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A teoria da revolução na filosofia política de Aristóteles

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A teoria da revolução na filosofia

política de Aristóteles

por António Campeio Amaral *

Introdução

O epílogo revolucionário dos traumas políticos adquiriu na mundividência ocidental não apenas um pretenso carácter de universalidade e transversalidade em todas as esferas da vida social, como também um estatuto demiúrgico, no intuito de instaurar novo(s) sentido(s) para a velha (des)ordem. Dois equívocos permanecem, todavia, enraizados nessa auto-interpretação: o pressuposto de que o acto revolucionário representa, na sua expressão prometeica, um desafio trágico à (des)ordem instituída; a convicção de que a gesta revolucionária consuma, no seu gesto messiânico, uma expectativa escatológica em ordem à instauração de um paraíso na terra.

Grande parte - para não dizer todas - das epopeias revolucionárias modernas e con-temporâneas, nada mais representam do que simulacros da mítica luta ancestral contra a fobia da desordem. O rito sagrado e inaugural de espetar uma haste no ventre da terra, a partir do qual as sociedades arcaicas instituiam o centro de gravidade da vida comu-nitária, perdura de certo modo na aspiração revolucionária de domínio já não de um caos ontogénico como no mito, mas do distúrbio das pulsões sociais e políticas. Assinalar o umbigo do mundo, a partir do qual se delimitam as fronteiras dos novos areópagos e se acertam os ponteiros pelo relógio dos novos tempos, suscita na liturgia revolucionária a mesma primordial e demanda das sociedades míticas pela ordem. l

Ora, a lição aristotélica resiste a uma concepção ex machina do acto revolucionário. Para o pensador estagirita, uma revolução politica não configura um fenómeno que surge "de fora" para resolver um impasse, um dilema ou uma aporia da vida política. A filosofia clássica, possui de resto o condão de nos situar no estofo compactado de tensões e aspi-rações da própria experiência humana, o que significa que todos os actos da existência social, incluindo o fatum e o factum revolucionários, se inscrevem num processo de ampli-ficação da realidade da consciência política ou, se quisermos, da consciência da realidade politica. Nesse sentido, o pulsar enigmático da revolução apenas pode ser esclarecido a partir de uma reflexão que nos dê conta das constantes simbólicas, conceptuais e noéti-cas da experiência humana em comunidade. O sentido do presente artigo decorre precisa-mente da intenção de situar esse "mistério" humano numa fenomenologia da experiência concreta, focalizando-o já não a partir da perspectiva positivista dos modelos explicativos e operativos da psico-sociologia (mediante uma dissecagem das motivações, intenções, cir-cunstâncias e consequências das façanhas revolucionárias), mas no escopo de uma reflexão que visa o fundamento e o firmamento de tal ocorrência, filosófica portanto. 2

* Docente de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa - Lisboa.

1Cf. A propósito o sugestivo estudo de SARTI Sergio, Mito e Rivolurione, Paideia, Brescia (1969).

2Cf. HISTOIRE DES RÉVOLUTIONS: DE CROMWELL A FRANC, Louis MANDIN et al., Gallimard (1938); JOHNSON, Chalmers, Revolutionary change, University of London Press, London (1970); ELLUL, Jacques, Autopsia dela révolution,Cahnann-Lévy, Paris (1969); BAECHER, Jean,Lesphénomènes révolutionnaires,PUF, Paris(1970).

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O pensamento do Estagirita afigura-se-nos adequado para responder à questão "porque razão se alteram os regimes políticos?"pelo facto de a sua filosofia política nos fornecer uma fenomenologia integral do acto revolucionário à escala da vida humana. Dois princípios coadjuvam esse intuito hermenêutico: o princípio biológico, e o princí-pio histórico. O primeiro vinca o estatuto orgânico (somático) da polis e o respectivo diagnóstico do estado clínico da experiência de cidadania, através da analogia com o corpo humano; o segundo evoca o carácter sinebético (forma aorista do verbo grego "symbainein", "ocorrer", "acontecer", traduzível portanto por histórico) da consciência humana e a correlativa abertura a uma realidade "a fazer-se", através da demanda do fenómeno ocorrencial, entendido já não como objecto científico de explicação mas como processo de interpretação.

1. A Política de Aristóteles no contexto da crise da polis grega

Tendo emergido como vencedora da contenda, nas Guerras Médicas, contra o poten-tado persa, Atenas procurou tirar dividendos políticos da vitória militar, procurando a todo o transe estender à Grécia inteira um novo viver "democrático", mesmo que, à partida, esse modus vivendi excluísse do pleno exercício dos direitos e deveres cívicos vastas franjas sociais da população, tais como mulheres, escravos, e grande parte de tra-balhadores braçais (embora livres mas sem recursos para participar nos assuntos da administração cívica e política).3

O choque das Gerras Médicas provocou contudo fracturas no tecido da sociedade grega, que a Guerra do Peloponeso se encarregará mais tarde de expôr na sua mais crua realidade. Na verdade, muitos viram no desfecho vitorioso de Esparta um rude golpe no proselitismo democrático ateniense, e o triunfo de uma concepção política oligárquica, orientada para a disciplina, o poderio militar e o culto da autoridade, que os próprios ate-nienses não raro enalteciam e invejavam. Contudo, o conflito ditou algo mais do que uma cidade vencedora e uma cidade derrotada. O revés militar de Atenas acudirá, se não aos olhos de todos, pelo menos aos espíritos mais atentos e esclarecidos, como sintoma ter-minal de um processo, cujo desfecho há muito se anunciava: o lento estertor da polis no seu formato histórico-existencial, cuja unidade e aparente indissolubilidade haviam sido já postas em causa meio século antes, ao cair do pano sobre o conflito das Guerras Médicas. E sabido como todo o espectro da vida social grea dependeu do modelo simbólico e existencial que articulva o modo de viver na polis; ora, é precisamente esse modelo de articulação humana em crise que Aristóteles tem em mente quando redige a Política.

3A propósito dos "limites " da vivência democrática na Grécia, cf. HISTOIRE GÉNÉRALE DES CIVILISA-TIONS. L' Orient et la Grèce Antique (Vol. III), AYMARD, André, AUBOYER, Jeannine, CROUZET, Maurice (organ.rs), Paris (1967), sobretudo os capítulos "Les limites de 1' idée démocratique grecque " (pp, 317-318), e "La démocratie: apparences et réalités " (pp. 394-396). Para uma análise mais pormenorizada dos limites da estrutura democrática ateniense, cf. os sugestivos estudos de MOSSÉ Claude, Lafiade la démocratie athénienne,Paris (1962); RODRÍGUEZ ADRADOS, E,La democracia ateniense,Madrid (1975); ROMILLY, J. de,Problèmes de la démocratiegrecque, Paris (1975).

4Cf os interessantes estudos de GLOTZ, Gustave,La Cite' Grecque,Paris (1928); e COULANGES, Fustel de,La

citéantique,Hachette, Paris (s.d.).

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A progressiva desarticulação e volatização do modelo da cidade-estado, que Aristóteles tenta reabilitar na Política, não se agravara apenas com a emergência de dois sistemas civi-lizacionais em rota de colisão (no caso das Guerras Médicas) ou de duas experiências cons-titucionais em conflito (como sucede na Guerra do Peloponeso). A esse motivo extrínseco importa aliar também motivos intrínsecos, decorrentes de uma desordem social interna, por um lado, e de uma crise de identidade interior, por outro. Numa perspectiva interna, uma das causas de alteração da estrutura social e da organização política prende-se com a inclusão maciça nas hostes militares (tanto terrestres como navais) de contingentes que propiciarão mais tarde a proliferação de uma massa heterogénea e turbulenta de indiví-duos, até então pouco ou nada sensibilizados para o desempenho de direitos e deveres cívicos. Em termos espirituais, a erosão do sentido individual de pertença à cidade-esta-do, agravada pela importância crescente do fenómeno político da interacção das cidades, ou sinoicismo, contribuiu, por seu turno, para uma progressiva diluição dos sistemas de crenças e costumes, vigentes no interior de cada cidade-estado.6E neste contexto de dis-túrbio ético, moral, religioso e cívico da alma grega que se enquadram os estudos aristoté-licos sobre a gama caleidoscópica das experiências políticas, designadamante a experiên-cia das revoluções.

