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ONDE O ARGUMENTO WILT CHAMBERLAIN E A ABORDAGEM DAS CAPACIDADES SE ENCONTRAM: APONTAMENTOS SOBRE CONCEPÇÕES DE JUSTIÇA FISCAL

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ONDE O ARGUMENTO WILT CHAMBERLAIN E A ABORDAGEM DAS

CAPACIDADES SE ENCONTRAM: APONTAMENTOS SOBRE

CONCEPÇÕES DE JUSTIÇA FISCAL

WHERE THE WILT CHAMBERLAIN ARGUMENT AND CAPACITY APPROACH ARE:

NOTES ON FISCAL JUSTICE CONCEPTIONS

Armando N. G. L. Martins Paulo Roberto dos Santos Corval RESUMO: Por meio de um método jurídico

teórico, o presente artigo busca analisar as possíveis contribuições de diferentes teorias da justiça para a noção de justiça fiscal. Utilizando-se a noção conciliatória de John Tomasi entre liberais clássicos e modernos, é apresentada uma visão do “Argumento Wilt Chamberlain” de Robert Nozick sob o ponto de vista da “Abordagem das Capacidades” de Amartya Sen. Sugere-se que, ao levar em conta aspectos não monetários da tributação, o melhor sistema fiscal envolveria sua progressividade pelo lado de focalização dos gastos sociais nas camadas mais baixas, mas com o sistema tributário neutro, de modo a evitar incentivos sociais adversos.

Palavra-chave: Justiça Fiscal, Teorias da Justiça, Amartya Sen, Robert Nozick, Neutralidade Fiscal.

ABSTRACT: By the means of a theoretical-juridical method, this article aims to analyze the possible contributions to different theories of justice to the notion of fiscal justice. Using John Tomasi’s conciliatory notion between classical and modern liberals, it is presented a vision of Robert Nozick’s “the Wilt Chamberlain Argument” by the point of view of Amartya Sen’s “Capability Approach”. It is suggested that, if non-monetary aspects of taxation are taken into consideration, the best fiscal system would involve its progressiveness on the side of more social expenditures focalized on lower classes, while the tax system remains neutral, in order to avoid adverse social incentives. Keywords: Fiscal Justice, Theories of Justice, Amartya Sen, Robert Nozick, Fiscal Neutrality.

SUMÁRIO: Introdução – 1. O pivô do referencial teórico: a 'democracia de mercado' de John Tomasi - 2. Perspectivas sobre tributação: Robert Nozick - 2.1. Contextualização do pensamento de Nozick - 2.2 o argumento Wilt Chamberlain - 3. Perspectivas sobre tributação: Amartya Sen - 3.1 -Contextualização do pensamento de Sen - 3.2. A abordagem das capacidades - 4. quando Nozick e Sen se encontram - 5. conclusão: como Tomasi, Nozick e Sen poderiam contribuir à justiça fiscal – referências bibliográficas

Recebido em: 17.12.2018. Aprovado em: 25.10.2019.

Mestre em Economia e Bacharel em Direito na Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do Grupo

de Estudos Interdisciplinares sobre Estado, Finanças e Tributação (GEIEFT-UFF) e do Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Direito Constitucional Latino-Americano (LEICLA-UFF). E-mail: martinsarmando@outlook.com.

 Professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em

ciências jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio). Doutor em Ciência Política pela UFF (PPGCP/UFF). Email: prscorval@vm.uff.b

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INTRODUÇÃO

A despeito das políticas públicas fiscais, é notável o reconhecimento da relevância da justiça social como princípio balizador da sua criação e aplicação, de modo a formar o conceito de justiça fiscal.

Neste sentido, diversas produções acadêmicas na seara do Direito Tributário, Financeiro e Economia das Finanças Públicas tratam o princípio da justiça fiscal, com o enfoque na noção de neutralidade (menor agressão do tributo à produção) e, principalmente, na capacidade contributiva (a maior quantidade de tributo deve ser paga por aqueles que tem maior capacidade de arcar).

A maior preocupação em relação à capacidade contributiva se dá principalmente na desigualdade entre ricos e pobres, que é considerada geradora de grandes tensões sociais. O Direito, enquanto instrumento de pacificação de conflitos, tem o dever de enxergar esta problemática para que haja um convívio saudável em sociedade.

No entanto, a noção de pobreza envolve uma névoa de imprecisão. Nesse sentido, o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial lançado pelo Banco Mundial em 1990, ao tratar sobre a pobreza, encara o problema:

O relatório define a pobreza como a incapacidade de manter um padrão de vida mínimo. Para tornar útil esta definição, três questões devem ser respondidas. Como medir o padrão de vida? O que significa um padrão de vida mínimo? E, tendo identificado os pobres, como expressar a severidade da pobreza na sociedade como um todo por uma única medida ou índice?

Entretanto, a literatura vigente sobre justiça fiscal foca quase que exclusivamente no aspecto de renda, monetário da riqueza e pobreza para pensar sobre capacidade contributiva. Nesta dificuldade em se definir a pobreza, KAGEYAMA E HOFFMANN (2006, p.88-92) propõem uma perspectiva multidimensional da pobreza, de modo a levar em conta outros aspectos que caracterizam a pobreza, a fim de não negligenciar outros tipos de pobreza que a renda não revela, e que seriam condenadas ao esquecimento. Deste modo, aparece exposta alguma

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lacuna nos estudos da justiça fiscal, assim sendo necessária a tentativa de novas abordagens de como tratar este princípio.

O objetivo deste trabalho é procurar novos argumentos que abarquem outras formas de pobreza, de modo a tecer contribuições para pensar em políticas públicas condizentes a uma justiça fiscal mais acolhedora aos mais pobres.

Para a busca de novas argumentações, os trabalhos de três autores são enfocados: John Tomasi, Robert Nozick e Amartya Sen.

Como o fenômeno da tributação tem claras relações com o patrimônio e as propriedades dos indivíduos, se faz necessária a apuração da interação do instituto da propriedade na sociedade e como se dá a interferência do tributo no processo econômico de alocação de recursos. Neste sentido, o pensamento de Robert Nozick se demonstra relevante, a partir de seu estudo sobre a propriedade e por seu “argumento Wilt Chamberlain”, que visa pensar em como a tributação igualitarista afeta a sociedade.

Os estudos de Amartya Sen merecem igualmente importância neste presente trabalho, por entender a problemática da limitação dos critérios de renda em mensurar a pobreza, de modo a formular uma “abordagem das capacidades” para propor que a pobreza é uma restrição das capacidades enquanto leque de escolhas de um indivíduo, assim como o desenvolvimento é o processo de expansão deste leque.

A interlocução entre Amartya Sen e Robert Nozick se dará com o elo de ligação formado por John Tomasi, e seu conceito de “Democracia de Mercado”. Tomasi, enxergando o desenvolvimento das tradições liberais clássicas e libertárias de um lado e liberais modernas do outro, percebe um abismo histórico entre a defesa de liberdades econômicas fortes e a defesa da justiça social. A partir de autores como John Rawls e Friedrich Hayek, principalmente (mas também com o auxílio de Nozick e Sen), o autor propõe um programa de pesquisa que visa unir estes conceitos de livre mercado e justiça social, ao tentar propor um novo conceito de justiça social enquanto maximizador de riqueza da sociedade, especialmente em relação aos mais pobres, e então buscar demonstrar como o livre-comércio seria compatível com essa concepção.

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A linha de investigação se dará pelo estudo em rede de pensamento entre os três autores e outros autores adjacentes, de modo a descobrir pontos de divergência e, principalmente, de contato, para então fazermos uma análise do “argumento Wilt Chamberlain” à luz da “abordagem das capacidades” de modo a extrair conclusões e visões práticas que poderiam contribuir à discussão sobre justiça fiscal.

A metodologia empregada para tal será a jurídico-teórica, de modo a possuir vocação analítica e fazer uso do método dedutivo. Conforme aponta GUSTIN (2006, p.22), a metodologia jurídico-teórica tem relação mais direta com o âmbito da Filosofia do Direito e com as áreas teóricos-gerais dos demais campos jurídicos, além de, conforme esta autora aponta em Witker (1985), acentuar os aspectos conceituais, ideológicos e doutrinários do campo a ser investigado.

