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Apropriação privada e ação regulatória. Propriedade e posse da terra em Minas Gerais: 1891-1960

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Apropriação privada e ação regulatória. Propriedade e posse da terra

em Minas Gerais: 1891-1960.

Haruf Salmen Espindola1

Ana Caroline Gomes Esteves

Renata Flor Marins

Resumo

O artigo trata da apropriação privada e da ação regulatória do Estado para as terras devolutas, especialmente o caso de Minas Gerais. Com a Constituição Republicana de 1891 as terras devolutas passaram ao domínio dos estados membros, antigas províncias do Brasil Império. Minas Gerais regulou amplamente as questões relacionadas à terra, ao direito de posse e ao título de propriedade. Vamos examinar a evolução da legislação de terras no Brasil, as mudanças ocorridas ao longo do tempo e as condições objetivas de sua operacionalização pelo Estado de Minas Gerais.

Palavras Chaves: Minas Gerais, Terras Devolutas, Legislação de Terras, Propriedade e Posse.

1 Haruf Salmen Espindola é doutor em História Econômica pela USP; professor titular da Universidade Vale do Rio Doce – Univale – e coordenador do Programa de Pós-graduação Stricto Senso Interdisciplinar em Gestão Integrada do Território. Ana Caroline Gomes Esteves e Renata Flor Martins são alunas do curso de Direito da Univale e bolsistas de iniciação científica da FAPEMIG. Este trabalho é resultado de projeto de pesquisa com financiamento do CNPq e da FAPEMIG.

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A primeira forma do ordenamento jurídico brasileiro, em relação à propriedade territorial rural, foi a do regime de sesmarias, isto é, a doação a terceiros das terras consideradas pela autoridade pública como desocupadas, desde que os agraciados com a mercê demonstrassem condições de cultivá-las. A intenção da Coroa portuguesa em implantar o regime das sesmarias era de garantir a ocupação das terras brasileiras e defender os direitos coloniais lusitanos. O cerne da lei das sesmarias era a exigência que as terras fossem povoadas e produtivas.

Em Portugal, desde os primórdios do Estado Lusitano, houve a preocupação com o problema da posse e uso da terra, datando-se de 1375 a primeira Lei de Sesmaria. Esse estatuto foi criado para solucionar uma crise de abastecimento e promover a ocupação de terrenos que estavam abandonados e improdutivos. A maior parte das terras estava sob domínio de senhorios, conforme o direito feudal, que em muitos casos não as cultivavam nem arrendavam. A situação imposta pelas guerras de reconquista se agravou com os conflitos provocados pela Revolução de Avis (1383) e, principalmente, com a navegação oceânica e conquistas de terras no além mar. Deste modo, a legislação servia à finalidade de repovoar e acabar com a ociosidade das terras, obrigando o cultivo sob pena da perda do domínio pelo senhorio que não o fizesse nem arrendasse a terceiros. Nesse caso, a terra devoluta era dada a outrem para que a lavrasse e aproveitasse.

O sentido do termo “devoluto” era de “devolvido ao senhor original”, que no caso era o Rei. Assim, as terras devolutas seriam aquelas cujo senhorio ou proprietário não as aproveitasse e, portando, que retornavam para o domínio da Coroa. Com o decorrer do tempo, toda terra desocupada, não aproveitada com agricultura ou criação foi chamada de devoluta. A legislação sobre sesmaria compôs título próprio nas Ordenações do Reino2. Quanto à definição de sesmarias, todas tinham o mesmo teor3,

2 Nas Ordenações Afonsinas (1446) está no Livro IV, Título 81: Das Sesmarias; nas Ordenações Manuelinas está no Livro IV, Título 67; e nas Ordenações Filipinas, que vigorou no Brasil até o início do século XX, se encontra no Livro IV, Título 43.

3 As Ordenações do Reino definiam sesmarias da seguinte forma: Sesmarias são propriamente as dadas de terras, casais ou pardieiros que foram, ou são de alguns senhores, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora não são. As quais terras e os bens danificados e destruídos podem e

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havendo apenas uma pequena modificação no texto das Ordenações Filipinas (1603), se comparado com o das Ordenações Manuelinas (1521), dispondo que incontestavelmente se deveria transplantar o regime das Sesmarias para as terras do Brasil (LIMA, 1935, p.28).

As terras do novo mundo que cabiam a Portugal ficaram subordinadas às leis Portuguesas, particularmente às Ordenações do Reino. Os domínios da coroa portuguesa foram divididos em capitanias hereditárias, transferindo-se a soberania para os capitães donatários por meio da carta de doação. Entre as obrigações dos donatários, constava a doação de terras àqueles que podiam com capitais próprios promover o povoamento e fazê-las produtivas, sendo-lhes, no entanto vedado fazerem concessões para si mesmos e para parentes4. Chamo a atenção para um aspecto fundamental do regime sesmarial, isto

é, a lei das sesmarias impunha aos que recebiam a doação da terra, aos senhorios e aos proprietários, a obrigação de lavrarem suas terras, e se caso não o fizessem tais terras seriam tomadas e dadas aos que efetivamente quisessem lavrá-las. A legislação sesmarial privilegiava a posse e a exploração econômica das terras, logo o direito de propriedade ficava condicionado ao aproveitamento das terras.

Com a transposição da legislação sesmarial para a América, essa perdeu a finalidade originária de dar à terra uma função social, assumindo no novo mundo a de colonização das terras descobertas, como meio de garantir o domínio colonial para a Coroa portuguesa. A definição de sesmaria, que se aplicava à realidade da Colônia, pode ser encontrada nas Ordenações Manuelinas, Livro IV, Título 67, § 8, onde se inclui nessa categoria as porções de terras classificadas como “matos maninhos, ou matos e bravios, que nunca foram lavrados e aproveitados, ou não há memória de homens, que o fossem, os quais não foram coutados5 ou reservados pelo Rei...” A terras incultas (que para a Coroa eram todas as terras do Brasil) deveriam ser concedidas àqueles que as

devem ser dados de sesmarias pelos sesmeiros, que para isto forem ordenados.

4 Todas as “ditas obrigações” eram declaradas nas cartas de sesmarias. O mesmo se encontra no Regimento de Tomé de Souza.

5 Coutados eram terras garantidas com o privilégio do Couto, comum em Portugal, entre o século IX e XIII, nas quais estava proibida a entrada de funcionários régios, sendo essas regidas por leis próprias e, portanto, ficavam fora da Justiça Real.

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dispusessem desbravar, lavrar e semear, para que houvesse abundância de mantimentos. Veja-se que toda a terra era domínio da Coroa, exceto a que tivesse o privilégio do couto ou tivesse sido reservada pelo Rei. No caso das terras do Brasil, não havia esse privilégio e a única exceção eram as porções de terras reservadas pelo Rei e doadas aos capitães donatários das capitanias hereditárias (Carta de Doação) e ao Governador Geral (Regimento).

A doação era condicionada pela função de povoar e produzir; logo, se não cumprisse essa condição, no prazo máximo de cinco anos, a sesmaria retornaria à Coroa (Ordenações Manuelinas, Livro IV, Título 67, § 3). As terras doadas pelo Rei aos sesmeiros, depois de três anos, tornavam-se propriedade e poderiam ser vendidas ou cedidas, porém não desaparecia a condicionalidade que obrigava o povoar e produzir. No Brasil a Coroa estava interessada no crescimento da produção agrícola, particularmente dos produtos primários para exportação, destinados ao mercado europeu. Assim, foram garantidos benefícios e isenções aos colonizadores para equilibrar suas despesas com os necessários desmatamentos das terras virgens e o custo da mão-de-obra escrava6.

