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DISCURSOS SOBRE HÁBITOS DE LEITURA E USO DE TECNOLOGIAS NA INFÂNCIA: UM ESTUDO REALIZADO A PARTIR DE ENTREVISTAS COM FAMÍLIAS

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DISCURSOS SOBRE HÁBITOS DE LEITURA E USO DE TECNOLOGIAS NA INFÂNCIA: UM ESTUDO REALIZADO A PARTIR DE ENTREVISTAS COM

FAMÍLIAS

Roberta Gerling Moro (ULBRA)1

Este trabalho tem, como objetivo, analisar discursos sobre hábitos de leitura e uso de tecnologias na infância a partir de entrevistas realizadas com pais de crianças entre 3 e 10 anos de idade. Para tanto, foram selecionadas três famílias de classe média, moradoras de um condomínio fechado na cidade de Osório/RS. Este estudo tem como base teórica o conceito de “mecanismos de controle do discurso”, conforme proposto por Michel Foucault, na obra “A Ordem do Discurso” (2011). Para a coleta de dados, foram realizadas três entrevistas semi-estruturadas com três famílias, assim distribuídas: Família 1 (Gabriel, 3 anos), Família 2 (Elena, 4 anos e Isabella, 7 anos), Família 3 (Ana Paula, 8 anos e Rafael, 10 anos)2.

O artigo está organizado em três partes. Inicialmente, apresenta-se o procedimento adotado para a coleta de dados. Em seguida, passa-se a discutir os conceitos de discurso, formação discursiva e os procedimentos de controle dos discursos, conforme Foucault. Por fim, são apresentadas as análises das entrevistas, a partir dos procedimentos de controle identificados nas falas dos pais.

INTRODUÇÃO

As falas dos pais em relação aos hábitos de leitura e uso de mídia por parte de seus filhos foram documentadas e transcritas para análise. O questionário utilizado nas entrevistas semi-estruturadas foi organizado em dois eixos temáticos, a saber: 1- Hábitos de leitura; 2 – Uso de mídias digitais. No primeiro eixo, o objetivo foi verificar os hábitos

1 Licenciada em Artes Visuais e Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade Luterana do

Brasil (PPGEDU/ULBRA), Canoas, Brasil. Bolsista Capes/Prosup. E-mail: robgmoro@gmail.com

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de leitura dos pais e das crianças, se há momentos de contação de histórias, quem costuma ler, quais tipos e como essas histórias são escolhidas. No segundo eixo, em relação aos usos de mídia digital, as perguntas visavam verificar se as crianças têm acesso a aparelhos digitais (televisão, tablet, Ipad, computador), como estes são utilizados e durante quanto tempo.

Partindo do conceito de discurso como prática discursiva, conforme postulado por Foucault (“A Ordem do Discurso”, 2011), inicialmente será necessário abordar as principais fases da obra de Foucault. Segundo Fairclough (2008), a noção de discurso em Foucault pode ser organizada em duas fases, a saber, a arqueologia e a genealogia. Na arqueologia, o foco de Foucault recai sobre as formações discursivas das ciências humanas. Por formação discursiva, Foucault entende o conjunto de sistemas de regras a partir dos quais é possível a análise da ocorrência de enunciados em determinado tempo, lugar ou instituição. Nesse sentido, as práticas discursivas, resultam na combinação dessas regras com elementos discursivos e não-discursivos. Assim, a análise do discurso, do ponto de vista da arqueologia, refere-se às especificações de determinados contextos, em que podem variar em suas formações discursivas e dependem da ocorrência de certos enunciados. A formação discursiva, portanto, consiste no conjunto particular de regras de formação, que podem constituir regras para a formação de objetos (disciplinas particulares dentro de um campo específico de investigação), modalidades enunciativas (constituídas por um grupo de relações onde são formadas as posições de sujeito), de conceitos (existem dentro do campo de enunciados e são formados por categorias e elementos de uma disciplina em particular, com o objetivo de abordar seus campos de interesse) e estratégias (determinam o modo como as possibilidades são realizadas; são constituídas pela relação da sistematização de um discurso, em seu interior e exterior).