1. O PIVÔ DO REFERENCIAL TEÓRICO: A 'DEMOCRACIA DE MERCADO' DE JOHN TOMASI Com o intuito de traçarmos um paralelo entre o pensamento da abordagem das capacidades de Amartya Sen e o argumento Wilt Chamberlain de Robert Nozick, para então extrairmos uma noção conjunta de justiça fiscal, faz-se necessário analisarmos o pivô do referencial teórico, que funcionará como um elo teórico de ligação entre as tradições de pensamento de ambos os autores: o conceito de democracia de mercado (market democracy), formulado por John Tomasi em sua obra “Free Market Fairness”.

John Tomasi descreve a Democracia de Mercado como seu programa de pesquisa de um modelo deliberativo de liberalismo econômico e político, enquanto híbrido do pensamento liberal clássico e do liberalismo moderno americano (conhecido no Brasil como Progressismo, ou até mesmo Social-Democracia). Segundo Tomasi (2012a, p. xv) o modelo de democracia de mercado se baseia em quatro pilares: 1) o reconhecimento da liberdade de mercado como um aspecto vital da liberdade humana; 2) o reconhecimento da sociedade como uma ordem espontânea; 3) a busca de instituições políticas justas e legítimas como aceitáveis para aqueles que vivem sob elas; 4) a justiça social como o critério último de avaliação política.

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Tomasi fundamenta a criação de seu modelo a partir da análise histórica da evolução do pensamento liberal clássico e liberal moderno. Para Tomasi (2012a, p. 2-6), os primórdios do liberalismo clássico remontam às teorias do Estado e da propriedade formuladas por John Locke nos seus Dois Tratados sobre o Governo, sob os quais se estabeleciam os fundamentos morais de um governo limitado, em oposição ao modelo feudal em transição e a ameaça de um sistema despótico subjulgado pelo rei.

Na mesma corrente de pensamento, Adam Smith buscava explicar os efeitos de uma política liberal na esfera econômica e social. Para Smith, a transição de um sistema feudal para uma sociedade de mercado levaria a um estado de opulência nunca antes experimentado até então, devido à coordenação das pessoas em ordem espontânea.

O papel do Estado nesse processo de desenvolvimento se restringiria a defesa nacional, a administração estrita da justiça e a provisão de um número limitado de bens públicos. Assim, Smith era um severo crítico do mercantilismo, por se tratar de um sistema que engessava privilégios e redistribuía riqueza dos mais pobres aos mais ricos, enquanto o liberalismo econômico seria o impulsionador da sociedade.

Para Tomasi (2012a, p.11-16), o pensamento liberal clássico de Locke e Smith atingiu seu ápice com a fundação de um país cujas instituições foram construídas sob sua inspiração: os Estados Unidos. Ainda que não refletissem fielmente o ideário, este país representou na época a viabilidade de um modelo oposto ao Absolutismo europeu.

Na popularização de uma visão crítica ao pensamento liberal clássico acabou surgindo com as movimentações da Revolução Francesa, em paralelo à independência dos Estados Unidos. As primeiras notáveis críticas teóricas ao momento liberal clássico se deram a partir de Rousseau, em seu “Discurso sobre as Origens da Desigualdade”. As leis pró-liberdade econômica não protegeriam as pessoas de explorações e conduziriam-nas a manter relações de dominação e desigualdade, de modo a representar um mal social.

A partir desse movimento crítico surgido (que foi seguido por autores como Saint-Simon, os socialistas ricardianos, anarquistas, e Karl Marx), muitos teóricos passaram a abandonar o liberalismo clássico em favor de teorias socialistas ou comunistas, enquanto

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outros teóricos buscavam salvar os preceitos liberais de liberdades individuais enquanto incorporavam concessões aos críticos do liberalismo. Deste modo, emergiria um outro movimento que daria origem ao liberalismo moderno.

John Tomasi (2012a, p.29-31) aponta como ponto central dessa mudança de paradigma as teorias de John Stuart Mill. Para Stuart Mill, as atividades humanas se dividiam em duas esferas: a de liberdade, que dizia respeito a escolhas individuais que só envolviam outras pessoas mediante seu consentimento, como a religiosa e a de livre-associação; e a de coerção, que dizia respeito a atividades que acabavam afetando diretamente outras pessoas, esfera esta onde Mill colocava as liberdades econômicas. Era, assim, do interesse da sociedade balizar a segunda esfera de atividade humana, de modo a garantir o bem comum. Seu utilitarismo filosófico servia à individualidade enquanto do interesse do ser humano em desenvolvimento e, por este motivo, não enxergava a liberdade econômica no mesmo patamar das liberdades religiosas ou de associação e rejeitava a noção de que as liberdades econômicas como um fim em si mesmo pela liberdade como um todo, mas meramente um instrumental. É a partir de Mill que se começou a pensar em um ideário liberal com uma defesa fraca das liberdades econômicas, o que formou a ruptura entre o liberalismo clássico e moderno.

Na medida em que os Estados Unidos se desenvolviam, surgiam dúvidas quanto ao modelo vigente, tendo em vista o surgimento de grandes riquezas que acabavam formando uma casta hereditária, tal como o pensamento liberal procurava evitar. Com a quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929, a confiança no liberalismo clássico sofreu mais um golpe, momento este que se popularizam os pensamentos econômicos de John Maynard Keynes, por tentar oferecer uma base científica para a crença de que o controle governamental diretamente sobre a economia e na promoção de políticas públicas pudesse surtir efeitos positivos. Ao mesmo tempo que havia os clamores de uma limitação das liberdades econômicas, aumentava-se as discussões sobre justiça social, que refletiu no pensamento jurídico vigente a partir da Era Roosevelt.

Em oposição às ideias de Keynes, Tomasi aponta um reavivamento do liberalismo clássico na segunda metade do século vinte, com sua ênfase no economista Friedrich Hayek,

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por suas contribuições também na análise social e jurídica, que se tornaram famosas no livro Direito, Legislação e Liberdade. Hayek, imerso em uma tradição jurídica consuetudinária, retoma a ideia de ordem espontânea de Smith para defender que “a liberdade é interesse dos indivíduos usarem seu próprio conhecimento para atingir seus próprios fins” (1985a, p. 17). Para Hayek, seria um perigo à sociedade livre a ideia de tentar planificá-la e fazê-la atingir em conjunto um fim comum, pois implicaria em restrições à liberdade dos indivíduos perseguirem seus próprios fins.

Para Hayek, a distinção entre os pontos de vista da sociedade planejada ou espontânea surge da confusão jurídica em torno do conceito de direito. Tendo em vista a sua imersão no direito consuetudinário, Hayek divide a noção de lei em nomos e thesis. Como nomos, HAYEK (1985a, p.140-141) denomina o “direito construído", isto é, o direito formado nos tribunais em compasso ao surgimento de instituições civis vindas por ordem espontânea do seio da sociedade, e que, portanto, precisariam ser protegidas na medida em que auxiliam os indivíduos a perseguirem seus fins e pacificar conflitos.

Em contraste com nomos, HAYEK (1985a, p.168-169) aponta a existência da thesis, o “direito criado” por um corpo legislativo para causar certos efeitos sobre o processo (até então) espontâneo da sociedade. Enquanto a nomos versaria sobre normas de aplicabilidade geral, a thesis seriam comandos de execução por pessoas específicas para fins específicos. A problemática em torno da criação sistematizada desse tipo de norma é que seria impossível para um legislador processar todos os conhecimentos dispersos em cada agente da sociedade, de modo que a vigência desta lei faria com que os indivíduos se desviassem das ações que empreenderiam para perseguir os seus fins, e portanto formariam 'defeitos' no processo de evolução da ordem espontânea, e assim causaria malefícios maiores do que os benefícios intencionados. A formação de thesis, segundo Hayek, deveria ser restrita a mínimos dispositivos, como a criação de uma rede de assistência social mínima ou de educação pública. Friedrich Hayek, portanto, via a noção ideal do Direito, especialmente os direitos de propriedade (incluídos a vida, a liberdade e o status civil) como uma ferramenta de geração de confiança e estabilidade, de modo a contribuir aos agentes da sociedade uma maior possibilidade de formação de um conhecimento adequado para a perseguição dos fins

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individualmente escolhidos. HAYEK (1985b, p.117-122) era cético com qualquer noção de justiça social, já que seu crivo de justiça diria respeito apenas às transações efetuadas na ordem espontânea da sociedade, e não aos resultados gerados por essas transações, enquanto quaisquer retificações quanto aos novos status que surgissem demandariam a criação de leis sob o modelo de thesis em detrimento de um sistema jurídico baseado na

nomos, de modo a acabar destruindo a formação de riqueza na sociedade e induzir os

cidadãos a terem papéis sociais cada vez mais passivos.

