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Os vinhos espumantes do Varosa ou o triunfo da herança Cisterciense

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Academic year: 2021

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OS VINHOS ESPUMANTES DO VAROSA

OU

O TRIUNFO DA HERANÇA CISTERCIENSE

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM CIÊNCIAS DA CULTURA

JOÃO CARLOS PORTELA CORDEIRO

Orientador:

Professor Doutor Fernando Moreira

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Dissertação de Mestrado em Ciências da Cultura, apresentada à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro por João Carlos Portela Cordeiro, sob a orientação do Professor Doutor Fernando Moreira, para a obtenção do grau de Mestre em Ciências da Cultura, ao abrigo do nº1 da alínea b) do artº. 20 do Decreto-Lei nº 74/2006 de 24 de Março.

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À Francisca pela Inspiração À Judite pelo apoio e paciência

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7 Agradecimentos

A concretização deste trabalho, deve-se, em muito, ao apoio de todos aqueles que de alguma forma, contribuíram para a sua realização, e aos quais não podia deixar de dirigir algumas palavras de profundo reconhecimento.

À Judite por ter sido uma verdadeira âncora nas horas mais difíceis, sempre presente para me dar força e mostrar a direção certa e me suprir em todas as minhas necessidades.

Aos amigos Jorge Reis, Celestina Pinto, Graça Silva e Fausto Pina pelo impulso inicial e incentivo, bem como por nunca me terem faltado ao longo deste percurso.

Aos amigos Paulo Macedo, Carla Marques, Pompeu Sorrilha, Gervásio Pina, Manuel Dias, Carlos Costa e Jorge Fernandes pela ajuda e ânimo para continuar o trabalho com mais alento e energia.

À Eduarda Cardoso pela amizade e prestimoso auxilio, e por me ter permitido usar e abusar do seu trabalho, tempo, colaboração e disponibilidade.

À Professora Amélia Albuquerque pela ajuda e bibliografia disponibilizada.

Às Caves da Murganheira, nas pessoas de Herlander Lourenço e Marta Lourenço, pela cedência de materiais, documentação e pela receptividade demonstrada.

Ao professor Orlando Lourenço pelo conhecimento, saber, disponibilidade e paciência sempre presentes e muito especialmente por me ter franqueado o acesso à sua magnífica biblioteca pessoal, sem a qual este trabalho teria sido muito mais difícil.

Ao meu orientador, Professor Doutor Fernando Moreira, onde sempre encontrei uma completa colaboração e incentivo, um apoio total, conselhos e sugestões que me foram guiando ao longo do caminho e me fizeram seguir em frente.

À Professora Doutora Orquídea Ribeiro pela simpatia e serenidade transmitidas na fase mais sinuosa e atribulada do percurso.

A todos aqueles, que mesmos nas pequenas coisas, foram grandes e decisivos para que fosse possível a conclusão deste projeto.

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Índice

Resumo: ... 11

Abstract: ... 13

Introdução ... 15

Capítulo I: O Vale do Varosa ... 23

I.1- O rio ... 23

I.2- O vale ... 27

Capítulo II: A cultura da vinha ... 39

II.1- Contextualização teórica ... 39

II.2- A viticultura no território nacional ... 42

II.3- A força da vinha no vale do Varosa ... 55

Capítulo III: A presença cisterciense ... 69

III.1 – A afirmação da nacionalidade ... 69

III.2 – O horizonte monástico do Varosa ... 72

III.2.1 São João de Tarouca ... 80

III.2.2 Santa Maria de Salzedas ... 89

Capítulo IV: A transformação da paisagem ... 101

IV.1 – Os cistercienses: a terra e o trabalho ... 101

IV.2 – O espaço: organização e gestão ... 105

IV.3 – As vinhas medievais: o trabalho, castas e vinificação ... 119

IV.3.1 – O trabalho ... 123

IV.3.2 As Castas ... 131

IV.3.3 Vinificação ... 140

IV.3.3.1 Lagares, prensas e adegas ... 143

Capítulo V: A ditadura do Douro ... 151

V.1 – O Século XVIII e o apogeu dos vinhos do Douro ... 151

V.2 – A resiliência do Vale do Varosa ... 159

Capítulo VI: O nascimento e afirmação dos vinhos espumantes nacionais ... 169

VI.1 – A aparição e a expansão do Champanhe francês ... 170

VI.2 – As primeiras experiências em Portugal ... 175

VI.3 – A presença dos vinhos espumantes no Varosa... 183

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VII.1 – O triunfo do vinho espumante: a qualidade dos vinhos espumantes do Varosa ... 191

VII.2 – Projeção internacional da herança cisterciense... 199

Considerações Finais ... 209 Índice de Gráficos ... 213 Índice de Imagens ... 215 Índice de Mapas ... 217 Índice de Tabelas ... 219 Referências Bibliográficas ... 221 Bibliografia Consultada ... 231 Referências Eletrónicas ... 237

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Resumo:

Os vinhos espumantes do vale do Varosa assumem-se hoje como um produto agrícola de reconhecida qualidade, que se afirmaram internacionalmente e se tornaram o ex-libris desta pequena região. O sucesso dos vinhos espumantes do vale do Varosa reflete o acumular de saberes construídos ao longo dos tempos, a evolução histórica das técnicas e métodos de produção, a generosidade dos solos, a orientação da vinha e a seleção das castas.

A implantação medieval dos mosteiros Cistercienses de S. João de Tarouca e de Santa Maria de Salzedas, com as suas granjas, vão moldar a paisagem rural do Vale do rio Varosa e afirmar definitivamente o triunfo da cultura da vinha neste território de encostas saídas do rio. Este projeto tem a intenção de aprofundar o estudo sobre os vinhos espumantes do Varosa, encontrar as suas raízes, conhecer as suas idades e o seu percurso histórico, traçar o seu ADN.

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Abstract:

The sparkling wines of the Varosa valley are assumed today as an agricultural product of recognized quality, which have settled internationally and have become the most notorious landmarks of this small region. The success of the sparkling wines of the Varosa valley reflects the buildup of knowledge over time, the historical evolution of techniques and methods of production, the generosity of the soil, the orientation of the vineyard and the selection of the grape varieties.

The medieval establishment of the Cistercian monasteries of St. John of Tarouca and Saint Mary of Salzedas, with its farms, is going to shape the rural landscape of the Varosa river valley and definitely claim the triumph of the culture of the vine in this territory of slopes coming out of the river.

This project is intended to deepen the study of the sparkling wines of Varosa, find their roots, know their ages and their historical journey, trace their DNA.

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Introdução

Na literatura tradicional e nos diversos estudos sobre a História nacional, as facetas ligadas à influência da Ordem de Cister na agricultura em Portugal, e muito particularmente na viticultura têm vindo, especialmente nas últimas décadas, a ser alvo de uma apreciável atenção. A atenção dedicada pelos investigadores, sobretudo nacionais, tem vindo incidir sobre os vários quadrantes da vida e ação destas comunidades em vários contextos espácio-temporais.

Este trabalho não pretende apresentar qualquer teoria revolucionária sobre a exploração da terra por parte dos monges brancos, nem tem a pretensão de demonstrar correção ao que já foi feito em relação à presença cisterciense no território nacional. Simplesmente pretende-se colmatar uma lacuna que se julga não ter sido tida em conta na relevante investigação que se tem feito sobre a ação dos cistercienses na construção da paisagem agrícola nacional. Essa falha prende-se não só com a área geográfica de estudo, no caso o Vale do Varosa, mas também com o objeto de estudo, os vinhos espumantes do Varosa.

Esta necessidade de aprofundar a investigação, com base nos pressupostos atrás referidos resulta do facto do autor residir há longos anos em Tarouca, junto ao Vale do Varosa, sendo esse o seu quadro de vivências e referenciais, também por isso estar ciente do peso e reconhecimento dos vinhos espumantes na economia local.

A hipótese definida para a presente disertação pretende dar resposta a uma questão basilar: qual o papel da Ordem de Cister na origem e afirmação dos atuais vinhos espumantes do Vale do Varosa?