No Brasil o princípio básico de não conceder quantidade de terras superior ao que o requerente podia aproveitar foi desrespeitado desde os primeiros anos da colonização. Um exemplo disso ocorreu com o primeiro governador geral, Tomé de Souza, que doou ao seu filho Garcia D’Ávila mais de 14 léguas de terra de sesmaria, em 1563-1565. O imenso latifúndio se estendeu do norte da Bahia de Todos os Santos até o rio São Francisco. Como era proibido aos capitães-mores e governadores fazerem doações a filhos e parentes, Garcia D’Ávila não se apresentou como filho de Tomé de Souza. Entretanto, a tendência foi coibir a doação de grandes extensões de terra e, para isso, a Coroa foi limitando o tamanho das concessões, até chegar a dois padrões, no século XVIII: uma légua em quadra e meia légua em quadra. A última medida, nesse sentido, foi a Provisão de 21 de junho de 1816, que definiu a medida “exata” de uma

6 As sesmarias eram doadas livres de foros, encargos e ônus, somente com a obrigação do pagamento do dízimo à Ordem de Cristo.

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légua em quadra. O regime de concessão ampla de sesmarias, pelo qual eram cedidas grandes extensões de terras, deu nascimento ao latifúndio.

As sesmarias eram concedidas pelos capitães-mores e governadores, ouvindo primeiramente as câmaras das vilas, os provedores da Fazenda e os procuradores da mesma Fazenda. Não podia ser concedida sesmaria àquele que já possuísse uma “doação”, mesmo que essa fosse obtida por título de herança ou de compra. A concessão de sesmaria obedecia ao seguinte trâmite: o requerente fazia uma petição ao governador e este mandava consultar a Câmara; com a informação recebida solicitava parecer do Provedor da Real Fazenda, que era o Juiz dos Feitos; esse, por sua vez, mandava que o requerente comprovasse que tinha “fábrica” (recursos e mão-de-obra necessários para o cultivo da terra) e que não possuía terras de sesmaria. Era necessário, havendo dúvidas se a terras estavam na posse de outrem, que se publicasse edital por 30 dias, antes de se proceder aos trâmites.

Ao longo do século XVIII cresceram as críticas a esse trâmite, particularmente porque muitas testemunhas inquiridas não tinham conhecimento dos fatos que relatavam nem das terras que os pretendentes pediam. O requerente da sesmaria justificava como queria e o Juiz dos Feitos repassava as informações ao Governador, que no final concedia a sesmaria. Em 1780 Teixeira Coelho (1994, cap. 23) condenou esse procedimento, que não permitia averiguar a verdade e apenas servia para que os Juízes do Feito e seus escrivães recebessem injustos pagamentos por processos inúteis. Na sua Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais Teixeira Coelho (1994, cap. 23) denuncia a facilidade para se obter a sesmaria e, como consequência, o pouco valor que se dava à terra. O resultado era danoso para as vilas e povoações, pois os melhores matos e os mais próximos aos núcleos urbanos eram queimados, de modo que era geral falta madeira e lenha para atender os núcleos urbanos. Com tanta facilidade para se conseguir terra, os lavradores não praticavam qualquer forma de beneficiamento, simplesmente usavam a terra, abandonando-a em pouco tempo.

Para o autor da Instrução os prejuízos e desordens causadas pela facilidade na concessão de sesmaria somente teriam fim com a criação de uma Intendência da

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Agricultura, capaz de obrigar os lavradores a praticarem a atividade agrícola com base em preceitos corretos. A tendência da legislação foi aumentar as exigências, particularmente a necessidade de confirmação das concessões7. Para se conseguir a

confirmação foi imposta a obrigação de o requerente providenciar a medição e demarcação judicial das terras, porém essa exigência nem sempre era cumprida. O Alvará de 25 de janeiro de 18098, no § 1º, determina à Mesa do Desembargo do Paço:

...não mandara passar cartas de concessão de sesmarias, nem de confirmação das que concedem os Governadores e Capitães Generaes, sem que apresentem os que a requerem medição e demarcação judicial feita e ultimada legalmente com citação dos hereos (sic) confrontantes e sobre que haja sentença final e que tenha passado em julgado.

Com a Independência do Brasil, em 1822, a soberania passou para o novo Estado, que abarcou todas as províncias que antes eram partes do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O regime de sesmarias foi abolido no mesmo ano da independência brasileira, exceto para algumas regiões.9 O resultado de três séculos de

aplicação da legislação sesmarial indicava ter sido essa distorcida em seus fundamentos, pois a estrutura fundiária do Brasil foi dominada pelo latifúndio improdutivo, recebido como sesmaria, ao lado da pura e simples posse de lavradores pobres sem a segurança do estatuto jurídico (LIMA, 1935.p. 44). O fim desse regime aguçou uma tendência que sempre existiu em todo o período colonial, que foi a apropriação de terras devolutas por particulares, desde lavradores pobres até potentados locais (GARCIA, 1958, p. 35).

7 O Decreto de 22 de julho de 1808, determinou a obrigação dos sesmeiros pedir a confirmação ao Desembargo do Paço, disponível em http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4pa1027.htm.

8 O Alvará de 25 de janeiro de 1809, sobre a confirmação das sesmarias e a forma de nomeação dos juízes e de seus salários, está disponível em http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4pa1028.htm.

9 Apesar das concessões de sesmarias terem sido suspensas por Dom Pedro I, abriu-se exceção para as margens do rio Doce. Na Província de Minas Gerais foram concedidas diversas sesmarias, entre 1822 e 1836, sendo que todas se localizavam nas margens desse rio ou de seus afluentes. (ESPINDOLA, 2005).

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A propriedade territorial pública do Brasil entrou num período caótico, em função da abolição do regime das sesmarias e, consequentemente, da falta de um ordenamento jurídico que possibilitasse determinar quem era ou não proprietário das terras no país. O resultado foi a disseminação do regime das posses, com ocupação de grandes extensões de terras por indivíduos vinculados aos setores dominantes da sociedade. Assim, a posse deixou de ser uma ocupação de pequenas glebas de terras por lavradores pobres, na maioria constituída de negros alforriados e seus descendentes, negros quilombolas, mulatos, caboclos, cafuzos, mamelucos e indígenas aculturados. Durante esse tempo o controle sobre as terras foi um privilégio daqueles com maior poder e que se encontravam em melhor posição na estrutura social. O vazio jurídico durou até a promulgação da Lei de Terras de 1850 (Lei Nº 601, de 18 de setembro de 1850) 10.

Essa lei tratou do assunto de terras de forma sistemática e permaneceu, até o início da década de 1960, como a fonte definidora de assuntos pertinentes à matéria (GARCIA, 1958, p.25). O novo estatuto jurídico determinou, a partir de sua publicação, que as terras não poderiam mais ser doadas por sesmarias, ocupadas ou possuídas, mas somente adquiridas por compra. A nova lei, no objetivo de discriminar as terras públicas e as terras devolutas, definiu a propriedade privada da terra e a posse. Isso porque procedeu a definição por meio da exclusão: terras devolutas seriam todas as terras que não fossem de uso público nacional, provincial ou municipal, bem como aquelas que não fossem de domínio legítimo de particulares; ou sesmarias que cumpriram os requisitos legais; ou sesmarias, mesmo não tendo cumprido essas exigências; ou simplesmente terreno ocupado com morada habitual e cultura, apesar de não se fundarem em título legal.

