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Feminicídio - Mal-estar na tradução

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Revista Brasileira de Tradutores

Nº. 17, Ano 2008

Nícia Adan Bonatti Faculdades Integradas Metropolitanas de Campinas niciabonatti@uol.com.br

Mal-estar na tradução

RESUMO

Esse trabalho trata de uma experiência tradutória permeada pelo mal-estar que o teor do livro Le livre noir de la condition des femmes provoca. Dentre os mais de cinqüenta artigos que com-põem a obra de Christine Ockrent, relatando as mazelas a que mu-lheres são submetidas no mundo todo, um deles é tomado para esboçar a possibilidade de “adoecer de tradução” - e como proce-der eticamente para recuperar-se desse acontecimento. Esse traba-lho requer um processo ativo de engajamento que envolve um conflito no processo de construção do significado, especialmente quando a língua não nos fornece palavras que definam com preci-são o acontecimento mencionado, e precise ser forçada, levando também com ela a língua do tradutor. Outra forma de dizer: como superar a necessidade de usar um cruel neologismo.

Palavras-Chave: Tradução; violência; feminicídio; ética; traduautor.

ABSTRACT

This work draws on a translation experience pervaded by the un-easiness caused by the content of the book Le livre noir de la con-dition des femmes by Christine Ockrent. Among the more than 50 articles narrating the suffering imposed on women worldwide - a true scanning of evil - there is one about the possibility of "getting sick with translation" - and how to act so as to recover from this condition. This work requires an active process of engagement, involving a struggle in the process of meaning construction, spe-cially when the language give no words that can describe precisely the mentioned condition, and needs to be forced, taking along the translator’s language. In other words, the article deals with the question of overcoming the necessity of using a cruel neologism. Keywords: Translation; violence; feminicide; ethics; translauthor. Anhanguera Educacional S.A.

Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP. 13.278-181

rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação

Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE

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O capítulo analisado neste trabalho, “Ciudad Juárez, capital do feminicídio”, integra o Livro Negro da Condição das Mulheres, organizado por Christine Ockrent, a ser publicado proximamente pela Bertrand Brasil e cuja tradução assino. Trata-se de um alentado vo-lume de 777 páginas que, por bem mais de um motivo, coloca-se como uma questão de mal-estar para quem traduz. A obra busca ser, como se aponta na Introdução, “um a-fresco do tempo presente” (p. 11) que provoque uma incitação ao rompimento do si-lêncio - pois este é conivente com a perpetuação das violências contra a mulher - e que suscite um engajamento social no combate às práticas discriminatórias que desde sem-pre relegaram o chamado sexo frágil à condição de subalternidade.

Pelas mãos de especialistas, analistas internacionais, historiadores, demógra-fos, sociólogos, médicos, jornalistas, etc., descrevem-se nesse livro - sempre com base em dados oficiais, tais como relatórios da ONU, da Unesco, do CEDAW, da OMS, do Unicef, etc., que podem atestar sua veracidade - a gama inesgotável de calamidades que podem atingir as mulheres por toda a superfície do globo. Fatos de que se podia suspeitar, entrever, ouvir dizer - sem que colassem inexoravelmente nas sensações do cotidiano -, mas que quando colocados ordenadamente, com referências confiáveis, nas páginas reunidas de um só volume, analisados em sua profunda crueza e sempre atravessados pela contingência de ter nascido mulher, trazem calafrios de ordem ética já no ato da leitura e, com muito mais forte razão, um estado de inquietação e de afli-ção incontornáveis no contato mais íntimo e demorado provocado pelo ato de traduzir.

Foi assim que, aos poucos, um indescritível mal-estar apoderou-se de mim a cada página trabalhada, quase como se precisasse enxugar o sangue dos dedos que to-cavam o teclado do computador e manuseavam o lento virar das folhas. Em todos os temas abordados, há sempre o sofrimento: de ser pobre, mal-alimentada, iletrada, ex-plorada, atrelada à tradição, à ignorância, e padecer a cada instante da falta de legisla-ção que permitiria a mudança dessas condições. Para uma abordagem mais organiza-da, a obra divide-se, a partir de cinco “palavras de luta”, no dizer da organizadora, em correspondentes cinco partes que tomam seus nomes: Segurança, Integridade, Liber-dade, Dignidade e IgualLiber-dade, perfazendo um roteiro que deveria guiar as ações de to-dos aqueles que não compactuam com o comportamento discriminatório dirigido às mulheres. No amplo leque das injustiças, são examinadas, por exemplo, a excisão pra-ticada contra bebês-meninas e a infibulação contra garotas; os estupros singulares em várias sociedades ou então aqueles em massa, usados como arma de guerra; a pena de morte por lapidação no Irã; as imolações; o tráfico sexual; os abortos seletivos (para