O medo instilado nos espíritos face à incerteza e à dúvida no futuro da sociedade acabou por centrar a atenção do indivíduo no intuito obsessivo da prosperidade pessoal. Quer dizer: o grego em crise, deixou de ser apenas o estropiado de guerra, ou o fa-minto sem eira nem beira, mas também o indivíduo transviado em relação à finalidade

5Do étimo grego synoikos, isto é " casa comum " . Sobre a expressão partilha da casa comum (synoikein), cf. Política, 1278 a 39; 1303 a 29, 32. Para uma compreensão mais clara e detalhada do fenómeno político das associações de pequenas cidades ou territórios independentes em organizações de cooperação, cf. HISTOIRE GÉNÉRALE DES CIVILISATIONS..., op. cit., sobrtetudo os capítulos "Les Confédérations " e "Les institutions fédérales" (pp. 391--394). Vide também TENEKIDES,G., Lanotion juridique d 'indépendance et Ia tradition hellenique. Autonomie etfédéralisme au V et IV siècles au jC, Institut Français d'Athènes, Athènes (1954); e ainda ZIMMERN, A., The Greek Commonwealth, Politicc and Economia in Fifth Century, London (1952).

6Acerca dos contornos dessa perda substantiva de espiritualidade e identidade, revelam-se preciosos os

esclareci-mentos de Gilbert Murray, na sua obra Five Stages of Greek Religion: «The Hellenistic Age seems at first sight to have entered on an inheritance such as our speculative Anarchists sometimes long for, a tabua rasa, on wich a new and highly gifted generation of thinkers might write clean and certain the book of their discoveries about life - what Herodotus would call their Historiê. For, as we have seen in the last essay, it is clear that by the time of Plato the tra-didonal religion of the Greek states was, if taken at its face value, a bankrupt concern. There was hardly one aspect in which it could bear criticism; and in the kind of test that chiefly matters, the satisfaction of men's ethical require-ments and aspirations, it was if anything weaker than elsewhere. Now a religious belief that is scientifically prepos-terous tnay still have a long and comfortable life before it. Any worshipper can suspend the scientific part of bis mind while worshipping. But a religious belief that is morally contemptible is in serious danger, because when the religious emotions surge up the moral emotions are not far away. And thc clash cannot be hidden. This collapse of the tradi-tional religion of Greece might not have mattered so much if the forro of Greek social Iife had remained. If a good Greek had his Polis, he had an adequate substitute in most respects for any mythological gods. But the Polis too, as we have seen in the last essay, feel with the rase of Macedon. It feel, perhaps, not from any special spiritual fault of his own; it had few faults except its fatal narrowness; but simply because there now existed another social whole, which, whether higher or lower in civilization, was at any rate utterly superior in brut force and in money. Devotion to the Polis lost its reality when the Polis, with all that it represented of rights and laws and ideais of Life, lay at the mercy of a military despot, who might, of course, be a hero, but might equally well be a vulgar sot or a corrupt adven-turer »: MURRAY, Gilbert, Eive Stages of Greek Religion, London (1946) 126-127.

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última da vida económica, cívica e política. Tal opção individualista acentuou-se no culto do privado acima do público, na valorização da parte sobre o todo, na exacerbação do particular em detrimento do comum, acelerando ainda mais o decaimento moral, a dis-sociação cívica, a desintegração económica, e a implosão política da cidades-estado gre-gas. 7 Para além de tudo, o aumento da massa monetária concentrada nas mãos de poucos, mas não o crescimento da massa produtiva, desiquilibrou o já de si precário equilíbrio entre a oferta e a procura, provocando uma superinflação nos preços dos bens essenciais. Os mercados internos de cada cidade implodiram, fragilizados pelas lutas intestinas e pela diminuição do poder aquisitivo das cidades, empenhadas em sustentar um esforço de guerra que incluia pagamentos exorbitantes a tropas mercenárias. No que respeita aos mercados externos, as tensões políticas por um lado, e o consequente arrefecimento do comércio ligado às indústrias coloniais por outro, desferiram o golpe de misericórdia no estado de debilitamento da economia. Todos estes factores e va-riáveis de teor económico, determinados pela exiguidade dos horizontes espirituais e noéticos da sociedade, promoveram o alastramento da crise. Embora de outra forma, W. Jaeger apresenta o holograma desse transtorno social generalizado: desintegração existencial, prostração social e menosprezo pelas leis consuetudinárias. 8 Como se havia chegado a esse ponto crítico de saturação?

E verdade que crise sempre existiu no complexo civilizacional helénico. O próprio fenómeno da polis tinha correspondido já a uma ruptura com os valores da sociedade heróica e patriarcal, 9 quando o destino da sociedade deixou de ser apanágio das divindades olímpicas e das façanhas de heróis mais ou menos divinos e legendários, e passou para as

7A pena de Rostovtzeff ilumina bem essa situação-limite: « the general uncertainty, wich may have prevented Greek

citizens from indulging in the luxury of larges families, There developed at the sarne time a growing individualism and selfishness, a strong tendency to concentrate effort on secuting the largest possible amount of prosperity for oneself and onda limited family» (ROSTOVTZEFF, M„ The social and economic history of the Hellenistic

World,1,96),

8Werner Jaeger comenta a propósito: «En el siglo IV hacía mocho que esta vida (la vieja y auténtica vida griega) había

quedado quebrantada por la preponderancia de las fuerzas e intereses comerciales en el estado y en los partidos políti-cos, y por el individualismo intelectual que se habia hecho general durante el período. Probablemente vela con clari-dad toda persona inteligente que el estado no tenía salvación a menos que se superase tal individualismo, o siquiera la forma más atida de él, el desenfrenado egoísmo de cada persona; peto era difícil desembarazar-se de él cuando hasta el estado estaba inspirado por el mesmo espírito - había hecho realmente de él el princípio de sus actos -. La politica predatoria de finales dei siglo V había empujado gradualmente a tos ciudadanos a rodar por estos nuevos caminos del pensamiento, y ahora el estado sucumbia víctima de la idea egoísta, tan impresionantemente descrita por Tucídides, que el mismo había convertido en princípio. El viejo estado con sus leyes había representado para sus ciu-dadanos la totalidad de Ias normas "consuetudinarias". Vivir de acordo con las leyes era la más alta ley no escrita en la anágua Greda, como Platón lo recuerda tristemente por última vez en su Ctíton . Este diálogo presenta el trágico conflicto del siglo V agudizado hasta el absurdo consciente; el estado es ahora tal, que de acuado con sus leyes 'iene que beber la cicuta el hombre más justo y más puro de la nación griega. La muerte de Sócrates es una reductio ad absurdum del estado encero, no simplemente de los dignatarios contemporáneos»: JAEGER, Werner, Aristóteles.

Bases para la historia de su desarrollo intelectual, Fondo de Cultura Economica, Mexico (1957) 453-454; sobre o papel

nuclear das leis consuetudinárias e escritas, na cultura jurídica helénica, c: GUARIGLIA, O., Orden socialy jerárquico

y norma consuetudinaria en elpensamiento ético político deAristóteles, in Revista Latinoamericana de Filosofia, 5 (1979) 15-42;

ROMILLY, J. de,La loidons la pensée grecque, éd, Les Belles Lettres, Paris (1971),

9Sobre o modus vivendi dos gregos, na sociedade heróica e patriarcal, cf. HISTOIRE GÉNÉRALE DES

CIVI-LISATIONS.,., op. cit., sobretudo o cap. "La civilisation grecque archaïque" (pp. 256-288).

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mãos dos homens. Nesse sentido, tal processo de imanentização do fundamento último da experiência política já transportava sementes de crise. Todavia, a crise que atravessa o séc. V a.C. possui contornos mais evidentes, cujos efeitos são inventariáveis num levanta-mento sumário das principais ocorrências que marcam a história grega no período ime-diatamente subsequente, e lhe ditam os posteriores desenvolvimentos e desfechos: no ano 399 é executado Sócrates; por volta de 388 Platão efectua a sua primeira viagem a Siracusa, fundando no regresso a Academia em Atenas; em 371 os tebanos derrotam Esparta em Leuctra, pondo termo a uma efémera hegemonia espartana na Hélade (mais precisamente trinta e três anos..); em 338 Filipe inflige pesada derrota em Queroneia a tebanos e ate-nienses, com a qual se inicia o domínio imperial da Macedónia e consequente subserviên-cia das cidades gregas; entre 336 e 323 perdura o império Alexandrino: por essa altura, as hostes macedónias consumam a conquista da Ásia, unindo os destinos geopoliticos da Grécia ao Oriente, sob o ceptro de Alexandre. Ora, a vida e a obra política de Aristóteles situam-se justamente no âmago desta crise estrutural da alma grega, e no epicentro das coordenadas políticas que determinaram a marcha dos acontecimentos no Próximo e Médio Oriente nesse período. 10

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neste contexto - social e espiritual - que o Estagirita tenta responder em termos teóricos à questão "porque razão sucedem as revoluções?".