No plano do liberalismo moderno, em paralelo ao movimento do liberalismo clássico no século XX, John Rawls foi um divisor de águas com sua obra “Uma Teoria da Justiça” (1971), por prover ao liberalismo moderno uma justificação moral da noção de justiça social, que iria além das igualdades formais tratadas no liberalismo clássico. Crítico da justificação moral utilitarista por falhar em considerar o indivíduo como um agente moral independente e digno de respeito, Rawls então busca uma alternativa, formulando uma teoria denominada construtivismo, baseada diretamente no papel concreto das pessoas na sociedade. TOMASI (2012a, p. 38) descreve a teoria de Rawls:

Em vez de confiar diretamente em um “amontoado” de intuições morais, ou em preocupações consequencialistas como a maximização de felicidade ou riqueza agregada, o construtivismo procura identificar princípios de justiça raciocinando diretamente sobre os requerimentos morais da vida social. Uma sociedade democrática, no ponto de vista de Rawls, é um sistema équo de cooperação de pessoas concebidas como cidadãs. Membros dessa sociedade, na essência moral como cidadãos, são agentes livres e igualmente auto-governadas. Uma teoria da justiça deve partir dos requerimentos que as instituições sociais devem satisfazer para respeitar os cidadãos como agentes morais envolvidos em atividades de cooperação. Rawls pensa nisto como requerimentos para equidade, e então chama a teoria da justiça a qual ele desenvolve em resposta a estas procupações como “justiça como equidade”. Justiça como equidade consiste em dois princípios centrais: o primeiro parte de direitos básicos e liberdades; o segundo adiciona uma série de requerimentos distributivos. (tradução nossa)1

1 Instead of relying directly on the “jumble” of moral intuitions, or on consequentialist concerns such as maximizing happiness or aggregate wealth, constructivism seeks to identify principles of justice by reasoning directly about the moral requirements of social life. A democratic society, in Rawls’s view, is a fair system of cooperation between persons conceived as citizens. Members of that society, in their moral essence as citizens, are free and equal self-governing agents. A theory of justice should set out the requirements that social

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John Rawls, a princípio, procurou identificar uma série de princípios a partir de um experimento hipotético que ele criou, denominado posição original, na qual as pessoas escolheriam princípios de justiça por debaixo de um véu de ignorância sobre qual seriam os papéis sociais que cada um desempenharia. Mais tarde, o próprio Rawls se afastou deste modelo, que demandaria que as pessoas concordassem em uma série única de princípios. Os aspectos da posição original, como a definição do véu ou as motivações e formas de pensamento dos grupos acabariam por dar origem a várias concepções alternativas de justiça. De qualquer modo, o pensamento de Rawls foi considerado um sucesso em tentar oferecer uma definição moral de um ideal de justiça distributiva para um movimento de liberalismo moderno então existente há um século. A noção de justiça em Rawls se baseava no fato de que um conjunto de arranjos institucionais são justos na medida em que são feitos para produzir bens e criar oportunidades para os membros de todas as classes sociais, resguardados uma série de direitos e liberdades básicas e, segundo um 'princípio da diferença' no qual, na escolha de instituições que auxiliem os mais pobres, a justiça demanda que seja preferida a instituição que oferecer maiores benefícios (RAWLS, 2000, p.57-69)

A crítica feita por liberais modernos aos clássicos é de que uma defesa de liberdades formais acaba por permitir fatores arbitrários, como boas condições de nascimento, influenciar resultados distributivos, sendo que a noção de justiça social buscaria resolver esse problema. Contudo, faltaria algum limite para essa crítica a desigualdade arbitrária, tendo em vista todas as desigualdades fisiológicas, genéticas e de personalidade também possuírem doses de arbitrariedade, o que levaria a uma defesa extremamente uniformizante do igualitarismo. Rawls busca solucionar ao perceber cada indivíduo como seres separados, e que uma teoria da justiça deveria levar em conta o respeito a integridade individual. Além disto, deve-se notar que qualquer esforço para nivelar uma sociedade por baixo deve reduzir a

institutions must satisfy to respect citizens as moral agents engaged in a cooperative venture. Rawls thinks of these as requirements of fairness, and so calls the theory of justice he develops in response to these concerns “justice as fairness.” Justice as fairness consists of two main principles: the first sets out basic rights and liberties; the second adds a series of distributional requirements.

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quantidade de bens e serviços disponíveis, de modo a acabar prejudicando quem está na classe mais baixa.

A partir da primeira proposição, Tomasi resume a ideia de Rawls na premissa de que os seres humanos são autores responsáveis de sua própria vida, isto é, que as pessoas plenamente saudáveis, independentemente das vantagens e desvantagens do nascimento, tem a capacidade de desenvolver e agir conforme seus planos de vida e, além disso, tem o dever moral de respeitar outros indivíduos por eles também serem autores responsáveis de suas próprias vidas. Tendo em vista as diferenças inescapáveis de cada pessoa, os cidadãos devem procurar instituições que auxiliem em desenvolver e exercitar as capacidades pessoais. Deste modo, não seria necessário um nivelamento por baixo ou uma tensão social entre os talentos e ambições de cada um, mas sim a busca de arranjos institucionais os quais permitam que esses talentos e ambições de cada um possam ser usados para beneficiar as outras pessoas. (TOMASI, 2012a, p.40-41)

John Tomasi sublinha que, após Rawls, outros liberais modernos desenvolveram outros critérios de justiça social, com os exemplos do igualitarismo de sortes, de Ronald Dworkin e Richard Arnerson, que vê a justiça social como um corretor de pessoas que sofreram socialmente de “azar”; ou a abordagem das capacidades de Amartya Sen e Martha Nussbaum, que mantém seu foco de justiça social não nas rendas repartidas entre as pessoas, mas nas possibilidades delas desenvolverem suas capacidades funcionais (esta última teoria que será tópico de análise deste trabalho). (2012a, p.42)

De qualquer modo, Tomasi percebe uma tendência do pensamento de Rawls e do movimento liberal moderno como um todo: a de relegar a defesa da liberdade econômica a um papel secundário. Muito embora Rawls reconhecesse como direito básico direitos restritos, como à propriedade de bens não produtivos e de liberdade de ocupação profissional, ele explicitamente declara que outras liberdades, como a de propriedade dos meios de produção ou a liberdade ampla de contratuar não seriam direitos básicos, relativizáveis conforme a política a ser implementada. (2012a, p.43)

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Os liberais modernos, assim, defendem um leque de instituições para realizar suas estratégias de justiça social. Mill propunha uma democracia social baseada em cooperativas organizadas por trabalhadores, Dworkin defendia um sistema de economia mista, taxação progressiva e programas de redistribuição de renda para os mais pobres na forma de serviços sociais. Tomasi aponta que Rawls, por outro lado, não via sua definição de justiça social como questão realocativa, mas sim de escolha institucional, isto é, “que a justiça como equidade requer que todo o sistema social expresse o compromisso dos cidadãos de viver cooperativamente e como agentes livres e auto-governantes”. (2012a, p.45).

Em termos gerais, para Tomasi (2012a, p.45), o liberalismo moderno busca a justiça social como critério último de análise institucional, de modo a rejeitar a defesa forte das liberdades econômicas feitas pelo liberalismo clássico por não se encaixarem nas definições de equidade nas repartições de oportunidade e liberdades políticas.