Assim, e numa primeira fase, parece ser possível fazer um estudo que permite compreender a natureza histórica do produto vinhos espumantes do Varosa, tendo em conta os seus criadores, as conjunturas e os tempos históricos através do conhecimento dos dois importantes cenóbios do Varosa: São João de Tarouca e Salzedas.

Na largueza das suas ações concretas, a história dos mosteiros cistercienses do Varosa é também uma história da ligação intima e perene das comunidades com o espaço envolvente e com os trabalhos de modelação dessa natureza, trabalhos duros e amargos dos quais resultou um compromisso materializado pelo vinho, símbolo pleno de vida.

Aos olhos dos mais distraídos, propor-se este trabalho como prova de dissertação de mestrado, pode não fazer grande sentido, uma vez que a produção reconhecida de vinhos

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espumantes no Varosa só acontece no século XX muito depois do desaparecimento das comunidades monásticas do Varosa; no entanto esta investigação pretende comprovar o peso e a influência das bases lançadas pelos monges brancos no nascimento e afirmação deste produto de excelência.

Considera-se ser exequível estabelecer uma linha de investigação que permita, através de um levantamento o mais completo possível, comprovar uma ligação estreita do triunfo dos espumantes do Varosa à presença secular do saber agrícola cisterciense.

Este projeto pretende traçar o perfil dos vinhos espumantes do Varosa, tal só é realizável recorrendo a uma forte componente de investigação histórica com um amplo espetro multidisciplinar, deitando mão a todo o tipo de informação das mais variadas naturezas.

Também os estudos conhecidos sobre os vinhos espumantes nacionais, ou mesmo específicos da região produtora (DOP Távora – Varosa), carecem de profundidade ao nível da contextualização histórica e cultural, dividindo-se entre a intenção da promoção turística e comercial e os “compêndios” de especificações excessivamente técnicas.

No âmbito da investigação histórica desenvolvida sobre a presença da Ordem de Cister em Portugal são várias as abordagens e os trabalhos sobre a influência e a importância dos “monges brancos” no universo histórico e cultural do território nacional. Aliás, como afirma António B. Vento:

Quando um investigador se inicia no processo de revisão da literatura é pouco provável que o assunto tratado nunca tenha sido abordado por outra pessoa, pelo menos em parte ou de forma indireta. Como afirma Quivy e Campenhoudt (2005), “tem-se frequentemente a impressão de que não há «nada sobre o assunto», mas esta opinião resulta, em regra, de uma má informação” (Bento 2012:42).

Naturalmente os vários estudos têm incidido em diferentes campos de análise e em diversos tipos de perspetivas. São diversos os trabalhos sobre o impacto da presença cisterciense em Portugal: as origens e a natureza da ordem, traços religiosos, artísticos e arquitetónicos, políticas de estabelecimento e povoamento, a vivência dos mosteiros ou aspetos económicos.

Apesar da diversidade dos estudos publicados sobra a importância da Ordem de Cister na implementação e desenvolvimento da actividade agrícola em várias regiões do país, em particular no que respeita ao cultivo da vinha e ao desenvolvimento da viticultura, sobretudo

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nas regiões de Alcobaça e do Douro1, pouco tem sido estudada a importância do papel dos cistercienses na criação de condições essenciais para que, séculos após o aparecimento da ordem e já depois de 1834, surjam novos produtos agrícolas de qualidade superior, como é o caso dos vinhos espumantes da região do Varosa.

São conhecidos alguns trabalhos generalistas sobre a viticultura Cisterciense e uma relativa quantidade de estudos relativos aos vinhos do Douro e a sua relação umbilical com os mosteiros de Cister, mas mesmo nestes casos, apenas muito pontualmente se exploram os níveis de problematização que este projecto pretende discutir.

Na verdade essas publicações centram-se primordialmente no aparecimento e desenvolvimento do Vinho do Porto, logicamente colocando um grande enfoque no papel dos monges brancos nessa dinâmica produtora

Também os estudos conhecidos sobre os vinhos espumantes nacionais, ou mesmo específicos da região produtora (DOP Távora – Varosa), carecem de profundidade ao nível da contextualização histórica e cultural, dividindo-se entre a intenção da promoção turística e comercial e os “compêndios” de especificações excessivamente técnicas.

Assim, como um espumante necessita de um bom vinho base, para lhe conferir qualidade, também a história dos vinhos espumantes do Vale do Varosa precisa de boas bases documentais sobre a história do cultivo e produção da vinha nesta região específica. Se é verdade que já existem estudos que demonstram, com algum grau de segurança, a presença da Vinha no Varosa antes da chegada dos Cistercienses, sobretudo durante a ocupação romana2, persistem algumas lacunas, não ao nível da importância dos monges brancos na afirmação da vitivinicultura, essa é já incontestável, mas em determinar o grau de profundidade da ação

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Vejam-se alguns trabalhos de referência já publicados relativos à região do Douro como os trabalhos de Amélia Albuquerque (Albuquerque 2009), Sofia Teixeira (Teixeira 2010) ou de António Cardoso (Cardoso 2004). Além destes estudos existem algumas publicações importantes que se focam na temática do Douro, do vinho e de Cister, que resultam de encontros e congressos sobre Cister e o Douro, como o projecto “ Cister no Vale do Douro” da responsabilidade do Grupo de Estudos de História da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto ou do projecto “Cister in Douro” levado a cabo pelo DRCN/Museu de Lamego e Vale do Varosa. Podemos também referenciar algumas publicações sobre o binómio Cister – Viticultura, noutras regiões e estabelecer alguns paralelismos, que embora nos ajudem a percecionar alguns aspetos mais técnicos, estão deslocados da área e do tema de estudo, aqui incluímos obrigatoriamente os trabalhos de António Maduro e rui Rasquilho (Maduro e Rasquilho 2016), de Manuel J. P. Lourenço (Lourenço 2009; 2013a; 2013b), de Célia Taborda da Silva (Silva 2001) ou Gonçalo M. Marques (Marques 2013).

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Existem um considerável número de estudos, com base em testemunhos literários antigos e materiais arqueológicos relativos à ocupação Romana, época que tem conhecido maior número de intervenções arqueológicas no contexto nacional, que sustentam a possível presença da vinha e consumo de vinho no norte de Portugal, logicamente abarcando a área do Vale do Varosa, destacando-se os trabalhos de António Carvalho (Carvalho 2001), Carlos Fabião (Fabião 2001) ou Virgílio Loureiro (Loureiro 2001).

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cisterciense na afirmação do Varosa como região produtora de vinho com o objetivo de obtenção de mais-valias económicas e como fator condicionador de outras culturas dentro do Vale e na sua periferia.

O facto dos dois grandes mosteiros de Cister do Vale do Varosa serem grandes proprietários de quintas no Douro, como a quinta de Monsul, a quinta do Mosteiro, a casa dos Varais ou a casa da Formiga, pode-nos levar a pensar que o Vale do Varosa seria uma região secundarizada relativamente ao Douro, ideia reforçada face à proliferação de estudos sobre esta região, em especial as crescentes monografias das quintas Durienses3. O poderio literário académico, ficcional e propagandístico do Douro aliado à escassez de publicações e estudos relativos ao Vale do Varosa aprofundam a ideia de subalternização do Varosa relativamente ao Douro.

Pensa-se, também, que se continua a verificar um vazio no que diz respeito às relações de complementaridade entre estas duas regiões, não tanto em relação às ligações fundiárias ou aos poderes estabelecidos, mas sobretudo no que concerne às relações de vizinhança, à sua interdependência, saber de que forma se relacionavam estas populações, se e como circulavam as populações trabalhadoras entre regiões, se e qual a sazonalidade dos movimentos populacionais. Da mesma forma parece escassa a informação sobre alguns aspetos relativos à atividade vitivinícola, como sejam as eventuais semelhanças ou até a transposição de técnicas, conhecimentos, formas de vinificação e produção e até da utilização das mesmas castas no Douro e no Varosa.