Desta forma, ao definir as terras devolutas também se definiu a propriedade pública, a propriedade privada e a posse da terra. As sesmarias em situação irregular

10 A Lei de Terras está disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L0601-1850.htm. A regulamentação foi feita pelo Decreto 1.318, de 30 de janeiro de1854, que está disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/decreto/1851-1899/Anexos/RegulamentoD1318-1854.pdf ou no endereço http://www.itesp.sp.gov.br/br/info/legislacao/decreto_1318.aspx.

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precisariam ser revalidadas e as posses teriam que ser legitimadas, para se tornarem propriedade privada. Foram eliminados os condicionamentos existentes nas Ordenações Filipinas. Essa condicionalidade estava expressa na cláusula de ocupação e aproveitamento econômico, isto é, as terras ficariam com seu “proprietário” com a condição de serem aproveitadas economicamente, pois se assim não fosse, como afirmamos antes, as terras voltavam ao senhor de origem, que era a Coroa (Estado). Pela nova lei a condicionalidade era apenas uma exigência prévia, para que o posseiro ou sesmeiro sem confirmação tivesse o direito de requerer a legitimação. Uma vez emitido o título de propriedade, o domínio particular não poderia ser revertido ao Estado, independente de qualquer condição, como anteriormente previa o regime de sesmarias.

O contexto em que a Lei de Terras foi discutida e aprovada se caracterizava pela existência de sesmeiros com grandes extensões de terras em situação irregular11, por não

terem cumprido as condições legais exigidas de medição, confirmação e cultura, bem como de grandes extensões de terrenos ocupados como simples posse. O § 2º do art. 3º da Lei de Terra e sua regulamentação no artigo 22, do Decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854, garantiu o pleno domínio dos ocupantes sobre essas terras, qualquer que fosse a extensão. A conseqüência dessa medida foi legalizar o latifúndio improdutivo, obtido por concessão de sesmaria, sem que as condições impostas pelo regime sesmarial tivessem sido cumpridas.

Entretanto, somente seriam aceitas as posses e sesmarias irregulares existentes na data da promulgação da Lei de Terras (18 de setembro de 1850), porque a partir dessa data ficaram “proibidas as aquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra” (Art. 1º, da Lei 601/1850). Esse dispositivo legal discriminou os que não possuíam renda, restringindo o acesso àqueles com poder aquisitivo para realizarem a compra.

O direito de posse exige condições determinadas que comprovem a situação de fato, para que o posseiro tenha a proteção jurídica. A terra teria que estar cultivada, ou

11 A medição e demarcação eram essenciais, pois sem isso não era possível obter a confirmação pela Mesa do Desembargo do Paço.

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com principio de cultura, e o posseiro deveria residir no terreno (morada habitual). Em tese, a garantia do direito de posse poderia representar ganho efetivo para o lavrador pobre, pois esse de fato residia e cultivava a terra, porém o artigo 5º da Lei de Terra estendeu esse direito àquele que sem residir no terreno mantivesse represente com morada habitual. O latifúndio foi equiparado à simples posse de terra do lavrador pobre com morada habitual e, dessa forma, o fazendeiro poderia regularizar seu domínio sem pagar pela terra.

Como a proibição de abertura de novas posses não impediu a continuidade das ocupações de terras, particularmente nas zonas de fronteira agrícola12, a flexibilidade

criada pelo referido artigo 5º possibilitou fazendeiros e potentados locais se beneficiarem do dispositivo legal. A instalação de agregados em terras devolutas criava o fato que, posteriormente, permitia garantir o direito de propriedade sobre grandes extensões de terrenos. Isso porque o limite de 18 de setembro de 1850 foi alterado por outros dispositivos legais, que atualizaram essa data limite. Portanto, quando esse artigo da lei considerou que a condição da morada habitual poderia ser substituída pela presença de representante do “possuidor”, favoreceu a formação do latifúndio.

Segundo Lima (1935 p. 58), de certa forma a lei priorizava o direito do posseiro, entendendo-o como um desbravador dos sertões, uma vez que ratificava o regime das posses e determinava o direito à sua detenção. Para Junqueira (1964 p. 64) a Lei de Terras significou uma confirmação formal do regime das posses e do princípio da condicionalidade, isto é, comprovação da morada habitual e cultura efetiva. Eles concordam que a lei reconheceu o direito dos posseiros de pequenas glebas, garantindo àqueles que as ocupassem de forma mansa e pacifica a opção de legitimar a posse. É importante destacar que a lei reconhecia a dificuldade objetiva dos lavradores pobres requererem a legitimação (falta de recurso, analfabetismo e isolamento). O legislador buscava coibir a manutenção de grandes extensões de terras como posse, porém os possuidores de pequenas glebas com cultura e residência no terreno, mesmo que não

12 O artigo 2º da Lei de Terras permaneceu letra morta, pois não se fez cumprir as penalidades que determinava para os que se apossarem de terras devolutas e nelas derrubassem as matas e utilizassem de fogo.

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requeressem a legitimação, conservavam o direito sobre suas posses.

A nova legislação promoveu uma ruptura com o sistema de colonização, isto é, se promoveu a valorização mercantil da terra. A propriedade privada da terra, mesmo que não apareça à expressão na Lei de Terras de 1850, tornou-se o estatuto jurídico único de manutenção do domínio e, dessa forma, o direito de possuir prevaleceu sobre o fato de possuir. A gratuidade apenas se conservou para as terras situadas nos limites do Império com os países estrangeiros, numa zona de dez léguas. A transformação da terra de valor de uso em mercadoria foi reforçada pelo Decreto 1318/1854, que regulamentou a Lei de Terras. O decreto explicitou o que não estava no texto da lei, ao deixar claro que o possuidor de título de domínio de terras não tinha necessidade alguma de revalidá-lo, vez que tais terras eram propriedade.

Ao considerar crime o ato de se apossar de terras devolutas e ao exigir que as terras já apossadas fossem legitimadas como propriedade, o legislador agiu com coerência frente à sua intenção: reconhece o direito de posse, mas exige o registro por parte do ocupante e proíbe novas ocupações. O novo regime jurídico favorece a formação de um mercado de terras, criando uma realidade distinta do antigo regime, no qual o escravo era a mercadoria principal e o grosso do capital imobilizado. A escravidão funcionava como um empecilho para a expansão do novo sistema econômico capitalista, além de bloquear o crescimento do mercado para os produtos manufaturados e restringir a capacidade de produzir e exportar bens primários. Por causa das pressões externas, principalmente inglesas, o tráfico de escravos foi abolido em 1850, no mesmo ano que se publicou a Lei de Terras. Para historiadores como SMITH (1990) e COSTA (2007) essa lei foi fundamental para o avanço do capitalismo no Brasil.

No contexto de expansão da economia agroexportadora, com as fazendas de café demandando mais força de trabalho, o fim do tráfico de escravos colocou a questão da mão-de-obra no centro dos debates políticos. A interrupção do fornecimento de braços africanos colocava no horizonte o fim da escravidão e, portanto, fazia-se necessário promover a transição para o trabalho livre. A Lei de Terra (artigos 17 e 18) respondeu ao sentimento geral de que mão-de-obra estrangeira livre era a alternativa para substituir

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o trabalhador escravo. O governo foi autorizado a promover e financiar a entrada de imigrantes europeus, devendo utilizar os recursos apurados com a venda das terras devolutas (SILVA, 2008, p.136). Portanto, existe uma relação direta entre o fim do tráfico de escravos e a ação do Estado para organizar o processo de ocupação territorial e, particularmente, regular o acesso à terra e a formação da propriedade privada.