Dentro do panorama atual, Tomasi percebe um dilema acadêmico. Um fato socialmente percebido por Tomasi é que o desenvolvimento econômico se revelou ao longo das décadas um grande impulsionador da prosperidade e da redução da pobreza. Neste sentido, afirma (2012a, p. 61):

A prosperidade crescente parece oferecer a um leque ainda maior de pessoas um senso de empoderamento e independência. Ela encoraja uma forma especial de autoestima que vem quando as pessoas reconhecem elas mesmas como causas centrais das vidas particulares que estão vivendo – em vez de estarem de qualquer modo na supervisão dos outros, não importando quão bem intencionados, altruístas ou sábios os outros possam ser (…) a prosperidade faz com que o exercício pessoal de liberdades econômicas mais, e não menos, valiosa para vários cidadãos.2

Esta constatação de Tomasi leva ao problema de o pensamento liberal moderno subestimar o valor das liberdades econômicas frente ao que considera direitos básicos, e até

2 Há de se notar que a percepção de Tomasi se dá na sociedade americana. Há indícios no Brasil do reconhecimento do comércio como emancipador, a partir do Indicador de Percepção Corporativa da agência Burson-Marsteller (BURSON-MARSTELLER. Indicador de Percepção Corporativa. Agência Burson-Marsteller. São Paulo. 2014). Assim, é extremamente importante estudarmos como a cultura brasileira lida com o comércio.

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mesmo perder a sensibilidade com o tato social que buscava manter, já que este se revelava favorável ao desenvolvimento da economia. A alternativa contemporânea que oferece uma defesa forte das liberdades econômicas veio com o libertarismo, exposto na academia por Robert Nozick em resposta ao “Uma teoria da Justiça”. No entanto, assim como o liberalismo clássico, o libertarismo não trazia os avanços morais em termos de liberdades materiais que o liberalismo moderno procurava defender, de modo que se formava um abismo entre o liberalismo moderno e as tradições liberais clássicas/libertárias, sem que houvesse uma perspectiva de diálogo entre essas correntes. É neste panorama que John Tomasi se insere tentando buscar uma ponte de ligação, na linha de pensamento que Tomasi denomina “liberalismo neoclássico”, junto com autores como Jason Brennan, Matt Zwolinski e outros3.

John Tomasi faz a seguinte distinção: os liberais clássicos vêem os indivíduos como maximizadores de utilidade, raciocinando por análise de meios-fins, de modo a defender políticas de promoção de fortes liberdades econômicas; os liberais modernos vêem os indivíduos como cidadãos, raciocinando por deliberações, e, assim, defendem políticas de promoção de justiça social. Neste panorama, Tomasi pretende desenvolver seus estudos sobre a “Democracia de Mercado”, um modelo político no qual se conciliaria os fundamentos morais liberais-modernos com a defesa forte das liberdades econômicas do liberalismo clássico, de modo a ter a visão dos indivíduos como cidadãos, raciocinando por deliberação, mas defendendo políticas que promovam tanto fortes liberdades econômicas, como justiça social, simultaneamente.

No entanto, podemos propor uma outra distinção entre as tradições liberais, tendo em vista conceitos como de liberdades positivas e negativas, direitos positivos e negativos. Para ISAIAH BERLIN (1997, p.136-142), liberdade negativa é o aspecto de não-interferência nas atividades do ser humano, a ausência de coerção. Para BERLIN (ibdem, p. 136), “um homem não possui liberdade política, individual ou institucional, apenas se estiver sendo impedido de atingir uma determinada meta por outros seres humanos. A simples incapacidade de atingir essa meta não constitui falta de liberdade política.” Porém, se reconhece que a liberdade

3 Para maiores detalhes: BRENNAN, Jason. TOMASI, John. Classical Liberalism. Oxford Handbook of Political

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negativa perde valor se o indivíduo não tem condições de uso. Dessa inquietude, surge o segundo conceito de liberdade, a liberdade positiva, isto é, o poder para materialmente agir e possuir condições de governo de si próprio (ibdem, p. 142-145). Para Berlin, o perigo que reside na liberdade positiva é a necessidade de se exigir e obrigar terceiros para fazer valer essa liberdade.

No entanto, o conceito de liberdades positivas e negativas se confundem com o direito positivo e negativo. Para CANOTILHO (1993, p. 519-520), os direitos negativos são os direitos de defesa da não-intervenção, enquanto os direitos positivos são os direitos exigidos de prestação de alguns serviços para o desenvolvimento individual.

Diferiria assim os direitos e liberdades positivas e negativas, pois os direitos são a instrumentalização da força para a garantia das liberdades. O direito negativo usa a força para coibir outras coerções; o direito positivo usa a força para prestar serviços.

Assim, podemos fazer uma segunda distinção das correntes do liberalismo: o liberalismo clássico defende liberdades e direitos predominantemente negativos; o liberalismo moderno defende liberdades e direitos predominantemente positivos, e o modelo da “democracia de mercado” defende liberdades positivas e direitos predominantemente negativos. Para Tomasi, reconhecer a importância de um maior escopo individual de ação, não implica na defesa de um Direito que exija obrigações de outras pessoas (ao contrário de Berlin): as melhores promotoras de liberdades positivas estariam nas instituições que defendessem predominantemente direitos de não-coerção, enquanto a promoção de direitos positivos se revelaria contraproducente.

Para defender a sua posição, John Tomasi, ao resumir a ideia de Rawls de que o cidadão é autor de sua própria vida, defende que a forte liberdade econômica é um direito básico intrínseco a esse princípio, que não é apenas um mero meio instrumental para o bem-estar humano, e sim um dos fins em si mesmo. O mero direito de poder escolher seu posto de trabalho e ter uma propriedade não-produtiva não bastaria para que o princípio se cumprisse no modelo de 'Democracia de Mercado. A possibilidade de possuir bens de produção viabiliza uma estimativa de poupança e independência que acaba formando segurança econômica

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para indivíduos e famílias, e menor dependência dos programas do Estado. Mais que isso, aumentaria a quantidade de postos de trabalho para a livre-escolha dos trabalhadores, facilitaria a acessibilidade de bens e serviços não produtivos e possibilitaria a formação de microempresários que, com seus negócios próprios, se tornariam independentes do modelo de vínculo hierárquico-empregatício.

Ainda que a vida econômica não seja prioritariamente apreciada por todas as pessoas, que podem ter como plano de vida outras metas, como usufruir da experiência democrática de participação e discussão, ou de dedicação à vida religiosa, não se poderia restringir a possibilidade de escolha dos cidadãos em optar ou não o desenvolvimento pessoal na vida econômica, sob o risco de acabar ferindo a sua capacidade de ser então, autor de sua própria vida.

Por este motivo, John Tomasi propõe um novo modo de pensar a justiça social, conciliando o pensamento de John Rawls e Friedrich Hayek. Hayek, ao criticar a noção de justiça social, indicando que a noção de justiça só diz respeito a produtos da deliberação humana e que a sociedade, enquanto ordem espontânea, foge do desenho humano, de modo a não ter a capacidade de passar por um crivo de justiça; a justiça social seria, assim, um termo vazio que abriria margem a todo o tipo de intervenção estatal sobre a liberdade humana.

No entanto, Hayek mantém uma sutileza em seu pensamento, demonstrada por Tomasi: a noção de justiça deve se aplicar também às leis que governam as ações humanas, e não tão somente a estas ações. É por isto que, no prefácio do segundo volume de Direito, Legislação e Liberdade, Hayek menciona a possibilidade da teoria rawlsiana divergir da dele por pura semântica, por Rawls amplamente usar o termo 'justiça social': ambos defendem poder avaliar a justiça das instituições sociais segundo sua capacidade de favorecer o funcionamento da sociedade, e rejeitam o uso do conceito de justiça social como uma força meramente redistributiva.

Ainda assim, como visto anteriormente, John Rawls desenvolveria posteriormente com base em sua teoria alguns aspectos que vão de encontro com Hayek, como maior relativização de direitos econômicos e forte redistribuição de renda.