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que só nasçam meninos) e o infanticídio, no continente asiático e na Índia – cujas con-seqüências se refletem, já em nossos dias, nos 90 milhões de “mulheres faltantes” na Ásia, num perigoso desequilíbrio demográfico; os casamentos forçados e precoces; as violências domésticas, até mesmo na Europa, incluindo-se aí a Finlândia, que até então eu considerava um paraíso social; os 5 000 assassinatos de honra mundo afora; o tra-tamento contra a Aids, em alguns países, oferecido só aos homens; a exploração da mão-de-obra infantil feminina; a exclusão do acesso das garotas à educação; a prostitu-ição de meninas e o turismo sexual; os massacres em Ruanda; a Intifada e os abusos sexuais dentro das famílias palestinas; as execuções arbitrárias no Paquistão; a morta-lidade materna por falta de cuidados primários; as sevícias físicas, sexuais e psicológi-cas exercidas no seio da família, como aquelas ligadas ao dote e ao estupro conjugal, além de muitos outros aspectos das violências praticadas contra as mulheres. Estas vio-lências, que antigamente eram atribuídas a especificidades históricas, econômicas e re-ligiosas, são doravante definidas como universais e permanentes, o que exige sua a-preensão na escala da comunidade internacional e da ONU. Esta organização se viu na contingência não só de reconhecer as vulnerabilidades próprias das mulheres perten-centes a minorias - as que vivem em zonas rurais pobres ou zonas isoladas; as idosas e deslocadas; as comunidades autóctones, refugiadas e migrantes; as mulheres que se encontram em detenção –, mas também de elaborar uma definição de violência sexista, publicada em dezembro de 1993:

Os termos ‘violência para com as mulheres’ designam todos os atos de violência dirigidas contra o sexo feminino, que causam ou que possam causar prejuízo ou sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos às mulheres, incluindo a ameaça de tais casos e a restrição ou a privação arbitrária de liberdade, seja na vida pública, seja na vida privada.

Essa definição, adicionada ao que foi publicado em junho do mesmo ano pela Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, ocorrida em Viena, contribuiu para estabelecer o catálogo das violências perpetradas em todo o mundo. Juntas, as declara-ções apontavam a inquietação para com as dificuldades que as mulheres tinham para assegurar a igualdade jurídica, social, política e econômica em suas sociedades. O tema “violência contra as mulheres”, de importância visceral, foi tomado pela organização do Livro Negro como uma bandeira que, desfraldada a qualquer custo, deve incitar à re-flexão e ao engajamento, na busca de uma mudança da condição feminina:

Este livro não é um caderno de condolências mas, ao contrário, a expressão de uma determinação. Em nosso caminho, cruzamos com inúmeras mulheres e ho-mens que, por sua lucidez, coragem e espírito combativo, contribuem, a nosso ver, para melhorar o destino do mundo, mudando também aquele das mulheres. Suas histórias individuais e a narrativa de seus engajamentos são relatadas aqui como incitações a recusar qualquer fatalidade. Expedição às profundezas, vales

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perdidos, zonas de sombra de nossas sociedades contemporâneas, essa viagem em volta ao mundo poderia ser, para todas e todos, uma incitação ao rompimen-to do silêncio. De alguma forma, um engajamenrompimen-to. (p. 14-15).

Ora, traduzir é engajar-se, na medida em que dissemina as idéias contidas no texto de partida para leitores que não conhecem, ou não conhecem suficientemente, a língua na qual ele foi primeiramente escrito. Um tradutor digno deste nome não traba-lha apenas para ganhar seu pão: ele tem um crivo ético para decidir se aquele texto que está diante de seus olhos - se o teor daquilo que veicula - vale a pena ser traduzido, se ele quer ter seu nome agregado àquela obra, se ele compactua intelectualmente com o conteúdo daquela escrita. Foi por considerar importante a difusão das reflexões conti-das no Livro Negro que me lancei nessa empreitada de tradução-engajamento, não só contra as opressões praticadas contra as mulheres, mas contra a violência tout court, cometida contra qualquer criatura. E é também uma das razões pelas quais decidi es-crever aqui sobre essa tradução.