Deste modo propõe-se assumir que a temática (da aliança feliz entre a natureza, o saber cisterciense e o engenho das sucessivas gerações) pode ser uma área importante de investigação, não só pelo relativo desconhecimento sobre a realidade histórica desta pequena região no teto da Beira Portuguesa, mas também pelo facto de este conhecimento ser essencial

3 São relativamente comuns no Douro os estudos de carácter monográfico que versam a história particular de determinada quinta ou propriedade, muitas vezes com objetivos estreitamente ligados ao marketing e à promoção turística, em especial após a classificação do Douro como património da humanidade. Muitos destes estudos são pouco precisos e cuidados do ponto de vista do rigor científico. No entanto existem também nos últimos anos excelentes trabalhos de investigação sobre estas propriedades, estudos que contribuem decisivamente para o conhecimento da relevância dos mosteiros cistercienses enquanto grandes proprietários fundiários no Douro e da importância destas autênticas escolas agrícolas da época. Queremos aqui referir entre outros os trabalhos de Alcino Cordeiro (Cordeiro 1941), Carlota V. Porto Cabral sobre a Quinta de Monsul (Cabral 2011) e Amândio Barros e Paula Montes Leal, relativos à Quinta da Pacheca (Barros e Leal 2001). Numa visão mais larga e centrada nas casas Cistercienses atente-se, entre outros, nos excelentes trabalhos de Amélia Albuquerque (Albuquerque 2003: 2009), António Jorge M. Barros (Barros 1999) e Ana M. Tavares Martins (Martins 2011).

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para a compreensão das diversas identidades culturais atuais que vão muito além das fronteiras geográficas do Vale.

Os vinhos espumantes do Varosa são um claro exemplo da capacidade transformadora de uma comunidade, cujos membros ocupam dessa forma o papel de atores principais nos mundos da arte e da cultura.

O projeto aqui apresentado passa, sobretudo, por um estudo de caractér académico que assenta num método cientifico capaz de estabelecer grandes linhas orientadoras em termos de métodos de trabalho e sistematização de técnicas de pesquisa que possam conferir ao estudo o rigor e a fiabilidade exigidas a um projeto desta complexidade.

O autor, quanto à natureza do tema, propõe uma análise que privilegie um método de pesquisa qualitativa, não só pelo período longo em que evolui o objeto de estudo, mas também pela reflexão à volta de aspetos enraizados, menos imediatos das comunidades. (Espírito Santo 2015:13).

A pesquisa qualitativa é caracterizada pela descrição, compreensão e interpretação de factos e fenómenos (Moraes 1999:7-32). A construção de uma pergunta na pesquisa qualitativa é uma tarefa dotada de complexidade e método, pois requer uma imersão prévia no ente com o intuito de compreender o ser e sua essência, requer uma pré-compreensão do ser, das suas manifestações, das suas interações com contexto, e a exigência de um olhar meticuloso do investigador (Cavalcante et al 2014:15).

Contudo não é permitido, nem sequer é intenção desprezar total ou parcialmente os métodos de pesquisa quantitativa, até porque memória e comunicação podem ser relevantes e quem sabe determinantes em algumas fases deste projeto.

Além do mais se acreditarmos que existe uma realidade para ser descoberta (mesmo se essa realidade nunca seja totalmente distinta de nossas teorias), qualquer método que forneça informações novas sobre essa realidade é bem vindo, e tanto métodos quantitativos como métodos qualitativos podem contribuir para o nosso conhecimento empirico do mundo social (Ramos 2013:65).

De realçar, até porque não é de menor importãncia, que um trabalho de investigação no dominio das ciências sociais, não deve, em momento algum, desprezar qualquer possivel combinação das várias tipologias de pesquisa.

O estudo foi elaborado com recurso ao método dedutivo, tendo como ponto de partida a pesquisa bibliográfica e documental.

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A hipótese levantada pelo autor, de saber qual o papel da Ordem de Cister na origem e afirmação dos atuais vinhos espumantes do Vale do Varosa, não se destina prioritariamente a promover conhecimento novo, mas sim a organizar e a especificar um conhecimento pré estabelecido e aplicá-lo a uma determinada realidade.

Pretende-se, também, o alargar de horizontes no que respeita a perspetivas metodológicas; ir além da mera revisitação dos resultados de estudos anteriores, mas fazer dessas abordagens uma mola impulsionadora para outras arquiteturas metodológicas, até porque os estudos académicos e científicos, muito frequentemente, terminam com mais perspectivas, novas pistas, hipóteses e sugestões para outras investigações. Muitos investigadores encontraram as suas bases de trabalho em outros estudos (Bento 2012:2).

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“Eu nasci nas agrestes serranias Da nevoenta legendária Beira. Lá onde o lobo a uivar consome os dias E cresce e brilha a rubra flor da urgueira: Onde o vento ao passar, diz mil segredos... E São João, no vivo e quente estio, Soluça ao ver as moiras nos penedos, Ou com as moças canta ao desafio. Onde os rios, descendo sussurrantes, Nas ladeiras em ásperos fragões, Parecem velhos frades mendicantes A rezarem pausadas orações”.

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Capítulo I: O Vale do Varosa

Quando se pretendem realçar as diferenças entre pessoas, animais ou coisas com a mesma origem ou com grande proximidade é costume dizer-se que são tão distantes ou que são tão opostas como: “ da água para o vinho”.

Esta expressão, assente na mais pura e empírica sabedoria popular, acaba por perder o sentido e torna-se até despropositada e descabida no contexto de um estudo que se foca numa região, o Vale do Varosa, que tem no rio (Varosa) e nas vinhas os seus traços dominantes. De facto, pretende-se demonstrar que rio e vinhas são duas componentes fundamentais da argamassa que os Homens desta pequena região da Beira tão bem e esforçadamente trabalharam para construir e garantir a sua subsistência neste espaço ao longo dos tempos.

I.1- O rio

O rio Varosa, ou Barosa (conforme designação presente nos documentos mais antigos), nasce na freguesia de Várzea da Serra no concelho de Tarouca, mais precisamente numa barosa4 (daí o nome do rio?) à qual os mais velhos chamam Olho Marinho5, junto ao caminho de ligação entre Várzea da Serra e Cujó (Castro Daire). A nascente do rio não é mais que um “borbulhão” que brota da terra, perdida no meio de lameiros, escondida pela vegetação que em tempos foi pasto de gado e que hoje cresce livremente ao ritmo do despovoamento da serra.

O rio Varosa é o que se pode classificar de pequeno rio de montanha. Nasce a cerca de 1000 m de altitude, encravado entre a serra do Mouro, (prolongamento da serra de Leomil) a sul e a serra de Santa Helena (prolongamento da serra de Montemuro), a nordeste. A nascente do Varosa situa-se na unidade geológica da Zona Centro Ibérica do Maciço Ibérico ou Maciço Antigo (Marques et al. 2015: 20). Com um comprimento de cerca de 45 Km, desagua no Douro junto ao lugar dos Varais, freguesia de Cambres no concelho de Lamego.

O Varosa é um rio que nasce beirão, na região dos xistos e grauvaques dos grupos das Beiras e do Douro (Marques et al. 2015: 20-21), conhecendo três concelhos ao longo do seu

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Barosa, ou lameiro, é uma terra com grande presença de água, húmida, que alaga facilmente. 5

Por se situar junto à passagem de ligação entre Cujó e Várzea da Serra, dizem-nos os mais velhos que, quando se passava junto a esse local, era uso contar-se aos mais jovens a Lenda das Tábuas. Segundo a lenda, nesse local da nascente do Varosa “brotavam” tábuas de madeira que pertenceriam aos barcos que naufragavam no mar alto.

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sinuoso e atribulado percurso, no concelho de Tarouca, que atravessa completamente no sentido sul – norte (zona de predomínio granítico), com uma passagem fugaz pela freguesia de Almofala (Castro Daire), fazendo a fase final do seu caminho já no concelho de Lamego, onde se encontra com o rio Douro.

O Varosa ganhou fama de rio truteiro, sendo por isso muito procurado por pescadores, beneficiando ciclicamente de repovoamento de trutas. A pesca neste rio faz-se desde tempos remotos, sendo as suas pesqueiras alvo de regulamentação e cobiça já na Idade Média, como fica claro pelas palavras de frei Baltazar dos Reis (2002b):

El Rey Dom Pedro passou privilegio pera que o Rio de Barosa fosse coutada das poldras de Alvares e padrão que está asima delas até o Rio do Torno, assy da parte de alem do Rio com da parte de aquém, e que toda pessoa que se achasse a matar pescado na ditta coutada sem licença do Abbade pagasse por cada vez sessenta soldos de coima. Passado na era mil quatrocentos e dous (Reis 2002b: 72-73).