2. Reduto hermenêutico do livro V da Política: urna fenomenologia das revoluções

A vida humana em comunidade política é determinada pela busca do equilíbrio de uma dupla experiência tensional: a tensão guerra-paz na ordem das relações externas, e a tensão estabilidade-agitação na ordem das relações internas. O fenómeno das revo-luções releva precisamente da segunda experiência, visando a manutenção do precário equilíbrio entre factores que asseguram a coesão e estabilidade de cada regime e factores que ameaçam a ordem cívica ou constitucional. Ora, é no livro V da Política onde se encontra definido o contexto das revoluções políticas. Tal delimitação arranca de duas questões correlativas e interdecorrentes, a saber, 1. "por que razão se alteram os regimes?",11 se postularmos uma incidência mais sociológica; e 2. "em que condições se afirma que uma cidade é a mesma ou se tornou outra?", 12 se visarmos uma pers-pectiva mais metafísica. Estes dois focos problemáticos podem, por seu turno, ser entendidos na continuidade das pesquisas levadas a cabo não só no pequeno tratado aristotélico "Acerca da Geração e da Corrupção", 13 mas também no tratado "O Movimento dos Animais", onde, de acordo com a mesma matriz biológica, é dedicado um capítulo à geração e corrupção dos seres vivos animados. l4 Por conseguinte, a

10 Cf. BARKER, E.,

The lfe of Aristotle and the composition and structure of the Politics, in Classical Revue, XLV (1931) 162-171.

11ARISTÓTELES,Política, V, 1,1301 a 2, 12Ibid., III, 1, 1276 a 35.

13Cf. ARISTOTE,De lagénération et de la corruption,

éd. Les Belles Lettres, Paris (1966) 1-74,

14 Cf. Idem,Marche des Animaux. Mouvement des Animaux. Index des Traités Biologiques,éd. Les Belles Lettres, Paris (1973) 52-69, particularmente 58-59.

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análise aristotélica das revoluções encontra nos dois tratados biológicos, um ponto de apoio, sobretudo no primeiro - "Acerca da Geração e Corrupção" - onde o estagirita se propõe "examinar a génese e a corrupção dos seres que por natureza nascem e se corrompem".15 O objectivo do livro V cumpre-se, portanto, na intenção científica de indagar as causas de destruição e os meios de preservação dos regimes políticos.l6

A textura hermenêutica do livro V afigura-se, por conseguinte, plurívoca e multiface-tada. A experiência política da revolução faz confluir para o terreno da reflexão crítica um complexo referencial, impossível de descompactar, não só de alusões éticas, oriundas dos tratados Ética a Nicómaco e Ética a Eudemo, mas também de noções psicológicas, deri-vadas do ensaio Acerca da Alma, e ainda de princípios epistemológicos, provenientes do opúsculo Acerca da Geração e Corrupção. Esta mistura doseada de rigor científico e filo-sófico e de informação histórica, tem de ser ainda ligada a outro aspecto característico do

opus aristotelicum: a recolha paciente e a classificação diligente de procedimentos sociais

(usos, costumes, etc.), por um lado, e de experiências políticas (regimes, constituições, ins-tituições, etc.), por outro, decantada a partir de uma profusa quantidade de princípios biológicos, notas psicológicas, fenómenos sociológicos, factos históricos, referências geográficas, detalhes biográficos, o que confere, é certo, um cunho casuístico a muitos dos passos da Política. Todavia, tal profusão de elementos positivos concorrem não só para imprimir ao mencionado tratado, designadamente no que concerne ao livro V, um ritmo indiscutivelmente realista, mas também para lançar luz sobre múltiplas dimensões da experiência política humana, tanto ao nível das suas motivações psico-sociológicas, como ao nível das suas aspirações e interacções cívicas.

Sugeridas estas precauções hermenêuticas, podemos distinguir quatro partes funda-mentais que articulam a análise do fenómeno das revoluções no livro V. da Política. Na primeira parte, Aristótes procura indagar as causas gerais que explicam uma revolução

(metabole) ou uma revolta (stasis) em todos os tipos de regime, e analisar os estados de

espírito que induzem esse estado de perturbação cívica. Na segunda parte, prende-se à análise das causas particulares que explicam as alterações que ocorrem em cada regime específico. Na terceira parte, sugere meios de preservação de alguns dos regimes com um intuito prescritivo e profiláctico. Na última parte - incorporada na Política talvez como apêndice ou anexo - Aristóteles alude às causas que explicam os limites tempo-rais e estrututempo-rais das tiranias, terminando com uma espécie de desconstrução crítica da explicação determinista de Platão para o fenómeno das revoluções, entendidas por este, numa acepção cinética e rotativa, como movimento circular (4klos).17

A crítica à configuração circular da explicação platónica das revoluções é relevante para se entender, por contraste, o sentido orgânico e sinebético da perspectiva aris-totélica das alterações de regime. E verdade que Aristóteles parece admitir uma certa

15Idem,Acerca da geração e da corrupção,1, 1, 314 a 1,4.

1'" depois de nos referirmos a quase todos os pontos que nos propusemos tratar, é nossa preocupação conside-rar agora em que circunstâncias se alteram os governos da cidade, quer em relação ao número, quer em relação à qualidade; por que razão se assiste à corrupção de cada regime; de que tipo e em que espécie de regime se trans-formam; de que meios de regeneração dispõem, todos em comum, e cada um deles em particular; e por fim, por que meios poderá um regime ser melhor preservado " (ARISTÓTELES,Política, V, 1,1301 a 19-25).

17Cf. ARISTÓTELES,Política, V,1316 a 1 ss.

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ordem na sucessão dos diversos regimes na história grega.18Todavia não avança muito mais longe nessa hipótese diacrónica; quando muito sugere que sendo eterno o movi-mento revolutivo das esferas celestes segue-se que a geração das coisas e dos seres tem de ser contínua, e não necessariamente cíclica.19 Segundo Georges Contogiorgis no estudo "A Teoria das Revoluções em Aristóteles", " (...) a teoria aristotélica das revo-luções não deve ser confundida com a tese de Políbio e seus epígonos, que sustentaram a ideia de um ciclo determinado no qual os assuntos humanos se inscreviam num curso análogo ao da revolução dos astros. Aristóteles, por seu turno, admitia uma sucessão contínua de gerações e corrupções das politeiai estabelecidas sem que isso o cons-trangisse a reconhecer a existência de um movimento circular ritmado que servisse de axioma no tempo e no espaço.

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isso, em suma, o que decorre da crítica empreendida ao ciclo platónico das revoluções (...) " .20

A questão das revoluções decorre, portanto, de uma fenomenologia metafísica do movimento. Ora, é ao movimento entendido como alteração (metabole) ou mudança

(metabasis) operadas entre um crescimento (auxesis) e uma degenerescência (phthisis),

que compete conferir, na casa aristotélica, a moldura metafísica da análise do fenómeno político das revoluções.21 Com efeito, inerente à questão "por que razão se alteram os regimes?" subjaz uma concepção metabólica de movimento.22Apesar de não ser o tipo de movimento preponderante (para Aristóteles a importância recai no movimento cinético), o movimento metabólico, típico do corpo vivente, é o que melhor suporta a teoria das revoluções políticas. Nesse sentido, posto que a polis é análoga ao corpo humano, toda a dinâmica dos regimes políticos está lançada sob o signo da alteração orgânica, balizada entre uma génese, um desenvolvimento e uma corrupção. De certo modo, podemos afirmar com Aristóteles que os regimes nascem, crescem e morrem. Esse metabolismo é de tal forma inerente à vida da polis que, à semelhança da doença em relação ao corpo humano, não poderemos dizer que as revoluções correspondem à degeneração da experiência política, mas a uma crise de crescimento, crise que poderá servir para reforçar ainda mais o sistema imunitário da sociedade, se os métodos cura-tivos à disposição forem suficientemente eficazes. Apenas no reduto desse paradigma organicista, somático e metabólico é possível entender por que razão Aristóteles con-sidera as revoluções como estados de enfermidade cívica: o regime de uma cidade encontra-se enfermo quando se rompe o equilíbrio orgânico das partes,23motivado por discórdias ou dissenções cívicas. Nesse sentido, quando Aristóteles alerta que uma revo-lução pode não decorrer apenas de uma alteração funcional das regras do jogo

consti-18Cf. Ibid., III, 1286 b 8-22

19Cf. Idem,Acerca da geração e da corrupção,336

20CONTOGIORGIS, Georges,La théorie des révolutions cheAristote,Libr. Génér. de Droit et de Jurisprudence, Paris (s.d.) 157

21ef. Ibid., sobretudo o cap. "La révolution comine rupture de la stabilité et du mouvement": pp. 243-258. 22Cf a propósito POLANSKY, Ronald,Aristotle on Po/ideal Change,inA Companion to Aristotle 's Politics,op. cit., 323-345.

23"as revoluções políticas ocorrem pelo crescimento desmesurado de uma parte da cidade, pois da mesma forma que o corpo é constituído por membros, sendo necessário que todos se desenvolvam harmoniosamente, a fim de se manterem as devidas proporções (...) assim também uma cidade é composta por partes, cada uma das quais cresce por vezes em demasia, sem nos darmos conta " (ARISTÓTELES,Política, V, 3,1302 b 34 - 1303 a 2).