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Neste sentido, Tomasi busca desenvolver sua própria noção de justiça social: haveria um maior grau de justiça social quando o conjunto de regras e instituições funcionam, ao longo do tempo, para melhorar as condições de todos na sociedade, prioritariamente os mais pobres. Um sistema institucional igualitarista que acaba por deixar os mais pobres em condição pior do que seria em um sistema não-igualitarista, a custo de menor desigualdade, não teria como ser considerado socialmente justo.

A sociedade não seria um sistema estagnado, mas em um processo dinâmico, nos quais os cidadãos não são vistos por seus status dentro do sistema, mas sim, como agentes em processo de desenvolvimento pessoal. Assim, as instituições precisam ser vistas não pelos efeitos imediatistas, mas por seus efeitos contínuos. Um programa que possa aliviar algum aspecto social no curto prazo, mas que cause prejuízos sociais a longo prazo, não condiz com a noção de justiça social tomasiana.

A tese de Tomasi, apesar de sua grande inovação, recebe importantes questionamentos. NAVERSON (2012, p. 189-192) reconhece os méritos de John Tomasi em defender um mercado livre, mas não defende o quão forte seria a defesa das propriedades, de modo a não delimitar o que seria a parte voluntária do mercado e a parte agressiva do Estado. THRASHER (2013, p.3) questiona a compatibilidade da justiça social com Hayek, uma vez que as leis deveriam ser julgadas pela conduta exercida, e não pelas consequências de maior bem-estar. ARNOLD (2014, p. 4-6) contesta que relegar ao mercado a tarefa de oferecer riqueza aos mais pobres não garante que se cumpra uma repartição équa de oportunidades.

Em geral, o estudo sobre o modelo de “Democracia de Mercado” exposto no livro “Free Market Fairness” buscou primeiramente analisar o pensamento liberal moderno e liberal clássico como um todo, porém, direcionando posteriormente com um foco específico nas teorias de Rawls e Hayek. Tomasi adverte que o modelo de Democracia de Mercado é compatível com os outros modelos do Liberalismo Moderno, tal como a “Abordagem de Capacidades” de Amartya Sen, a “Igualitarismo de Sortes” de Dworkin ou a “República Liberal” de Philip Pettit, e vislumbra as possibilidades de pesquisa sobre o conciliação destas teorias com os preceitos liberais clássicos.

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A intenção do presente trabalho, portanto, será de esboçar a conciliação da abordagem das capacidades de Amartya Sen com um modelo hipotético criado por Robert Nozick, denominado “Argumento Wilt Chamberlain” para analisar os efeitos de uma política de taxação progressiva, de modo a, não só extrair pontos de contato e complemento que possam inclusive formular respostas aos críticos de Tomasi, mas para principalmente procurar tecer contribuições para se pensar a justiça fiscal enquanto justiça social aplicada às instituições fiscais.

2. PERSPECTIVAS SOBRE TRIBUTAÇÃO: ROBERT NOZICK 2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO PENSAMENTO DE NOZICK

Robert Nozick (1938-2002) foi um filósofo americano nascido no Brooklyn, Nova York, de descendência de imigrantes judaicos-russos. Sua carreira acadêmica em filosofia se iniciou em sua graduação em Columbia. Posteriormente, obteve seu Mestrado e PhD em Princeton, e então lecionou em alguma das principais universidades americanas, ao fazer a trajetória de professor assistente em Princeton, Harvard e Rockfeller University, se estabelecendo como professor titular em Harvard.

Em 1971, seu colega mais antigo na docência em Harvard, o filósofo John Rawls publicou o seminal livro “A Theory of Justice”, o qual causou grande repercussão no meio acadêmico. Neste contexto, Roderick Long (2002, p. 30) descreve:

Em 1974, ideias libertárias tinham virtualmente nenhuma presença no establishment acadêmico. Os economistas liberais F. A. Hayek e Milton Friedman ainda não haviam recebido seus prêmios Nobel (Hayek receberia apenas no fim daquele ano, enquanto Friedman teria sua vez dois anos depois), e o filósofo político em voga era um colega de Nozick, John Rawls, cujo monumental tratado “Uma teoria da justiça” havia sido amplamente aclamado por seu argumento de que os indivíduos deveriam poder beneficiar-se de sua maior riqueza, talento ou esforço apenas sob a condição

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de que compensassem os menos afortunados. E então veio Anarquia, Estado e Utopia. (tradução nossa)4

O livro “Anarquia, Estado e Utopia” foi escrito na maior parte enquanto Nozick era associado no Center for the Advanced Study in Behavioral Sciences em Palo Alto em 1971 e 1972. A primeira parte do livro surgiu de uma versação oferecida a um grupo de estudantes em Stanford, na qual Nozick expôs alguns pensamentos sobre como um Estado poderia surgir de um estado de natureza. A segunda foi escrita a partir de uma série de palestras em Harvard intitulada “Capitalismo e Socialismo”, na qual Nozick co-palestrou com Michael Walzer5, então, desenvolveu uma teoria da justiça pautada em titularidades e teceu críticas a teoria de seu colega John Rawls, para então expôr que o Estado apenas desenvolveria um papel de justiça se ele se ativesse tão somente a uma função mínima de proteger os direitos individuais. Por fim, a terceira parte do livro veio de texto apresentado em uma reunião da American Philosophical Association, onde Nozick defendeu seu modelo como uma meta-utopia libertária, na qual se permitiria que qualquer pessoa pudesse viver seu próprio modo de vida. (BADER, 2010, p. 3-4)

Segundo Bader (2010, p. 4),

Anarquia, Estado e Utopia foi premiado no National Book Award em 1975 e é amplamente aceito como uma das contribuições mais importantes para a filosofia política no século vinte. O Times Literatury Supplement o nomeou como um dos 'Cem Livros Mais Influentes desde a Guerra'. A teoria de Nozick foi sujeita a muita crítica e uma grande quantidade de literatura secundária foi gerada. Nozick nunca respondeu nenhuma de suas críticas com base em que ele 'não queria gastar a minha vida escrevendo “O filho de Anarquia,

4 “In 1974 libertarian ideas had virtually no presence within the academic establishment. Free-market economists F. A. Hayek and Milton Friedman had not yet won their Nobel prizes (Hayek’s would come later that year, and Friedman’s two years after that), and the reigning political philosopher was Nozick’s own colleague John Rawls, whose monumental treatise, A Theory of Justice, had won widespread acclaim for its argument that individuals should be allowed to benefit from their greater wealth, talent, or effort only so long as they compensatethe less fortunate.Then came Anarchy, State, and Utopia.”

5Michael Walzer (1935- ) é um filósofo americano, especializado em filosofia política em áreas como moralidade das guerras e nacionalismo. É professor emérito da Institute for Advanced Study e um dos principais nomes do comunitarismo. Mais detalhes no seu perfil profissional: <http://www.ias.edu/people/faculty-and-emeriti/walzer>

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Estado e Utopia”, O retorno do filho de . . .”, etc. Eu tinha outros questionamentos filosóficos para pensar. (tradução nossa)6

No ponto inicial do livro, Nozick busca em Locke a noção de estado de natureza, como um estado no qual as pessoas vivem em um grande estado de insegurança, ainda que sendo sujeitos de direitos naturais de não-coerção e de fazer valer esses direitos a qualquer um que os violar. A insegurança vem do fato de que a aplicação individual da justiça esbarra em vieses entre duas partes litigantes, no que dizem relação aos próprios pontos de vista sobre o caso em litígio, de modo a se tornar impossível um acordo sem um árbitro desinteressado mediando uma negociação.

Entretanto, Nozick diverge de Locke em remediar esta inconveniência de pronto com a fundação de um Estado. Nozick busca antes teorizar métodos de solução de conflitos que poderiam ser usados no próprio estado de natureza, para então vislumbrar as soluções as quais a fundação de uma instituição como o Estado poderia oferecer, sem causar mais problemas outros do que soluções. Os modelos de segurança privada escalam em um 'mecanismo de mão invisível', isto é, possuem incentivos internos que os indivíduos acabam por convergir em cooperação concentrada.

A solução inicial proposta é de que grupos de pessoas se organizassem e efetuassem a vigilância do grupo de modo cooperativo. No entanto, por questão da vantagem de se efetuar uma divisão social de trabalho, os indivíduos estariam dispostos a remunerar pessoas que se dedicassem exclusivamente à vigilância, enquanto tivessem tempo livre para desempenhar outras atividades produtivas. Assim, de um grupo em vigilância cooperada poderia surgir facilmente empresas de serviço privado de vigilância para aqueles que estivessem dispostos a pagarem por este serviço.