Dentre tantas desgraças abordadas no livro, escolhi discorrer neste trabalho sobre os acontecimentos de Ciudad Juárez, no México: a mesma cidade que criou em 1942 o coquetel Marguerita, o que poderia invocar associações simpáticas, conhece há alguns anos os terríveis assassinatos múltiplos de mulheres. Eles atingem marcas tão espantosas que demandaram a cunhagem de uma nova palavra para designá-los, e que me cumpre agora repetir em minha língua materna, ampliando-a com este indesejável neologismo: “feminicídio”.

Escrito por Marc Fernandez e Jean-Christophe Rampal, o artigo que aqui nos concerne encontra expansão no webdocumentário www.lacitedesmortes.net, que entre outros detalhes retrata a cidade, as personagens envolvidas nos dois pólos dos aconte-cimentos - de um lado, as jovens desaparecidas e aqueles que as buscam, clamando por justiça; do outro, os que se omitem e ocultam provas -, a escandalosa cartografia dos assassinatos, as entrevistas com testemunhas ou familiares das vítimas, as fichas dos principais protagonistas, os fragmentos do documentário difundido no Canal+, basea-do no livro de autoria da dupla, La ville que tue les femmes [A cidade que mata as mu-lheres], publicado por Hachette Littératures, resultado de dois anos de pesquisas e de três viagens ao México para estabelecer o retrato da tragédia.

Ciudad Juárez, cidade situada na linha fronteiriça com os Estados Unidos e separada deste país pelo Rio Grande, na frente de El Paso, padece de todas as mazelas de dois países em flagrante contraste. Do lado de lá, o primeiro mundo, rico, cheio de promessas e oportunidades, usando com eficiência e abundância a água do rio que os

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separa. Do lado de cá, pobreza, cultura machista, distribuição precária e praticamente sem tratamento de pequena parcela da água do mesmo rio. Também há mão-de-obra barata que faz funcionar as grandes maquiladoras (empresas montadoras de eletroele-trônicos e automotivos que importam peças e componentes e posteriormente exportam com grandes lucros os produtos prontos), subemprego, afluxo de aspirantes à travessia para o Eldorado americano, prostitutas, tráfico de drogas dirigido por um dos maiores cartéis da América Latina - em suma, o caldeirão infernal com todos os ingredientes para a proliferação da corrupção e da impunidade. Para lá convergem, seja em busca da travessia, seja com o objetivo de encontrar trabalho, fluxos contínuos de gente que engrossa a periferia pobre da cidade, alimentando assim o quadro da desigualdade. Dentre os desvalidos, uma enorme quantidade de jovens mulheres, no mais das vezes sem qualificação e que em outros cantos não encontra oportunidade de trabalho. No entanto, parte significativa delas acaba por nesta cidade encontrar a morte.

O inventário oficial dos assassinatos começa em 1993, quando uma jovem de dezesseis anos, grávida, é encontrada com sinais de violência sexual, equimoses e es-trangulada com um cabo elétrico. Desde então, em média, duas jovens são assim en-contradas por mês. O perfil é sempre o mesmo: garota morena, bonita, cabelos longos, estudante, operária de uma maquiladora, balconista, empregada doméstica ou vendedo-ra – a descrição equivale a uma sentença de morte. Raptadas - muitas vezes em plena luz do dia e até mesmo no centro da cidade, sem que ninguém ouse esboçar uma rea-ção, num gesto de autopreservação cuja necessidade é confirmada cotidianamente -, estupradas, mutiladas, torturadas, asfixiadas, mordidas, baleadas, feridas a golpes de arma branca ou instrumentos contundentes, com crânios esfacelados, corpos calcina-dos, desfiguradas pela lechada, uma mistura de cal e ácido, são desovadas num terreno baldio e seus assassinos jamais são localizados. O relatório da Anistia Internacional, México, mortes intoleráveis, dez anos de desaparecimentos e de assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez e Chihauha, publicado em agosto de 20031, mostra que metade das vítimas

tem entre 13 e 22 anos.