Concretamente a implantação do novo regime de terras representou uma vitória dos grandes fazendeiros ao restringir o acesso às mesmas (MARTINS, 1980, p. 73). Podemos avançar ainda mais, se considerarmos a dimensão jurídica da mudança: com a distinção do domínio garantido pelo titulo da simples posse, gradativamente consolidou-se o princípio da propriedade como superior ao fato de simplesmente possuir. Como a obtenção do título tem um custo financeiro e formal (trâmite burocrático), a sua detenção adquire um valor superior para a sociedade e, consequentemente, provoca uma mudança de percepção e representação. Com o avanço das relações capitalistas o título de propriedade serve de garantia hipotecária, porém a simples posse não pode representar qualquer garantia. Com o reconhecimento da propriedade como valor absoluto, a efetividade do ato de possuir (posse), gradativamente, se fragilizou no confronto com o título de propriedade. No horizonte histórico se estabeleciam novas possibilidades criadas pelo novo estatuto jurídico da terra. Aquele que sendo portador do titulo de propriedade de uma terra, mesmo sem nunca tê-la ocupado de fato, assumia o domínio sobre a mesma, ou seja, estava plenamente garantido o direito de propriedade privada da terra.

As mudanças provocadas pelo instituto da propriedade privada da terra e o significado desse instituto para o desenvolvimento do trabalho assalariado foram amplamente discutidas por Eric J. Hobsbawm (1981), bem como serviram de fundo para o estudo de Edward Thompson (1987) sobre a Inglaterra do século XVIII. O estudo da formação da moderna idéia de propriedade privada permite questionar a concepção jurídica positivista dominante, que tende a ver de modo acrítico e ahistórico um processo que em verdade é contraditório e marcado por condições espaciais e temporais determinadas.

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compreensão das categorias e dos institutos jurídicos, bem como das suas implicações na realidade, não pode estar distanciada do estudo e da reflexão a respeito das diferentes temporalidades e localidades em que foram pensados e idealizados os diferentes direitos. A reflexão sobre direito e propriedade deve estar atenta à realidade, aberta a críticas e consciente do ambiente econômico, político e cultural em que foi constituído. (STAUT JR., 2009, p. 159)

Em 1850 foi abolido o tráfico de escravos e, três anos depois, praticamente cessou a entrada de africanos. Mesmo com a intensificação do tráfico interno, das áreas em declínio para as novas fronteiras agrícolas, em médio prazo o estatuto da escravidão estava condenado. Não é de se estranhar que a Lei de Terras, no seu artigo 18º, autorize o governo “a mandar vir anualmente à custa do Tesouro certo numero de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agrícolas”. A transformação das terras disponíveis (terras públicas) em objeto mercantil, ao se estabelecer a compra como única condição de acesso, bem como a prerrogativa do título de propriedade sobre o direito de posse, eram mudanças substantivas, condição para que o imigrante, que era sujeito livre, não tivesse acesso à terra. Desta forma, a mão-de-obra livre ficava em condição de ser empregada como trabalhadores assalariados.

A Lei de Terras de 1850 e a legislação subseqüente codificaram os interesses combinados de fazendeiros e comerciantes, instituindo as garantias legais e judiciais de continuidade da exploração da força de trabalho, mesmo que o cativeiro entrasse em colapso. Na iminência de transformação nas condições do regime escravista, que poderiam comprometer a sujeição do trabalhador, criavam as condições que garantissem, ao menos, a sujeição do trabalhador. (MARTINS, 1979, p.

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No contexto fundiário brasileiro a Lei de Terra de 1850 transformou-se em mecanismo de consolidação da grande propriedade e dos interesses oligárquicos, apesar de reconhecer o direito dos lavradores pobres deterem a posse das terras que ocupavam. Esses não constituíam parte do cálculo político, porque estavam fora do mercado de mão-de-obra, espalhados em grandes extensões territoriais e fora dos circuitos econômicos agro-exportadores. O reconhecimento das terras possuídas até a data de publicação da Lei 601/1850, mais do que ao posseiro pobre, beneficiou as oligarquias possuidoras de sesmaria irregulares ou que ocupavam terras sem titulo legal. Esses se tornaram proprietários, e os primeiros permaneceram na condição de posseiros.

O Decreto 1318/1854 determinou os procedimentos de medição e demarcação das terras públicas e de domínio privado, a identificação das terras possuídas,13 o processo para a venda das terras devolutas, entre outros. Para Carvalho (2003, p. 350) o governo foi incapaz de aprovar ou implantar medida contrária aos interesses dos proprietários. O autor fez uma descrição dos principais problemas ocorridos na execução da legislação de terras, indicando que na prática ela não induziu a venda de terras devolutas nem foi capaz de impedir as ocupações, apesar de essas terem caído na ilegalidade. A centralização na Repartição Geral das Terras Públicas, a falta de informação, o escasso número de funcionários e a precariedade das repartições especiais de terras públicas localizadas nas províncias foram fatores que impediram a plena execução da Lei de Terras. A isso se somava o desinteresse dos particulares em revalidarem suas sesmarias ou legitimarem suas posses, favorecidos pela facilidade que encontravam ao se apropriarem das terras devolutas.

Carvalho (203, p. 342) enumera as queixas que aparecem nos relatórios

13 Os registros das terras possuídas ou Registros Paroquiais de terras como também eram conhecidos serviam como mecanismo de identificação das terras devolutas. Pela lógica da lei, ao identificar as terras ocupadas ter-se-ia em contra partida, identificado as terras devolutas.

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ministeriais, primeiro na pasta dos Negócios do Império e, a partir de 1861, na pasta dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas (criada no ano anterior). Em 1855 o ministro reclama que recebeu de dez províncias vagas informações sobre terras devolutas e que apenas três mencionaram superficialmente a situação das sesmarias e posses irregulares. No ano seguinte, novamente queixa da falta de informações sobre sesmarias e posses e acrescenta que os poucos dados que chegavam não eram confiáveis; também denuncia o cinismo dos municípios que disseram inexistir terras em situação irregular no seu território. Do relatório de 1863, o autor destacou a repugnância que a necessidade de regularização causava em muitas províncias. A falta de informação e a resistência em cumprir a exigência legal não diminuíram com o tempo, como se vê no relatório de 1870, no qual o ministro afirma não ter conhecimento sobre a execução da lei nas províncias e, mais ainda, diz que os posseiros viam os agentes do governo como espoliadores de suas “propriedades”.

Os pontos destacados dos relatórios ministeriais por Carvalho (2003) permitem afirmar a continuidade do processo de apropriação das terras devolutas por particulares e, ao mesmo tempo, que esses particulares as consideravam como propriedade suas, tendo para isso a conivência do poder local. Como não podia acabar com as invasões das terras públicas nem obrigar províncias, municípios, paróquias14 e particulares a

atenderem as exigências legais, em 1871, o ministro pede a reformulação da Lei de Terras. Por outro lado, a resposta do governo, ao aprovar sucessivas prorrogações de prazo, reforçava a atitude dos particulares. Para o ministro os “proprietários” acabavam pensando que nunca seriam privados das terras que controlavam. No relatório de 1877, o autor destaca a afirmação do ministro de que a Lei de Terra era “letra morta”; o mesmo ele encontra no relatório de 1886, onde lê que o grande número de sesmarias e posses permanecia sem revalidar ou legitimar e as terras públicas continuavam a ser invadidas (CARVALHO, 2003, p. 42).

