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PODE O MONSTRO DEIXAR DE SER MONSTRO? RESIGNIFICAÇÃO DO CORPO A PARTIR DOS AVANÇOS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA

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PODE O MONSTRO DEIXAR DE SER MONSTRO?

RESIGNIFICAÇÕES DO CORPO A PARTIR DOS

AVANÇOS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA

MONSTER CAN LEAVE TO BE MONSTERS?

BODY RESIGNIFICATIONS FROM THE PROGRESS OF SCIENCE

AND TECHNOLOGY

Emanuel Marcondes de Souza Torquato

Revista e-ciência

Volume 2

Número 2

Artigo 02

V.2, N.2, DEZ. 2014

ISSN: 2318-4922

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PODE O MONSTRO DEIXAR DE SER MONSTRO? RESIGNIFICAÇÕES DO

CORPO A PARTIR DOS AVANÇOS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA

MONSTER CAN LEAVE TO BE MONSTERS? BODY RESIGNIFICATIONS

FROM THE PROGRESS OF SCIENCE AND TECHNOLOGY

Emanuel Marcondes de Souza Torquato1

1 Possui Graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (2000), Especialização em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Juazeiro do Norte - FJN e Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (2005). Atualmente é professor da Universidade Federal do Cariri - UFCA, da Faculdade de Juazeiro do Norte - FJN e da Faculdade Católica do Cariri.

E-mail: marcondestorquato@hotmail.com

RESUMO

O artigo procura compreender a relação entre o maquínico e o orgânico presente nos diversos hibridismos que o corpo configura na cultura contemporânea. Para tanto, utiliza-se da análise de autores importantes para a discussão da cibernética enquanto ciência como Norbert Wiener, o fundador da cibernética, Clynes e Kline, Vilém Flusser, Donna Haraway, Tomaz Tadeu, Lúcia Santaella e Erick Felinto. Procede-se nesta investigação a partir da revisão da noção de monstruosidade atualizada na figura tecnológica do ciborg. Com esta discussão investiga-se as fronteiras do que é o humano e da noção de normalidade, as novas configurações do corpo, o tema da biomídia e os novos rumos que a ciência está tomando.

Palavras-chave: Cibernética. Biomídia. Corporeidade. Ciborg.

ABSTRACT

The article seeks to understand the relationship between the machinic and the present in the various hybrids that configures the body in contemporary culture organic. For this purpose, we use the key to the discussion of cybernetics as a science as Norbert Wiener, the founder of cybernetics, Clynes and Kline, Flusser, Donna Haraway, Tomaz Tadeu, Lucia Santaella and Erick Felinto analysis authors. We proceed in this investigation from the revision of the notion of monstrosity updated technological figure of the cyborg. With this discussion investigates the boundaries of what is human and the notion of normality, the new configurations of the body, the subject of biomídia and the new directions that science is taking.

Key words: Cybernetics. Biomedia. Embodiment. Cyborg.

INTRODUÇÃO

Experimenta-se atualmente uma verdadeira invasão dos monstros. Zumbis, vampiros, lobiso-mens, orcs, ogros, gigantes, dragões, animais hí-bridos, alienígenas e todo tipo de criatura estra-nha saíram do imaginário da literatura do grotesco para ganhar um lugar especial em nosso dia-a-dia através de um crescente número de filmes e seus subprodutos mercadológicos. Acrescentemos ain-da a estes monstros os ciborgs, figuras tecnológicas monstruosas oriundas da literatura ciberpunk e dos filmes de ficção científica.

Habitantes, em outros tempos, dos relatos fantásticos sobre o diferente, o perigoso e o es-tranho, na contemporaneidade, manifestam-se por

vezes em figuras bonachonas e cômicas. A ima-gem do monstro bonzinho e que encanta e diver-te as crianças, ou mesmo do monstro herói e jus-ticeiro, parece dividir espaço com o personagem de terror, numa tentativa de amenizar o significa-do de tão numerosa presença. O fato é que criou-se uma cultura do consumo em torno do tema monstros, indo desde os espetáculos de rock hor-ror show e música pop, à camisetas com caveiras de apliques, joias, jogos eletrônicos, ou até mes-mo biscoitos ou chocolates temáticos. Realizam-se ainda, em muitos lugares, feiras para a diver-são ou negócios em que a atração principal diver-são os monstros.

