entre as viagens lusas e o nostos do mítico rei de Ítaca.

Nesse sentido, podemos dizer que, no romance de Teolinda Gersão, se (des)constrói, através da voz dominante, um espaço de memórias fragmentadas que modelam a estória, sob o poder da ficção, empreendendo um movimento de retorno ao passado que se rememora, reflexivamente, na tentativa de decifrar os enigmas de vivências sugadas pela voracidade do tempo real. Poderíamos dizer, como Puga (2012, p. 225), que

O romance de espaço de Teolinda Gersão é uma carta-monólogo sobre uma cidade que se transfigura e desfoca(liza) com o fim de uma relação amorosa e o início de outra, mais feliz.

A Cidade de Ulisses encontra-se estruturada em três capítulos: o primeiro, dividido em três secções: “Em Volta de um Convite”, “Em Volta de Lisboa” e “Em Volta de Nós”; e os dois seguintes, intitulados respetivamente, “Quatro anos com Cecília” e “A Cidade de Ulisses”.

O narrador autodiegético15 dirige-se, a maior parte do tempo, a Cecília Branco, usando a segunda pessoa do singular quando a ela se refere. Cecília surge-nos, assim, como o narratário principal da história, ascendendo, por isso, à condição de coprotagonista.

14 Consultado em Wikipédia, http://pt.wikipedia.org/wiki/José_Barrias.

15 Segundo a definição apresentada por Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1980, p. 251), é “a entidade

responsável por uma situação ou atitude narrativa específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central da história”.

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Esta narrativa na primeira pessoa expõe vivências de um lisboeta, professor e pintor, que, sem nutrir um profundo apego a Portugal, cultiva uma grande intimidade com a sua cidade. É, pois, à luz da sua perspetiva masculina que fala das personagens femininas que amou, deixando transparecer laivos de um egocentrismo16, tipicamente masculino, ou mesmo a incapacidade de se entregar de forma completa ao amor (p. 27). Ao longo do romance, Paulo Vaz relata uma série de momentos e memórias da sua história de amor, “inebriante e envolvente” (Seixo, 2012), por Cecília Branco que, quando a narrativa se inicia já havia falecido, e por Sara, a segunda mulher cujo amor, “intenso e cúmplice” (p. 168) o obriga a permanecer, no presente diegético, em Lisboa. Em consonância com as características do romance pós-moderno, a narrativa do protagonista evoluiu num ritmo descontínuo e fragmentado em que se entrecruzam momentos e factos importantes das vivências amorosas e artísticas do protagonista, principalmente no que se refere à relação com as duas mulheres que amou em épocas diferentes, mas também intercalados com referências aos seus pais que propiciam toda uma séria de memórias e reflexões sobre a história do país. Esta voz masculina vai contando a estória para si próprio, numa espécie de “monólogo mental” (Puga, 2012, p. 224), modelizada pela sua perspetiva masculina17. O narrador aparece-nos na pele de um lobo solitário, um ser magoado por ter tido uma infância complicada, cético em relação ao futuro:

O amor não dura. Um dia acordamos e o encanto desfez-se. O mundo voltou a ser o que era. Ou seja, mais ou menos nada. (p.27)

A complexidade das relações humanas, sobretudo entre sexos opostos, é um motivo recorrentemente explorado na narrativa de A cidade de Ulisses. Nesta relação de oposição entre feminino e masculino a que já nos habituou a escrita de Teolinda, surge a construção de uma identidade masculina, revelada através da transformação sofrida pelo narrador-personagem, ao longo do romance. A autora dá a possibilidade ao leitor de

16 Como sublinha Faria (2011, p. 142), “A personagem masculina, Paulo Vaz, não mergulha,

narcisicamente, em si próprio, não privilegia a própria face e a própria voz, não cai na tentação de se refletir num espelho particular, embora recupere o seu passado silenciado e pelo de traumas familiares (…)”.

17 Citando Brandão, 2004, p. 15, Faria (2011, p. 142) sublinha que “o gesto de reconstruir a imagem

fantasmática da mulher amada, a partir de uma enunciação discursiva singular, revela que “falar da mulher ou da figura feminina, onde quer que ela resplandeça, é, de alguma forma, falar de si mesmo, do seu desejo e do seu inconsciente, pois o texto sempre fala de seu autor”(…).

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entrar no espaço interior de Paulo Vaz para conhecer as suas introspeções, as suas vivências, os seus medos e os seus desejos.

O narrador principal vai construindo, no decurso do romance, uma visão personalizada e subjetiva de factos e de experiências que as outras personagens com ele vivenciaram. Mas a narrativa surge, sempre, impregnada do ponto de vista do narrador.