Enquanto que na visão arqueológica os sistemas de conhecimento e verdade eram atribuídos às regras do discurso, concebidas na formação discursiva, e assim, regulamentadas por tais regras, no estudo genealógico de Foucault, principalmente na obra Vigiar e Punir (1975), o discurso é posto em segundo plano em relação a outros sistemas de poder. Nesse sentido, o poder é incorporado na medida em que molda e reinstrumentaliza os sujeitos. Foucault aborda o poder a partir da visão da modernidade, onde desenvolveu-se e emergiu através de “microtécnicas” em instituições, como

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hospitais, prisões e escolas. Essas técnicas surgiram na relação dual entre poder e conhecimento existentes na sociedade moderna. De um lado, as técnicas de poder são desenvolvidas tendo como alvo o conhecimento a ser gerado, por outro lado, essas técnicas estão relacionadas ao poder dentro do processo de aquisição de conhecimento. A essa forma moderna de poder, Foucault denominou de “biopoder”. De acordo com Fairclogh (2008, p. 76), analisar as instituições e organizações na perspectiva do poder significa “entender e analisar suas práticas discursivas”.

Em “A ordem do discurso” (2011), Foucault explora e analisa os diversos procedimentos os quais perpassam as práticas discursivas, e que controlam e restringem o discurso. Esses procedimentos serão abordados em particular na seção a seguir.

OS PROCEDIMENTOS DE CONTROLE

Para a análise dos dados coletados, parte-se do princípio da produção do discurso como uma prática controlada, organizada, selecionada e redistribuída através de procedimentos, os quais Foucault (1971) denomina de “procedimentos de controle”, que dividem-se em externos, internos e sistemas de restrição. Os procedimentos externos, também chamados de “procedimentos de exclusão”, não estão visivelmente aparentes no próprio discurso, atingindo-o pelo exterior. Tais procedimentos foram caracterizados, por Foucault, como “três grandes sistemas de exclusão”, a saber: a palavra proibida (interdição), a segregação da loucura (oposição razão e loucura) e a vontade de verdade (oposição verdadeiro e falso).

O sistema mais evidente é a interdição, sendo identificada nos enunciados em que se toma a palavra como algo que não pode ser dito em qualquer circunstância. Encontramos este procedimento principalmente nos discursos sobre sexualidade e política. No entanto, é necessário esclarecer que nem todas as interdições são óbvias e transparentes. O segundo sistema de exclusão, a oposição entre razão e loucura, é visto como uma separação e uma rejeição. Aqui, surgem aqueles discursos que não podem circular de forma comum, não proferida pela razão. Trata-se daqueles discursos que não são creditados como “verdadeiros” por se oporem a alguma racionalidade dominante, manifesta através de certas “verdades” que circulam em determinada sociedade. Na

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separação entre “verdadeiro e falso”, reside a “vontade de verdade”, uma separação que pode ser vista ao longo da história da humanidade: já no século VI, os poetas gregos buscavam o “discurso verdadeiro”. O discurso verdadeiro era aquele ao qual o sujeito devia ser submetido, pois era o discurso pronunciado por alguém reconhecido e notável. Nesse sentido, a vontade de verdade, defendida por Foucault, é reforçada por um conjunto de práticas da sociedade.

Os procedimentos internos de controle são exercidos pelo próprio discurso. São procedimentos utilizados como princípios de classificação, ordenação e distribuição. Inicialmente, temos o comentário, o qual opera, de um lado, de forma oculta e, de outro, permitindo construir novos discursos. Dessa forma, o comentário opera nos textos que são repetidos e, por vezes referenciados. O autor é o responsável por ditar ou revelar sua autoridade sobre determinado texto. No texto literário, a função do autor se desenha, através da linguagem, a fim de legitimar uma história como verdadeira ou fundacional.

Em contraste ao comentário e ao autor, a organização das disciplinas pressupõe o domínio de objetos, um conjunto de métodos, proposições consideradas “verdadeiras”, regras e definições, técnicas e instrumentos (FOUCAULT, 2011, p. 30). Diferente do comentário e do autor, que pressupõem um sentido a ser descoberto e uma identidade que deve ser repetida, na disciplina, é preciso formular novas proposições. A disciplina está ancorada no princípio de controle da produção do discurso, fixando “[...] os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de reatualização permanente das regras” (FOUCAULT, 2011, p. 36).