Para além do sentido cômico ou de terror que as manifestações dos monstros apresentam,

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trazemos uma inquietação a partir da vertente tecnológica. À luz dos novos avanços científicos e tecnológicos e da influência que exercem so-bre a cultura atual, mostra-se importante com-preender como os ciborgs estão engendrando um abalo na noção tradicional de corpo e subjetivi-dade. Trata-se de um verdadeiro impacto que essa cultura do consumo em torno dos mons-tros exerce, a partir dos ciborgs, sobre a corporeidade, revelando-a pluriforme. Nas pa-lavras de alguns estudiosos, trata-se de uma desconstrução e reconstrução de corpos em muitas possibilidades. Algo muito próprio dos monstros à medida que suscitam tanto uma re-pulsa quanto um fascínio. Procuramos, nesta pesquisa, costurar, de forma crítica, um diálogo entre textos e autores que, na contempora-neidade, analisam esta problemática em vista de encontrar um sentido que subjaza esta desconstrução e recostrução em voga.

DE ONDE VIERAM OS MONSTROS?

As primeiras representações dos monstros surgiram na mitologia, nas lendas, no folclore, nos contos de fadas e, mais tarde, nos relatos de viagens para terras remotas. (FELINTO, 2012, p. 84) Nessa literatura, o significado da palavra monstro estava ligado ao seu sentido literal, ou seja, “aquele que mostra algo”, no caso, uma revelação divina, ou a ira dos deuses, as infinitas e misteriosas possiblidades da natureza, ou aquilo que o homem corre o perigo de vir a ser. É, por-tanto, a manifestação de algo fora do comum ou do esperado. Representa uma alteração maldita ou benfazeja das regras conhecidas. Nesse con-texto, os monstros aparecem como maravilhas ou prodígios do mundo, encarnando um poder incompreensível aos homens. Os monstros eram sempre identificados pelo corpo, ou seja, era na estrutura física que se apresentava a distinção entre “homens” e “monstros” e não no caráter destes, independente de ser, por exemplo, um sábio, como o centauro Quíron, ou algo horrendo e perigoso, como a Medusa.

Já na Idade Média (FELINTO, 2012, p. 84), os monstros foram identificados à imagem dos de-mônios, passando a associá-los a um princípio destrutivo e maligno referente a sua forma amedrontadora. Nesse período, por influência da ideologia cristã na Europa, a estranheza do “fan-tástico” foi resignificada em grande parte no te-mor do maligno. O demônio tornou-se de agora em diante a grande fonte geradora de monstros, reconhecidos não necessariamente por suas ações ou intenções mas por seu aspecto físico horrendo. Constituiu-se assim uma forte associação do mal aos monstros. Dessa forma, tanto figuras míticas, quanto pessoas com corpos distintos, considera-das deformaconsidera-das ou aleijaconsidera-das, foram insericonsidera-das nes-sa definição de monstro que significa também periculosidade maligna. De qualquer modo, a mons-truosidade trouxe a marca da transgressão e da desordem, da ameaça contra a natureza e contra a homogeneidade.

APROXIMAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E MONSTROS

As primeiras expressões que aproximam os monstros da ciência, ultrapassando a esfera do maravilhoso e teológico, encontram-se no século XVI, num tipo de literatura que combinava influên-cias sobrenaturais e naturalistas. Para o cirurgião francês Ambroise Paré, na obra Os Monstros e os

Prodígios (FELINTO, 2012, p. 85), por exemplo, o

monstruoso encontra-se em atos contra a nature-za que ofendem as leis de Deus. Os monstros seri-am manifestações físicas, palpáveis, corpóreos de atos pecaminosos constituindo-se basicamente em deformidades que poderiam ser explicadas pela ciência.

É curioso notar que foi no século XIX que essa compreensão dos monstros enquanto defor-midades corpóreas ganha as feições de espetáculo performático. Na América do Norte desse período, os freak shows eram muito comuns e constituíam-se em espetáculos dedicados à exposição pública de bizarrias, as anomalias e deformações que afe-tam o corpo. Foi nesse mesmo século, em 1832, que o zoólogo francês Geoffray Saint-Hilaire criou a “teratologia”, do grego terato, monstro, ou seja, a ciência que estuda as deformidades do corpo. Empregou-se este termo em diferenciação à raiz latina monstrum, para distinguir os tratados que abordavam as deformidades orgânicas daqueles que as misturavam às explicações mágicas e espi-rituais. Porém, não obstante esta preocupação ci-entífica, a anomalia continuou ainda a ser vista como monstruosa e como marginalização da de-formação física. (FELINTO, 2012, p. 85)