Se para os países europeus as mudanças significaram libertar as terras das

14Os registros das terras possuídas deveriam ser feitos nas paróquias, sob a responsabilidade dos vigários. Veja o capítulo X, do Decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854.

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injunções de ordem feudal e dos privilégios da nobreza, no Brasil a Lei transformou as terras devolutas, até então livres, em terras cativas e, representou desta forma, “uma vitória dos grandes fazendeiros” (MARTINS, 1979, p. 73). Mesmo sem o efeito esperado, a Lei de Terra preencheu o vazio jurídico, regulou o regime das posses, estabeleceu o direito à propriedade pelo possuidor das terras e instituiu a propriedade privada como valor absoluto, bem como transformou a terra num bem de mercado. A terra ficou livre das normas, restrições e regalias dadas pelo direito tradicional. Essas mudanças não eram restritas ao Brasil, mas se generalizavam nos países ocidentais, como parte do processo de expansão do sistema capitalista, no qual a terra deveria ganhar um valor como toda mercadoria e ser possuída por proprietários privados, podendo ser livremente negociada no mercado, no todo ou em parte, e dada como garantia hipotecária. O pleno desenvolvimento das relações capitalistas requeria a segurança do título de propriedade, porém esse avançou ainda com lentidão no período do Império.

A Constituição republicana, de 24 de fevereiro de 1891, em seu art. 64, transferiu para os estados membros o domínio sobre as terras devolutas existentes em seus territórios15. Desde então cada estado passou a adotar leis próprias sobre as terras

públicas. A base legal estabelecida pelos legisladores estaduais foi a mesma existente na Lei 601/1850, inclusive a condição primordial para o direito de posse: morada habitual e cultura efetiva. A Lei n. 27, de 25 de junho de 1892, foi a primeira legislação do Estado de Minas Gerais a disciplinar a venda de terras devolutas e, para cuidar do assunto, criou uma Seção Especial para o Serviço de Terras e Colonização junto à Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas. A lei determinou que a medição e demarcação das terras devolutas, obrigatórias para se iniciar o processo de venda, seriam custeadas pelos requerentes. Como vimos antes, essa exigência estava presente no regime sesmarial e na Lei de Terra, sem que os particulares se dispusessem a atender tal dispositivo, forçando o governo a constantes prorrogações do prazo. A transferência

15 O artigo 64 da Constituição de 1891 vinha com o seguinte dispositivo: Pertencem aos estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. Quanto às terras devolutas municipais, dependia da vontade dos Estados-membros partilharem essas terras.

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de jurisdição para os estados membros não mudará essa realidade.

A Lei 27/1892 utilizou o artigo 3º da Lei de Terras de 1850 para definir terra devoluta e, da mesma forma, condenou o ato de ocupá-las. Entretanto, gradativamente, a legislação mineira incorporou o elemento posseiro16 como motivo para a venda das terras devolutas. A primeira modificação legal foi introduzida pela Lei n. 173, de 04 de setembro de 1896, que dispôs “sobre legitimação da posse e concessão de terras públicas”. Foram alterados três artigos da Lei 27/1892, primeiro para dar ao governo a autoridade para fixar o preço dos terrenos devolutos a serem vendidos; segundo, para permitir ao governo estender o prazo para a legitimação das terras; e terceiro, para possibilitar a extinção dos aldeamentos indígenas mantidos pelo governo, concedendo-se lotes de 25 hectares a cada um dos índios, para que esconcedendo-ses concedendo-se mantivesconcedendo-sem por conta própria. As modificações foram relevantes porque abriram a possibilidade da doação de terras, flexibilizaram a questão dos prazos e, principalmente, aceitaram que as ocupações e posses de terras públicas fatalmente ocorreriam, mesmo sendo ilegais (GARCIA, 1958, p. 37).

Diferente do período imperial, quando prevaleceu um estatuto jurídico único (Lei de Terras e Decreto nº 1318/1854), o Estado de Minas Gerais promulgou 34 leis e decretos, entre 1892 e 1953, regulando o assunto das terras devolutas17. O arcabouço

conceitual e jurídico permaneceu o mesmo da Lei de Terras de 1850, porém se acrescentaram pequenas modificações ao longo do tempo, referentes ao serviço de legitimação; aos ritos administrativos; à tramitação dos processos para obtenção do título de propriedade; ao tamanho dos terrenos; às regras para medição e demarcação; à cobrança de foros, taxas e impostos a serem pagos por propriedade e posseiros; ao direito preferencial de compra, às proibições e interdições, entre outros.

A Lei mineira n. 263, de 21 de agosto de 1899, autorizou o governo a dividir o estado de Minas Gerais em distritos de terras e colonização, quantos fossem necessários

16 Entendido aqui como quem desbrava e ocupa terras devolutas com o intuito de habitá-las e cultivá-las. 17 Paulo Garcia (1958, pp. 173-182) fornece uma relação de 23 leis e decretos, porém examinando na página da Assembléia Legislativa de Minas Gerais na Internet, no site Legislação Mineira, encontramos um número maior de atos legais.

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e exigidos pelo serviço público. Mais do que organizar o serviço de terras e colonização, a importância dessa lei foi legitimar o ato possessório, ao substituir a proibição pela obrigação do ocupante da posse requerer a medição durante o primeiro ano de ocupação. Podemos afirmar que o legislador aceitou a posse pura e simples como um direito, ou seja, a posse com morada habitual e cultura efetiva gerava direito. A mesma lei também concedeu aos indivíduos reconhecidamente pobres a isenção dos custos da medição, que seriam assumidos pela fazenda pública.

O governo criou sete distritos de terras para cuidarem de todos os procedimentos locais, principalmente a medição e demarcação, que eram necessários para a venda da terra devoluta ao particular. O processo ocorria todo no âmbito administrativo, sem interferência do poder judiciário. Dos sete distritos criados, cinco deles abrangiam os vales dos rios Doce e Mucuri (municípios de Manhuaçu, Caratinga, São Domingos do Prata, Peçanha e Teófilo Otoni) e os outros dois eram os de Montes Claros e Uberaba.18

Foram nomeados engenheiros para as chefias dos distritos de terras e, para prestarem o serviço de medição e demarcação, foram credenciado engenheiros agrimensores, cujo memorial era a peça chave no processo de legitimação19. O ocupante do terreno

devoluto entrava com o requerimento de compra junto ao distrito de terra; era publicado edital, por 30 dias, e caso não houvesse contestação o chefe do distrito expedia a autorização para o agrimensor medir o terreno. A base legal era a mesma da Lei 601/1850, isto é, depois de confirmada a medição, o governo autorizava a venda das terras devolutas em hasta pública.

A autorização para o governo pagar os custo da legitimação da posse de lavradores reconhecidamente pobres visava favorecer a disseminação da pequena propriedade e desestimular o domínio de grandes extensões de terras, “condenado severamente pelos economistas como um fator de atraso” (CARVALHO, 1929, p. 43).

18 MINAS GERAIS. Mensagem do Presidente Francisco Silviano de Almeida Brandão, de 15 de julho de 1900. Belo Horizonte, I. Oficial, 1900, p. 41. Disponível em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2409/000041.html. Acessado em 12 de fevereiro de 2010

19 Os engenheiros que chefiavam os distritos de terras eram funcionários do governo do estado, mas os agrimensores não tinham vínculo funcional com o serviço público, ou seja, eram simplesmente credenciados e seus serviços eram pagos pelos requerentes.