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tucional, mas sobretudo da desproporção dos elementos que se encontram misturados no tecido social e cívico da cidade, coloca em jogo dois princípios que estruturam qual-quer paradigma orgânico: por um lado, o princípio da integração proporcional das partes, por outro lado, o princípio da mistura equilibrada dos elementos. 24

a) Causas gerais de revolução

Segundo Aristóteles, existem três causas gerais, que se poderiam considerar o deno-minador comum de todas as revoluções, qualquer que seja o regime em causa. A primeira causa, fundamentada na psicologia de massas, tem a ver com o que Aristóteles designa de "estado de espírito propenso à revolta " . 25 A segunda causa decorre da estrutura te-leológica (finalizada) dos actos humanos, e tem a ver com o fim visado pela revolta. Ora, o que se encontra na base da discórdia civil depende em larga medida da carga de expectativa associada à motivação do estado de espírito revoltado, a saber: o intento obsessivo para adquirir igualdade a todo o custo, quer essa igualdade se traduza em hon-ras públicas quer em privilégios cívicos, como acontece por exemplo com o estatuto de cidadania e com o acesso ao poder. Esse fim pode também ser concebido a contrario,

ou seja, pode surgir um foco de tensão civil também devido ao medo provocado pela expectativa (fundada ou não) de uma perda iminente de estatuto cívico ou prerrogativa política.26 A terceira causa de sublevações configura uma cadeia de ocasiões possíveis de revolta que, pela sua natureza particular, criam o estado de espírito propício às revo-luções. Essas ocasiões, à semelhança de uma infecção oportunista, provocam o debili-tamento ou mesmo a corrupção da vida politica. O desafio da ordem instituída (hybris), por um lado, e a ambição de lucro (kerdos) e honrarias (timai), por outro, constituem o primeiro núcleo de causas indutoras de perturbação civil, suscitando uma oposição aos regimes que promovem ou ignoram tais excessos. 27 Epara evitar esse sentimento vis-ceral de injustiça, gerada pela privação de bens materiais ou honrarias, que Aristóteles propõe o exercício da autoridade politica "de acordo com o mérito" (kata ten axian) 28 Por outro lado, a prepotência de um indivíduo ou grupo29 pode também desencadear uma espiral de revolta, apenas evitável pelo recurso à prevenção. 30 Tanto o medo

(pho-bos) como o desprezo (kataphronesis) constituem de igual forma ocasiões propícias de revolta. O medo surge como uma espécie de instinto de defesa; o desprezo surge tanto como resistência da massa popular contra uma oligarquia, por se ver arredada do exer-cício dos cargos públicos apesar de ser maioritária, assim como uma reacção das facções

24"o motivo principal que leva à dissolução dos regimes (...) relaciona-se com o desvio da justiça dentro dos regimes, e isso deve-se, logo à partida, ao facto de (...) os elementos não se misturarem bem nos regimes e devido ao facto de os regimes não se coadunarem de forma adequada com a virtude de cada um deles" (ARISTÓTELES, Política, V, 7,1307 a 5-27). 25Cf. Ibid., V, 2, 1302 a 23. 26Cf, Ibid,, V, 2, 1302 a 32-34. 27Cf. Ibid., V, 3, 1302 b 6-14. 28Cf.Ibid., V, 3, 1302 b 14. 29Cf.Ibid., V, 3, 1302 b 15.

30"é preferível vigiar, logo de início, os que detêm um poder excessivo, para os impedir de realizar intentos despó-ticos, em vez de deixá-los à vontade, e só depois procurar o remédio". (ARISTÓTELES, Política, V, 3,1302 b 19-21).

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oligárquicas face a uma democracia mergulhada em desordem ou anarquia incon-troláveis. 31 Finalmente, como já foi anteriormente referido, o crescimento despropor-cionado (auxesis para ton analogon) de uma parte da cidade pode originar uma altera-ção na ordem instituida, pois, à semelhança do que sucede com um corpo vivo, se a cidade não assegura o equilíbrio proporcionado dos seus componentes, pode ganhar um elemento hegemónico, mas perde a sua harmonia orgânica.i2

O escalonamento das causas gerais de revoluções continua com a análise de causas acidentais ou ocasionais. A primeira causa reside nas disputas eleitorais (eriteiat) mal con-duzidas. 33 A segunda é relativa à incúria dos governantes (oligoria), e ocorre sempre que se tende a ignorar ou a negligenciar uma ameaça para o regime. A terceira causa releva daquilo que Aristóteles considera ser a demasiada importância dada às minudên-cias (mikra). 34 Outra causa decorre não só da ausência de sentido comunitário de pertença (me homophylon), como do défice comunitário de partilha espiritual (ympnesis). Este aspecto focado por Aristóteles tinha perfeito cabimento numa época em que a política grega de colonização criava condições propícias para a miscegenação etno-racial, sendo frequente por conseguinte a eclosão de conflitos insanáveis entre colónias de diferentes proveniências, e entre antigos colonos e novos "imigrantes" não identi-ficados com os regimes instituidos.35

Depois de analisar as causas gerais, e antes de introduzir as causas específicas que originam processos revolucionários em cada regime particular, Aristóteles expõe os meios ao alcançe dos espíritos revoltados para consumar os seus intentos revo-lucionários. Já não se trata de perceber as motivações psico-sociológicas do revolu-cionário, mas sim de detectar o mecanismo inerente ao modus operandi de uma revolução. Ora, segundo Aristóteles, há duas formas pelas quais se pode desencadear uma revo-lução: ou pela violência (bia),36 ou pelo ludíbrio (apate).37 Estes dois expedientes arti-culam-se no acto revolucionário em duas fases distintas mas consecutivas: primeiro, muda-se o regime com o consentimento, previamente influenciado pelo ludíbrio da persuasão; depois, obtido o poder, procura-se mantê-lo pela força, mas prescindindo já do consentimento. 38

b) Causas específicas de revolução

A par das causas genéricas apontadas, Aristóteles expõe também causas específicas que motivam as revoltas, criando as condições propícias à ocorrência de uma revolução.

31Cf. ARISTÓTELES,Política, V, 3,1302 b 26-29. 32Cf. Ibid, V, 3, 1302 b 33-40.

33Cf. Ibid., V, 3, 1303 a 14.

34"nem sempre nos damos conta de que o desdém de pormenores ínfimos poderá acarretar uma grande revolução nas leis e nos costumes" (ARISTÓTELES,Política, V, 3,1303 a 21-23).

35"tal como uma cidade não provém de uma multidão qualquer, também não se forma num momento qualquer: o facto de, até agora, as cidades terem admitido estrangeiros como co-fundadores e co-colonizadores de outra raça, motiva grande parte das revoltas" (ARISTÓTELES, Política, V, 3, 1303 a 26-28).

36Acerca da noção aristotélica de violência(bia),c£ ARISTÓTELES,Política,1255 a 16, 1304 b 8, 9, 12; 1313 a 9. 37Sobre a noção aristotélica de ludíbrio(apate),c£ ARISTÓTELES,Política,1278 a 39; 1304 b 8, 10; 1313 a 9. 38Cf. ARISTÓTELES,Política, V,4, 1304 a 5-12.

revistaGEPOL[S

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Estas causas são específicas porque apenas se desencadeiam em conformidade com as ideossicrasias políticas ou sociais de cada regime em particular, designadamente, nas democracias, oligarquias e aristocracias. Para levar a efeito essa análise mais localizada e circustanciada, Aristóteles desenvolve a sua exposição em duas linhas distintas e com-plementares de análise: uma de carácter mais analítico e descritivo; outra de carácter mais positivo e prescritivo. No primeiro caso, Aristóteles envereda por um estudo das causas que dão origem às revoluções consoante cada regime específico; no segundo caso, o filósofo apresenta os meios de assegurar a estabilidade nos três tipos de regime atrás enumerados, assim como os critérios de escolha dos magistrados e as qualidades cívicas requeridas para exercício do poder politico.