A cada vez que desaparecem, seus familiares, angustiados, distribuem fotos em locais comerciais e os colam nos postes da cidade, mas em vão. Alguns dias depois, o corpo aparece, sempre com marcas de sevícias praticadas com requintes de perversi-dade: mamilos arrancados, seios mutilados, genitália retalhada. Os números não ces-sam de crescer, mas inexplicavelmente a polícia nunca encontra os culpados, o que

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consolida a convicção de que ela faz parte do esquema. Vestígios não são coletados, o DNA do esperma ou do sangue não é examinado, impressões digitais não são recolhi-das ou, caso o sejam, não são compararecolhi-das, marcas sobre o cadáver semelhantes às dei-xadas por algemas são ignoradas, e provas contundentes desaparecem dos inquéritos: a paralisia da polícia é profundamente conivente com os matadores. De vez em quan-do, é eleito um bode expiatório: homens são presos e obrigados a confessar sob tortura. Muitos dos indiciados encontram a morte na prisão e mesmo seus advogados ou os familiares destes são executados à luz do dia.

As interpretações que a população efetua a respeito dos crimes são as mais va-riadas possíveis: haveria o tráfico de órgãos, seria a celebração de missas negras ou do narco-satanismo, as mortes seriam filmadas e comercializadas (snuff movies), as garotas seriam assassinadas no decorrer de orgias promovidas por notáveis da cidade, haveria um serial killer solto pelas ruas, etc. Os autores do livro, contudo, não apreendem os homicídios simplesmente assim e vêem neles um complexo fenômeno de sociedade cu-jos fatores são múltiplos. Sem o contexto político-social em que ele grassa epidemia, não seria possível imaginar um fenômeno criminoso de tal amplitude e que se propa-gasse de modo tão incontrolável. Para Sergio Dante, um dos advogados da defesa de bodes expiatórios - que depois foi sumariamente executado -, uma hipótese prevalece: “As vítimas são os danos colaterais do tráfico de drogas” (p. 144); ela é corroborada pe-lo chefe da Unidade Federal de Luta contra o Crime Organizado, J. L. Santiago Vas-concelos, para quem os líderes do cartel matam as mulheres para celebrar uma execu-ção ou uma passagem de drogas bem-sucedida. Seriam as spree murders, as mortes para a diversão. (idem)

Todos esses crimes precisaram de uma nova nomenclatura, que foi empresta-da de um conceito teórico elaborado nos Estados Unidos em 1976 (p. 138) - feminicídio. Ele é definido como “o assassinato misógino de mulheres efetuado por homens. Um fenômeno social ligado ao sistema patriarcal em que as mulheres são predispostas a se-rem mortas, seja porque são mulheres, seja porque não o são da boa maneira.”2 (idem)

A deputada federal de esquerda Marcela Lagarde, antropóloga de formação e presidente da Comissão Especial Parlamentar de acompanhamento das investigações sobre os assassinatos de Ciudad Juárez, indica que vários fatores são necessários para a configuração do feminicídio: “condições sociais, políticas, econômicas e jurídicas parti-culares de opressão contra as mulheres e que podem chegar até o assassinato”. (idem,

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p. 139) Isso afastaria do número recenseado todos os crimes que, inspirando-se nos ca-sos verdadeiros exaustivamente divulgados pela mídia, copiam o modus operandi para desfazer-se de vítimas de violências domésticas - cuja taxa é alarmante nesse país: uma em cada duas pessoas da cidade já foi vítima de maus-tratos, e cerca de trezentas mil, numa população de 1,5 milhão de habitantes, foram agredidas no decorrer dos últimos doze meses - amantes dispensadas ou inconvenientes, esposas indesejadas e desafetos femininos em geral, naquilo que os americanos chamam de copycat, um fenômeno de imitação.

Muitos segmentos da sociedade já se mobilizaram para acender os holofotes sobre os assassinatos de Ciudad Juárez, incluindo-se aí aqueles de Hollywood, numa co-produção com a indústria cinematográfica inglesa. Assim, em 2007 foi lançado o filme Bordertown [A Cidade do Silêncio], dirigido por Gregory Nava e produzido por ele, Simon Fields e Jennifer Lopes, que também é a estrela principal, no papel de uma repórter investigativa. Ela contracena com Antonio Banderas, que faz o papel de seu colega de profissão. Por este filme, receberam um prêmio especial da Anistia Interna-cional, devido ao alcance de divulgação mundial daquilo que se passa na Cidade-fronteira. Contudo, também precisaram enfrentar percalços: foram todos ameaçados de morte e os atores principais precisaram filmar escondidos, em outras locações, en-quanto seus dublês pretensamente filmavam cenas anódinas em Ciudad Juárez. O es-tratagema, porém, foi percebido e represálias foram tomadas. Barbara Martinez Jitner3,