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Se considerarmos o contexto de escassez da oferta de alimentos, particularmente grave na segunda metade da década de 1890 (MARTINS FILHO, 2009, p. 18-20), fica fácil entender o porque do governo mineiro visar o povoamento dos solos. O caminho mais óbvio para esse propósito era facilitar a regularização das posses dos lavradores, que se espalhavam às dezenas de milhares pelo interior do estado. Outro caminho foi o assentamento de trabalhadores estrangeiros ou nacionais em colônias agrícolas:

Continua em franca prosperidade os núcleos coloniais atualmente mantidos pelo Estado, com uma população de 2.882 indivíduos. Como é sabido, empenha o governo o máximo esforço na fixação dos imigrantes ao solo, oferecendo-lhes a proteção, os auxílios e garantia indispensáveis ao seu estabelecimento e conformo.

Brevemente ficarão concluídos os núcleos “Francisco Salles” e “Nova Baden”, contendo todos elementos para um progresso rápido e crescente.20

Existe, no entanto, um hiato entre o desejo e a concretização do estatuto jurídico. A relação entre a norma e sua efetividade histórica pode ser mais bem compreendida no contexto da sua aplicação na região dos rios Doce e Mucuri, onde se encontravam a maioria dos distritos de terra. No final do século XIX essa região se apresentava como a mais promissora zona de fronteira agrícola de Minas e, portanto, era natural que nela se concentrassem os fatos regulados pela legislação de terras. Essa região era coberta pela floresta tropical pluvial, diversificada e complexa, abundante de madeira de lei de alto valor comercial. Se na primeira década do século XX a ocupação era rarefeita, a realidade mudou completamente com a construção das ferrovias (1881-1942) e com a abertura da rodovia Rio-Bahia (1942-1944), além das outras rodovias e da multiplicação de estradas vicinais. Assim, podemos considerar a proposição de Staut Jr. (2009, p.

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159), de que o “direito é um produto histórico e, por isso, a compreensão das categorias e dos institutos jurídicos, bem como das suas implicações na realidade”, exige considerar as diferentes temporalidades e localidades.

A primeira onda de ocupação das terras devolutas da zona do Mucuri está ligada diretamente à expansão da pecuária bovina e à construção da Estrada de Ferro Bahia Minas (1881-1942), ligando o porto de Caravelas (BA) à cidade de Araçuaí, passando por Teófilo Otoni (1898), cidade polo da região. No vale do rio Doce o impulso inicial decorreu da expansão da cafeicultura da Zona da Mata, na direção em que foram construídos os dois ramais da Estrada de Ferro Leopoldina: Manhuaçu (1911) e Caratinga (1931); e da construção da Estrada de Ferro Vitória a Minas (1903-1942), que ligou o Porto de Vitória à cidade de Itabira, passando por Figueira (atual Governador Valadares), em 1910.

Nas três primeiras décadas do século XX predominou a frente de expansão demográfica21, caracterizada pela entrada em massa de posseiros, que ocupavam

pequenos lotes e se organizavam em comunidades de vizinhança (pequenos núcleos rurais formado por pessoas com laços de parentesco e compadrio). O fundamento dessas comunidades era a colaboração mútua entre os membros, principalmente na abertura das clareiras na floresta (aberta)22. Essa população era formada por lavradores pobres

proveniente de regiões históricas de Minas Gerais e da Zona da Mata, das colônias da região serrana do Espírito Santo, de imigrantes provenientes da Itália e Alemanha e, principalmente, migrantes da Região Nordeste, particularmente da Bahia. As ferrovias também atraíram os primeiros fazendeiros, comerciantes e madeireiros. A floresta era um indicativo de “terras boas” para as culturas de subsistência, funcionando como forte atrativo para os posseiros da frente de expansão. A lavoura de café, extração de madeira, pecuária e agricultura de subsistência constituíram-se a base da economia dos posseiros e fazendeiros, porém foram o café e a madeira que sustentaram as receitas das ferrovias (ESPINDOLA, 2000). Nessa fase a posse governava o processo de ocupação das terras.

21 Os conceitos de frente de expansão e frente pioneira são de Martins (1975. p. 47-50). 22 O processo de ocupação dos posseiros foi estudado por Castaldi (1957).

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Nas décadas de 1930-1950 o cenário modificou-se radicalmente com a entrada de grandes investimentos de capital na mineração, siderurgia, ferrovia, rodovia, energia e saneamento. As duas grandes siderúrgicas com tecnologia de carvão vegetal (Belgo-Mineira e ACESITA) desencadearam intensa atividade carvoeira; a Companhia Vale do Rio Doce (atual Vale S.A.) iniciou a reforma da Estrada de Ferro Vitória a Minas para o transporte do minério de ferro em larga escala. Junto com a reforma da ferrovia, como resultado dos Acordos de Washington (1942), o governo brasileiro e os EUA financiam o plano de saneamento e erradicação da malária no vale do rio Doce, por meio das ações do Serviço Especial de Saúde Pública – SESP (ESPINDOLA, 2008).

A instalação da indústria de extração e beneficiamento da mica (malacacheta) e da indústria da madeira favoreceu a aberturas de estradas vicinais e, assim, possibilitou o espraiamento da ocupação demográfica. A entrada da infra-estrutura (ferrovias e rodovias) e dos grandes investimentos de capital, somados ao adensamento demográfico, marcaram a transição de fronteira de ocupação para a de zona de penetração capitalista (frente pioneira). Essa mudança provocou o deslocamento dos posseiros e da agricultura, substituídos por especuladores de terra, fazendeiros, companhias siderúrgicas, beneficiadores da mica, madeireiros, agentes das grandes companhias, industriais, comerciantes, funcionários públicos graduados e profissionais liberais, que se lançaram na corrida pela apropriação de terras devolutas, inclusive daquelas ocupadas por posseiros.

A valorização mercantil das terras aumentou a disputada pelas posses, com nítida vantagem para aqueles que podiam se utilizar da influência política (contatos com deputados, prefeitos, funcionários de alto escalão, secretário de estado e governador), do favorecimento de agentes da administração pública (agrimensores, chefes de distritos de terras, fiscais de terras e funcionários das coletorias da fazenda estadual), da aliança com o poder econômico (Belgo-Mineira, ACESITA e CVRD), além de contarem com advogados contratados. Não podemos descartar a capacidade de mobilizar força armada particular e fazer uso da violência para alcançar seus objetivos (OLAVO, 1988, p.25).

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provocado por fatores conjunturais, tais como as altas do preço do café e do gado zebu, na década de 1950. A pecuária bovina tem um papel conhecido na ocupação e desbravamento de grande parte do território brasileiro, porém na zona do rio Doce a sua expansão está ligada a introdução da rede de transporte. A expansão inicialmente se deu no vale do rio Mucuri e, progressivamente, se estendeu pelo vale do rio Doce, nas décadas de 1930 e 1940. Diferente da tendência dominante na história econômica brasileira23, nos vales dos rios Mucuri e Doce a pecuária bovina disputou com a

agricultura o predomínio sobre as terras, com superioridade da primeira. No geral a pecuária extensiva de corte dominou a paisagem, impondo-se nas áreas potenciais para a agricultura ou nas áreas de onde expulsou a atividade agrícola.