O romance inicia-se com o convite dirigido a Paulo Vaz, um artista plástico já reconhecido internacionalmente, para fazer uma exposição sobre Lisboa na Gulbenkian. Este convite leva-o a recordar, numa longa analepse, Cecília Branco, também ela artista plástica, com quem viveu o grande amor da sua vida e com quem havia planeado uma exposição sobre o mesmo tema. Tinham-se conhecido nos anos oitenta, ele professor e ela aluna. Apaixonaram-se sem se conhecerem em profundidade, amaram-se em Lisboa, cidade que percorreram durante quatro anos (de 1983 a 1987), descobrindo juntos, a sua história, os seus encantos. Mas, depois de uma serena e cúmplice vivência de quatro anos em comum, a relação acaba bruscamente quando ela lhe revela estar grávida. Durante a discussão ela cai na escada do apartamento, empurrada por ele, e acaba por perder o filho de ambos. Paulo arrepende-se, acompanha-a no hospital e leva-a de volta para casa, mas poucos dias depois encontra-a vazia: Cecília partira, levando consigo os esboços que criara durante esse período.

Apesar de a procurar incansavelmente junto de familiares, a recusa sistemática em voltar sequer a falar com ele evidenciam que ela pusera um ponto final no relacionamento. E também ele parte para outros lugares, avançando com os projetos que acalentara, mas que adiara para ficar junto de Cecília. Todavia, dezanove anos depois da sua errância pelo mundo, Paulo regressa à sua cidade natal, Lisboa, para encontrar outra companheira, Sara, uma juíza, que novamente o prende à capital do seu país.

Em 2008, Paulo reencontra Cecília, entretanto casada com Gonçalo Marques de quem tem duas filhas. Em 2009, toma conhecimento, casualmente, pelos jornais, da sua morte, num acidente de viação.

O momento de enunciação tem como ponto de partida o ano de 2010 e um convite feito pelo diretor do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste-Gulbenkien para a realização de uma exposição sobre Lisboa. O narrador recorda, então, o tempo vivido com a amada nos anos oitenta e o que aconteceu neste interregno de tempo.

Quando é contactado pelo Diretor do CAM tem como primeira reação a recusa do convite, pois mantivera esse projeto, muitos anos antes, com Cecília. Contudo apercebe-se que a memória da amada merecia uma justa homenagem, dado que o tema

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proposto tinha sido já referido por ela: a exposição seria, assim, a cidade de Lisboa vista e idealizada por Cecília – era, portanto, imperioso que aceitasse. As anotações, os esboços, as ideias acumuladas pela amada, prontamente cedidas pelo marido ao narrador personagem, iriam, assim, fazer parte de uma exposição póstuma, A Cidade de Ulisses.

Tinha agora uma ideia muito clara de como organizar o teu projecto, Cecília, seguindo o plano e as indicações que deixaras. Inclui ainda excertos dos cadernos, que ampliavam alguns aspectos, ou os faziam surgir a outra luz. As folhas, virtuais, passavam, a um movimento da mão do visitante.

Não irei descrever-te em pormenor a exposição, conhece-la por dentro porque a foste imaginando ao longo dos anos, a partir de muitos acontecimentos e lugares. (p. 191)

Na exposição, como aliás ao longo de todo o romance, a trajetória de Ulisses e, num sentido mais lato, a da Grécia Antiga, é comparada à de Portugal. Efetivamente, o percurso das duas nações assemelham-se em diferentes momentos históricos, como por exemplo no que diz respeito às navegações e às conquistas, e encontra-se no mito da fundação de Lisboa, segundo o qual o herói da Odisseia havia fundado a urbe, durante o seu penoso regresso a Ítaca, finda a guerra de Troia. As várias referências à epopeia de Homero e às suas personagens, Ulisses, Penélope, Telémaco, encontram ecos nas personagens de A Cidade de Ulisses. As relações de intertextualidade com a epopeia homérica projetam-se nas personagens principais - Paulo Vaz, Cecília Branco, Lisboa e nas secundárias – Luísa Vaz, mãe do narrador, Sidónio Ramos, o pai austero e autoritário, e Sara, juíza que combatia a corrupção, que possuem também traços das figuras homéricas da Odisseia.