A degeneração das democracias ocorre segundo Aristóteles por acção de diversas causas. A primeira, e principal de todas, reside na intervenção facciosa dos demagogos

(aselgeia ton demagogon), Devido à capacidade manipulatória do discurso, os demagogos

provocam transformações nas democracias (assim como nas oligarquias) conduzin-do-as a formas tão extremadas que estas se transformam irreversivelmente em tirania, como de resto já o denunciara Platão na República.39 O ataque demagógico às classes ricas reveste duas formas: quer por meio de denúncias caluniosas nos tribunais contra os cidadãos com posses e fortuna considerável, com o intuito de lhes confiscar os bens ou de os sobrecarregar com pesada tributação, 40 quer acicatando o ânimo da classe po-pular contra os detentores de riqueza. 41 Segundo Aristóteles, ambos os expedientes atingem na maior parte das vezes um fim oposto ao desejado, visto que as classes ricas, perante a ameaça de espoliação ou exílio, são constrangidas a coligar-se, visto que "o medo recíproco une até os piores inimigos". 42 O culto e o cultivo persistentes dos pro-cedimentos de índole demagógica também acabam por ditar um desfecho oposto ao previsto, já que não raro criam a condição propícia para transformar um regime demo-crático numa tirania. Segundo Aristóteles, a proliferação das tiranias em tempos remo-tos tem a ver com o facto de inicialmente os chefes do povo (demagogot) acumularem também cargos de chefia militar (strategai): o recurso à força (bia) era, em virtude dessa acumulação, o meio mais persuasivo para se apossarem do poder, instituindo assim uma tirania em lugar de uma democracia. Para o filósofo, o acesso ao poder mediante o recurso à violência comutou-se no poder persuasivo do discurso, da retórica e da argumentação. A palavra e o argumento tornaram-se os sucedâneos mais eficazes da coacção física e da violência musculada ou armada. 43

No que respeita às oligarquias, as revoluções têm origem sobretudo devido a duas causas específicas: ou pela opressão infligida pelas classes ricas sobre a massa popu-lar; ou pelos conflitos e divergências insanáveis no seio da própria classe oligárquica. No primeiro caso, a revolução acontece quando a massa popular, muito mais numerosa do que as oligarquias dirigentes, se insurge contra uma opressiva situação de injustiça (adilsia), servindo-se do primeiro que lhes aparece (ironicamente pode ser

39Cf. PLATÃO, República,VIII,564 a.

4oCf. ARISTÓTELES, Política, V, 5,1304b 37-38. 41Cf. Ibid., V, 5,1304b24. 42Cf. Ibid,, V, 5,1304b 22-24. 43Cf. Ibid., V, 5,1305a10-13. 71 revistaGEPOL[S

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um líder oriundo das próprias facções oligárquicas, sedento de protagonismo) corno instigador e cabecilha da revolta. Esse líder (hegemona), devido aos recursos económi-cos, carisma pessoal, ou prestígio público, é aceite como protector cívico prostates). 44 O problema é que este, derrubada a oligarquia e instituida nominalmente a democra-cia com o beneplácito popular, quando a oportunidade lhe surgir, acabará por con-substanciar uma tirania em lugar do regime democrático esperado. 45 No segundo caso, são os próprios dirigentes oligárquicos que provocam a queda do regime, quando se tornam demagogos para eliminar os possíveis rivais. 46 A dissipação da fortuna

(analy-sis) dos oligarcas por causa de uma vida desregrada (goe aselge) também coloca em

risco a integridade das oligarquias: com efeito, a fim de reembolsarem o que dissi-param, os oligarcas que procuram desfalcar o erário público em proveito próprio criam as condições de revolta da massa popular contra esse tipo de pilhagem. 41 Outra causa geradora de revoluções nas oligarquias tem a ver com o surgimento de uma oligarquia dentro da oligarquia, o que em termos mais contemporâneos designaríamos de .tatus in stato. Essa reduplicação, seja qual for o tipo de regime onde ocorrer, debi-lita o corpo político. 48

Nas aristocracias são duas as principais causas que conduzem à queda do regime: por um lado a concentração de direitos num pequeno número de privilegiados; por outro lado um excessivo poder dos ricos. A concentração de honrarias (timai) nas mãos de um número reduzido (oligos) de cidadãos que acedem ao poder dá azo a dis-túrbios cívicos, à semelhança do que sucede nos regimes oligárquicos, onde o poder é apanágio de um grupo restrito de cidadãos com recursos. Esta causa pode ainda ser potenciada por dois tipos de motivações. A primeira motivação é psicomoral: desen-cadeia-se sempre que o acesso aos cargos de magistratura é interdito a um número significativo de cidadãos que se presume detentor de uma condição virtuosa idêntica à dos restantes. 49 A segunda motivação é socioeconómica: emerge quando se torna intolerável o contraste entre os demasiado ricos e os demasiado pobres, fractura que se agudiza em tempo de guerra. 50

c) Meios de preservar a estabilidade política

O conceito de estabilidade (a.cphaleia) é crucial para se entender o fio condutor da análise aristotélica das revoluções. E nesse sentido que se compreende a relevância dada no tratado da Política ao exame dos meios de preservação dos regimes (loteria politeion). Para Aristóteles só faz sentido estudar o fenómeno das revoluções políticas, na medida em que o exame das causas que provocam a alteração dos regimes ajudem a esclarecer, em termos finalisticos, os meios para assegurar a estabilidade dos regimes, a coesão inter-na da cidade, e em última análise a articulação da experiência humainter-na com a vivência da

44

A ideia de protector popular (prostates) surge em Política, 1275 a 13; 1305 a 20, 39; b 17. 45Cf. ARISTÓTELES, Política,v,6, 1305 a 36-40. 46Cf. Ibid., V, 6, 1305 b 30-33. 47Cf. Ibid.,v,6, 1305 b 39 - 1306 a 9. 48Cf. Ibid., V, 6, 1306 a 12-15. 49Cf. Ibid., V, 7, 1306 b 28-29. 50Cf. Ibid., V, 7, 1306 b 36-37. revIstaGEPOLIS 72

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cidadania. O princípio que suporta tal intuito hermenêutico pode ser condensado no seguinte enunciado canónico: "conhecidas as causas de destruição de um regime, é evi-dente que conheceremos também os modos da sua conservação " .51 É possível prevenir os efeitos desestruturadores das revoluções na vida política, precisamente porque se conhecem os mecanismos cívicos (motivações psicológicas, aspirações sociais, interes-ses ciassistas, etc.) que provocam a desarticulação orgânica dos regimes, da mesma forma que um médico pode ajudar a prevenir uma doença na medida em que, através dos sin-tomas, conhece as causas que desencadeiam o estado patológico.

O ponto de vista filosófico prevalecente é, por conseguinte, o da estabilidade, con-servação, e preservação da experiência cívica e política. Significa isto que as revoluções têm de ser interpretadas à luz do primado soteriológico, ou seja, dos factores que asse-guram a salvaguarda (soteria) dos regimes, e não o contrário. A metáfora clínica é ade-quada ao intento hermenêutico de Aristóteles, e é nesse sentido que se compreende porque razão o autor tende a comparar as revoluções a um estado de enfermidade

(nosos) 52 que ataca a saúde (soteria) do corpo cívico ou político, e o cientista político a

um médico (iatros) 53 que executa o diagnóstico através da observação dos fenómenos sociais e dos factos históricos. Face a esse acervo de sintomas fornecido pela tessitura histórica dos factos, é de esperar que o cientista ou o filósofo da política assumam uma função clínica. Ora, num desempenho clínico é importante prescrever o remédio

(akos) 54 ajustado à enfermidade. Todavia, na óptica aristotélica, muito mais importante

do que prescrever a cura (therapeia) é induzir a prevenção (phylaxis),55 ou seja a capaci-dade de desencadear as medidas adequadas para evitar um processo de degeneração

(phthora). Em suma, o político que usasse o conhecimento das causas indutoras da

cor-rupção da vida política para "fazer revoluções" assemelhar-se-ia ao médico que, conhe-cendo as causas geradoras de doença, inoculasse os elementos patogénicos em pessoas sãs, em vez de curar as doentes: incorreriam ambos num uso contra natura do acto polí-tico e do acto terapêupolí-tico. Por isso é que, na reflexão política aristotélica se intercalam considerações éticas e conselhos políticos, na sua feição mais realista e prescritiva.

Aristóteles sugere três recursos, mediante os quais se pode manter a estabilidade dos regimes oligárquico e aristocrático, preservando a sua integridade. O primeiro recurso consiste em assegurar uma constituição bem equilibrada (eu kekramene politeia), de modo a evitar que a transgressão legal (paranomia) e determinados pormenores (mikra), aparentemente negligenciáveis, assumam proporções incontroláveis. 56 O segundo recurso consiste em "desconfiar dos sofismas" (me pisteuein sophismatos) destinados ao "deleite da massa" (kharin pros to plethos), visto que mais tarde ou mais cedo esses

51Ibid„ V, 8, 1307 b 27-29.

52Sobre o termo doença (nosos), cf. ARISTÓTELES,Política,1281 b 42; 1320 b 36; 1332 a 19; 1336 a 8. 53Sobre os termos médico (iatros), medicina (iatreia), e curar (iatreuein), cf. ARISTÓTELES,Política,1257 b 25; 1258 a 12, 29, 32; 1267 a 7; 1268 b35; 1272 b 2; 1279 a 1; 1281 b 40, 41, 42; 1284 b 19; 1286 a 13; 1287 a 34, 39; b1 ; 1288 b 20; 1324 b 30; 1326 a 15; 1331 b 34; 1335 a 40, 41; 1339 b 17; 1342 a 10.