Embora atualmente tenha perdido muito da sua biodiversidade por força da atividade humana (poluição e exploração agrícola), tem como principais referências da sua população piscícola a truta (Salmo trutta), o bordalo (Squalius alburnoides) e o escalo do norte (Squalius carolitertii) (Almaça 1996).

O facto de cerca de dois terços do seu percurso ocorrer dentro dos limites do concelho de Tarouca faz com que os tarouquenses designem o Varosa como o “seu” rio e que muitas vezes a história do concelho, do vale e do rio se confundam na mesma identidade. O rio Varosa nasce como um pequeno regato que vai engrossando ao longo do seu percurso alimentado por inúmeras linhas de água que brotam das serras e montes circundantes; este facto torna-o um rio de caudal médio não definido, já que é reduzido durante o período seco e bastante torrencial no período de maior precipitação.

Circulando por vales estreitos, principalmente a montante de S. João de Tarouca e jusante de Salzedas, pode-se espraiar e alargar um pouco na zona que se situa no encontro de Dálvares e Mondim da Beira (Ponte Nova), na chamada veiga de Dálvares, uma área ocupada essencialmente por aluviões.

O rio Varosa insere-se na bacia hidrográfica do Douro, dando nome a uma subunidade hidrográfica (sub-bacia do Varosa). Esta unidade caracteriza-se por ser um território onde nascem várias ribeiras e regatos, uns de caudal permanente e outros de caudal temporário, concentrando-se a maior parte destes intermitentes cursos de água nas zonas de maior altitude.

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Os principais afluentes do rio Varosa são, a montante, a ribeira do Corgo (que resulta da junção do corgo da Fraga ou do Pinheiro com o corgo da Cerca ou da Aveleira), junto a S. João de Tarouca; a ribeira de Tarouca, ou rio Varosela que encontra o Varosa na Ponte Nova; o rio Torno, também chamado de ribeira da Galhosa ou de Salzedas, que desagua no Varosa, próximo da quinta da Abadia Velha; a jusante encontra o afluente de maior dimensão, o rio Balsemão, que desagua na barragem do Varosa, já no concelho de Lamego, entre S. Pedro de Balsemão e Valdigem.

Esta sub-bacia, além dos recursos hídricos atrás referenciados, possui ainda uma grande abundância de pequenas linhas de água e uma rede de aquíferos cuja reduzida produtividade é compensada por uma significativa densidade (Marques et al. 2015: 20-21). A disposição do património construído demonstra que o Varosa, desde os inícios da nacionalidade, manteve um curso estável, semelhante ao que apresenta na atualidade, o que é comprovado, não só através da pouca documentação que sobreviveu até aos nossos dias, mas também pela localização do assentamento dos mosteiros de S. João de Tarouca em 1140-1144 e da Abadia Velha de Santa Maria de Salzedas entre 1155-1159 (Castro 2013: 26), bem como pela rede de pontes sobre o Varosa e os seus afluentes.

Imagem 1: Rio Varosa, junto a Gouviães.

Fonte: http://gouviaes.blogspot.pt/2011/12/o-rio-varosa-por-gouviaes.html, consultado em dezembro 2016.

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Mapa 1: Pontes medievais sobre o rio Varosa e seus afluentes. Fonte: Appelberg 2016.

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Os estudos complementam esta ideia de estabilidade do curso e do leito do rio ao longo dos séculos, uma vez que através da análise geológica do vale do Varosa (Menezes 2013: 273), conclui-se que a orografia opressora do vale não permite outras opções à circulação do rio, o que é percetível, sobretudo, a jusante onde o vale é encaixado e retilíneo em resultado do entalhe da rede hidrográfica ao longo das várias falhas geológicas. Estas características orográficas são já descritas por José Junqueiro (2004), aquando da elevação da vila de Tarouca, em 2004, à categoria de cidade:

O Rio Varosa que ora corre impetuosamente, galgando penedos e fragas, fazendo girar as mós dos moinhos, ora se amansa na vastidão e planura do vale principal que tanto se afunda em temíveis poços como ultrapassa gargantas apertadas e sombrias com as suas águas revoltas e indomáveis, também inspirou a imaginação popular. (Junqueiro et al. 2004)

O rio Varosa que corre hoje, sobre fragas e penhascos, que cai em vertiginosas quedas de água e que descansa nas tranquilas praias fluviais refrescando o vale é o mesmo Varosa que embora na génese das mudanças, se conhecia na Idade Média.

1. Ponte da Geia 2. Ponte de Recião 3. Ponte de Vila Pouca 4. Ponte da Ucanha 5. Ponte de Mondim da Beira 6. Ponte de S. João de Tarouca 7. Pontão de Vilarinho 8. Ponte de Lamelas 9. Ponte de Cotelo 10. Ponte de Campo Benfeito 11. Ponte de Pretarouca/Ribabelide 12. Ponte das regadas

13. Ponte da Azenha 14. Ponte do Mosteiro 15. Ponte pedrinha 16. Ponte de Revolta 17. Ponte de Barosela 18. Ponte das Poldras 19. Ponte da Anta

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27 I.2- O vale

Quando se fala em vale do Varosa, pensa-se num vale único, uniforme na pequenez dos 45 Km de extensão do rio; no entanto e numa abordagem mais rigorosa, a partir dos limites e características físicas da área de estudo, identifica-se não apenas um, mas sim três pequenos vales: o vale do rio Varosa (vale principal), o vale de Tarouca (da Ponte das Tábuas ao ponto de encontro do Varosela com o Varosa, na chamada veiga de Dálvares) e o vale de Salzedas (sensivelmente da Granja Nova à foz do rio Torno, perto da Quinta da Abadia Velha).

O vale é dominado por várias elevações com altitudes máximas de cerca de 1000 m, como se verifica na região onde nasce o rio, nomeadamente as serras do Mouro e de Stª Helena, que vão descendo até cotas perto dos 850 metros, como é caso dos montes de Quintião, da Cascalheira e do Corvo (dependências da Serra de St.ª Helena e da Serra de Leomil), na zona de S. João de Tarouca. Na parte norte do vale, na zona de Salzedas, destaca-se o Monte Raso a 850 m e a elevação da Senhora da Graça a 920 m de altitude (integrados na Serra de Leomil), destaque ainda para os 800 metros de altitude do Monte de St.ª Catarina junto à localidade da Granja Nova (Castro 2013: 25).

A área deste estudo não se limita apenas a critérios físicos, mas também a uma identidade histórica e cultural única, encerrada nos limites estabelecidos pelos 209,29 Km2 que correspondem ao sector montante da bacia hidrográfica do rio Varosa (Meneses 2013: 273), e à qual se passará simplesmente a referir como vale do Varosa ou o vale.

A paisagem do vale conheceu grandes mudanças nas últimas décadas devido a fatores humanos, dos quais se destacam as alterações da ocupação do solo, provocadas por imperativos de povoamento do território e sobretudo pelas novas exigências da prática agrícola. Apesar de todas as mudanças, ainda hoje o vale do Varosa se afirma como um espaço de biodiversidade, o que lhe tem granjeado epítetos de natureza promocional e turística como o “ Vale Encantado” ou o “ Eco Museu da Beira”.

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Este pequeno espaço apresenta uma grande riqueza de flora e fauna, fruto de uma combinação de fatores naturais e humanos:

A topografia e os parâmetros físicos ambientais (por exemplo, precipitação, temperatura, radiação solar, etc.) têm influência no uso do solo e no estabelecimento de ecossistemas naturais (…), o que confere paisagens singulares a determinados territórios. Porém, a intervenção antrópica é um dos fatores que maior influência tem na alteração da ocupação do solo, refletindo-se esta na paisagem (Menezes 2013: 272).