No discurso deste locutor único, a mulher amada, já desaparecida, é uma presença constante corporizando a sua principal destinatária. A obra baseia-se, aparentemente, numa estrutura dialógica, mas, na realidade, decorre de um artifício monológico em que reflexões de um homem só simulam a presença de uma interlocutora dileta, parte integrante de um diálogo, que lhe dá corpo nas apóstrofes recorrentes do protagonista. Após ter acesso ao material produzido por Cecília ao longo dos anos, que lhe fora oferecido pelo marido, depois da sua morte, Paulo Vaz expressa, assim, o desejo que o guiou:

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Queria seguir-te no teu percurso, Cecília. E antes de mais eras tu própria que eu procurava nas obras, nas imagens, nas fotografias. Numa vida que eu não conhecia. (p. 187)

A narrativa toma, muitas vezes, uma forma epistolar, assumindo um registo predominantemente intimista e confessional. Deste modo, a biografia do protagonista vai-se revelando ao leitor sob a forma de cartas que são dirigidas imaginariamente às duas mulheres da sua vida, ao diretor do CAM, ao seu pai, Sidónio Ramos. Esta estratégia permite-lhe revelar confissões, pensamentos que Paulo Vaz não conseguira verbalizar. Exemplo disso é a carta que escreve após a morte de seu pai (“Carta ao Pai”) onde verte, nas palavras, todas as mágoas sentidas desde a infância e todas as acusações que não conseguira fazer-lhe em vida, procurando, desta maneira, libertar-se das vivências traumáticas da infância até então mais ou menos recalcadas. Relembremos, o início dessa “Carta”:

Sempre achei que um dia te escreveria uma carta, e por isso a escrevo. Embora seja demasiado tarde. O que, por outro lado, me parece irrelevante: se pudesses lê-la não a entenderias.

Durante muito tempo acreditei que, embora de um modo incompreensível nos amavas. Até que passei a ver-te a outra luz:

Tinhas mau carácter, desconhecias a generosidade e o afeto. Gostavas de humilhar, de pisar os mais vulneráveis, porque isso te fazia sentir mais forte. (p. 148)

A obra privilegia, ainda, o espaço Lisboa, cidade que adquire estatuto de personagem coletiva e coprotagonista, realçada como uma cidade com história e repleta de histórias para contar, porque demarca a vida e as vivências das personagens e, por conseguinte, a própria ação.

O tempo da diegese aparece relacionado com a vida errante e de eterno insatisfeito do narrador-personagem, com os seus contínuos regressos à sua Lisboa que funciona, deste modo, como porto de abrigo, onde ele encontra sempre o que deixava de ter no mundo desconhecido e estrangeiro para o qual, de quando em vez, sentia necessidade de fugir. Assim, o fio condutor da diegese é tecido principalmente pelas vivências e experiências de Paulo Vaz que, num aparente monólogo, evoca ou cita a

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mulher amada já morta (Cecília Branco) ou se dirige à mulher que ama no presente, Sara. Mas a desconstrução da diegese presente no discurso adensa-se na dimensão imaginária das “memórias soltas” (p. 105) do protagonista que percorrem um longo período temporal, que vai desde a edificação de Lisboa, passando pela época dos Descobrimentos, detendo-se na fase colonial para chegar à contemporaneidade. Neste itinerário cronológico tão amplo, o foco do narrador privilegia a década de 80 do século passado, em especial os quatro anos compreendidos entre 1983-1987 (p. 105), que viveu, “feliz” (p. 140), com Cecília, e sobre os quais se debruça o segundo capítulo, intitulado, “Quatro anos com Cecília”.

A história de amor vivida pelo casal vai-se miscigenando com a realidade sociopolítica portuguesa contemporânea e, porque Lisboa é o “pano de fundo, em geral desfocado” (p. 34) com o mito fundacional da cidade que a liga a Ulisses. As informações históricas aparecem muitas vezes acompanhadas de citações relacionadas a referenciais artísticos: escritores, cantores, filmes, peças de teatro, óperas e artísticas plásticos. Por vezes, as descrições dos lugares e dos acontecimentos rememorados alternam entre trechos que criam a ilusão de realidade e outros que se afiguram verdadeira “prosa de arte”.

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3. Lisboa, a cidade de Ulisses

3.1. Sobre o mito fundacional de Lisboa

O mito de Ulisses continua, transcorridos 27 séculos, a ser recriado na literatura. São vários os autores que o recuperaram e, nomeadamente, o associaram às origens de Lisboa enriquecendo, assim, a história da urbe. Como bem observa Puga (2011, p. 172), num estudo dedicado à disseminação do mito fundacional de Lisboa nas literaturas inglesa e norte-americana, “a lenda tem um motor e cariz etimológico, a identificação de Olisipo com o nome latino de Ulisses, bem como um outro de cariz nacionalista ou político que tenta enobrecer as origens de Portugal e os míticos descendentes lusos do herói homérico”.