54Sobre o termo remédio (akos), cf. ARISTÓTELES,Política,1267 a 3, 9, 12; 1305 a 32; 1308 b 26.

55Acerca do termo prevenir (phylattein), cf. ARISTÓTELES,Política,1307 b 32; 1308 b 25; 1313 b 2; 1314 a 35. 56°a violação da lei começa sempre por se insinuar de forma inadvertida, tal como acontece com as despesas: por

mais insignificantes que sejam, se repetidas com frequência, dissipam toda uma fortuna" (ARISTÓTELES, Política, V, 8, 1307 b 32-34).

In

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ardis acabam sempre por ser "desmascarados pelas obras" (exelegkhetai hypo tom ergon). 57 O terceiro recurso consiste em mentalizar as classes dirigentes a adoptarem um apu-rado "sentido de reciprocidade democrática" (allelos demotikos), não só em relação à massa, evitando injustiçar (adikein) os desprovidos de cidadania (exo tes politeias), mas também diante dos seus pares de oficio governativo, fazendo aceder ao poder os que manifestam capacidade de liderança (hegemonikoi), criando simultaneamente mecanismos de limitação temporal do exercício das magistraturas. 58

A par dos recursos atrás enumerados, podem ser empregues outros meios para preservar a estabilidade dos regimes: estes não são apanágio deste ou daquele regime, mas comuns a todos. Um é o que sugere a limitação de um poder demasiado excessivo

(lian auxesis) ou exercido para além da medida (para ten ymmetrian); nesse sentido, o

poli-tico deve usar de toda a moderação para conferir honras ou cargos públicos, e de muita prudência para retirar privilégios conquistados ou direitos adquiridos. 59 Porém, a regra de ouro da vertente prescritiva da Política, é a que determina que a legislação esteja de tal forma organizada e as instituições políticas de tal forma moralizadas e transpa-rentes que dissuadam os detentores de cargos públicos de tirar proveito das suas funções, visto que é o procedimento que mais suscita a indignação geral. 60 Assim, para evitar que os detentores de cargos públicos se sirvam do regime em vez de o servirem, Aristóteles propõe medidas elementares, tais como criar instituições de fiscalização das transferências de dinheiros públicos, G1 recompensar os magistrados competentes e impo-lutos,62 e regulamentar os processos relativos a heranças. 6

Para assegurar a estabilidade política não basta, na óptica de Aristóteles, que um regime esteja provido dos meios atrás enumerados. São necessárias condições que garantam a aplicabilidade das medidas prescritas. Ora, para o estagirita, os meios ao alcance dos legis-ladores e políticos para garantir a integridade dos regimes têm de se alicerçar em três condições de possibilidade. A primeira condição tem a ver com o perfil psico-moral do político. Nesse sentido, são-lhe requeridas três qualidades: antes de tudo, uma qualidade afectiva, que deve traduzir a afinidade/amizade (philia) com o regime vigente; depois, uma qualidade técnica, que deve reflectir a competência (dynamis) no desempenho do cargo para que foi eleito; por último, uma qualidade moral, que deve manifestar a virtude (arete) e a justiça (dikaioyne) na sua conduta cívica. G4 A segunda condição é relativa a um dos

57Cf. ARISTÓTELES,Política, V, 8,1308 a 1-2. 58Cf. Ibid., V, 8, 1308 a 11-13).

59"promover cargos públicos modestos, mas duradouros, em vez de cargos excessivamente importantes e efémeros (os homens são corrompíveis e são poucos os que sabem viver prósperos); ou, se não for possível proceder assim, pelo menos que os cargos sejam retirados gradualmente, e não todos de uma só vez" (ARISTÓTELES,Política,v,

8, 1308 b 12-15).

60"nada irrita tanto o povo (o qual nem se preocupa muito com o facto de se encontrar afastado dos cargos gover-nativos; pelo contrário, até fica satisfeito por ter liberdade para se dedicar aos assuntos particulares), quanto o pressen-timento que os magistrados desfalcam o erário público em proveito deles: nessas alturas, a massa popular ressente-se das duas coisas, de não participar nas honrarias, nem no lucro" (ARISTÓTELES,Política, V, 8,1308 b 34-38). 61Cf. Ibid., V, 8, 1309 a 10-13. 62Cf. Ibid., V, 8, 1309 a 13-14. 63Cf. Ibid., V, 8, 1309 a 23-26, 64Cf. Ibid., V, 9, 1309 a 33-39. revistaGEPOLIS 74

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aspectos fulcrais da filosofia aristotélica: a doutrina do justo meio ou meio termo (to meson). O autor parte do pressuposto organicista de que o que se passa com as partes do corpo, em termos de proporcionalidade e harmonia somáticas, também ocorre nos regimes políticos. 65 A terceira condição identifica-se com a importância decisiva (megistos) da educação (paideia) visto que, segundo Aristóteles, dela depende a vivência da cidadania em conformidade com o espírito do regime.G6 Sendo um regime político um modo de vida livremente adoptado pela cidade (com excepção da tirania), todas as formas de cons-tituição reflectem uma determinada concepção de justiça e uma escolha deliberada de meios para atingir a felicidade. Ora, é pela educação que essa concepção de justiça vai sendo interiorizada pelo hábito adquirido com o tempo. A filosofia politica de Aristóteles tem o condão de mostrar à saciedade que os melhores corpos legislativos ou constitucionais, mesmo quando são unanimemente aceites sem reservas mentais de qualquer espécie, tornam-se ineficazes se coexistir uma relação identitária de pertença: essa afinidade electiva é justamente assegurada no domínio de uma educação cívica

(to paideuestbaiAros tas politeias). 67

3. Reposição do problema das revoluções políticas a) Balanço da teoria aristotélica

O processo revolucionário, tal como surge delineado por Aristóteles no livro V da Política, não pode ser entendido como fenómeno político desenraizado e autónomo: é uma experiência compactada da vida em comunidade, que mobiliza várias esferas da consciência humana. Desencadeia-se na esfera psicológica, 68 onde prolifera o estado de espírito propício à revolta, reflexo, por um lado de condições sociais desajustadas e por outro lado de opções económico-políticas desiquilibradas no que respeita à qua-lidade do poder exercido ou à distribuição da riqueza produzida. Além do mais, o evento revolucionário participa ontologicamente do choque entre forças que libertam e forças que oprimem as sociedades. Platão mostrou que esse jogo não depende apenas das condições exteriores da vida cívica ou politica, mas encontra-se radicado no recinto da alma humana. 69 Para além da selecção do objecto, das opções metodoló-gicas e das alternativas discursivas, o sociólogo, o cientista e, em última análise, o filósofo da política, devem descrever, avaliar e interpretar os dois focos de tensão inerentes a qualquer processo revolucionário: libertar ou oprimir. A história, com efeito,

65C£ Ibid., V, 9, 1309 b 23-29).

66Sobre o papel crucial da educação no mundo helénico, c£ sobretudo JAEGER, Werner, Paideia: los ideales de la

culturagriega, Mexico (1957); MARROU, Henry, Historia dela educación en la antigüedad clásica, Buenos Aires (1965);

e também DEFORNY, M., Aristote et 1' éducation, in Archives de Philosophie, Louvam (1919). 67 Cf. ARISTÓTELES, Política, V, 9, 1310 a 12-15.

68 Acerca dos contornos psicológicos do comportamento revolucionário, cf: GAMEIRO, Aires, Revolução e Libertação:

aspectos psicológicos e sociológicos da revolução, Multinova, Lisboa (1976); LE BON, Gustave, La révolution française et la pychologie des révolution, Flammarion, Paris (1916); CABANES, Augustin, La névrose révolutionnaire, SFIL, Paris (1906).

69C£ PLATÃO, República, VII, 514 a - 517 c.

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tanto nos oferece exemplos de abertura e libertação, como nos mostra exemplos de clausura e opressão.

Outra implicação filosófica a extrair da teoria aristotélica das revoluções é relativa à analogia biológica, que pervade e configura toda a análise política do autor. Como se viu, o acto revolucionário emerge enquanto fenómeno orgânico que é a polis: é à luz desse princípio orgânico que se entende a alteração de regime na sua tríplice acepção, a saber, como revolta (stasis), como reforma (neoteropoiesis), e finalmente como revolução (metabole). Ora, para o estagirita, a metabole é o tipo de movimento adequado para interpretar as revoluções, não em termos locativos (à maneira de Políbio e das concepções modernas, que entendem a revolução no pressuposto físico das rotações ou translações dos corpos celestes: pressuposto fundado no princípio metafísico do movimento cinético), mas em termos metamórficos. A alteração metabólica, sugerida por Aristóteles, implica, por seu turno, entender a revolução política como um processo de nascimento (genesis), crescimento (auxesis) e degeneração (phthora). De resto, a influência de Hipócrates é de-cisiva para a consolidação da analogia orgânica do fenómeno revolucionário, na Política de Aristóteles.70 Só à luz desse influxo hipocrático se compreende que a cidade seja ana-logada ao corpo (soma), a revolução entendida como enfermidade (noseria) denuncia-dora de uma desordem (ataxia); que a ciência e a filosofia políticas sejam concebidas como saberes capazes de interpretar os sintomas sociais através da observação (horein) do que aparece (phainesthaa) e acontece (symbainein); e que cientistas e filósofos da polí-tica sejam comparados a médicos (iatroa) habilitados para ministrar uma terapêupolí-tica

(ther-apeia), que não negligencia o remédio (atros) mas valoriza a prevenção (phylaxis), em vista

da preservação (loteria) da estabilidade (asphaleia) do regime instituído.