6 “Anarchy, State, and Utopia was awarded the National Book Award in 1975 and is widely acclaimed as one of the most important contributions to political philosophy in the twentieth century. The Times Literary Supplement named it as one of ‘The Hundred Most Influential Books Since the War’. Nozick’s theories have been subjected to much criticism and a huge amount of secondary literature has been generated. Nozick never responded to any of the criticisms on the basis that he ‘did not want to spend my life writing “The Son of Anarchy, State, and Utopia,” “The Return of the Son of . . .,” etc. I had other philosophical questions to think about’”

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Com a constituição de empresas de serviço de vigilância operando em um mesmo território, surgem conflitos entre as empresas, tanto pela concorrência de mercado quanto pela aplicação de sanções entre pessoas tuteladas por empresas diferentes. As três possibilidades que Nozick enumera para a solução desses conflitos: 1) Uma empresa entre em guerra com a outra, e a vencedora tome o espaço da outra; 2) Ambas entrem em conflito em pé de igualdade e acabem se isolando cada uma em um território definido; 3) Ambas as empresas busquem a mediação de um terceiro desinteressado, que acabaria se tornando um tribunal de apelação e, na medida que vários conflitos constantemente surgissem, se criaria uma federação de empresas de segurança, com tendência de certa padronização do perfil jurídico, para que houvesse maior segurança jurídica. De qualquer modo, as três soluções conduziriam ao mesmo fenômeno: haveria apenas uma empresa de segurança que se assentaria em um território definido, responsável por este serviço naquela área.

Assim, surge uma categoria chamada “Estado ultramínimo”. Nele, a instituição detém um monopólio de fato da força em um território, mas apenas confere segurança aqueles que pagassem por este serviço; aqueles que não pagassem, os independentes, continuariam a poder exercer seu direito de punir agressores, o que acabaria gerando dilemas sobre conflitos entre os vinculados ao Estado e os independentes.

Nozick então propõe uma solução ao dilema ao notar os altos riscos gerados pela permissão de pessoas independentes punirem supostos agressores vinculados à agência de segurança, o que legitimaria a agência a impedir a punição de seus protegidos por parte desses independentes. Para compensar essa restrição aos independentes, a agência então lhes ofereceria proteção contra punições advindas dos próprios membros dela. Deste modo, a agência se encarregaria de, além de pacificar conflitos entre seus membros, também pacificar conflitos entre os associados e pessoas independentes, que não pagassem pelo serviço de segurança. Nesta transformação, a agência não seria mais considerada um Estado ultramínimo, e sim um Estado mínimo, modelo esse que Nozick defende ser o maior estado possível que não violasse direitos individuais.

Com os independentes podendo criar entre si um aparato de Direito positivo próprio, de modo diferente da agência protetiva dominante, se torna assim viáveis arranjos não

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estatais sob a área de influência – e de proteção – da agência. Seria possível assim, que pessoas que advogam arranjos anárquicos possam fazer as suas comunas (bakuninistas, comunistas, mutualistas etc.) e viverem as utopias que desejam. É esse pensamento que Nozick defende na terceira parte do livro 'Anarquia, Estado e Utopia': seu modelo de Estado como uma metautopia, de modo que sua utopia permitisse a construção de outras utopias, sem que um desses modelos utópicos implicasse na coerção de submeter outras pessoas a viverem nela.

Nozick então recorre a noção de Estado de Max Weber para demonstrar se seu modelo poderia entrar neste conceito. Weber define o Estado como “comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território” ou mais, que o “O Estado é a única fonte do 'Direito' de usar a violência” (WEBER, 1982, p.98). Nozick (2009, p.155-156) argumenta que, de um ponto de vista antropológico, a agência possuiria instituições sólidas o bastante para ser considerada um Estado, mas que precisaria enfraquecer a definição de Weber para que o monopólio da instituição fosse de fato, e não de direito.

A lição que Nozick quer extrair é de que não haveria, para ele como os indivíduos delegarem ao Estado o direito de monopólio sobre a força, isto é, a legitimidade da instituição de proibir a formação de outras agências de segurança, e esta prerrogativa só poderia ser obtida na base da violência contra os direitos individuais do ser humano. Este o paradigma do pensamento libertário, exemplificado em Nozick.

Há de se considerar que, ainda que seja possível compatibilizar o estado nozickiano com sistemas de deliberação e participação, assim como uma assembleia geral de associação privada, Nozick não dá o devido enfoque no funcionamento da instituição (inclusive o autor ataca a democracia por não conseguir resolver a questão da natureza do estado), o que representaria um perigoso déficit democrático em sua teoria.

Com relação aos direitos individuais evocados na teoria do estado, Nozick claramente defende já no começo de seu prefácio que “os indivíduos têm direitos e há coisas que nenhuma

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filosofia nozickiana, ser um 'eu' significa ter a capacidade de auto-referência reflexiva (NOZICK, 1983, p.78). Os seres humanos são aqueles que possuem essa capacidade, de modo que são possuidores, rastreadores e perseguidores de valores. Logo, devem ser tratados como tal, o que, para Nozick, se relaciona no imperativo categórico kantiano de que os seres humanos devem ser tratados como fins em si mesmos, e não meros meios para obter fins. Caso contrário, o próprio agente perderia valores seus e abriria a possibilidade de relativizarem seus direitos individuais. (NOZICK, 1983, p.462)

A partir da ideia de direitos individuais, Nozick constrói sua teoria da justiça baseada nas intitulações, isto é, que os pertences pessoais são legítimos quando adquiridos de forma não-coercitiva, seja pela apropriação originária, transferência voluntária ou retificação de aquisição viciada de propriedade. Para tal, Nozick busca novamente em Locke a sua teoria da propriedade (para rejeitar o mero utilitarismo), adicionando notáveis reformas.

O ponto de partida de Nozick sobre a propriedade se dá na teoria laborista da aquisição inicial. A teoria descrita por Locke sofre críticas: a falta de fronteiras definidas; a falta do motivo de misturar o trabalho vincular o recurso natural a um dono.

Nozick, ao analisar a teoria lockeana, questiona o critério de ser o trabalho que forma a propriedade. Uma possível solução é de que a apropriação do trabalho alheio constitui uma forma indireta de escravidão, e, portanto, um vilipêndio ao direito individual à liberdade. No entanto, o apropriador deve, no ato da apropriação, definir a área do recurso sobre o qual trabalhou e se apropriou, para que haja um direito determinado ou determinável a ser defendido.

Outro questionamento de Nozick é do porquê do trabalho tornar todo o recurso apropriado, e não apenas o valor incrementado. A auto-propriedade, enquanto propriedade do nosso corpo, faz com que nós sejamos possuidores da matéria física que incorporamos, e não apenas da modificação dela. A propriedade exterior, extensão de nossa autopropriedade, não precisaria (e não teria como, Nozick admite) se separar o recurso do incremento de valor efetuado.

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Outros dilemas propostos para ilustrar seus problemas com a teoria laborista da apropriação original foram se um indivíduo que joga suco de tomate na água do mar pode se apropriar do oceano, e se os personagens do submarino amarelo que acabam deixando um rastro de flores no mar sem custo algum também poderiam se apropriar delas. Porém, teóricos modernos do proviso lockeano (ver ROTH, 2018) defendem que, em caso de conflito entre apropriadores nesse caso, haveria uma pacificação de conflito baseado em qual das partes teria maior vínculo em termos de trabalho com a coisa disputada. Neste sentido, a propriedade não é uma coisa independente do sistema legal, mas ao mesmo tempo o sistema legal não pode decidir sobre a propriedade de forma arbitrária, mas se ater às evidências fáticas do vínculo das pessoas às coisas apropriadas.