Valerá a pena recordarmos que Ulisses foi o astucioso herói grego que com os seus bravos soldados, depois de vencida a guerra de Troia, empreendeu uma errática viagem pelo mediterrâneo, fazendo descobertas e realizando novas façanhas, entre elas, diz-se, a fundação de Olissipo, o topónimo antigo, derivada do nome latino herói. De facto, a origem etimológica da palavra Lisboa é Ulissipo – ou seja, a cidade de Ulisses. Deste modo, Lisboa, uma cidade com uma história milenar, aparece associada a um mito, desde o tempo dos romanos. Talvez porque Lisboa, aquando da sua chegada, era já uma cidade com fortes e antigos laços com outros povos do Mediterrâneo. É compreensível que os romanos encontrassem na Lusitânia traços helenizantes, para além de provas da sua presença em rotas comerciais, onde não faltariam produtos oriundos de colónias gregas.

Por outro lado, aos olhos dos romanos a criação de um mito fundador com raízes helénicas era também uma forma de integrar perfeitamente a cidade no mundo greco-romano, excluindo assim a intervenção de povos considerados hostis. Ao fazê-lo os romanos afastaram a possibilidade da fundação da cidade ser atribuída aos fenícios, ligando, deste modo, a cidade à cultura helénica. O mito teria sido utilizado com uma finalidade mais política do que histórica.

Seja como for, não pretendemos, neste trabalho, provar a real passagem de Ulisses por Lisboa, pois, sabemo-lo, ela é fictícia, mas de entender a força do mito na construção da história e do imaginário portugueses.

Será oportuno recordar que o poema “Ulisses”, com que Fernando Pessoa abre a primeira parte sua obra Mensagem, “Brasão”, evoca precisamente o herói da Odisseia,

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associando-o às origens de Lisboa. No único livro de poesia em língua portuguesa que publicou em vida, Fernando Pessoa apresenta-nos uma interpretação mítica da história e do destino de Portugal. Nesta primeira parte, dividida nos cinco elementos que formam o brasão (Os Campos, Os Castelos, As Quinas, A Coroa, O Timbre), percorre, através da evocação de uma série de figuras históricas ou lendárias (como Ulisses), a história de Portugal até à formação do império. É a memória da nossa história e da nossa cultura que faz aparecer o mito e o torna significante.

Para o poeta, o mito é a base de tudo, porque iniciador e criador de uma realidade que acaba por fecundar, impulsionador de um futuro que se pretende renovado. Assim, o mito, apesar de irreal, pretende legitimar e explicar o real:

Ulisses

O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo – O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo.

Este que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos criou.

Assim a lenda se escorre A entrar na realidade, E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, morre.18

Também Camões, em Os Lusíadas, se refere a Ulisses como fundador de Lisboa que designa, por diversas vezes, ao longo do nobre poema, de “Ulisseia”: No canto IV, na estrofe 84, no episódio intitulado “Despedidas em Belém”, que relata o momento inicial da viagem queconstitui o plano central da ação, o narrador, Vasco da Gama, em Melinde, prosseguindo a narrativa da história de Portugal, ao rei desta cidade, designa Lisboa de Ulisseia: “E já no porto da ínclita Ulisseia /(…)/ As naus prestes estão…”19

. No canto VIII, Paulo da Gama narra ao Catual as origens e personagens da história de Portugal e referencia o episódio da fundação de Lisboa pelo herói lendário:

18 Fernando Pessoa, 1997, p 59. 19

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Vês outro, que do Tejo a terra pisa Depois de ter tão longo mar arado, Onde muros perpétuos edifica,

E templo a Palas, que em memória fica? Ulisses é o que faz a santa casa

À Deusa que lhe dá língua facunda; Que se dá na Ásia Tróia insigne abrasa, Cá na Europa Lisboa ingente funda.20

Será também importante evocar outros autores que, ao longo dos tempos, nos seus estudos, tiveram por base a passagem de Ulisses pelo Oceano Atlântico.

A primeira referência a Olissipo parece provir de Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C.), autor latino que na sua obra De re rustica, Cap. I, do livro II, fala das éguas de Olissipo que “concebem do vento”. Segue-se-lhe Estrabão (63 a.C.-21 d.C.), autor grego que, na sua Geografia (tratado de dezassete livros contendo a história e as descrições locais de todo o mundo que lhe era conhecido na época), no livro III, narrou a vitória de Décio Júnio Bruto sobre os lusitanos e o facto de, na margem do Tejo, ter fortificado Olissipo21. Nesta sua obra, Estrabão faz ainda referência a autores anteriores como Posidónio, Artemidoro e Asclepíades de Mílea, que falaram de uma cidade “Odysseia” e do templo de Atena, que havia nela, mas que colocam a cidade na TurdeTânia, atual Granada.