Atualmente, e no que respeita à ocupação dos solos, há uma realidade marcada pela atividade agro-pecuária que ocupa cerca de 30% da área disponível e pela exploração florestal que ocupa cerca de 53% da superfície do vale (Junqueiro et al. 2004).

A paisagem agrícola e florestal do vale é marcada por duas faces; assim, a sul, nas zonas de maior altitude predomina uma agricultura de sustento familiar, marcada pelo cultivo

Mapa 2: Enquadramento geográfico da área de estudo. Fonte: Meneses 2013: 274.

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do centeio (Secale cereale), alguns produtos hortícolas nos lameiros e forragens para o gado; é também aqui que a paisagem é marcadamente florestal e onde a cobertura arbórea é constituída, principalmente, por carvalhos (Quercus fagineae), cerejeiras (Prunus avium), castanheiros (Castanea sativa) e os mais importantes núcleos de pinheiro bravo (Pinus pinaster), onde nos últimos anos se tem vindo a observar a introdução e desenvolvimento de plantações de eucalipto (Eucalyptus eucalyptus). Estas manchas florestais, cercadas e cortadas por mares de giestas (Cytisus striatus), acentuam-se nas vertentes mais íngremes do setor do vale do Varosa, onde este é mais encaixado e na área da Serra de Santa Helena (Menezes 2011a: 46).

A norte, onde o vale alarga e o rio é mais caudaloso, a disponibilidade de água é maior; aí prevalece o milho (Zea mays) como cereal dominante e são comuns culturas como batata (Solanum tuberosum), feijão (Phaseolus vulgaris) e couves ( Brassica olerácea),

reinando a vinha (Vitis) nas encostas menos ingremes deste ponto do vale. A mancha arbórea deste sector do vale é caracterizada pelas oliveiras (Olea europaea) na “meia encosta”, e por extensos pomares de pereiras (Pyrus domesticae), macieiras (Malus domesticae), salgueiros (Salix alba), sabugueiros (Sambucus nigra) e amieiros (Alnus glutinosa), nos locais mais próximos dos cursos de água.

A mutação da paisagem provocada por fatores antrópicos é dinâmica e muitas vezes negativa. O vale do Varosa está mudar não só por força dos desafios dos avanços tecnológicos como o uso de máquinas agrícolas, de novos materiais, de estufas ou de sistemas de rega automatizada e computorizada, mas infelizmente, também pelo fenómeno do despovoamento que leva ao abandono do espaço: “No setor jusante do vale a transição da ocupação e uso do solo foi mais acentuada, onde ainda há vestígios de antigas vinhas e olivais abandonados, que deram lugar a matos de giestas (Cytisus striatus) e tojo (Ulex europeus)." (Menezes, 2013: 274).

Em termos de fauna, como é facilmente entendível à luz da expansão do estabelecimento humano e consequente diminuição dos habitats naturais, o vale do Varosa é hoje uma imagem pobre da biodiversidade que conheceu outrora. Assim, relativamente às aves, não considerando as de presença comum no território nacional, ainda sobrevivem a escrevedeira amarela (Emberiza citrinela), a escrevedeira sombria (Emberiza hortulana), a

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petinha dos campos (Anthus campestres), a narceja (Gallinago gallinago), a garça grande6 (Egretta alba), o bufo pequeno (Asio otus), a perdiz (Alectoris rufa), a codorniz (Coturnix coturnix) e a estrelinha de poupa (Regulus regulus).

O vale do Varosa é povoado na globalidade do espaço por mamíferos como a raposa (Vulpes vulpes), a fuinha (Martes foina), a lebre (Lepus europaeus) e o coelho (Oryctolagus cuniculus). A zona sul mais montanhosa e inóspita revela, ainda, a presença de alguns mamíferos de grande porte como o furão (Mustela putorius furo), o javali (Sus Scrofa) e até a presença de lobos (Canis lupus).7

A orografia do vale, a progressiva ausência da presença humana (sobretudo a montante do rio Varosa) e a existência de grande disponibilidade de água contribuem decisivamente para uma grande riqueza de espécimes de répteis e anfíbios neste pequeno território; segundo Armando Loureiro (Loureiro 2008), constata-se facilmente a presença de vários exemplares de cobras: a pernas Tridátila (Chalcides striatus), a cobra-de-escada (Elaphe scalaris), a cobra Rateira (Malpolon monspessulanus), a cobra de água de colar (Natrix natrix), o licranço (Anguis fragilis) e vários tipos de lagartos como o sardão (Lacerta lepida), o lagarto de água (lacerta scheireberi), a lagartixa do mato (Psammodromus

algirus) e a lagartixa ibérica (Podarcis hispânica). No universo dos anfíbios destacam-se o

sapo comum (Bufo bufo), o sapo parteiro comum (Pelebates Cultripes), a rã ibérica (Rana

Ibérica), a rã verde (Rana Perezi), a salamandra de pintas amarelas (Salamandra salamandra)

e o tritão de ventre laranja (Triturus boscal).

Além da orografia e dos cursos de água que atravessam o vale, o clima condiciona decisivamente, não só o tipo de culturas predominantes (é um fator importante na produção vitivinícola e absolutamente determinante na produção de vinhos espumantes), mas também o próprio povoamento no seu interior. O clima típico do vale do Varosa pode-se considerar como de tipo continental, uma vez que a orografia tem um impacto direto nos fatores climáticos; no caso do Varosa o facto de ser um vale profundo, rodeado por várias elevações com altitudes máximas de cerca de 1000 m confere-lhe uma identidade continental, isto é, fria e seca:

6 A presença deste espécime, pouco comum nesta região, tem vindo a ser observada na zona da barragem do Varosa, a nordeste do Vale.

7 Os vestígios da presença destes animais reportam-se já ao ano de 2008, aquando da instalação do Parque eólico II na área da serra de Stª Helena na freguesia de Várzea da Serra (Agriproambiente 2008). Tratam-se das deslocações típicas desta espécie, no interior do seu habitat, no caso reportam-se à pequena alcateia de Montemuro.

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As barreiras montanhosas de Montemuro e do Marão-Alvão condicionam os ventos marítimos húmidos, proporcionando um efeito de abrigo às áreas a Este fator que justifica os valores de precipitação mais reduzidos nestas áreas (PEDROSA et al., 2004). Estas barreiras, pela sua disposição, formam um V e marcam a mudança do domínio climático marítimo de transição para o continental (ALCOFORADO e DIAS, 1993, PEDROSA et al., 2004). Assim, a área de estudo caracteriza-se por invernos frios, por se inserir neste último domínio. (Meneses 2011b: 50).

O vale do Varosa, embora com oscilações, apresenta em regra verões moderados (23 a 29ºC) e invernos frios, com 30 a 40 dias com temperatura mínima inferior a 0ºC, situando-se a média da temperatura mínima do mês mais frio entre 1 e 2ºC. Registe-se ainda a formação de nebulosidade e nevoeiro durante a noite e manhã nos meses de outono, inverno e primavera. As áreas mais elevadas (Várzea da Serra, Monte Raso e São João de Tarouca) caracterizam-se por invernos muito frios com mais de 40 dias com temperatura inferior a 0ºC e precipitação muitas vezes sob a forma de neve (Meneses 2011a: 26).

Por norma o clima é uma estrutura pouco variável, isto é, as condições climáticas sofrem perturbações e alterações decorrentes da ação humana, mas sempre num processo longo e impercetível a curto prazo (Marques et al. 2015: 40). Por isso, é possível dizer com algum grau de certeza que o clima que conhecemos hoje no vale do Varosa é sensivelmente o mesmo que os primeiros cistercienses aqui encontraram no século XII. A questão que se coloca é a de tentar determinar que imagem espacial se apresentou aos olhos desse homem medieval…

O vale do Varosa do século XII, não é certamente o vale que temos vindo a descrever; terá sido, forçosamente, um espaço em bruto, pouco humanizado, um pequeno mundo encerrado nos contrafortes das serranias que o rodeiam.