O primado do princípio metabólico, aplicado por Aristóteles à interpretação das re-voluções, teve de resto um destino particularmente profícuo na história da filosofia política, tendo-se decantado e sedimentado na sua máxima expressão naquilo que Adelino Maltez, em Princípios de Ciência Política, muito justamente designa de ideia orgânica. Segundo o autor, " (...) o cientismo do séc. XIX, a nível da teoria do Estado, da antropogeografia e da estratégia, seguindo a perspectiva de Platão, que concebia a polis como um homem em ponto grande (macro-anthropos), enredou-se num antro-pomorfismo organicista que perspectivou o Estado como uma espécie de indivíduo, com cabeça, tronco e membros e chegando mesmo a atribuir-lhe uma personalidade básica, com direito a alma. Os juristas, por exemplo, vão transformar as ideias teoló-gicas do corpo místico no conceito de pessoa colectiva. Os estrategistas, por seu lado, vão falar num indivíduo geográfico. Não vão faltar os que o equiparam a um organis-mo biológico e até a um organisorganis-mo psíquico. (...)". 71

70Cf. FESTUGIÈRE, A.J.,1-lippocrate. L,'Andenne Médicine,Paris (1948).

71 MALTEZ, José Adelino, Princípios de Ciência Política. Introdução à Teoria Política, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa (1996) 305-307. Entre os defensores do Estado como um organismo biológico este teorizador da política aponta os exemplos doutrinais de Karl S. Zacharie, Johann Kaspar Bluntschli, Albert Schãffle e Ludwig Gumplowicz. Segundo o mesmo autor, esse naturalismo organicista encontrará em Portugal eco literário na pena de um Trindade Coelho (para quem o Estado é um corpo social dotado de vontade, pensamento e órgãos materiais: videManual Político do Cidadão Portuguez 1906, pp. 5-6), ou mesmo na prosa ensaística de um Fernando Pessoa (segundo o qual o Estado se exprime num dinamismo tensional e dialéctico entre forças estáticas de conser-vação e coordenação por um lado, e forças destrutivas de desintegração e desiquilíbro por outro: vide Sobre Portugal,

rs ístaGLPOLIS

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O Livro V da Política revela, portanto, até que ponto Aristóteles tentava escapar à dificuldade de combinar no mesmo reduto filosófico as especulações noéticas de Platão com o carácter empírico do princípio organicista. Por isso, numa reflexão realista como a de Aristóteles adquire relevância o sentido da forma biológica ou orgânica, patentean-do-se deste modo a influência exercida pelo método das ciências descritivas da natu-reza, nomeadamente a biologia e a morfologia zoológica, sobre o modo construtivo e noético, herdado de Platão. ?

Se, todavia, a filosofia aristotélica permanecesse refém tão só do nível orgânico da descrição política, bem se poderia afirmar que enfermava de uma perpectiva mecanicista e necessitarista, o que contradiria a crítica dirigida a Platão a propósito do determi-nismo da sua concepção revolucionária circular ou ciclicista. Mas não. Refere, a propó-sito, G. Contogiorgis: "(...) a hostilidade de Aristóteles em relação a todo o sistema que pretende dominar os mecanismos da dinâmica revolucionária parece fundar-se sobre a observação exaustiva das coisas. Para cada tomada de posição platónica, Aristóteles remete para o horizonte dos factos procurando colocar em evidência as suas contradições. Com o seu empirismo, pretende demonstrar que não é ele quem desmente Platão, mas sim a própria história. Aristóteles vislumbra na dinâmica revolucionária um longo processo dialéctico, dominado por múltiplas forças centrífugas, que tendem a suprimir o projecto de regime que as oprime, e a integrar tal movimento numa ordem diferente. (...) Ao obser-var as coisas, Aristóteles apenas procura formular um determinado número de hipóteses susceptíveis de conduzir à tomada de consciência das forças que produzem o movimen-to, a fim de que se possa retardar o mais possível a sua causa. (...)". 73 A atenção, portan-to, ao lastro ocorrencial e empírico do facto histórico, denunciam na Política uma clara abertura da consciência à dimensão processual da história. Nesse sentido a teoria aris-totélica da revolução tem de ser lida no horizonte ocorrencial na história, embora o livro V da Política em nada se assemelhe a uma crónica historiográfica à maneira de Heródoto ou Tucídides, mas releve de uma filosofia política (philosophia politike),onde as ocorrên-cias são incorporadas não apenas para urdir a trama cerrada dos factos e dos fenómenos, mas também para esclarecer, interpretar e fundamentar o carácter compactado da ex-periência política. Significa isto que a recolha sinebética dos factos históricos na Política

pp. 198-200). Além fronteiras, a ideia orgânica encontrará lastro teórico não só nas teses estrategistas de R. Kjellen (no dizer do qual o Estado emerge como epifania biológica de um indivíduo geográfico sujeito, tal corno um corpo vivo, a fenómenos orgânicos enraizados em realidades territoriais: vide O Estado como Forma de Vida, 1916), mas também na perspectiva personalista e holistica de Otto von Gierke (teórico que concebe o Estado como unidade vital de um todo constituído por partes, dotado de personalidade moral, e estruturado tanto no estofo de urna natureza simultaneamente corpórea e espiritual, como na esfera meta-solipsística de uma consciência comum: a propósito destas teses de Gierke, vide MALTEZ, José Adelino, Sobre a Ciência Política,p. 332).

72

É nesse sentido que deve ser entendido o comentário de Werner Jaeger quando refere que Aristóteles foi con-duzido da: « (...) observação imparcial da realidade empírica até um modo completamente distinto de trataras coisas, que parte dos fenómenos particulares para descobrir a sua lei interna, tal como um cientista que observa os movi-mentos e as emoções características de um ser vivo. A teoria das enfermidades dos estados e dos métodos cura-tivos está modelada sobre a patologia e a terapêutica do médico, (...) dando curso à ideia de que não existe estado mais desesperadamente desorganizado do que aquele que não corre o risco de, pelo menos, tentar uma cura (...)» (JAEGER, Werner,Aristóteles...,op. cit., 311-312).

73CONTOGIORGIS, Georges,

La tbéorie des véuolutions cbetAristote,op. cit., 160.

22

77

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não é ingénua, aleatória nem tão pouco neutra; obedece a uma recolha selectiva de acor-do com um padrão filosófico antecipadamente colocaacor-do em jogo. 74

b) Reapropriacão contemporânea da teoria das revoluções políticas - A tese fenomenológica (G. Gusdorj)

A primeira ressonância da demanda aristotélica da teoria da revolução, que poderíamos designar de fenomenológica, encontra amplo desenvolvimento numa obra como "A consciência revolucionária: os ideólogos", do filósofo da cultura Georges Gusdorf. Segundo este autor, e tendo em mente o presumível carácter "exemplar" da Revolução francesa (para lá da índole "protocolar" da Revolução inglesa),75 a trama que urde o enredo revolucionário pode ser reconduzida ao horizonte hermenêutico da busca do sentido. 76 Todo o acto revolucionário encerra, na opinião do autor, uma mensagem axiológica original que anuncia a iminência de grandes alterações para melhor, fecun-dadas pelos sonhos esclarecidos de regeneração politica e social, e inscritas no movi-mento espiral de um eterno retorno amplificado". Além disso, a adesão popular à re-volução implica na sua raiz mais íntima um acto de fé no carácter messiânico e prometaico (Volnay) 78 de uma doutrina da perfectibilidade humana e da promessa de uma nova era. 79 Essa nova era cumpre-se, por um lado na aurora esplêndida e na implacável racionalidade de numa nova ordem jurídica 80 de cariz centralista, exemplar

74Prestando atenção a esse círculo tensional entre história e filosofia, interpretação e facto, narração e observação, conclui R. Weil a propósito do livro V da Política: « we observe two contradictory or complementary tendencies in Aristodé s view of history: optimism combined with pessirnism. The fifth book of the Politics, for exemple, draws up a gloomy regista of revolution and disaster, but it does suggest remedies - indeed, a fundamental reme-dy: governements may achieve so perfect a balance that they all become alike; the tyrant himself, if he wants to stay on his throne, will emulate virtuous men til he comes to resemble them (V, 11, 1315 a 4 ss.). The fiction of decadence and of progress, separate or combinate, is to be found in Plato; but Aristotle spurns fiction and grounds it in fact. His presentation of the different stages of the past is subject to two tendencies: on the one hand, he does the best he can to uncover the truth, shifting an immense amount of evidence; none the less he collects and inter-prets this according to his own theories. Doubtless such a propensity appears in the work of any historiar who is concerned with probabilities, as 1-Ierodotus already knew and Thucydides taught. Further, historical objectivity, and even the concept of historical truth, were not faultless: for orators like Isocrates, Aeschines, and Demosthenes, history was a series of examples, to be exploited as the occasion demanded; Plato himself juggled with history. Aristotle never juggles with the facts, even if he juggles with the ideas» (WEIL, Raymond, Aristotle's View of Hirtory, in op. cit., 215).