Plínio, O Velho (23/24 e 70 d.C.), autor da História Natural em 37 livros, também faz referência a Olissipo e ao Tejo (IV, 22,116 e VIII,67, 166). No livro IV, 211, menciona o promontório Olissiponense ou Ártabro e também ele recorda a lenda das éguas fecundadas pelo vento.

Pompónio Mela, geógrafo latino do século I d.C., autor de uma obra intitulada De Situ Urbis, fala da Lusitânia no livro III, capítulo I, mencionado Olissipo.

Cláudio Ptolomeu, astrónomo e geógrafo grego do século II d.C., foi autor de uma Geografia, onde , no livro II, ao falar da Lusitânia, refere Olissipo, situada antes da Foz do Tejo.

20

1980, p 268.

21

Há pelo menos duas traduções portuguesas do livro III de Estrabão, dedicado à Ibéria:

Estrabão (1978), Livro 3º Descrição da Península Ibérica, 1ªparte (tradução de BRAVO,F.C).Évora. e Estrabão (1965), Geografia da Ibérica ( Tradução de Cardoso, José,) Universidade do Porto, Centro de Estudos Humanísticos.

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Gaio Júlio Solino, escritor do século III d.C., compilador de trabalhos Geográficos anteriores no livro intitulado Collectanea rerum memorabilium, que contém uma breve descrição do mundo antigo, escreve no capítulo XXIV: «…ópido Olissipo, fundada por Ulisses.».

Marciano Capela, gramático africano (primeira metade do século V d.C.) autor da obra enciclopédica Núpcias de Mercúrio e de Filologia, escreve no livro VI: “Olissipo, ópido fundado, dizem, por Ulisses.”

Santo Isidoro, Bispo de Sevilha. (560-636 d.C.) na obra Etymologiarum escreve : “… Olissipo deve a Ulisses fundação e nome.” (“…Ulisipona ab Ulixe est condita et nuncupata.”). De salientar que Santo Isidoro usa, pela primeira vez, a forma latina Olisipona, que deu origem à palavra Lisboa.

O humanista André de Resende (1500-1573), nas suas obras Vincentius Levita et Martyr e De Antiquitatibus Lusitaniae faz também referências à fundação de Lisboa por Ulisses.

Outra obra de referência, da época do Renascimento é a do insigne humanista português, Damião de Góis, intitulada Urbis Olisiponis descriptio (Évora, 1554).

Já no século XVII, surgiram diversos poemas consagrados a Ulisseia ou Ulissipo. Em 1636, foi publicado, postumamente, o poema de Gabriel Pereira de Castro Ulisseia ou Lisboa Edificada. Em 1640, foi publicado o poema Ulyssipo, de António de Sousa Macedo. Também com o título Ulyssipo foi escrita uma comédia, por Jorge Ferreira de Vasconcelos.

Entre os séculos XVI e XVIII, outros autores escreveram sobre o tema: Frei Bernardo de Brito, em 1597, publicou Monarquia Lusitana onde podemos ver desenvolvido o mito sobre Lisboa. Em 1652, Martinho de Azevedo, no livro intitulado Fundação Antiguidades e Grandeza da Insigne Cidade de Lisboa e seus Varões Ilustres …até 1147, dá-nos uma visão de conjunto das tradições sobre o tema22

. Em 1856, Melo Morais em Os Portugueses Perante o Mundo descreve a forma como Ulisses Chega a Portugal, funda Lisboa e manda construir um templo dedicado a Minerva.

Raul Miguel Rosado Fernandes (1985, p. 143) refere que é na Crónica Geral de Espanha que encontramos acrescentos ao primeiro núcleo da lenda com variantes significativas “que mostram uma tentativa de racionalização do mito, como tantas vezes acontecia, quando a lenda era necessária para explicar o que era real”.

22

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De qualquer modo, ainda que que a presença de Ulisses em Lisboa não necessite de fundamentação histórica, serve, no entanto, quer nas obras medievais, quer nas renascentistas, para legitimar e glorificar o passado nacional e converte-se num símbolo da antiguidade histórico-cultural da capital. Aires A. do Nascimento em Ulisses em Lisboa: mito e memória, refere a este propósito:

Mesmo que a crítica histórica obrigue a reconhecer que as origens não são certas e que o mito transborda para fora do quadro geográfico e histórico primitivo, havemos de reconhecer que em Olisipo/Olixbona se constitui se constitui uma comunidade de homens que a si mesmo de reconhecem no suposto epónimo da sua cidade e lhe dão continuidade de viajantes – que ostentam a marca de descobridores até aos confins do mundo, de onde sempre pretendem regressar23.