Uma análise mais cuidada dos documentos escritos permite descortinar alguns dos principais traços da paisagem do vale medieval. O espaço teria uma mancha arbórea extensa e compacta ao longo do Vale, com a presença de matas densas e inóspitas, como refere frei Baltazar dos Reis (Século XVII) ao descrever o local em redor do mosteiro de Salzedas (Argeriz) ao tempo do primeiro rei de Portugal:

Criar Domna Thareja Affonso o príncipe dom Affonso Anriques em as suas Casas que oje permanecejunto a este Mosteiro, que para boa rezão, pois tinham esta quinta feita em Villa nova E junto à Villa de Britiande, ficaua lugar mais accómodado, que em as casas, que em esse tempo deuiam estar junto do Mosteiro, cercadas de espessas matas, porquanto o síttio cria inda em estes tempos áruores agrestes se as deixam assi como as fructíferas se as plantam. (Reis 2002a: 8).

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O mesmo frei Baltazar dos Reis (Reis 2002a: 11) refere um religioso que em 1363, descreve Gouviães em 1062 como: “(…) E hu ora he Gouuiães Era mata de porcos E de Corços (…)”. Exemplo das mudanças que a paisagem do vale vai sofrendo ao longo da Idade Média e Época Moderna é a comparação que frei Bartolomeu dos Reis estabelece entre o “oje” (o tempo em que escreve, século XVII), e o tempo da construção e fundação do mosteiro no couto de Argeriz (1168), não deixa de ser curioso que frei Baltazar atribua, já, essa mudança às exigências agrícolas:

E porquanto o sittio em que o Mosteiro e casas se fundárão deuia em esse tempo ser terra montuosa e agreste e apartada do dito Couto, porque, posto que oje se veia sem mattas e arouedo agreste, por causa dos muitos moradores que cultivão a terra, por ser de proueito, he a natureza della criar muitos e grandes castanheiros carualhos e outras aruores agrestes (Reis 2002b: 16).

Embora se tenha perdido muito dos arquivos dos cenóbios de S. João de Tarouca e de Sta. Maria de Salzedas, o que ficou de ambos os mosteiros, nomeadamente os registos de livros de doações, escambos e emprazamentos, permite ter uma perspetiva da rica flora natural do vale, pois são imensas as referências a rendas, foros e doações em géneros como cereais, hortícolas, frutos, vinhas, olivais, soutos e toda a sorte de produtos nascidos nas margens do Varosa. Tome-se como exemplo as rendas da celeiraria do mosteiro de Salzedas:

Celaria tinha também certa renda separada, como erão muitos alqueires de castanhas sequas, sabidos que se pagauão pelos moradores da Villa da Cucanha, e era boa quantidade, e todas as nozes que no couto do Mosteiro auia pertenciam ao celareiro; pareceo milhor aos Abbades emprazar tudo ysto e hum fremoso campo que junto das casa de vestearia tinhão, que servia de orta (Reis 2002b: 64-65).

O vale é, assim, um mundo verde e agreste, que vai sendo domesticado pelo homem até se tornar no que é hoje: este processo de modelação ocorre num espaço temporal longo de séculos, do qual se vão conhecendo algumas etapas. Nos alvores da modernidade, no século XVI, é um vale já marcado por uma paisagem com uma identidade agrícola, como descreve Rui Fernandes8, em 1532:

8 Pouco se conhece sobre a vida de Rui Fernandes; sabe-se que é natural de Lamego, mas desconhecem-se as datas de nascimento e sua morte.

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E vai o dito rio tão bem pela Cucanha que he do moesteiro de Sarzeda, e vay per muitas terras que pertencem ao dito mosteiro o qual mosteiro, dis no letreiro, dizem que mandou fazer Donna Tareja, molher de Dom Egas Monis que em elle está enterrada, e o marido jás em Paço de Souza. (…) Esta ribeira, ua légoa ao redor desta cidade, de ua parte e de outra todo he ollivais e vinhas de muy excelentes vinhos, os melhores da terra, e nogueiras e outras muitas árvores, e outra légoa para sima é toda soutos onde se mete no Douro. (…) Esta ribeira vem a mor parte por terra fragoza e daqui a duas légoas se ajunta com ella outra ribeira que vem por Lalim, e tem muitas truitas e mui saborozas, e vem junto de Tarouca e em Mondim se a jumtam (Fernandes [1532] 2001: 98-99).

Nos inícios do século XX, o rústico e acidentado vale do Varosa contrariava a aridez e a nudez dos montes das Beiras, apresentando-se frondoso e verdejante; nele erguem-se encostas vertiginosas cobertas de abundante vegetação, enquanto junto ao rio sobressaem a geometria e o colorido dos pomares e das hortas presos à serra por cordas de olivais e vinhas. O poder dentro do vale move-se e transfere-se dos extremos onde assentavam os velhos mosteiros, para a sede do novo concelho. A vila de Tarouca afirma-se como o novo centro da ocupação do território, embora, incapaz de mudanças na paisagem ou na identidade do velho vale:

No seu conjunto, aquele aglomerado de povoações, brancas e graciosas, entre a verdura das árvores e circundadas de hortas e pomares; o seu vale extenso e fértil, cortado pelo rio sinuoso e plácido, margeado em sítios, de opolenta vegetação, é alguma coisa de grande, e vale como um tesoiro que a natureza ali ostenta para delícia da beira (Moreira 1924: 120).

Esta imagem de um vale marcado por uma grande riqueza de espécimes vegetais, fértil, rico e verde, confirma-se não só pelos testemunhos escritos que sobreviveram nas páginas do tempo, mas também através de outro tipo de testemunhos como a toponímia, a etnografia, a arte ou a arqueologia.

Na análise da documentação dos arquivos de ambos os mosteiros são frequentes, no vale, os nomes medievais de locais identificados com determinada vegetação, alguns já desaparecidos como Villa do Souto (Ucanha); Granja de Souto Redondo (Couto); Salgueiro (Gouviães); Souto de El Rei (Mondim da Beira); outros que subsistem: Carvalhais (Dálvares); Souto do Gaio (Ucanha); Souto Maior (Salzedas); Corgo da Aveleira (S. João de Tarouca); Corgo do Pereiro (S. João de Tarouca) ou a povoação de Pinheiro. A etnografia permite, através do conhecimento dos costumes e tradições das populações do vale do Varosa,

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descortinar algumas das culturas agrícolas deste território como sejam o caso dos cantares de lagarada, da pisa das uvas, da desfolhada do milho ou dos lavores do linho.

Por sua vez a arqueologia, nomeadamente a arqueobotânica, é um meio primordial para se conhecerem os hábitos alimentares dos monges medievais. No caso das escavações levadas a cabo na cozinha do século XVIII do mosteiro de S. João de Tarouca, através do estudo arqueobotânico, foi possível identificar a presença de alimentos como a castanha, a avelã, a noz, a azeitona, o pinhão, o pêssego, a cevada, a framboesa, a ameixa, o medronho e a cereja (Sebastian e Brás 2015: 23). A própria arte, ainda que indiretamente, também pode ajudar a conhecer o meio físico onde se desenvolve, se se atentar, por exemplo, nos painéis de azulejos do século XVIII da capela - mor de S. João de Tarouca, mais precisamente o terceiro painel, visualiza-se um lugar inóspito, silvestre, com a presença de várias árvores.

Também no templo de S. João de Tarouca está depositada a maior arca tumular portuguesa, o sarcófago de D. Pedro, conde de Barcelos e filho natural do rei D. Dinis, falecido em 1354. Este colossal túmulo em granito de cerca de 13 toneladas é composto por uma arca retangular que apresenta nas faces laterais duas cenas de montaria. Neste caso, a arte é testemunho material, não só da forma como na Idade Média se caçava o javali, mas também da fauna e flora da região já que além dos javalis também são representadas algumas árvores anosas, provavelmente cedros ou pinheiros mansos (Moreira 1924: 73).

O vale seria, durante a Idade Média, casa de animais de grande porte; tal facto leva frei Baltasar dos Reis a considerar esta região como terra de feras; certamente estaria a referir a presença de animais como o javali, o lobo ou o urso, que hoje apenas fazem parte do imaginário, mas que eram comuns no território nacional do século XII: “(…) o nam parece que, tendo esta senhora o primeiro Mosteiro fundado, tam junto deste fizesse seus paços antre feras que não deviam faltar (…)”(Reis 2002b: 16). Além destes seriam também comuns outros como a raposa, o murganho, o texugo ou o corço (Reis 2002a: 11).