O último grupo de procedimentos de controle pode ser visto como as condições de funcionamento de um discurso, também denominadas por Foucault de “sistemas de restrição”. Para ser inserido na ordem do discurso, o indivíduo deve levar em consideração determinadas regras e exigências definidas no próprio discurso. O sistema de restrição constituído de forma mais visível é o que se pode chamar de ritual. O ritual define a posição de quem deve falar, os gestos, os comportamentos, circunstâncias, além de um conjunto de signos que podem acompanhar o discurso. Outra forma de funcionamento são as “sociedades de discurso”, que têm por função conservar e produzir discursos dentro de um círculo limitado de relações, segundo regras restritas. Contrapondo-se às “sociedades de discurso”, as doutrinas tendem a difundir-se de forma

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ampla, num espaço e conjunto onde há indivíduos em grande número que reconheçam as mesmas verdades e aceitem certas regras impostas. A apropriação social dos discursos, por fim, compõe, segundo Foucault (2011, p. 43-44), o sistema de ensino. Trata-se de uma instituição onde os indivíduos têm acesso a qualquer tipo de discurso, principalmente no que se refere à sua distribuição, do que é permitido ou impedido, e nesse sentido, marcada pelas oposições e lutas sociais.

PROCEDIMENTOS DE CONTROLE NAS ENTREVISTAS: UMA ANÁLISE

Nos dias atuais, são quase inexistentes discursos que revelam posições negativas sobre a leitura de textos literários por crianças, seja no ambiente acadêmico ou na mídia. Nesse sentido, predominam os discursos que ressaltam as vantagens e benefícios da leitura literária infantil, principalmente no que se refere à estimulação do imaginário e fantasia na criança, que acabam por “instigar a reflexão sobre questões atuais e relevantes na sociedade contemporânea” (KIRCHOF; BONIN, 2016, p. 40). De certa forma, a escola ainda continua sendo um local onde as crianças têm acesso aos livros infantis. A questão sobre a leitura literária infantil tem sido amplamente discutida no ambiente acadêmico. De acordo com Kirchof e Bonin (2016), os discursos predominantes são aqueles que enfatizam o caráter formativo da literatura infantil e sua relação com o contexto escolar. No que se refere ao uso de dispositivos digitais pelas crianças, existem, entretanto, discursos polarizados e contraditórios. Na mídia, por exemplo, é recorrente a circulação de reportagens onde o principal discurso proferido é em relação aos “riscos” e “benefícios” da utilização da tecnologia por parte de crianças. Nesse sentido, existem discursos ambivalentes, por um lado, há aqueles que condenam a tecnologia (tecnofobia) e, de outro, aqueles que a celebram, de forma às vezes ingênua (tecnofilia) (RÜDIGER, 2016).

Andrew Keen (apud Rüdiger, 2016, p. 40), por exemplo, em seu discurso tecnófobo, argumenta que o surgimento da internet e a inserção dos sujeitos nas redes sociais estimulou o “rebaixamento dos padrões morais e culturais”, o que, para ele, também contribuiu para o fechamento de livrarias e casas de discos, não representando um progresso cultural. De outro lado, os tecnófilos veem, na tecnologia, o controle da

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forma e conteúdo do meio por parte dos indivíduos. Para Chris Andersen, editor da revista

Wired, a internet viabilizou não somente a expansão da produção e o consumo de produtos

e serviços, mas também “[...] a diversificação dos hábitos de consumo e formas de expressão cultural, conforme dariam prova o iTunes e a Amazon” (RÜDIGER, 2016, p. 35).

Nas entrevistas realizadas, foi possível verificar que os pais estão bastante captados pelos discursos da mídia, principalmente no que se refere à utilização de dispositivos digitais pelas crianças. Os pais parecem compartilhar dos dois principais discursos mencionados anteriormente. De um lado, manifestam uma preocupação em limitar o acesso das crianças à utilização dos dispositivos digitais, revelando desconfiança por parte de alguns conteúdos aos quais as crianças têm acesso, seja na internet ou programas televisivos. Por outro lado, estão captados pelo discurso segundo o qual o acesso a esses dispositivos é necessário para o desenvolvimento das capacidades cognitivas das crianças através dos conteúdos e jogos digitais. No caso da leitura de textos literários, em nenhum momento, os pais manifestaram posições contrárias, revelando que o seu consumo e acesso pode trazer apenas benefícios aos seus filhos.