produtora executiva, revelou que um assistente da produção foi detido pela polícia, espancado e obrigado a revelar onde a equipe estava filmando. Em seguida, a equipe foi abordada e intimidada. Barbara teve seu quarto do hotel invadido, um caminhão de equipamentos sofreu vandalismo e, apesar da produção ter postado guarda-costas ar-mados durante as filmagens, as câmeras acabaram por ser roubadas, o que pôs um fim às tomadas naquela cidade. Os interessados em calar também os cineastas, contudo, não obtiveram êxito, e o filme foi um dos concorrentes ao Urso de Ouro do Festival de Cinema de Berlim, local em que ocorreu a homenagem prestada pela Anistia Interna-cional.

Todavia, para os analistas mais diretamente envolvidos no estudo do fenôme-no de Ciudad Juárez, a solução para os crimes precisa ser global e deverá investigar todos os fatores que promoveram seu aparecimento. É preciso buscar respostas sociais

2 Feminicidio sexual serial en Ciudad Juárez: 1993-2001, efetuado pela socióloga Julia Monárrez Fragoso, Debate Feminista,

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e econômicas, fazer investigações transparentes, adotar soluções jurídicas acima de qualquer suspeita e promover a certeza de que não haverá impunidade. Depois de tra-duzir boa parte do livro e de me deparar com a análise de várias facetas da violência, eu acrescentaria: é preciso também educar, desde a mais tenra infância, meninos e me-ninas para que seja estimulada a igualdade entre os sexos; é necessário promover o a-cesso à educação e à qualificação da mão-de-obra, para que toda uma camada da po-pulação saia da faixa de pobreza e tenha a possibilidade de ingresso num mercado de trabalho competitivo, o que afastaria um segmento considerável da população do submundo, estimulando assim uma conduta ética de vida.

Essas propostas, todavia, não extinguem a indisposição que me assola. Preciso traduzir o livro em doses homeopáticas - para desespero de meu editor, que tem pra-zos a cumprir -, pois não consigo desfazer-me da desagradável e pegajosa sensação “de folhas molhadas coladas nas costas”, como li certa vez num livro de ficção científica4.

O atroz impacto que a atividade da tradução me força a experimentar de forma lenta - pois é preciso refletir sobre cada frase, reescrevê-la em minha língua materna, escolher os adjetivos que considero mais adequados para retratar aquele cenário de sangue e desamparo, reexaminar se a oração se mantém gramaticalmente, se permanece unida ao resto do parágrafo, se não há ambigüidades, e depois tudo retomado ainda uma vez, quando da revisão para a entrega ao editor, num processo de quase tortura - e con-tinuada, dado que o assunto das cabalísticas 777 páginas é, no fundo, o mesmo: a infini-ta capacidade que o ser humano pode ter para a prática do mal, e a impotência do in-divíduo que é vítima dessas ações. A empatia que experimento em relação às mulhe-res, a todas elas, mas aqui de forma especial com as desvalidas de Ciudad Juárez - sem, é claro, negligenciar os sentimentos dos homens que as querem bem -, sejam elas as ví-timas, sejam as avós, as mães ou as irmãs que choram sua ausência, e a raiva impotente que me toma devido à inexistência de medidas eficazes e imediatas que ponham um fim à barbárie me conduzem a um estado de melancolia, de nó na garganta - e então preciso parar novamente meu trabalho, sob pena de adoecer.

A medida, porém, não alcança resultados significativos, não me impede de pensar sobre os fatos. Nem a imprensa permite isso: em 19 de maio de 2008, a Folha publica a notícia de uma onda de assassinatos que vitimou policiais do alto escalão e levou à demissão do chefe da polícia local. Pouco antes, os cartéis de narcotráfico havi-am divulgado uma lista de 22 oficiais sob havi-ameaça - destes, sete forhavi-am mortos e três

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freram tentativas de assassinato. Oito dias depois, novas informações do mesmo jornal: contabilizaram-se 24 assassinatos em apenas três dias, em que pese a presença e o re-forço de 2.500 soldados providenciados pelo governo de Felipe Calderón como parte da estratégia de enfrentar os cartéis. Seria esta abordagem - colocar o Exército nas ruas, enquanto se promove uma limpeza dos policiais corruptos que defendem os interesses do narcotráfico - uma tênue indicação de uma luz no fim do túnel?