Se alguns destes animais ainda prevalecem no vale, foi no rio Varosa que mais se fizeram sentir as ações do homem e o consequente impacto na diminuição da fauna piscícola e da riqueza descrita por Rui Fernandes no século XVI:

Da ribeira de Baroza. hà nesta ribeira mui grandes pégos e mui altos de muito infido pescado scilicet muitas e boas trutas, e muitas bogas, e barbos; as bogas desta ribeira sobrellevão em sabor a todo outro pescado doutras ribeiras. Tem muitas e mui fermosas moeridas de todo o anno, e de seis, sete legoas vem nella a moer no verão (Fernandes [1532] 2001: 97).

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De facto, hoje o Varosa já não conhece nem bogas nem barbos, apenas as trutas que sazonalmente são lançadas no rio em programas de repovoamento. Apesar disso, o vale ainda pode ostentar com orgulho o título de Ecomuseu da Beira.

Foi aqui que se estabeleceram os Cistercienses e os seus saberes. Foi esta terra que se herdou e é daqui que se parte para percorrer um caminho que irá levar até ao triunfo das vinhas de Cister, já que é a partir deste pequeno vale que se afirmam os frutados, persistentes e exuberantes vinhos espumantes do Varosa.

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“Bebida do pobre e bebida do rico, o vinho acompanhou o português nos seus destinos: nas aventuras marítimas, na diáspora migratória, com o garrafão aliado à mala de cartão, nas diversidades do quotidiano e nos momentos de festa”.

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Capítulo II: A cultura da vinha

Não se pode falar de um grande espumante sem falar de um bom vinho base, não se pode conhecer com profundidade um vinho sem antes conhecer os seus genes, as vinhas que lhe deram vida, o seu percurso, os homens e as razões que o fizeram nascer. Por isso se descobrirá que o vinho espumante do Varosa é muito mais que a memória ligeira do palato.

II.1- Contextualização teórica

A cultura da vinha, mais objetivamente a produção de vinho, é um daqueles acontecimentos da história da Humanidade do qual não se conhece nem dia nem hora exata de nascimento, embora se saiba que foi nascendo e foi crescendo até se tornar uma referência das criações do engenho do homem (Alarcão 2001: 387).

Já muito se publicou e disse sobre o aparecimento e produção de vinho, com mais ou menos controvérsia; existe, no entanto, um fator incontestado e civilizacionalmente irrefutável: a produção de vinho aconteceu quando o homem abandonou a recoleção e começou a praticar a agricultura, quando passa de nómada a sedentário, quando a fala se desenvolve tão extraordinariamente que deixa antever o nascimento da escrita (Amaral 1994: 7). Tal transformação, segundo os compêndios de História, terá ocorrido no chamado Crescente Fértil, isto é, na região dos vales dos grandes rios do Médio Oriente, Nilo, Eufrates e Tigre, há cerca de 12000 anos (Saraiva 1993:20). Naturalmente os nossos antepassados já conheceriam a uva muito antes de começarem a produzir vinho, dado que as videiras selvagens seriam uma constante dos seus habitats e das suas práticas de recoleção, até porque homens e uvas coexistem no planeta há muitos milhares de anos.

Se se quiser estabelecer com algum grau de possível exatidão o início da prática da transformação das uvas em vinho, será forçoso recorrer à arqueologia, mais precisamente aos estudos de arqueobotânica e aceitar à partida que a existência de vestígios de grainhas comprova a produção de vinho; assim e de acordo com esta premissa, os primeiros vestígios de grainhas datados de cerca de 8000 a.C. terão sido encontrados em escavações em Catal Huyuk, na atual Turquia, em Byblos (Líbano), em Damasco (Síria) e na Jordânia. No entanto as grainhas mais antigas terão tido a sua origem na Geórgia entre os anos 7000 e 5000 a. C., o

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que significa que as primeiras vinhas cultivadas, para fabrico de vinho, o foram na região a sul das montanhas do Cáucaso, a montante do rio Tigre.

A videira, como a descreve Johnson’s (1999:18-19) é uma espécie errante, vagabunda, com grande capacidade de adaptação, que apenas requer humidade quando cresce e repouso invernal para dar novos rebentos. A errância da videira faz com que esta se espalhe pelo mundo antigo do Cáucaso à Pérsia, da Fenícia ao Egipto, da Núbia ao norte de África, do Mediterrâneo à Europa e daí aos novos continentes, estando hoje disseminada praticamente por todo o globo terrestre.

A videira tem qualidades excecionais, que fazem dela uma vencedora, podendo-se designar o seu triunfo ao longo dos séculos como a vitória da resiliência e da adaptação a todos os desafios. A sua capacidade vencedora está na sua própria natureza, na súmula das suas qualidades: a resistência, a adaptabilidade, a fertilidade, a longevidade e a característica única de conseguir condensar nos seus frutos um terço do seu volume em açúcar com um sumo vivo e cristalino.

Existem, no hemisfério norte, cerca de meia centena de plantas trepadeiras da família das Vitis, a família botânica da videira (Vitis Vinifera, L). A videira selvagem (Vitis silvestri) produz flores masculinas ou femininas, raramente se encontram os dois géneros na mesma planta, o que significa que uma planta feminina dá frutos mas necessita de ter por perto uma masculina que, embora sendo estéril, proporciona a necessária polinização.

Existe ainda um pequeno número de espécimes que são hermafroditas, possuem os dois géneros de flores, logo mostram-se muito menos produtivas em relação às de flor feminina. O homem, inicialmente vai selecionar apenas as plantas femininas para a produção de vinho e destruir as estéreis masculinas, erro crasso que levou à esterilização, também, das femininas. Este processo leva ao triunfo das plantas hermafroditas, o que significa que as nossas vinhas cultivadas são por isso uma espécie de videira (Vitis sativa), consistentemente hermafrodita (Johnson’s 1999: 17).

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O vinho faz parte do imaginário do homem, é como se possuísse não uma, mas múltiplas identidades que vão muito além da sua função alimentar ou das implicações económicas, tem uma geografia própria, tem um código genético próprio, profissões específicas regulamentadas9, associações, confrarias e até deuses, está presente na cultura, na arte, na medicina, nos rituais religiosos e sociais, para esquecer e para comemorar. A própria origem do vinho está associada a lendas10 e mitos que contribuem para um certo misticismo à sua volta; aliás, as mitologias e as próprias religiões lidam com ele duma forma que é tudo

9 Já no segundo milénio antes de cristo na Mesopotâmia se conhecem compilações de leis relativas a atividades relacionadas com o vinho, com base no código de Hammurabi, que estabelecia preços e punições à atividade fraudulenta por parte das taberneiras (Machado 2001: 143-145).

10 Das várias lendas que se conhecem sobre o vinho há a lenda babilónica de Upnapishtim que se terá embriagado e posteriormente nunca mais fabricou vinho ou a lenda da mitologia grega na qual Zeus provoca uma grande inundação sobre a Humanidade, da qual apenas sobreviveu um casal, cujo filho Orestes terá sido o primeiro a plantar a vinha (Cardoso 2003: 40).

Mais famosa será porventura a lenda persa do rei Jamsheed; conta a história que na sua corte as uvas eram guardadas em talhas. Uma delas exalaria um odor estranho, que saia das uvas envoltas em espuma, essa talha foi posta de lado por se considerar que essas uvas seriam venenosas e não se poderiam comer. Uma donzela da corte terá procurado colocar um fim à sua vida, por sofrer de insuportáveis cefaleias, com este veneno. Em vez da morte terá encontrado um sono repousante. Perante isto Jamsheed mandou fazer vinho para ser consumido na sua corte (Johnson’s 1993: 23).

Imagem 2: Exemplar de Vitis Silvestri.

Fonte: http://www.naturefg.com/pages/pl-dicotyledones6.htm, consultado em dezembro 2016

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menos desapaixonada; se umas lhe consagram deuses ou o aceitam nos seus rituais logo outras condenam o seu consumo excessivo11 ou como no caso do Islão não o permitem.