Além disso, verificaram-se também, alguns dos procedimentos de controle acima expostos, que foram assim identificados: nos externos: a interdição, a oposição verdadeiro e falso; nos sistemas de restrição: o ritual, sociedade de discursos e a apropriação social dos discursos. Para a realização das análises, foram feitos recortes das falas dos pais, os quais evidenciam os discursos mais recorrentes proferidos pelos meios de comunicação.

Procedimentos externos de controle: interdição e oposição verdadeiro e falso

No eixo sobre hábitos de leitura, encontramos, nos discursos dos pais, o desejo de transmitirem, através de suas falas, que, no dia-a-dia, o hábito de ler é frequente e incentivado em seus lares. Essa preocupação revela o quanto estão captados pelo discurso segundo o qual uma educação apropriada dos filhos demanda o contato e o incentivo à leitura. A entrevista se apresentou, aos pais, como uma oportunidade de narrarem suas práticas de leitura e de seus filhos, mesmo que, às vezes, não muito frequentes. Em poucos termos, as falas demonstraram que os pais veem a leitura como uma prática benéfica a

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qual também pode desenvolver o interesse e a concentração de seus filhos através dos livros.

Em duas famílias entrevistadas, a preocupação reside no acesso dos filhos aos livros. Na família de Gabriel, 3 anos, por exemplo, a mãe evidencia, em sua fala, que possui o hábito frequente de ler, lendo em torno de dois livros por mês. A mãe, no entanto, não revela de imediato sua preocupação em relação à prática de leitura do filho, já que, para ela, a leitura é algo incorporado no dia-a-dia da família. O pai, por outro lado, manifesta sua preocupação quando relata que a criança prefere a contação de história à leitura, como percebemos nos excertos abaixo:

Na segunda família, os pais revelaram, de imediato, que leem pouco, mas se preocupam com o hábito de leitura das filhas. Por um lado, a mãe manifestou o pouco espaço dado à leitura em casa, depois que as filhas nasceram. De outro lado, os pais têm a necessidade de frequentarem a biblioteca e as livrarias, como um ato de incentivo e que complementa o fato de eles próprios não dedicarem tempo à leitura. O medo é revelado, também, na fala da mãe, em relação à frequência de leitura da menina mais nova, ainda não alfabetizada, sendo dada preferência a outras atividades, como as da escola:

Pesquisadora: Costumam ler em casa? Mãe: Eu leio muito, leio bastante.

Mãe: Eu leio uns dois livros por mês, eu acho..

Mãe: Daí ele gosta mais de ouvir o conto do que ler. Ler para ele nós não lemos tanto quanto gostaria...

Pai: Ler assim, de pegar os livrinhos dele e ler as histórias para ele às vezes nós fazemos, mas não é tão frequente. Ele prefere a história contada...

Pesquisadora: Vocês costumam ler? Literatura, ou...? Pai: Eu não leio...

Mãe: Eu lia mais, antes de elas nascerem, mas depois...quando elas nasceram...comecei a ler menos...

Mãe: Antes de dormir, a gente contava todo o dia, só agora que ela tem três temas por semana...e ainda um livro pra ler...e está só naquele livro e ela mesma tem que ler sozinha agora (referindo-se a Isabella, 7 anos)...mas antes a gente lia toda noite...pra Elena a gente lê...mas antes de dormir...só este ano mudou por causa que entrou tema, mas antes era toda noite assim, elas escolhiam na caixa e então lia a história...Só que agora mudou porque ela tem que ler (Isabella)...ela pega na biblioteca, lê sozinha e ainda têm três temas por semana assim, e são temas compridos e daí a leitura diminui um pouco...

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Em contraste às entrevistas anteriores, na família das crianças maiores, os pais desejavam transmitir, em suas falas, que ler é uma prática frequente e incentivada na família. No entanto, nas respostas sobre hábitos de leitura, os pais indicaram um desconhecimento em relação às preferências de leitura de seus filhos, não especificando tampouco suas próprias. É possível inferir que há uma interdição, aqui, de um discurso segundo o qual a leitura não é valorizada.