Essa segunda fase (1930-1950), no campo sociojurídico, marcou o declínio da posse e, ao mesmo tempo, o predomínio do direito de propriedade privada, apesar do amparo constitucional/legal. Essa mudança radical pode ser explicada pela análise da legislação de terra de Minas Gerais, pelo modo como essa legislação foi operada, pelo novo contexto socioeconômico e pela posição vantajosa de determinados grupos sociais, frente ao aparato administrativo e jurídico. Interessam-nos aqui os aspectos legais que contribuíram para a posse sucumbir e, consequentemente, que favoreceram a expulsão do posseiro de suas terras.

A legislação mineira, em pontos fundamentais, contrariou o preceito constitucional. O princípio legal definidor da condição de posseiro era o critério da “morada habitual”, preceito garantido por todas as constituições republicanas do período entre 1891 e 1953. Além disso, o direito constitucional também assegurou ao posseiro a preferência para a aquisição de terras devolutas. No âmbito estadual, as constituições estabeleceram limites para a concessão ou alienação de terras públicas, exigindo a apreciação do poder legislativo quando a área ultrapassasse duzentos e cinqüenta hectares. Entretanto, ao longo do tempo, a legislação mineira introduziu novos critérios

23 A pecuária bovina foi a base da ocupação do território, no qual predominava os biomas de campo, cerrado ou caatinga, ou seja, o Sul, Centro Oeste e Nordeste brasileiros. Nas regiões de agricultura, anteriormente cobertas pela floresta tropical (Mata Atlântica), a pecuária bovina se desenvolveu como uma segunda ocupação das terras, depois destas se tornarem “cansadas” e não “servirem” mais para as culturas agrícolas.

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e alargou seu entendimento sobre condição de posseiro, fragilizando dessa forma o preceito constitucional.

Uma mudança significativa ocorreu com a cobrança da taxa de ocupação24, a

partir da Lei 1144, de 05 de setembro de 1930. Essa cobrança enquadrou o posseiro e o apossamento em parâmetros legais, isto é, o Estado reconhecia o direito possessório e a legitimidade da ocupação, por terceiros, das terras que lhe pertenciam, independente de como houvesse ocorrido o ato possessório. Essa lei criou uma situação jurídica não prevista constitucionalmente, pois a condição de posseiro era dada pela ocupação mansa e pacífica, com moradia e cultivo da terra. Os depoimentos de testemunhas, ou as vistorias in loco, que eram capazes de constatar a moradia habitual, podiam ser substituídos pela apresentação de um recibo de pagamento da taxa de ocupação25. Essa

lei acabou por abrir uma brecha para que se comprovasse o direito de posse, mesmo que não se preenchesse de fato o requisito da morada habitual, exigido pelo direito constitucional.

A venda de terras devolutas constituía-se numa das fontes de receita para a fazenda pública, porém novas ocupações se sucediam de forma crescente e a quantidade de terrenos devolutos ocupados como posse era bem maior do que a porção legitimada por venda. Todos os ocupantes de terra, que não possuíam título hábil, ficaram sujeitos ao pagamento dessa taxa de ocupação, cuja arrecadação deveria contribuir para o aumento da receita do estado. O art. 2º da Lei 1144/1930 estabeleceu como base para a cobrança da taxa de ocupação o imposto territorial, instituído pela Lei 271, de 1º de setembro de 189926. O resultado para a receita estadual se revelou frustrante, como no

24 O ocupante de terreno devoluto tinha a obrigação de efetuar o pagamento anual de 1,5% sobre o valor do mesmo.

25 Pelo art. 1º da Lei 1.144, de 5 de setembro de 1930, “Os ocupantes de terras públicas que houverem pagos durante dez anos o imposto de ocupação, legitimarão as suas posses mediante o pagamento do custo da medição, desde que sejam titulares de direitos preferenciais, nos termos do regulamento atual. Segundo Garcia (1958, p. 180), o termo “imposto de ocupação” não é correto, porque foi criado, na verdade, uma taxa, como “posteriormente assim foi reconhecida”.

26 A criação do imposto territorial visou aumentar as rendas do Estado num contexto de crise das exportações de café e queda da arrecadação do imposto de exportação, porém essa expectativa foi frustrada, porque a renda arrecadada “revelou-se de início excessivamente modesta e manteve-se depois mais ou menos estacionária” (CARVALHO, 1929, p. 32.).

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início do século, porém os efeitos sociojurídicos foram amplamente significativos. A Lei 1144/1930 abriu a possibilidade de se comprovar a posse mediante a apresentação dos recibos de pagamento da taxa de ocupação. Com essa abertura, forasteiros pagaram a taxa de ocupação, conforme exigido, e usaram os recibos fornecidos pela coletoria do Estado como comprovante de posse (ESPINDOLA, 2010). A legislação que em tese privilegiava o posseiro, na pratica acabou favorecendo indivíduos que se encontravam em melhor posição de poder na estrutura social. Ao permitir a comprovação da condição de posseiro, mediante a apresentação de recibos da coletoria estadual, retroativos há dez anos, a taxa de ocupação que visava aumentar a renda do estado terminou por facilitar a prática de grilagem. Isso porque a taxa de ocupação tornou-se prova de posse e suficiente para garantir o direito à compra preferencial, estabelecido pela Lei n. 550, de 20 de dezembro de 1949. Se a princípio poderia parecer uma garantia para o lavrador pobre com morada habitual, na verdade, se revelou uma das principais causas para que esse perdesse sua terra.

A morada habitual passou para segundo plano, ganhando destaque os critérios da cultura efetiva ou criação de gado vacum e da comprovação do pagamento da taxa de ocupação. A Lei 550/1949 estabeleceu um novo estatuto para as terras devolutas, mesmo conservando os princípios básicos da Lei de Terra de 1850. Para Paulo Garcia (1958, p. 182) vários dispositivos dessa lei eram “evidentemente inconvenientes e mesmo inconstitucionais”, particularmente porque fragilizava o direito de posse frente ao de propriedade. A nova lei contrariava o parágrafo 1º do art.156 da Constituição de 1946, que assegurava preferência ao posseiro de terra devoluta, que nela possuía morada habitual, cuja área fosse de até 25 hectares. Também não seguiu o princípio do caput do artigo acima, que dizia ser “preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados”. O legislador não restringiu a área aos 25 hectares constitucionais e, ao mesmo tempo, aceitou benfeitorias em terras devolutas como comprovação da morada habitual (art. 26 da Lei 550/1949). Assim, o direito à compra preferencial foi estendido para abarcar interesses contrários aos dos posseiros que de fato habitavam a terra.

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O art. 26 da Lei Mineira encerra um verdadeiro absurdo, que tem servido de fonte a escândalos. Pelo referido artigo, os que possuírem benfeitorias em terras devolutas, têm direito à compra preferencial, embora não tenha morada habitual nas terras.

Diante disso qualquer cidadão rico manda construir uma casa modesta num terreno devoluto e faz ali umas benfeitorias. E esse cidadão, que na maioria das vezes, nunca foi ao local, nem sequer a passeio, adquire com isso o direito de compra por preferência. (GARCIA, 1958, p. 64).

Outro dispositivo que fragilizou o direito de posse refere-se à hasta pública. O art. 29, da referida lei, possibilitou levar para hasta pública a terra cuja compra não foi requerida pelo verdadeiro ocupante com direito preferencial. O chefe do distrito de terra mandava publicar edital por 60 dias, para que o ocupante manifestasse o direito de compra preferencial. A lei mandava afixar os editais na sede do distrito de terra, no cartório de paz e no fórum, porém isso nunca era feito (GARCIA, 1958, p. 65). Eles eram publicados no órgão oficial e na imprensa local, quando existia, porém não havia a obrigação legal de notificar o interessado. Como o posseiro não ficava sabendo que suas terras foram para hasta pública, essas acabavam compradas por terceiros, na mais completa legalidade, pois se presumia que o “posseiro não quis comprar”. Os verdadeiros posseiros viviam isolados na zona rural e na quase totalidade eram analfabetos; só tomavam conhecimento do fato quando chegavam os oficiais de justiça com a força policial para os despejarem.