O povo luso não raro representou a grandiosidade do homem perante as forças da natureza e do destino e, por isso, a relação de semelhança estabelecida com o mítico fundador de Lisboa é utilizada como uma metonímia da história e da identidade portuguesas.

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3.2. Referências mítico-históricas no romance

O romance em estudo assume-se, portanto, como uma das obras mais representativas da literatura portuguesa contemporânea, que recuperam o mito da fundação de Lisboa pelo mítico herói grego.

A ideia de que Lisboa, cidade real, teria sido fundada por Ulisses, um mito,

perpassa no romance de Teolindaatravés de um narrador que vai demonstrando ser um

artista conhecedor da Cultura Clássica:

Havia aliás vinte e nove séculos que o rasto de Ulisses andava no imaginário europeu, a civilização helénica foi o berço da Europa, e ao lado da Bíblia judaico-cristã a Odisseia (muito mais do que a Ilíada) foi, ao longo dos séculos, o outro grande livro da civilização ocidental tal como há uma «vulgata» bíblica há também uma «vulgata» homérica, e, num caso e noutro, uma série de histórias fora da «vulgatas» circulam em torno das personagens.

Segundo a lenda Ulisses dera a Lisboa o seu nome, Ulisseum, transformado depois em Olisipo através de uma etimologia improvável.

O que dava à cidade um estatuto singular, uma cidade real criada pela personagem de um livro, contaminada portanto pela literatura, pelo mundo da ficção e das histórias contadas… Lisboa…estava historicamente ligada à Grécia, às rotas marítimas e comerciais dos gregos… Sobre a relação de Ulisses com Lisboa não tínhamos portanto de inventar nada, já tinha sido tudo inventado havia dois mil anos, e essa história, porque tinha pés para andar, continuara a nadar pelos séculos fora.” (pp. 34-35)

Entre Ulisses e Lisboa, através dos respetivos nomes na sua forma latina estabeleceu -se, ao longo dos séculos, uma estreita relação.

A presença de Ulisses em Lisboa é uma referência constante ao longo do romance de Teolinda Gersão, e, desde logo, insinuada no título do romance A Cidade de Ulisses, que é também o título da exposição de arte, projetada conjuntamente pelos dois artistas plásticos protagonistas da ação.

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A Cidade de Ulisses. O nome parecia-nos irrecusável. Havia pelo menos dois mil anos que surgira a lenda de que fora Ulisses a fundar Lisboa (…). Havia, aliás vinte e nove séculos que o rasto de Ulisses andava a no imaginário europeu, a civilização helénica foi o berço da Europa, e ao lado da Bíblia judaico-cristã a Odisseia (muito mais do que a Ilíada) foi, ao longo dos séculos, o outro livro da civilização ocidental.

No decurso das suas reflexões, Paulo Vaz parece, desta maneira, querer justificar a lenda, tendo em conta que foi moldando, ao longo dos séculos, o imaginário português e europeu.

No seu diálogo unilateral com Cecília, Paulo Vaz reflete sobre as suas pesquisas acerca do tema da exposição que irá montar como tributo ao seu amor do passado, indagando as marcas urbanas do antigo mito:

Que marcas do mito se encontram ainda hoje em Lisboa? Na verdade algumas: no castelo de S. Jorge a Torre de Ulisses (…), na Rua do Carmo a Luvaria Ulisses, sofisticada e pequeníssima (…), no Largo da Misericórdia a livraria Olisipo; a Ulisseia Filmes; a editora Ulisseia; e Fernando Pessoa fundara a editora Ulissipo. (p. 35).

No capítulo “Em Volta de Lisboa”, Paulo Vaz faz referência à versão que os romanos nos deixaram sobre a fundação de Lisboa e à teoria de que o teriam feito para que a história esquecesse os seus inimigos. Na interpretação do próprio narrador, teria sido mais interessante para os romanos espalharem a lenda do que aceitar a fundação de Lisboa pelos fenícios, povo que, provavelmente, teria sido o primeiro a estabelecer relações comerciais com o povo ibérico autóctone. Ligar Lisboa a Ulisses era, portanto, fazer esquecer os cartagineses, descendentes dos fenícios, frente aos quais os romanos tinham sido derrotados nas guerras púnicas.