Em relação ao uso de mídias digitais, os pais apresentaram, em suas falas, apreensão quanto ao tempo de utilização dos dispositivos digitais. O pai do menino de 3 anos, durante a entrevista, afirmou ser benéfico o uso do tablet, se controlado e utilizado de forma a educar o filho. No entanto, em outra fala, sobre o livro digital, o pai revela que, para a criança, seria mais interessante o livro físico, manifestando outro tipo de argumento, oposto àquele evidenciado anteriormente, como podemos perceber nas falas que seguem:

De acordo com Charaudeau (2007), o objetivo principal da mídia é captar o público e, para que este fim seja atingido, recorre a vários tipos de discursos. Como é possível perceber nos canais e sites de comunicação e informação, há um discurso hegemônico proferido pela mídia. Assim, certos enunciados são repetidos para

Mãe: O Davi baixa os livros... Pai: É...eu baixo...eu tenho o Kindle...

Mãe: E eu já gosto do papel... Eu preciso do cheiro, de manusear...

Pai: Porque pra ele eu acho que é melhor ter o livro físico mesmo, pra manusear...

Pesquisadora: Então, vocês costumam ler em casa? Mãe: Sim.

Pesquisadora: Sim?

Mãe: Eu gosto de ler bastante jornais, a gente lê revista...

Pai: É...eu leio pouco assim, no geral, mas quando eu posso dou uma lida, mais é jornal...e alguma coisa de revista...

Pesquisadora: E literatura? Mãe: Eu leio...

Pai: Eu já não tenho lido muito... Pesquisadora: E as crianças? Mãe: Gostam de ler...

Pesquisadora: Mais ou menos que tipo de livros?

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produzirem efeitos. São evidenciados, principalmente, os argumentos em relação à criança e o contato com a tecnologia, quando há, por exemplo, a palavra de um médico, para afirmar e legitimar que o acesso às tecnologias pode causar danos à saúde e ao desenvolvimento cognitivo da criança.

É de consenso, entre os pais entrevistados, que as crianças precisam ter contato com outras atividades consideradas infantis, além das tecnologias digitais. Em nossa cultura, a infância saudável pressupõe atividades como jogar bola, correr e brincar com outras crianças. Os pais temem que os filhos permaneçam muito tempo em contato com os dispositivos digitais, mas, por outro lado, acreditam que este contato não possa ser bloqueado totalmente. Os pais de Gabriel, por exemplo, narram as diversas atividades realizadas pelo filho, quando o tablet é deixado em segundo plano. Nesse sentido, não seria muito “aceitável” se ele apenas passasse o tempo no tablet:

Em contrapartida, na família das duas meninas, Elena, 4 anos, e Isabella, 7 anos, o uso do tablet é evidenciado nas falas dos pais. Os pais retomam o discurso proferido pelos meios de comunicação sobre a utilização de dispositivos digitais na infância, além de citarem, enunciados referentes ao discurso médico, quando relatam que a utilização do tablet é saudável, a partir dos nove anos de idade. Neste caso, os pais estão sendo afetados tanto pelo discurso da mídia quanto pelo discurso médico, modificando também suas próprias ações com os seus filhos. O fato de os amigos das crianças já possuírem seus próprios dispositivos digitais gera um incômodo nos pais, que também desejam que suas filhas tenham contato com estes dispositivos e saibam utilizá-los.

Mãe: E a gente leu que é... uma pesquisa a partir de nove anos que é indicado até pela visão, pra criança...Não é bom ficar no...

Pai: Mais é pela questão de...ficar só jogando e assim joga, no celular, pouco né, mas daí o celular não é delas, é nosso... então só pega...tem que pedir pra gente, não fica à disposição delas, por isso que a gente decidiu não dar um tablet pra elas...claro que, eventualmente assim, não tem...elas podem usar, tendo uma regra assim, já começa a se usar cada vez mais, os amigos têm...

Pai: Assim, se ele ficasse só no tablet e não brincasse com as outras coisas... Mas, nós deixamos os brinquedos tudo aqui embaixo também... Ele brinca com o tablet, mas ele nunca deixa de brincar com os brinquedos dele também... A gente pula corda aqui, ou joga bola...