A autorização para o governo vender as terras fora da hasta pública era uma distorção da Lei de Terras, que foi perpetuada na legislação mineira. Essa abertura permitia privilegiar interesses pessoais e familiares, porém isso foi corrigido pela Lei 550/1949, ao instituir o direito preferencial à compra para os que detinham a posse. Desta forma, o governo somente poderia vender terras devolutas fora da hasta pública

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para aquele que tinha o direito possessório comprovado. Entretanto, a nova lei estabeleceu uma interpretação mais larga do preceito contido na legislação anterior, ao privilegiar a comprovação do cultivo da quinta parte dos terrenos ou de criação de três cabeças de gado vacum por alqueire geométrico, independente de existir a efetivamente morada habitual no terreno. Essa comprovação era estabelecida pelo agrimensor, que atestava no memorial de mediação e demarcação a existência de cultura ou criação.

No lugar de discriminar a residência no lote, os memoriais passaram a considerar a simples presença de residentes, além de reconhecer as benfeitorias como comprovação do critério da morada habitual. A associação desse mecanismo com o pagamento da taxa de ocupação (Lei 1.144/1930) abriu brecha na legislação e, assim, permitiu ao adventício com posição de poder na estrutura social se tornar proprietário de terra. Do ponto de vista jurídico, o direito de propriedade funcionou do lado do adventício ao prevalecer sobre o direito de posse, invalidando a garantia constitucional concedida aos “nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados”, com morada habitual em terras devolutas. O posseiro passava da condição de ocupante primário da terra para a categoria de invasor de propriedade.

Já vimos um caso em que abastado cidadão, grande fazendeiro, industrial de méritos e comerciante rico e conceituado, usando das lacunas da lei e da fraqueza ainda maior de certos funcionários do serviço de terras, conseguiu comprar uma fazenda que, de tempos imemoriais, vinha sendo ocupada por mais de trinta famílias, que ali ganhavam o pão de cada dia e contribuíam para a grandeza e progresso do lugar.

No título que concederam a esse cidadão, ficou até consignado que o comprador residia e tinha morada habitual no imóvel, quando ele, em verdade, jamais passara uma noite lá. (GARCIA, 1958, p. 66).

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A partir da exigência do pagamento da taxa de ocupação e do estabelecimento do direito preferencial de compra, a norma condicionou o processo de passagem da posse para a propriedade privada das terras, por meio da venda. Na prática, o laudo do agrimensor responsável pela vistoria, associado aos recibos de pagamento da taxa de ocupação comprovam direito preferencial. A morada habitual era um estatuto existente desde o regime das sesmarias, que foi consagrado pelas constituições federais republicanas. Esse estatuto foi colocado em segundo plano, apesar de o legislador mineiro seguir os critérios da Lei de Terras e reconhecer que a posse gerava direito.

No novo contexto socioeconômico e jurídico, as terras devolutas se tornaram um bem de mercado, antes mesmo de serem convertidas em propriedade privada. Os particulares passaram a negociar o “direito de posse”, ou melhor, o direito à compra preferencial. Os negócios entre particulares eram registrados em cartório e os documentos de compra e venda utilizados para se exercer o direito preferencial, sem que se tivesse de fato a morada habitual. Na verdade, a lei não reconhecia esses documentos de compra e venda do direito de posse, porém o comprador pagava retroativamente, por 10 anos, a taxa de ocupação e adquiria o direito preferencial, não por ter comprado a posse, mas por assumir a condição de posseiro. A mecânica legal para a legitimação de terras permitiu excluir o posseiro lavrador do terreno efetivamente ocupado e, ao mesmo tempo, possibilitou que “gente que nunca viu um pé de milho” se torne proprietária de “grandes tratos de terras devolutas”, ou seja, através das lacunas da lei as pequenas glebas de terras cederam lugar aos latifúndios (GARCIA, 1958, p. 65).

O direito de posse sucumbe diante do direito de propriedade porque a legislação mineira atuou para forçar a legitimação das ocupações de terras devolutas existentes no Estado de Minas Gerais. O legislador estabeleceu uma série de condições que alargaram a conceituação do que era o posseiro e, ao mesmo tempo, fragilizou a condição da morada habitual. As restrições existentes e a complexidade legal funcionaram apenas para a massa de lavradores pobres, pois os que possuíam recursos e acesso aos serviços de advogados poderiam contornar essas limitações, transformando-as em fatores favoráveis aos seus interesses.

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Para retirar os posseiros que ocupavam de fato a terra, depois de obter o título de propriedade, o fazendeiro solicitava à justiça a reintegração de posse, quando na verdade tratava-se de uma emissão de posse. Mesmo tendo caído os artigos 94 e 99 da Lei 171, de 20 de novembro de 1936, que estabeleciam o prazo de 60 dias para o Registro Torrens (Lei 214, de 30 de outubro de 1937), sem que a Lei 550/1949 o restabelecesse, em casos especialmente controversos, ocorria a imediata solicitação do Registro Torrens, para que não houvesse contestação do título de propriedade concedido pelo governador ou, caso ocorresse, não fosse bem sucedida na justiça (ESPINDOLA et alli., 2010, p. 49).

O fato inconstitucional se consumou com a Lei nº 936, de 05 de julho de 1953, cujo artigo 14 autorizou o executivo a alienar áreas superiores a 250 hectares, independente da Assembléia Legislativa, como determinava claramente o parágrafo 2º do artigo 119 da Constituição Estadual. Em 24 de abril de 1957 foi dado um parecer do Departamento Jurídico da Secretaria de Estado da Agricultura, que declarou ser essa lei inconstitucional. Contudo, ela continuou em vigor com a sanção do governador e sem que o poder judiciário declarasse sua inconstitucionalidade.

A imposição da compra como modo de acesso à terra, independente de a Constituição resguardar o direito de posse dos lavradores pobres, na verdade, restringiu o direito apenas àqueles com condições econômicas, alfabetizados, capazes de contratar os serviços de advogados e com relações sociais e políticas com ocupantes de órgãos governamentais e legislativos. A lei mineira garantia o direito da posse pura e simples, porém prejudicava esse direito sempre que acrescentava novas condições e exigências. Assim, criaram-se brechas que favoreceram a formação de grandes latifúndios nos vales dos rios Doce e Mucuri. Considerando a entrada dos grandes investimentos de capital e o processo de valorização das terras florestadas, associados à falta de uma política agrária nacional, podemos concluir que a legislação acabou restringindo o acesso à terra e, ao mesmo tempo, favoreceu os mecanismos socioeconômicos de concentração da terra, bloqueando a formação da pequena propriedade.

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posses das terras devolutas, mas acabou favorecendo o apossamento e legitimação de grandes extensões de propriedade por terceiros. Em suma, os meios legais criados tinham a finalidade de proteger, criar e beneficiar os posseiros, aqueles que de fato faziam a terra produzir, porém favoreceram o mecanismo da grilagem e, consequentemente, impediram a formação de uma estrutura agrária democrática.

Fontes:

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Referências

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