Há, entretanto, relatos que retratam o monstruoso numa outra esfera, desvinculada de uma geração orgânica, deformada ou não, mas o coloca no âmbito do puramente artificial, separa-do e construísepara-do. Um deles pode ser visto na inter-pretação do mito de Prometeu. Titã, descendente de uma antiga raça de deuses destronada por Zeus, sabendo que a Terra continha a semente dos céus, Prometeu fez o homem a partir da argi-la e um pouco de água. Admirada diante da obra, a deusa Atena concedeu ao humano o sopro divi-no. O primeiro invento foi dar origem à humani-dade à qual Prometeu ensinou todas as compe-tências. A ela só faltava o dom do fogo, algo que havia sido proibido por Zeus. Ao transgredir a proi-bição, Prometeu é castigado. Acorrentado a um penhasco do Monte Cáucaso, uma águia devora-va-lhe o fígado cotidianamente. Seu sofrimento durou eras, até que, penalizado, Zeus lhe impu-tou um castigo mais brando.

Outra figura emblemática de uma forma de vida que não passou pela reprodução sexuada en-contra-se na lenda judia do Golem. Tendo emergi-do nas comunidades judias da Europa Central, ga-nhou popularidade no século XIX. O Golem é um ser mágico, criado a partir do barro, que tinha por função proteger os judeus contra perseguições. Por ser uma criatura reduzida ao silêncio, privada do dom da fala, sofria de deficiências nos poderes da razão não chegando a ser considerado um huma-no. Embora fosse uma criatura forte era também

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desajeitado, tornando-se perigoso. Ele é um bobo pesadão que desconhece tanto sua força como o grau da sua falta de jeito e ignorância. Sem con-trole, pode destruir os amos com sua agitada vita-lidade. Indica-se aí, com clareza, as fraquezas e, porque não dizer, a aberração da criação artificial estranha aos desígnios divinos. A figura mitológica do Golem foi, muitas vezes, tomado em analogia com os perigos monstruosos dos artifícios tecnológicos e da desumanização provocada pelas máquinas que privam o mundo da espontaneidade e das emoções.

Outro exemplo é o romance de Mary Shelley de 1818, Frankenstein (FELINTO, 2012, p. 86-87), representante da essência dos medos e esperan-ças evocadas pelas novas tecnologias. Entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre o natural e o artificial, esse personagem borra as fronteiras. Mantém-se nele tanto a dinâmica da monstruosi-dade quanto a punição pela transgressão das leis da natureza. Essas questões permanecem hoje na ansiedade em torno das consequências dos expe-rimentos científicos, sobretudo aqueles que mani-pulam matéria viva. Frequentes analogias apare-cem atualmente entre a figura do Frankestein e a possiblidade de uma tecnologia senciente, ou seja, ao mesmo tempo consciente e sensível, podendo estar presentes no robô, nos androides e nos com-putadores inteligentes.

O que percebemos nos três exemplos apre-sentados é que se confundem as posições do mons-tro, ora podendo ser assumido pela criatura, pro-duto da manipulação do natural através da transgressão da sua ordem, ora pode ser visto no criador, transgressor da essência, em busca de pervertê-la à outra ordem através da mistura que, como castigo, volta-se contra seu engendrador. Quaisquer misturas ou hibridismos é imputada, portanto, de monstruosidade por transgredirem a crença de que a natureza humana é ontológica. Nas palavras de Latour,

Quando nos vemos invadidos por embriões congelados, sistemas especialistas, máquinas di-gitais, robôs munidos de sensores, milho híbrido, bancos de dados, psicotrópicos liberados de forma controlada, baleias equipadas com rádio-sondas, sintetizadores de genes, analisadores de audiên-cia etc, quando nossos jornais diários desdobram todos esse monstros ao longo de páginas e pági-nas, e nenhuma dessas quimeras sente-se confor-tável nem do lado dos objetos, nem do lado dos sujeitos, nem no meio, então é preciso fazer algo. (FELINTO, 2012, p. 87)

Estes novos monstros surgem quando des-pertam nossa horrorizada curiosidade, porque abrem brechas e desestabilizam nossas certezas. São monstruosas todas as criaturas instaladas numa linha onde as identidades se tornam instá-veis e as diferenças borradas. E assim, como pu-demos ver, o que mais espanta é a generalização da simbiose entre máquinas e organismos, no mundo contemporâneo, que torna cada vez mais difícil distinguir aquilo que é puramente orgânico daquilo que é puramente máquina. Já não temos mais nitidamente definida as fronteiras que nos fazem perceber onde termina o humano e onde

começa o maquínico. Ou, nas palavras de Tomaz Tadeu (2009), dada a ubiquidade das máquinas, onde terminam as máquinas e começa o humano.