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Assim, a vontade de verdade nas falas dos pais é reforçada principalmente pela palavra da mídia, tomada como uma fonte de informação “verdadeira”. Nesse sentido, o “discurso verdadeiro” é aquele que circula nos meios de comunicação, onde se tem acesso à informação. A mídia tenta “educar” os pais quanto aos programas de televisão, jogos e, até mesmo, se a criança deve ou não ter acesso aos dispositivos digitais. Dessa forma, a mídia utiliza determinados argumentos a fim de convencer os pais do que seria adequado ou não para a criança.

Em algumas pesquisas divulgadas em canais de comunicação, encontramos principalmente o “discurso verdadeiro” de que alguns jogos e aplicativos podem contribuir para o raciocínio e desenvolvimento cognitivo das crianças, desde que desenvolvidos para este fim. Por outro lado, também podem argumentar contra a utilização de dispositivos, que podem não contribuir ao desenvolvimento físico e cognitivo da criança, da mesma forma que uma brincadeira considerada tradicional (correr, jogar bola, pular corda, etc.).

Na primeira entrevista, encontramos esta evidência, quando o pai cita as modalidades de jogos, bem como os canais e programas de TV utilizados pela criança. Os pais reforçam, de certa maneira, aqueles discursos disseminados pela mídia. Sobre os programas de TV, utilizados pelo filho, o pai cita aqueles desenhos já bastante difundidos, reforçando o “discurso verdadeiro” produzido pela mídia, como Minions, Angry Birds,

Dora Aventureira, Patrulha Canina, Blaze, Super Wings.

Por outro lado, os pais, mesmo que seduzidos pelos discursos da mídia, possuem restrições quanto a certos conteúdos a que a criança tem acesso. Como forma de impedir que a criança assista determinadas propagandas, os pais bloquearam os conteúdos considerados impróprios, o que é evidenciado, principalmente, quando comentam que, na

Pai: Mas os joguinhos que ele joga... São joguinhos de coordenação motora, de aprender as cores, de aprender inglês... assim a falar inglês... Então assim, ele olha os desenhos na Netflix também, mas ele gosta muito de jogar os joguinhos do Minion, do Angry Bird, coisas assim...

Pai: É, e tem os joguinhos educativos também.. Tem joguinhos do LEGO.. de montar as coisas...

Pai: ...os programinhas que ele olha...que é Dora Aventureira... Mãe: Patrulha Canina...

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Sky, por exemplo, os desenhos são gravados de modo que a criança não tenha acesso às propagandas de brinquedos.

Sistemas de restrição: ritual, sociedade de discursos e apropriação social dos discursos

Nas entrevistas, os pais apresentaram, em algumas falas, conhecimento sobre as preferências de leitura das crianças, bem como sobre a literatura infantil. Em relação à tecnologia, os pais demonstraram compreender sobre o assunto, principalmente quando comentam sobre a utilização de dispositivos digitais pelas crianças, como e quando devem ser utilizados, além dos conteúdos que devem ser acessados. Os pais parecem estar afetados, também, pelas falas de especialistas, médicos, professores sobre a utilização de tecnologias na infância, se são saudáveis ou educativas. As falas construídas pelos pais, bem como o modo de abordarem determinados conteúdos, se deve ao fato de a entrevista levantar questionamentos a respeito dos hábitos de leitura e usos de mídias digitais pelas crianças.

No que se refere às preferências literárias das crianças, as três famílias tentaram demonstrar algum conhecimento a respeito da literatura infantil. Este aspecto pode ser fortemente evidenciado na família de Gabriel (3 anos), quando os pais citam os diversos livros disponíveis para o filho, além de narrarem algumas práticas de leitura realizadas com o filho, como a contação de histórias:

Nas entrevistas, também foi evidenciado, principalmente na fala do pai, saberes referentes ao livro digital (ebook). O pai cita que frequentemente utiliza e baixa livros no

Mãe:...Até na Sky que daí é mais fácil de mexer...A gente bloqueou os impróprios ou alguma coisa assim... A gente deixou tudo bloqueado...E o tablet é mais difícil dele baixar porque daí a conta dele é Kids... Daí já entra direto na Kids, daí é tudo mais infantil assim...ele não consegue mexer... Pai: Que desenho na tv quando passa nos canais pra as crianças... metade... tem às vezes dez minutos de propaganda só com brinquedo...