Cabe salientarmos que, ao se teorizar a formação da propriedade, não necessariamente precisarímos naturalizar o ser humano como um animal apossador e acumulativo (muito embora algum tipo de apropriação seja necessário para a alimentação, vestuário e outros recursos de sobrevivência). O intuito é identificar o ato de aquisição de propriedade como um ato legítimo, e uma tomada não-consensual de algo já previamente apropriado como algo violento. Um monge budista, na sua filosofia de desapego, poderia escolher não acumular bem material algum sem que houvesse prejuízo a teoria da propriedade, porém não poderia legitimamente invadir a moradia ou furtar algo de outra pessoa, caso contrário, estaria se apropriando do trabalho de outras pessoas sem consentimento, o que seria considerado uma forma indireta de escravidão.

Embora a teoria da propriedade lockeana seja pautada no princípio da autonomia do indivíduo, e dela deduza que o ser humano adquire a propriedade daquilo que se apropriar originariamente mediante seu trabalho, Locke percebeu o dilema do fato dos recursos naturais serem escassos e exclusivos, e buscou mitigar os efeitos perante a terceiros adicionando uma condição à aquisição de propriedade: “(...) pelo menos enquanto houver

bastante e de igual qualidade deixada em comum para os demais.” (LOCKE, 2005, p.409)

Deste trecho, Nozick buscou analisar as implicações desta condição, que nomeou 'restrição (proviso) lockeana', e a partir dela chegou a uma conclusão importante sobre a função da propriedade, que refletirá na concepção de justiça fiscal.

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Como reconhece Nozick, quando um indivíduo se apossa de algum objeto, a situação das outras pessoas muda, já que antes de uma pessoa fazer a apropriação da coisa, as outras poderiam usar o objeto, e, após essa detenção, não haveria mais essa liberdade. Mas, o uso individual daquela coisa possuída pode melhorar o status de outros, o que compensaria essa desvantagem da perda da possibilidade de apropriação e uso por terceiros. Portanto, a restrição se traduz, na verdade, em não piorar o status dos terceiros não-proprietários (NOZICK, 2009, p.220-221).

Ao ler literalmente o que foi escrito por Locke, caso todos os recursos naturais fossem apropriados e houvesse pessoas que não possuíssem propriedade, o último aquisitor da propriedade não o poderia ter feito, por ser ilegítimo; o penúltimo perderia a legitimidade pois teria restrito o último e os outros; o antepenúltimo também perderia a legitimidade, por ter restrito o penúltimo, e sucederia em regressão até o primeiro proprietário, logo todos seriam ilegítimos pelo proviso. (NOZICK, 2009, p. 221).

Entretanto, Nozick argumenta que há duas concepções de perda de utilidade por terceiros a partir da apropriação individual: uma pela perda de oportunidade de melhorar a sua situação a partir do bem apropriado, e outra pela perda da capacidade de usar livremente o que podia anteriormente. Além disso, o filósofo descreve exigências fortes e fracas do proviso, sendo que a forte excluiria ambas a concepções se nada mais contrabalançasse a perda de oportunidade, enquanto uma exigência mais fraca excluiria apenas a segunda concepção, já que as pessoas que não tenham mais capacidade de se apropriar dos recursos naturais ainda poderiam usá-las de outra maneira, ou adquiri-las secundariamente conforme transferências voluntárias. (NOZICK, 2009, p. 221).

A partir da questão de se a situação das pessoas incapazes de se apropriar dos recursos naturais pioraria com um sistema de propriedade privada, Nozick (2009, p. 222) enumera uma série de benefícios sociais gerados pela propriedade privada:

[...] aumenta o produto social colocando os meios de produção nas mãos daqueles que os podem usar mais eficientemente (lucrativamente); a experimentação é encorajada porque com pessoas distintas a controlar os recursos não há apenas uma pessoa ou pequeno grupo que alguém com uma nova idéia tenha de convencer para experimentar; a propriedade privada

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permite às pessoas decidirem o padrão e os tipos de riscos que desejam suportar, levando alguns a retirarem recursos do consumo corrente para mercados futuros; proporciona fontes de emprego alternativas a pessoas impopulares que não têm de convencer apenas uma pessoa ou um pequeno grupo a contratá-las, e por aí em diante.

Muito embora enumere-se alguns benefícios dos quais a propriedade privada proporciona a terceiros, esta exposição não constitui, dentro do arcabouço teórico de Robert Nozick, uma justificação utilitária da propriedade, mas apenas um embasamento para o entendimento sobre a restrição lockeana não impedir toda e qualquer aquisição de propriedade por si só (NOZICK, 2009, p. 222), apenas em casos de exceção devidamente justificados, como na apropriação de monopólio natural de um bem essencial (NOZICK, 2009, p. 223 - 227).

Uma crítica feita a direitos de propriedades fortes é de que em uma situação de progressiva apropriação de terra, quando todas as terras fossem privadas, a primeira pessoa que nascesse sem acesso a apropriação de recursos poderia ser rejeitada na propriedade de todas as outras pessoas, não tendo então um lugar para se manter fisicamente. No entanto, a própria restrição nozickiana, ao lidar com o monopólio de recursos naturais, impediria de que a pessoa sem propriedade pudesse sempre ser legitimamente expulsa, ao dar direito ao menos ao uso bastante do lugar.

Uma notável crítica da restrição nozickiana foi formulada por G. A. Cohen (1995, p.90), ao alegar que o benefício posterior da aquisição de propriedade para um terceiro não-proprietário implicaria em paternalismo, porque seria uma restrição forçada de liberdade para conceder outra, ainda que maior. Porém, há confusão entre liberdade positiva (de poder fazer algo) e negativa (de não ser coagido); a restrição de liberdade mencionada por Cohen é positiva, e uma intervenção na propriedade formada para retomar essa liberdade positiva reduziria a liberdade positiva de outras pessoas, de modo a incorrer em utilitarismo de liberdades positivas. Deste modo, a defesa nozickiana da compensação por esses benefícios não é pontual, mas sim institucional.

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A propriedade então teria uma função mais ampla que a mera garantia de sobrevivência: a de permitir o livre desenvolvimento do ser humano, uma vez que não se permitiria que as pessoas fossem uns escravos dos outros a custo da subsistência mínima. Por outro lado, uma posição eudemonista não implicaria que algumas pessoas fossem livres enquanto outras fossem condenadas à inanição, devido ao fato do uso e produção a partir da propriedade gerarem externalidades7 positivas que garantiriam benefícios para as pessoas não-usuárias daquele recurso apropriado em específico.

A teoria nozickiana da propriedade nos dá, assim, subsídios pela seguinte conclusão: a propriedade privada busca desempenhar uma função inerentemente social (isto é, sem a necessidade de uma política pública de cima para baixo) de irradiar externalidades positivas para terceiros não-proprietários, e esta função é efetuada na própria existência e uso dessa propriedade. É por este motivo que Tomasi (2012, p.137-138), ao analisar a argumentação nozickiana, de tomar a propriedade como uma instituição que aumenta a riqueza da população, vê indícios da sua própria visão de justiça social, de modo a convergir com o objeto deste trabalho.

2.2 O ARGUMENTO WILT CHAMBERLAIN

A partir das noções de propriedade elaboradas por John Locke, Robert Nozick pretende construir sua teoria de justiça alternativa a Rawls, baseada em titularidades, julgadas por critérios de distribuição históricos. Para Nozick, os indivíduos tem direitos quando são titulares de recursos que são obtidos mediante aquisição inicial (onde entra a teoria de Locke), transferência voluntária (mediante compra e venda, doação, herança etc) ou retificação, nos casos de transferência de recursos mediante violência, como roubo, extorsão, escravidão e, assim, não se encaixa nos outros dois modos.

Em contraposição aos princípios históricos, Nozick indica a existência dos princípios padronizados, que seriam aqueles nos quais se forma algum padrão (igualitarismo material,

7 Segundo Mankiw, (2013, p.185) “externalidade é o impacto das ações de uma pessoa sobre o bem-estar de outras que não participam daquelas ações.”

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utilitarismo, meritocracia) e a distribuição seria justa quando se adequa ao resultado final esperado pelo modelo. Nozick ataca estes principios, uma vez que acabaria impondo um critério distributivo que independe das vontades individuais dos membros da sociedade, o que implicaria em violação dos direitos dessas pessoas.