OS AVANÇOS DA CIÊNCIA NO CAMPO DA BIOMÍDIA

As questões atuais acerca do corpo, que o tão popular tema da monstruosidade evidencia, são desencadeadas nos tempos atuais pela revolução biotecnológica. Pesquisas em áreas como a far-macologia, fisiologia cerebral, tecnologia reprodutiva, próteses, biônica, terapia genética e engenharia de células tronco trazem questões psí-quicas, culturais e éticas que vão muito mais além dos limites meramente técnicos, reacendendo o debate sobre o monstruoso e o normal.

O russo Vladimir Mironov, em Campinas, no interior de São Paulo, no Centro de Tecnologia da Informação, um centro de pesquisa ligado ao Mi-nistério das Ciências, Tecnologia e Inovação, de-senvolve, desde 2013, um projeto de pesquisa so-bre bioimpressão. Seu intuito é desenvolver uma impressora 3D que imprima tecidos e órgãos vi-vos. O trabalho de Mironov envolve também teste com um braço robótico capaz de imprimir tecidos vivos a partir de uma tinta orgânica contendo cé-lulas tronco. Essa tecnologia, de uma certa forma, já existe em instituições americanas. Nos Estados Unidos células do fígado foram impressas pela empresa Organovo, um rim foi impresso na Uni-versidade Wake Forrest e músculos e veias do co-ração na Universidade Missouri-Columbia (ROTHAMAN, 2013, p. 52). Tudo isso hoje já é pos-sível graças às revoluções na biologia que vêm ocor-rendo desde a descoberta da estrutura química do código genético.

A identificação da dupla hélice do DNA per-mitiu à biologia estabelecer com precisão a natu-reza exata do material genético. Os quatro nucleotídeos básicos, adenina, citosina, guanina e timina, subunidades de uma cadeia de DNA, for-mam o alfabeto da informação genética e dos mi-lhares de configurações possíveis que tornam o DNA um código informacional. A partir dessas desco-bertas, a biologia teve de recorrer a princípios de organização desconhecidos, até então, para quí-mica orgânica, ou seja, as noções de informação, de código, de mensagem, de programa, de comu-nicação, de expressão, de controle, tratando agora não da matéria vida, mas sim de sistemas vivos controlados informacionalmente. A biotecnologia torna-se, assim, uma tecnologia da escrita e processamento informacionais, utilizando a biomídia como matéria prima (HARAWAY, 1991, p. 164). Fala-se agora, no tocante à tecnologia da informação, não apenas em hardware e software, mas em um componente novo e úmido, o wetware. (SANTAELLA, 2003. P. 28).

O ciborg RECONSTRUTOR DE CORPOS

O neologismo ciborg (cib – ernético mais org – anismo) está ligado à imagem de corpos

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híbri-dos, misturas de humanos e máquinas em figuras bizarras e assustadoras presentes nos filmes hollywoodianos inspirados em ficção científica, como o cyberpunk “Neuromancer” de William Gibson. No entanto, não se restringem apenas aos seres monstruosos da ficção. Os ciborgs de fato existem, como defende Donna Haraway, na obra Manifesto Ciborg (2009).

O Termo ciborg foi utilizado primeiramente por Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline, em 1960, para designar os sistemas homem-máquina auto-regulativos, quando ambos aplicavam a teoria de controle cibernético aos problemas que as viagens espaciais impingem sobre a neurofisiologia do cor-po humano. No contexto da relação do programa espacial norte-americano com a pesquisa médica, o ciborg foi proposto como uma solução para as alterações das funções corporais ao se acomoda-rem a ambientes diversos.

Diferentemente do ciborg de Clines e Kline (1960), que foi concebido como uma espécie de super-homem capaz de sobreviver em ambientes extraterrestres hostis, Haraway (1991) apropria-se da possibilidade polissêmica do ciborg utilizan-do-o como uma metáfora carregada de ironia polí-tica contra o capitalismo patriarcal, numa apropriação da forma transgressora do termo e da noção de corporeidade que propõe.