Provavelmente foram os fenícios que fundaram Lisboa, quando aqui chegaram, pelo menos meio milénio antes de Cristo, para comerciar com a população ibérica nativa. No entanto o mito foi para os romanos mais sedutor que a história. (p. 36)

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O romance recupera, ainda, algumas obras que trabalharam o mito e lhe foram dando forma, através da voz do narrador que assim vai legitimando o título da exposição de homenagem à mulher com quem planeara (re)inventar a cidade onde se amaram:

A Lisboa de Ulisses não era portanto invenção dos nossos renascentistas, que retomaram o mito numa época em que a Antiguidade se tornara modelo e moda, muito menos era invenção nossa. Não tínhamos culpa de que por exemplo Estrabão tivesse escrito no século I na Geografia que Lisboa se chamava Ulisseum por ter sido fundada por Ulisses, que Solino e outros repetissem Estrabão, que Asclepíades de Mirleia escrevesse que em Lisboa, num templo de Minerva, se encontravam suspensos escudos, festões e esporões de navios, em memória das errâncias de Ulisses, que Santo Isidoro de Sevilha afirmasse nos século VII que “Olissipona foi fundada e denominada por Ulisses, no qual lugar se dividem o céu e a terra, os mares e as terras. (p. 36).

A história de Ulisses identifica-se, também, no universo do romance, com a história dos portugueses. Através do narrador é feita uma análise do caminho percorrido pelo país estabelecendo um paralelo entre o percurso histórico dos portugueses e o de Ulisses. A trajetória errática do grego, enquanto herói civilizacional, apresenta fortes semelhanças com a do povo luso, especialmente no que diz respeito à época áurea dos Descobrimentos. Sabemos que as conquistas portuguesas além-mar marcaram um período de glória na História nacional e foi, precisamente, nos feitos heroicos realizados na época dos Descobrimentos que Luís de Camões encontrou inspiração para escrever a grande epopeia Os Lusíadas, cuja ação central incide na descoberta do caminho marítimo para a India, mas à volta da qual se vão descrevendo outros episódios marcantes da história de Portugal e que exaltam a grandeza do povo lusitano, elevado pelo poeta ao estatuto de herói coletivo.

Nas suas deambulações pela cidade, o narrador-pintor vai recuperando as histórias das navegações lusas que associa às gregas e à sua própria vida.

Ainda que as origens da fundação de Lisboa não sejam fáceis de provar historicamente, a verdade é que o mito se encontra tradicionalmente entretecido no imaginário português.

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Neste romance de Teolinda Gersão, Lisboa figura como uma quase-personagem, oriunda de uma estada mítica de Ulisses, na sua viagem de regresso a Ítaca. No entanto, a voz do narrador relembra que os conceitos filosóficos deixados pela civilização grega, como a racionalidade e a democracia (p. 63), só de uma forma muito imperfeita se espelham no mundo contemporâneo se é que alguma vez foram postos em prática na sua forma originária. Mas a importância matricial da civilização helénica germinara nas “raízes” da Europa, e de Lisboa e, por isso, também a exposição que os dois pintores-amantes haviam projetado irá inspirar-se na odisseia do mítico rei de Ítaca:

Mas na Cidade de Ulisses era a Ulisses que voltávamos sempre, finalmente. Roma tinha sido aqui grande presença estruturante, deixando marcas indeléveis, desde logo a língua. Mas a civilização romana não deixara um livro como a Odisseia, nem conceitos filosóficos que mudaram o mundo, como a Racionalidade e a Democracia. A civilização helénica foi o ponto mais alto que a Europa alguma vez foi capaz de produzir. Por isso nos voltamos para ela. À procura e raízes.

E também por isso nos interessa a figura de Ulisses: virtualmente ligámo-lo a esses conceitos que nunca assumimos nem praticámos, nem nós, nem o resto do mundo. E nos faziam falta, desesperadamente: a Racionalidade e a Democracia (p. 63).

Mais à frente, o narrador, nos comentários que tece sobre as tais marcas deixadas pelo legado helénico, descobre a “pegada mítica de Ulisses”:

(…) No nosso imaginário Ulisses, o grego, representava o legado helénico. Saía da sua época arcaica, da sua ilha de pastores e marinheiros, navegava pelo tempo levando essas três coisas fundamentais que a Grécia deixara ao mundo: além da Odisseia, a Racionalidade e a Democracia.

Era essa, achávamos, a pegada mítica de Ulisses. (p. 63)

A intertextualidade que se materializa nas diferentes alusões à Odisseia converte o mito de Ulisses numa metonímia de Lisboa-cidade de Ulisses, numa metáfora de história de Portugal e até da história de amor que inspira o romance.

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Através da referência à Antiguidade e a episódios marcantes da história lusa, a autora, pela da voz do narrador, focaliza ainda a atualidade, mostrando, na perspetiva de um lisboeta errante, o que foi feito da capital ao longo dos séculos e o que se faz dela no momento presente. Assim, podemos concluir como Puga (2013, p. 311) que

A Cidade de Ulisses moderniza o mito da fundação de Lisboa ao transformar

a urbe num espaço cronotópico e palimpséstico em que Ulisses marca uma presença preponderante nos imaginários artístico e coletivo portugueses.