75Para uma análise crítica do prestígio prototípico da Revolução Francesa na história das revoluções ocidentais, cf: FURET, François, Pensara Revolução Francesa, Ed. 70, Lisboa (1988); THIERS Adolphe, Histoire dela Révolution Française, Société Typographique Belge, Bruxelles (1944); LEFEBVRE, Georges, La révolution française, PUF, Paris (1968); TOQUEVILLE, Alexis, L'ancien regime et la révolution, Gallimard, Paris (1967); MAISTRE, Joseph de, Écrits

soer la Révolution, PUF, Paris (1989). Sobre o carácter "protocolar" da revolução inglesa cf. STONE, Lawrence, The causes of the English Revolution: 1529-1642, Routledge and Kegan Paul, London (1972).

76Cf. GUSDORF, Georges, La consciente révolutionnaire. Les idéologues, Payot, Paris (1978) 41-171. 77Cf. Ibid., 51-58.

78Cf. VOLNAY, Conde de, As ruínas ou Meditação sobre as revoluções dos Impérios, Silviana, Lisboa (1834). 79C£ GUSDORF, Georges, La consciente révolutionnaire, op. cit., 68-74.

80Cf. Ibid., 110-113.

revistaGEPOLIS

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e irreversível, e por outro lado no triunfo de um sistema educativo cujas linhas orienta-doras iluminam e sacralizam todas as esferas da vida civil a esfera do espaço (a arqui-tectura revolucionária aspira ao utopismo geométrico de uma cidade traçada a régua e esquadro, de inspiração vincadamente cartesiana); 81 a esfera do tempo (o calendário re-volucionário sacraliza uma cronologia da perfectibilidade na qual o tempo vivido se traduz em negação do passado e na aceleração dos ritmos temporais de renovação cívi-ca);82 a esfera antropológica (a personalidade do revolucionário estrutura-se no volun-tarismo bipolar do lema "liberdade ou morte" e consolida-se num sistema educativo homogéneo que tende a impor uma lógica de sentido único); 83 e até mesmo a esfera religiosa (o recurso à festa instaura um meio de mobilização maciça da consciência co-lectiva e assegura "la mise-en-scêne" da mitologia revolucionária, inspirando-se de resto na tese da celebração cívica de Diderot, na teoria do ritual democrático de Rousseau, no princípio da festa entendida como espectáculo político total de Condorcet, e final-mente na concepção de religião civil de Robespierre e Saint-Juste). A par da "busca do sentido", o drama revolucionário desenrola-se na base de um argumento construido em torno de sete (número carregado de simbolismo religioso) princípios paradigmáticos, programáticos e pragmáticos: o princípio da unificação; 84 o princípio da constituição;85 o princípio dos direitos do homem; 8 o princípio trinomial da igualdade, liberdade e fraternidade; 87 o princípio da propriedade;88 o princípio da felicidade89 e o princípio do terror. 90 Em suma, G. Gusdorf entende que "(...) os princípios do pensamento revolu-cionário devem ser aferidos da experiência histórica que inspiraram. Enquanto princí-pios de acção confirmados pela prática constitucional, legislativa, e administrativa, tais princípios evidenciam determinados aspectos da vida social e política, em relação aos quais os teóricos precedentes não prestaram a devida atenção. A prática revolucionária deve responder ao desafio das circunstâncias, (...) tanto mais que tal acção desenha as configurações do novo espaço politico e social; ela possibilita uma desconstrução críti-ca das doutrinas do críti-campo oposto, mas também uma resistência aos factos, que muitas vezes adquirem formas turbulentas de insurreição, de resistência passiva ou activa de múltiplos rostos (...)". 91

-Atese existencial (H. Arendt)

A segunda ressonância, que rotularíamos de existencial, é corporizada na índole anti-materialista da filosofia de Hannah Arendt, na sua obra "Acerca das Revoluções". No

81Cf Ibid., 123-124. 82Cf. Ibid., 125-133. 83Cf, Ibid., 134-145. 84Cf. Ibid., 175-188. 85Cf. Ibid., 189-206. 86Cf. Ibid., 207-214. 87Cf. Ibid., 215-241. 88Cf. Ibid., 242-251. 89Cf. Ibid., 252-260. 90Cf. Ibid,, 261-284. 91Ibid., 174. 79 revistaCEPOL[S

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u0

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dizer da pensadora, as revoluções modernas muito pouco ou nada têm a ver com a

muta-tiorerum da história romana, nem com a stasis que, de tempos a tempos, perturbava o

corpo cívico das cidades-estado gregas, ou com a metabole que impunha uma trans-formação política, quase natural, de uma forma de regime noutra; nem sequer com a

politeion anakyklosis de Políbio, que imprime aos assuntos humanos uma marcha cíclica

de retorno necessário e determinístico. De acordo com o seu ponto de vista, as re-voluções clássicas configuravam mutações congénitas de determinada estrutura consti-tucional, ou passagens a estádios diferenciados do mesmo ciclo político, que implicavam uma reordenação da natureza das tarefas e aspirações políticas, sem que daí resultasse um acréscimo ou uma mais-valia de auto-determinação e arbítrio para as decisões cívi-cas existenciais. Apesar de tudo, no pulsar das revoluções clássicívi-cas insinua-se, para a pensadora judia, um precedente para os tempos modernos: "(...) quem negar o papel relevante da questão social nas revoluções, não se lembrará que Aristóteles, quando começou a interpretar e explicar a metabole platónica, tinha já colocado em relevo o papel daquilo que hoje apelidaríamos de "motivação económica " - relacionando o der-rube do governo pelos ricos e o estabelecimento das oligarquias, ou a queda do go-verno por parte dos pobres e a instauração das democracias (...)" 92 O intuito da au-tora possui um duplo alcance: um alcance construtivo e um alcance desmistificador. Em termos construtivos, Hannah Arendt tenta mostrar 1. a relação entre poder e posse de propriedade, 2. a noção de que as formas de regime se encontram inti-mamente ligadas à distribuição da riqueza, 3. a suspeita de que o poder político se conecta com o jogo volátil da esfera económica, e 4. finalmente o princípio de que o interesse é porventura a força motriz do conflito político. Por outro lado, o intuito é também desmistificador: nesse sentido a suposta originalidade marxista não passa de um insuflamento requintado das teses socioeconómicas de Aristóteles, cosmeti-camente apropriadas pela mitologia e pela liturgia da revolução russa. 93 Para a autora, de resto "(...) se alguém pretender relacionar um autor com uma suposta concepção materialista da História, é necessário remontar a Aristóteles, o primeiro a registar que o interesse, designado de sympheron, isto é, o que é útil a um indivíduo, grupo, ou povo, deve ter a primazia política, sendo justo que assim seja (...)". 94 Para a autora, o terreno propício à emergência das revoluções modernas só fica demarcado com a afirmação histórica e existencial de dois momentos cruciais: um simbólico e outro teórico. Em termos simbólicos, o sentido moderno da transformação revolucionária da sociedade começa a ganhar contornos quando John Adams, dez anos antes da revolução que faria eclodir a proclamação da independência norte-americana, declara na sua "Dissertation on the Canon and the Feudal Law": "(...) considero sempre o estabelecimento da América como o começo de um grande desígnio e de uma grande obra da Providência para a inspiração dos ignorantes e a emancipação da massa

92ARENDT, Hannah, Essai sur Ia révolution, Gallimard, Paris (1967) 25-26.

93 Sobre as peripécias históricas, os pressupostos culturais, e os conteúdos programáticos da revolução russa, c£ FERRO, Marc, La révolution de 1917,Aubier, Paris (1967); CARR, Edward, La révolution bolchevique: 1917-1923, Minuit, Paris (1964-74); KEEP, John, The russian revolution: a study in mass mobiliiation, Weidenfeld and Nicholson, London (1976).

94ARENDT, Hannah, Essai sur Ia révolution, op. cit., 27.

revIsIsCEPOLIS

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