Hoje, as tecnologias biológicas e telemáticas estão redesenhando nossos corpos. Os ciborgs apresentam-se nas hibridizações do corpo com as próteses tecnológicas. Trata-se do corpo corrigido e expandido através de próteses, construções arti-ficiais como substituto ou amplificação de funções orgânicas. São alterações fundamentais do corpo, visando aumentar sua funcionalidade interna. Desta forma, o horizonte de possibilidades é amplo, des-de as lentes corretivas para os olhos, aparelhos auditivos e as próteses funcionais que substituem partes do corpo, a exemplo das próteses dentárias, até a substituição de funções orgânicas, como marca-passos, órgãos artificiais e implantes de biochips.

Para Haraway (1991), o que nos impede de reescrever os nossos corpos? O fazemos o tempo todo nas academias esportivas através das tecnologias do body building com a utilização de suplementos químicos. O fazemos o tempo todo através do nível de pervasividade e ubiquidade a que chegou a tecnologia atual, sem falar nas inter-venções artificias da medicina estética. Mais do que construir nosso corpo, é possível construir nossa identidade, nossa sexualidade, até mesmo nosso gênero, nossas formas de sociabilidade, exatamen-te da forma que quisermos. Ser ciborg então, exatamen-tem a ver com a liberdade de autoconstruir-se.

As novas tecnologias estão suscitando uma desestabilização na crença dos limites corporais e de uma identidade unitária. Como matéria do vivido, o corpo tornou-se o foco privilegiado para a atividade constante da modificação e adaptação por meio da troca de informações com o ambiente. Para Santaella (2004, p. 57-64), mais do que intra ou extracorporais, as transformações do corpo biocibernético seguem três movimentos. O primeiro vai de dentro do corpo para fora dele. Trata-se das conexões permitidas por serviços informáticos telecomunicacionais, acessíveis por meio de um enxame de dispositivos smarts. São dispositivos que possibilitam ultrapassar os limites espaciais, transportando a mente sem a necessida-de necessida-de necessida-deslocar o corpo. O segundo movimento refe-re-se ao que se posiciona, ao mesmo tempo, fora e dentro do corpo. São as técnicas de body building e

body modification ligadas às cirurgias plásticas,

en-xertos, à química de esteroides e às técnicas de

piercing e tatuagem. O terceiro vem de fora do corpo

para dentro dele. São os implantes e próteses que pretendem corrigir funções orgânicas avariadas, ou ampliá-las, transformá-las e até mesmo criar novas funções.

Toda essa realidade em torno do corpo vem provocando perplexidade, ansiedade e angústia. Lembra pesadelos de outras épocas que perpassa-vam o imaginário. Fazem ressuscitar os monstros em legiões numerosas. Como dizem Felinto e Santaella (2012 p. 81), essas novas tecnologias e intervenções no corpo produzem um rombo no imaginário porque escancaram o real do corpo, provocam o temor do seu desmembramento, pro-vocam crises nos seus conceitos tradicionalmente tomados como garantidos. À medida que estas transformações anunciam um fenômeno ainda não inteiramente codificado, não absorvido pela cultu-ra, traduzem-se nas representações diversas da cultura atual como monstruosidade. A fusão entre o natural e o artificial, quando conscientemente percebido, amedronta e aterroriza, sobretudo pe-las consequências ainda não medidas dessa simbiose. As máquinas não sentem paixão e pie-dade, raiva e ternura, alegria e medo, não sentem dor nem saudade. No entanto, a cada dia cresce o potencial das chamadas máquinas inteligentes nos situando numa compreensão que enxerga borrada as fronteiras entre humanos e não-humanos.

A idéia do ciborg é aterrorizante. A medida que coloca em xeque a originalidade do humano, exige de nós repensar a noção de fronteiras e de normalidade. Talvez abra a possibilidade de um novo humano. Sendo assim, atrevemo-nos a per-guntar onde está o monstro e se ele poderá deixar de ser monstro, se nos transformaremos em zumbis ou ciborgs ou em “outros humanos”.

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REFERÊNCIAS

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FELINTO, Eric; SANTAELLA, Lúcia. O Explorador

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HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz.

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JONAS, Hans. Técnica, Medicina e Ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. São Paulo: Paulus, 2013.

ROTHMAN, Paula. O Homem que Quer Imprimir

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TADEU, Tomaz. Org. Pedagogia dos Monstros:

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