Pai: Como a Sky grava... A gente manda gravar alguns episódios... e aí tem sempre episódios disponíveis...E o desenhos também...os filmes de desenho que ele gosta a gente grava...

Pai: E agora, nas últimas vezes, nessas histórias que nós inventamos, eu tento fazer ele participar junto...Aí, chega num ponto da história... Sei lá, o cavalo daí eu digo "ah, o que o cavalo fez? O cavalo fez isso ou fez aquilo? O que ele fez?" Daí ele me diz "ah, o cavalo fez isso" "ah, então tá", daí continua a história...

Pai: Tem uma caixinha... são vários kits... é Andersen, Irmãos Grimm e são os contos, as fábulas, e Esopo eu acho que é...É Esopo que se fala? Não sei agora...são histórias clássicas que eu falei...mas ele tem livro de dinossauro... Tem esses livros interativos que é de apertar...que daí dá som... que é o de inglês, que é o dos monstros, dos animais também...ele tem um livro...esqueci o nome...aqueles que tu abre a página...

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celular (Kindle). Além disso, o modo como explicam o funcionamento dos aplicativos e jogos utilizados pelo filho demonstra domínio sobre o assunto.

Na família das meninas, os pais citaram principalmente as preferências de leitura, a biblioteca pública e o desenvolvimento da prática de leitura das filhas. Sobre Elena, de 4 anos, a mãe comenta a preferência por livros de imagens e narrativas menores, enquanto que Isabella, 7 anos, interessa-se por narrativas mais longas. Em relação à tecnologia, os pais demonstraram pouco domínio sobre o assunto, dando prioridade à leitura literária das filhas.

Na outra família (Ana Paula, 8 anos e Rafael, 10 anos), os pais também narraram as preferências de leitura das crianças, especialmente os gêneros literários e o gosto das crianças em frequentar a biblioteca da escola durante o intervalo de aula. No que tange aos dispositivos digitais, os pais demonstraram conhecer os documentários assistidos pelo filho mais velho no Discovery Channel, narrando alguns episódios e explicando os conteúdos apresentados no programa.

Pai: Eu já estou lendo tanto no tablet, no celular que no livro de papel já... Pai: ..eu baixo...eu tenho o Kindle...

Pai: É, e tem os joguinhos educativos também.. Tem joguinhos do LEGO.. de montar as coisas, então ele tem que pegar as peças e...Na verdade ele só leva com o dedo e monta no lugar...

Pesquisadora: E elas do que gostam?

Mãe: A Elena (4 anos) ainda é historinha menor...que ensina a ler, a contar...historinhas menores, bem ilustrativas...E a Isabella (7 anos) já está indo mais pra leitura...já está lendo..

Pesquisadora: Mas tem imagens ainda? Mãe: Desenhos?

Pesquisadora: É...

Mãe: Sim...mas ela já se interessa por ler livrinhos...começando a mudar...a faixa etária assim...de historinha de imagem, mais de ler...

Pai: É...Isso...histórias mais...tipo assim...continuadas...se vê toda uma historinha... Mãe: Mas com mais...vários capítulos...capítulos curtos e a letra grande né...

Mãe: Ele gosta também dessas coisas assim...de animais...Ele sabe que...a baleia...tal baleia se alimenta de não sei do que...tem tantos dentes né...

Mãe: É... "Mãe, hoje vai ter um...uma série sobre os tubarões...um documentário sobre os tubarões"...ele gosta de assistir...ele sabe, ele acompanha...Dos dinossauros...ele sabe tudo...nome de todos os dinossauros...o que ele come, o que não come...sempre gostou de dinossauro...ele tem livro de dinossauro ali...desde pequeninho...

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Na era digital, alguns canais ou plataformas podem funcionar como as antigas sociedades de discurso que, a partir de determinadas regras restritas, conservam e produzem discursos, a fim de legitimar o que é bom ou ruim para os indivíduos. Os canais e plataformas televisivas, como Netflix e Youtube, por exemplo, sugerem os programas mais adequados para as crianças, legitimando, de certa forma, o que seria mais adequado para a criança.