Neste sentido, a teoria de Nozick se assemelha em muito a de Friedrich Hayek, ao perceber a sociedade como ordem espontânea de alocação de recursos e que uma sociedade justa deve respeitar o poder de decisão individual de seus membros em vez de alguma instituição governamental tentar moldar algum aspecto da sociedade.

No entanto, Nozick diverge de Hayek: primeiramente que a argumentação de Hayek contra a justiça distributiva leva em conta tão somente a assimetria de informação da sociedade, e deixaria inconscientemente em aberto a questão se seria justa ou não uma justiça distributiva se a informação fosse perfeita. Outro ponto da justiça hayekiana criticado por Nozick diz respeito ao fato de Hayek acabar formulando, ainda que sem querer, um padrão de que na sociedade livre os recursos seriam distribuídos na medida em que os agentes criassem valor, o que ignoraria transferências por motivos não-econômicos (como herança, caridade, doação arbitrária etc). Assim, Nozick resume sua própria teoria da transferência com a máxima “De cada um escolhe, a cada um segundo são escolhidos” (NOZICK 2009, p. 204)

Contudo, um dado importante do arcabouço teórico de Hayek deve ser levado em conta: o economista austríaco defende de que o ser humano busca fins próprios e analisa com base em suas informações obtidas os meios para chegar a esses fins, de modo a sempre buscar sair de uma situação de menor valor para maior valor. Neste sentido, o consentimento ou não de um agente sobre a distribuição de seus bens é uma informação incompleta que o planejador central não terá para levar em conta, e que a criação de valor não é necessariamente no viés econômico; se uma pessoa doa um bem, (seja para garantir aos seus filhos proventos após a sua morte, seja por caridade, seja por mera liberalidade arbitrária), significa que ele valorou que seu bem ficasse nas mãos de outra pessoa do que na sua própria mão. Assim, a teoria hayekiana parece mais próxima de Nozick do que o próprio pensava.

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Com a intenção de tecer crítica às teorias padronizadas de justiça, Nozick desenvolve um argumento chamado de “Wilt Chamberlain” (NOZICK 2009, p. 204-209), que visa descrever como interage a propriedade com o sistema de tributação progressiva e redistributiva, o que demonstra importância no nosso trabalho.

Nozick imagina uma sociedade de Estado fortemente padronizada, na qual o jogador de basquete Wilt Chamberlain é um grande na comunidade. No primeiro momento D1, a renda de todos é a mesma ou estritamente condizente com o padrão de justiça estabelecido. Entretanto, haveria uma partida de basquete com Chamberlain, evento este que mobiliza grande parte da comunidade a pagar pelos ingressos desta partida. Deste modo, boa parte das pessoas abrem mão de uma fração da renda para pagar o ingresso do jogo, enquanto Chamberlain acaba por acumular parte do dinheiro arrecadado com a venda dos ingressos e acaba estabelecendo um momento D2 no qual há uma grande desigualdade de renda entre os membros da sociedade e Chamberlain.

De um ponto de vista da justiça histórica, o momento D2 é considerado justo, tendo em vista que a distribuição obtida veio de transferências voluntárias de recursos dos fãs de Wilt Chamberlain para o jogador. No entanto, os defensores da justiça padronizada perceberão que o momento D2 é diferente do momento D1, e portanto, o considerarão injusto. Aqueles que defendem a justiça padronizada devem explicar em qual momento houve a ruptura do preceito justo, o que pareceria contra-intuitivo, já que as trocas foram exercidas de modo voluntário, e qualquer intervenção contrariaria a vontade de ambos os lados da troca. Não há também como dizer que afetaria terceiros não envolvidos, uma vez que aqueles que não pagaram para ver o jogo continuariam com a mesma renda. O Estado, caso deva se manter nos seus preceitos igualitaristas ou padronizadores, precisará taxar Wilt Chamberlain para que a renda que acumulou com a venda dos ingressos seja redistribuída para as pessoas que agora possuíam menos renda.

A conclusão oferecida por Nozick é de que a política padronizada/igualitarista não seria uma política pontual, mas uma constante força redistributiva para manter a ordem igualitária sempre que houvesse transação econômica entre duas pessoas, de modo a sempre

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constranger a vida pessoal dos habitantes da comunidade, o que então revelaria a inadequação da política redistributiva com a defesa de liberdades pessoais.

Por um lado, críticas podem ser feitas no sentido de Chamberlain ter adquirido um grande poder com a acumulação de capital, e que este poder pode ser usado para restringir as liberdades de outras pessoas. No entanto, o caso descrito apenas se restringe a uma transação; em um processo de mercado, a transferência de recursos ocorre inúmeras vezes, de modo a quanto mais agentes econômicos se engajarem no mercado, mais seus poderes individuais de causarem danos aos outros é pulverizado. Por um outro lado, a delegação de prerrogativas redistributivas a uma instituição estatal não só concentraria poderes aos agentes do Estado, como também reduziria os agentes existentes do mercado, de modo a facilitar uma plutocracia corporativista.

Ainda assim se faz necessário abordar não apenas os efeitos dos sistemas tributários redistributivistas sobre as liberdades negativas dos agentes em sociedade, mas também o alcance do leque de liberdades positivas em uma sociedade sob efeito de um sistema tributário progressivo ou não. Nesta linha, a abordagem das capacidades de Amartya Sen poderá vir ao seu auxílio.

3. PERSPECTIVAS SOBRE TRIBUTAÇÃO: AMARTYA SEN 3.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO PENSAMENTO DE SEN

Amartya Kumar Sen é um economista indiano nascido em 1933 na cidade de Santiniketan, e criado boa parte de sua infância em Daca, atualmente Bangladesh.

Ao longo de sua produção acadêmica, passando por sua graduação em economia pela Presidency College de Calcutá, segunda graduação e PhD em Cambridge e trabalhando como professor titular na London School of Economics, na Oxford University, e na Harvard University, Amartya Sen sempre buscou unir a teoria econômica com a ética empreendedora

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e a aplicação social desta teoria econômica, a partir das motivações pessoais surgidas por sua experiência de vida na Índia.

Dois eventos que foram testemunhados em sua infância foram marcantes na vida e obra de Sen: o assassinato do trabalhador muçulmano Kader Mia, quando buscava emprego em um bairro hostil hindi em Daca, e a fome coletiva em Bengala de 1943, advinda de um surto inflacionário que causou uma crise de abastecimento, de modo a vitimar cerca de 2 a 3 milhões de pessoas nos campos.

Para Amartya, a falta de liberdade econômica levou o trabalhador à restrição de outras liberdades pessoais, tendo em vista que não teria motivos para que ele fosse ao bairro hostil se não estivesse em situação de extrema pobreza; Sen também alega, mediante dados, que não houve redução na produção de alimentos durante a fome coletiva, mas que a inflação de guerra, na ocasião da segunda guerra mundial, corroeu o poder de compra da moeda e os mais pobres não conseguiam converter sua renda em alimentação para a sobrevivência. Conclui que não houve restrições às liberdades (econômicas) formais das vítimas8 e a mera defesa destas liberdades não bastaram para preservar a vida daquelas pessoas, de modo que políticas públicas seriam necessárias para resguardar as liberdades materiais de alimentação e vida saudável.

A partir destes modelos sobre pensar a interconexão entre as diferentes modalidades de liberdade, assim como o papel das liberdades no desenvolvimento individual e nacional, que Amartya Sen tece sua linha de pesquisa, premiada com o Nobel de economia de 1998, “por suas contribuições para a economia do bem estar”.

Em seu livro “Desenvolvimento como Liberdade”, de 1999, Amartya Sen traça, no processo mundial de globalização, um panorama geral do mundo enquanto um estado de opulência nunca antes visto, processos de democratização, a disseminação da defesa dos

8 Esta afirmação levanta alguns questionamentos: o curso forçado da moeda, que usa o poder do Estado para obrigar o uso de um único meio de troca oficial para o comércio, não seria a causa da vulnerabilidade da população perante o abuso da autoridade monetária de expandir a base monetária para financiar os gastos com guerra? O curso forçado não poderia ser uma violação à liberdade de escolher o meio de troca adequado para a sua transação econômica?

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