De toda forma, há um filtro afetivo que permeia cada página que viro, cada palavra que escolho, cada informação que entra “pelos sete buracos de minha cabeça”, como diria Caetano. A constatação encontra respaldo em Derrida, bússola de toda re-flexão que efetuo a respeito de tradução:

É verdade que dificilmente se imagina uma tradução, no sentido corrente do termo, seja ela competente ou não, sem algum philein, sem algum amor ou ami-zade, sem alguma aimance5 dirigida para a coisa, o texto ou o outro a ser

traduzi-do. Mesmo que o ódio possa aguçar a vigilância de um tradutor e motivar uma interpretação desmistificadora, esse ódio revela ainda uma forma intensa de de-sejo, de interesse ou mesmo de fascinação. (1995, p. 25).

Mas “adoecer de tradução” - isso é pensável? Para mim, agora, é simplesmen-te evidensimplesmen-te. Trata-se de uma identificação, de uma vontade de mudar o estado das coi-sas, de uma faculdade de compreender intimamente - e haveria intimidade maior que aquela de um texto, para um tradutor? – uma luta social, de uma compaixão entendida em sua vertente etimológica: sofrimento comum, comunidade de sentimentos. Esse conjunto de afetos pode por vezes levar à melancolia e à prostração, mas por outras também ao seu dual, o ânimo e a firmeza na retomada do texto, pois o livro precisa ser traduzido, precisa ser editado, precisa circular, precisa fazer efeitos no seu leitor virtu-al, precisa despertar consciências, para que esforços sejam feitos em conjunto na busca de uma mudança não só da situação dos desamparados de Ciudad Juárez, mas da condição de todo aquele que é submetido a qualquer tipo de violência.

Nesse co-engajamento, pratico aquilo que Berman (2002) propõe como visada da tradução - “abrir no nível da escritura uma certa relação com o Outro, fecundar o Próprio pela mediação do Estrangeiro” - e realizo o que define como uma visada ética, que “é ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentralização. Ela é relação, ou não é na-da.” (p. 16-17).

Aí está uma vertente de minha ética profissional: trazer para o português a lu-ta de outrem, para que o texto promova conhecimento, conscientização e cause a

5 Repito aqui a nota que fiz para esse livro: Deixei a palavra aimance em francês porque recobre dois sentidos: o de

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ca-pagação de ações. Na busca da melhor eficiência, a ética também me faz escolher pala-vras, atividade nobre, com o mais minucioso cuidado; buscar sentidos precisos; inves-tigar nuanças; apreender tonalidades; escrever e reescrever, no esforço de elaborar um texto da melhor forma possível, para que leitores desconhecedores da língua francesa façam bom proveito das idéias nele veiculadas. Essa contribuição para a disseminação do pensamento também caracteriza a atividade tradutória e me faz retomar um outro neologismo que cunhei anos atrás, na dissertação que fiz de mestrado, para designar minha profissão: traduautora - nem só copista de texto alheio, nem cleptomaníaca à cata da palavra de outrem; não “apenas” tradutora, como se isso fosse pouco, mas co-responsável por uma obra, com toda a responsabilidade que isto implica, com toda a cumplicidade que a empreitada demanda. Mesmo que isso requeira, por vezes, o infor-túnio de precisar escrever palavras tão terríveis como aquela que desencadeou o pre-sente artigo: feminicídio.

REFERÊNCIAS

AMNESTY INTERNATIONAL. Disponível em: <http://www.amnesty.org/>. Acesso em: maio 2008.

BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro. Cultura e tradução na Alemanha romântica. Herder, Goethe, Schlegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Holderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2002.

BRADBURY, Ray. “Vênus” (ou “A grande chuva”), In: O homem ilustrado (Uma sombra passou por aqui), Lisboa: Publicações Europa-América, 2004.

DERRIDA, Jacques. Salvo o Nome. Tradução de Nícia Adan Bonatti. Campinas, SP: Papirus, 1995.

OCKRENT, Christine (dir.). Le livre noir de la condition des femmes. Paris: XO Éditions, 2006. A ser publicado proximamente por Bertrand Brasil, Rio de Janeiro. Tradução de Nícia Adan Bonatti.

IMDb/The Internet Movie Database. Lopez honored by Amnesty International. Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt0445935/news#ni0056966>. Acesso em: maio 2008.

rinhoso. Se tivesse traduzido a palavra, ela teria perdido um de seus pólos de significação, privilegiando uma única lei-tura e anulando o anagrama que se insere no limite do texto original.

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