Na segunda família, a Netflix e o Youtube são citados como meios “confiáveis” para as crianças. Aqui, o discurso é ditado em torno da Netflix, pois os pais submetem-se às sugestões dadas pelo programa, do que seria indicado para a criança, como podemos perceber no excerto abaixo:

Dessa forma, podemos perceber que a disseminação de certas informações e saberes, pela mídia, produz discursos que, quando reforçados e reconduzidos em outros enunciados e práticas, tornam-se “verdades”. Nesse sentido, na outra família, encontramos, como fonte de informação, os documentários apresentados no Discovery Channel, a respeito de temas sobre sobrevivências e vida animal, retomando novamente o discurso produzido pelas mídias:

Nas entrevistas, predominou a fala dos pais sobre o uso de dispositivos digitais na escola, que se reflete também nos desejos das crianças em ter acesso à tecnologia. Em

Pai: É...Hoje que a gente... ah, se disser, eu não quero que olhe...por motivos...os desenhos assim, um pouco mais...sei lá...que não gostava muito...e demos umas cortadas assim e elas não estão mais olhando...E agora, como elas estão usando mais o Netflix, daí já têm aqueles...

Mãe: Sugerem...

Pai: É, sugerem aqueles desenhos, assim mais pra criança aí não tem muito...não precisa dizer muito "ah, esse não"...

Mãe: E o Rafael...o que ele gosta de ver bastante é no...como é que o nome daquele canal? Que é sobre sobrevivências...sobre...

Mãe: Discover Channel...? Pai: É...o Discover Channel...

Mãe: É... "Mãe, hoje vai ter um...uma série sobre os tubarões...um documentário sobre os tubarões"...ele gosta de assistir...ele sabe, ele acompanha...Dos dinossauros...ele sabe tudo...nome de todos os dinossauros...o que ele come, o que não come...

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duas entrevistas, percebemos como a utilização, circulação e prática de determinados saberes afetam as crianças. Para as crianças, estes discursos produzem o efeito de admiração pelo novo. No entanto, para os pais, o efeito é o medo do acesso aos conteúdos impróprios. Por outro lado, percebem que este acesso também é necessário ao conhecimento e futuro das crianças.

REFERÊNCIAS

CHARAUDEAU, Patrick. O que quer dizer informar: dos efeitos de poder sob a máscara do saber. In: Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2007. p. 33-125.

FAIRCLOUGH, Norman. Michel Foucault e a análise de discurso. In: Discurso e

Mudança Social. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2008. p. 61-88.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2011.

KIRCHOF, Edgar Roberto; BONIN, Iara Tatiana. Literatura infantil e pedagogia: tendências e enfoques na produção acadêmica contemporânea Pro-Posições,

Campinas, v. 27, n. 2, p. 21-46, ago. 2016 .

RÜDIGER, Francisco. As teorias da cibercultura: perspectivas, questões e autores. Porto Alegre: Sulina, 2016.

Pai: Eu acho que hoje é uma tendência da realidade que a gente está vivendo...não tem como tu não incentivar...porque toda...a comunicação hoje é baseada pela internet...então tudo as novidades que tem hoje vão estar ali né...

Mãe: Só que esse avanço assusta um pouco...porquê...uma coisa que a gente conversa é...ah, vamos deixar...a gente sempre esperou chegar o momento certo de eles terem determinadas coisas, que nem agora...os nossos não têm celular ainda...eu acho que ainda não é o momento...mas vai chegar um momento que eles vão ter que ter, porque hoje a geração está usando né...está todo mundo usando...é a nossa realidade hoje...mas ao mesmo tempo, a gente tem uma preocupação "o que que eles estão mexendo? O que que eles estão vendo? O que que eles estão acessando?"...Eu quero que eles descubram, que eles saibam, mas com precaução, cuidado, assim...eu estou sempre em cima...ele está jogando, ele está vendo algum vídeo, eu tento estar sempre em cima...Mas até a própria escola dá muito trabalho em cima da internet, de buscas né...a gente tem visto bastante assim...Então, tem que usar.

Referências

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