II.2- A viticultura no território nacional

O Portugal de hoje é identificado como um país de vinho, com uma parte significativa da sua superfície agrícola ocupada por vinhas, com várias regiões produtoras ao longo do seu território e com uma produção a diversificar-se e relativamente significativa face à sua dimensão. Longo foi o caminho que conduziu até aqui, um percurso sinuoso marcado por avanços e recuos, uma estrada antiga, mais velha que a própria nação.

Este caminho começou muito antes de se adivinhar um país. O território ibérico conheceu ocupação humana desde a Pré-história; conhecendo-se as admiráveis qualidades de adaptação da videira selvagem, é muito provável que o primeiro encontro entre o homem da Ibéria e a videira se tenha dado nesses tempos remotos da Pré-história peninsular. A referência mais antiga, ligada à temática do vinho, documentada no atual território nacional, segundo os arqueólogos, data do século VIII a. C. e diz respeito às sondagens levadas cabo em 1988, na estação arqueológica da quinta de Almaraz (Almada). Nessa campanha terão surgido montículos de grainhas de uva, não tendo sido possível determinar as castas em presença e cuja datação através do radiocarbono apontam para o século VIII a.C.; isto só por si não significa que se cultivava a vinha nesta região, aliás, a abundância de vestígios de ânforas no local parece indicar consumo e não produção (Barros 2001: 9).

Aliás, Ana M. Arruda (2001: 11) aponta no sentido de que o território, hoje português, durante a Idade do Ferro (séculos VIII/VII a.C.), seria por influências orientalizantes um mercado consumidor de vinho, uma vez que os dados de produção vinícola são inexistentes. Para Carlos Fabião, perante a escassez de informação, parece razoável ponderar a existência da produção de vinho a sul do território nacional, ainda em época pré-romana; no entanto, não deixa de sublinhar:

11 Na Igreja Católica o vinho assume um papel central, uma vez que simbolicamente é através dele que se faz a consubstanciação do sangue de Cristo. Curioso é também o facto de ser através da Igreja Católica que chega um dos primeiros relatos escritos do fenómeno da embriaguez, que a Igreja condena, no livro do Génesis, capitulo nono, que descreve que Noé depois do dilúvio plantou uma vinha, bebeu dela e embriagou-se mostrando a sua nudez ao seu filho Ham. Face a este episódio Noé, ao recuperar a sobriedade, viria a amaldiçoar o seu próprio filho. Este episódio terá representado a segunda queda do homem, depois de Adão.

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Como se referiu, não é fácil determinar quando se terá iniciado a produção de vinho no extremo ocidente peninsular. Faltam-nos dados concretos e objetivos, estruturas de transformação, macro restos vegetais ou colunas polínicas com o registo de claras e significativas acções de origem antrópica que indiciem a viticultura — e, os poucos existentes, não são isentos de problemas, suscitando mesmo dúvidas de difícil solução, designadamente o registo polínico do Paul dos Patudos, Alpiarça, de controversa datação, não permitindo, por outro lado, uma determinação categórica do tipo de uitis ali documentado (Fabião 1998: 173-174).

Os anos de 700 a.C. a 600 a.C. terão sido decisivos para a implementação no território nacional do gosto orientalizante de beber vinho, o que se deve sem dúvida à presença regular de comerciantes fenícios, habituados ao comércio do vinho já desde o 2º milénio a.C. e que procurariam os estuários dos principais rios do sul e centro de Portugal, onde trocariam jóias, cerâmicas, objetos de vidro e ânforas de vinho e azeite pela prata e estanho da Ibéria (Silva 2014: 49).

Será com a ocupação romana da península, a partir de 218 a.C., que se vai assistir definitivamente a um incremento significativo da presença da vinha e da produção vitivinícola entre as populações do território peninsular. A presença romana vai alterar radicalmente o modo de vida peninsular em todos os seus componentes. A agricultura e os hábitos alimentares vão ser um espelho fiel dessa mudança,

O cultivo da vinha, do olival e dos cereais, sobretudo trigo, invadem o espaço português de sul para norte (Salvador 2003: 19). No que respeita ao domínio romano, os dados arqueológicos são mais numerosos e mais claros quanto à produção de vinho no mundo das villae romanas da península; de facto, no atual território conhecem-se várias intervenções e estações arqueológicas12 que atestam esta realidade, sendo a antiga villa romana de S. Cucufate, na Vidigueira, o caso mais exemplificativo do cultivo da vinha, quer pela profundidade das intervenções arqueológicas, quer pela clareza e monumentalidade dos

12 Referem-se, apenas, à laia de exemplo, um inventário de sítios arqueológicos no atual território português, onde foram identificadas estruturas correspondentes a lagares romanos de vinho ou a lugares de funcionalidade não especificada ou indeterminada (Carvalho 2001: 47), a saber: Freiria (Cascais); Monte da Ovelheira (Elvas); Cerro do Castanho (Monchique); Fonte Velha (Lagos); Vale do Marinho (Portimão); Vidigal (Portimão); São Cucufate (Vidigueira); Monte do Melo (Beja); Monte da Chaminé (Ferreira do Alentejo); Monte da Salsa (Serpa); Milreu (Faro); São João da Venda (Faro); Carvalhal Redondo (Nelas); Fonte do Milho (Régua) e Panóias (Vila Real). O autor chama a atenção para o facto de frequentemente não se conseguir determinar com certeza se estes lagares se destinariam à produção de vinho ou de azeite, chegando a adiantar a hipótese de alguns poderem ter essa dupla funcionalidade, tendo em conta a diferente sazonalidade destas culturas (Carvalho, 2001: 58-59).

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testemunhos, nomeadamente um lagar de vinho onde foram recolhidas várias grainhas de uvas.13

Apesar disto e para se ter uma ideia da grandeza destas unidades fundiárias, Jorge de Alarcão afirma ser provável que o proprietário do século I d.C. se dedicasse mais à exploração de cereais e à criação de gado do que ao cultivo da vinha e do azeite; afirma também que, no século IV, já na terceira ocupação da villa, a adega com as suas talhas se aproximaria muito das típicas adegas alentejanas com as suas talhas de barro, afastando-se das lojas de pipas e toneis do norte de Portugal (Alarcão 1998: 27).

S. Cucufate é ainda uma fonte exemplar de estudo das alfaias associadas ao trabalho agrícola durante a romanização, não só em termos de tipologia mas até para a compreensão das diferentes fases do trabalho da vinha (Almeida 2001: 17), num contexto em que o estudo das alfaias lusitano-romanas se encontra por fazer.

A realidade do território nacional relativa ao cultivo da vinha não é uniforme, apresenta uma clara divisão norte/sul, com uma fronteira provavelmente estabelecida no sistema central e vale do Mondego, que separava os hábitos mediterrânicos da produção e consumo do vinho e do azeite, onde estão as grandes villas romanas do sul como S. Cucufate (Vidigueira), Freiria (Cascais), Torre de Palma (Monforte) ou Pisões (Beja) e a manutenção do mundo “bárbaro” a norte, onde ainda se bebiam os cereais fermentados e se utilizava a gordura animal (Fabião 2001: 117). O esbatimento desta fronteira faz-se ao ritmo da romanização, de sul para norte; coube ao exército romano, não só subjugar e manter a paz, mas também o papel de agente integrador, e é neste papel que o exército romano vai ser fundamental na generalização do consumo do vinho. As populações do norte peninsular já tinham contacto com o bem organizado comércio romano, em especial comércio de cereais, produtos piscícolas, azeite e, claro, de vinho; aliás, o vinho é uma, senão a grande necessidade que acompanha o exército, ajudando assim a generalizar o seu consumo por toda a península. Realce-se que o vinho, na generalidade, terá sido bem recebido pelas populações da Lusitânia, como transmite Maria de Belém Campos Paiva:

O gosto dos indígenas pelo vinho ter-se-á desenvolvido largamente a partir das primeiras importações itálicas e dos contactos com o mundo romano, situação aliás bastante semelhante à verificada noutros pontos do império a ocidente de Itália, designadamente na

13 Este é, segundo António Carvalho, o único lagar indiscutivelmente ligado ao fabrico de vinho (Carvalho 2001: 58).

Referências

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