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3.3. Lisboa: entre o mito e a realidade

Ao longo do texto estabelece-se, como já se referiu, um paralelo entre a biografia do narrador e a história mais recente do país real, tendo sempre como pano de fundo Lisboa.

No capítulo I, na secção “Em Volta de Nós”, Paulo Vaz faz uma síntese do percurso político, económico, social e cultural da nação, e em particular da sua capital, na década que sucedeu ao Estado Novo. Um levantamento minucioso ao qual a autora não será alheia.

Nesse discurso sobre a capital, o narrador vai demonstrando ao leitor, com um olhar retrospetivo e crítico, de que forma, ao longo da sua vida, foi participando no contexto histórico do seu país, durante o tempo em que habitou na capital, isto é, no período imediatamente após o 25 de Abril de 1974, mais tarde nos anos 80 e, por fim, de 2008 a 2010.

As constantes crises económicas que se foram manifestando desde o século XV e a primazia do progresso em detrimento do valor artístico dos espaços, com o crescimento caótico da cidade, sem qualquer planeamento, a especulação imobiliária que conduziu à destruição de muito do património histórico e cultural da cidade, estão na base de várias reflexões críticas do narrador, como prova a seguinte passagem:

No Martim Moniz por exemplo tinha destruído um pedaço irrecuperável da zona baixa da Mouraria, tantos cafés com história tinham desaparecido como a Brasileira do Rossio, também frequentada por Fernando Pessoa, o Chave d’Ouro, que desaparecera em 59, ou a pastelaria Colombo, que deu lugar a um Mac Donald’s – e na altura não imaginávamos por exemplo que em 2000 uma necrópole romana e um bairro islâmico do século XI seriam destruídos no subsolo da Praça da Figueira, para construir um parque de estacionamento.

Os exemplos, se quiséssemos desfiá-los, não acabariam mais. (p. 64)

O narrador concede, todavia, maior relevância ao contexto sociopolítico da década de 80, que coincide com o tempo em que viveu com Cecília Branco, e que é objeto do segundo capítulo: “Quatro anos com Cecília”. Aí a história pessoal de amor vivida com a companheira aparece intercalada com eventos da história real vivida, na época, pelos portugueses.

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A história de amor com Cecília ocorreu num período de crise generalizada, greves, degradação do património, quer a nível arquitetónico, quer cultural, corrupção, desigualdades sociais, desemprego, aumento da dívida externa e intervenção do FMI. De facto, esses anos ficaram marcados pelos acordos que Portugal fez com o FMI e pelo agravamento extraordinário das condições de vida dos portugueses. Portugal recorria, então, pela segunda vez ao FMI. Em 1977, assinara-se um primeiro acordo, para enfrentar o agravamento das contas externas; em 1983, Portugal enfrentava uma situação muito deficitária nas contas externas, a dívida externa crescera então significativamente, e, como o país teve grande dificuldade em financiar-se nos mercados financeiros internacionais, o governo teve de recorrer, uma vez mais, ao FMI. As medidas tomadas pelo governo em acordo com o FMI assentaram na desvalorização do escudo, na redução das taxas sobre as importações, no aumento drástico dos preços de bens essenciais (incluindo pão, óleos vegetais, rações para animais, leite, açúcar, adubos e produtos petrolíferos, como refere a carta de intenções) e redução dos subsídios a esses produtos; no congelamento de investimentos públicos; na descida dos salários reais da função pública e no congelamento de admissões de trabalhadores; e, claro, na subida de impostos.

Com a entrada de Portugal na CEE (em 1 de janeiro de 1986) e os efeitos de tal decisão, a situação económica deu indícios de normalidade, no entanto, Portugal chegaria ao fim deste período de instabilidade com algumas feridas: quase 10% de desempregados e um escudo que valia face ao marco alemão seis vezes menos (em relação aos valores de 1974) e sete vezes menos face ao dólar americano, enquanto a dívida pública seria também quase seis vezes superior à de 197624.

O narrador dá-nos conta da situação com laivos de denúncia e reprovação sem deixar de fazer alusão à arte, à arquitetura, à cultura, dando o seu testemunho que advém de um olhar atento e conhecedor dos rumos do país. A relação entre os acontecimentos histórico-culturais da cidade é explorada, de forma ficcionada, é claro, neste romance, e as rememorações subjetivas do narrador adquirem um efeito realista, de grande verosimilhança:

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Resumo feito a partir do sítio https://www.infopedia.pt/login?ru=apoio/artigos/$instabilidade-socioeconomica-pos-25-de-abril da www.infopédia.pt, consultado em 11/10/2015.

Referências

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