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discurso 40 Alberto Magno: metafísico e teólogo Alfredo Storck Professor adjunto do Dep. de Filosofia do IFCH-UFRGS e pesquisador (CNPq)

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discurso 40

Alberto Magno: metafísico

e teólogo

Alfredo Storck

Professor adjunto do Dep. de Filosofia do IFCH-UFRGS e pesquisador (CNPq)

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tura das ciências mais influente da Idade Média, Alberto Magno foi um dos primeiros filósofos medievais a comentar o corpus aris-totélico medieval apoiando-se em fontes árabes (Weisheipl 24). As relações entre teologia e metafísica constituíram uma de suas pre-ocupações principais, tendo sido um dos primeiros a abordá-las sistematicamente. Sem dúvida em virtude do lugar ocupado pelo Liber de Causis na compreensão do pensamento do Estagirita, a historiografia do início do século passado não tardou a ver em Alberto um neoplatônico, posição que foi mais ou menos revista nos últimos anos (Libera 8, sobretudo o Cap. 8). Mesmo assim, o tema é polêmico e demanda investigações complementares (Sweeney 20, p. 177-202). O presente artigo pretende contribuir para esse debate passando em revista algumas passagens nas quais Alberto discute o subiectum da metafísica e da teologia.

Como veremos, o pensador de Colônia é bastante hesitante sobre esse tema. Quando escreve valendo-se de sua pluma de co-mentador de Aristóteles, Alberto segue de perto Avicena, fazendo sua a tese segundo a qual nenhuma ciência pode provar a existên-cia de seu objeto de investigação. Quando escreve como teólogo, todavia, sente-se forçado a precisar sua posição, afastando-se com-pletamente de Avicena. Isso não quer dizer que Alberto defenda teses incompatíveis. Ocorre apenas que, desde seu comentário ao Livro das sentenças (circa 1246) até sua última obra, Problemata determinata (1271), Alberto não parou de tentar precisar sua com-preensão da noção de subiectum, sobretudo no que concerne à teologia. Não procuraremos explicar essa mudança de atitude ou mesmo eliminar as aparentes inconsistências de sua apresenta-ção. Contentar-nos-emos com uma explicação bastante simples. Malgrado as disputas acerca do subiectum da metafísica no século XIII1, essa disciplina possuía, aos olhos de Alberto, uma estrutura

1 A literatura sobre o ponto é imensa. Citemos apenas um estudo pioneiro (Zimmer-mann 25). Para o restante da bibliografia, remetemos ao artigo no qual tratamos do

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bem definida, resultado, em boa medida, das contribuições de Avicena. A situação, no entanto, era completamente distinta no caso da teologia. Não somente seu status de ciência não estava garantido, como também a própria noção de ciência parecia-lhe inaplicável. Em uma palavra, a aceitação da estrutura aviceniana da metafísica excluía a teologia do campo das ciências especulati-vas, o que teria levado Alberto a, se não rever, ao menos nuançar sua posição inicial a fim de conceder à teologia o título de ciência.

O subiectum das disciplinas especulativas

Respondendo a uma demanda de seus irmãos dominicanos, Alberto começa, no início dos anos 50 (post 1250) a comentar os livros de Aristóteles sobre as ciências naturais. Como o esclarece seu comentário à Física, Alberto acrescenta ao texto que comen-ta um bom número de digressões destinadas a esclarecer certos pontos obscuros do pensamento aristotélico2. A primeira digres-são versa justamente sobre a estrutura da física, seu lugar entre as ciências naturais, seu subiectum, ou domínio de investigação, e suas divisões. De início, Alberto retoma a célebre tripla divisão das disciplinas teóricas de Aristóteles, mas o faz apoiando-se em Avicena. Conformando-se a uma prática corrente no século XIII, cita inicialmente a divisão entre os domínios especulativo e prá-tico tal como a encontramos no início do Liber de Philosophia

Prima ou da Logique de Avicena3. Após, apresenta as três

discipli-nas especulativas, sendo a primeira (no sentido de fundamento do conhecimento, e não de sua ordem de obtenção) precisamente a

mesmo problema na perspectiva de Tomás de Aquino (Storck 18, p. 387-418). 2 Albertus Magnus, Physica, ed. P. Hossfeld, Colônia, 1987. Sobre o método, consulte-se a p. 123-42.

3 “Cum autem tres sint partes essentiales philosophiae realis, quae, inquam, philoso-phia non causatur in nobis ab opere nostro, sicut causatur scientia moralis, sed potius ipsa causatur ab opere naturae in nobis, quae partes sunt naturalis sive physica et meta-physica et mathematica, nostra intentio est omnes dictas partes facere Latinis intelligi-biles” (id., ibid., Physica, p. 143-49).

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metafísica ou teologia4. Alberto emprega aqui a palavra “teologia” em conformidade com a tradição da divisão das ciências que, no Ocidente latino cristão, remonta a Boécio, o qual, por sua vez, a retira, sem citar a fonte, do início do Livro E da Metafísica5.

Com a redescoberta de Aristóteles, os intérpretes medievais dão-se rapidamente conta de uma ambiguidade na expressão “ciência de Deus”. No sentido filosófico, a teologia é tomada como philo-sophia prima e significa o discurso racional acerca de Deus, ao passo que, no sentido de doutrina revelada, a palavra significa o discurso proferido por Deus. Surgirá assim, durante o século XIII, uma distinção destinada a tornar-se célebre: a teologia dos filóso-fos e a teologia dos teólogos6. Ora, dado que Alberto não emprega esse vocabulário e buscando evitar confusões terminológicas, usa-remos a expressão “metafísica teológica” ou “teologia filosófica” para falar da primeira acepção, reservando o termo “teologia” para a segunda. Podemos assim parafrasear o problema acima e dizer que Alberto nunca duvidou de que a “teologia filosófica” fosse uma ciência. Toda dificuldade residia em garantir as pretensões de cientificidade da teologia.

A maneira pela qual Boécio lê a divisão aristotélica das ciên-cias implica que cada disciplina ocupa-se de um tipo diferente de objeto. A física trata do que está em movimento e não é separado da matéria, as matemáticas investigam o que é sem movimento

4 “Inter partes vero illas prima quidem secundum ordinem rei est, quae est universalis de ente secundum quod ens, quod non concipitur cum motu et materia sensibili se-cundum se et sese-cundum sua principia nec sese-cundum esse nec sese-cundum rationem. Et haec est prima philosophia, quae dicitur metaphysica vel theologia” (Albertus Magnus,

Physica, p. 149-55).

5 “Nam cum tres sint speculativae partes, naturalis, in motu inabstrata […], mathema-tica, sine motu inabstracta […], theologica, sine motu abstracta atque separabilis (nam dei substantia et materia et motu caret)” (Boécio 3, De Trinitate, II, p. 16864-16978) 6 “71. Ad aliud dicendum quod duplex dicitur theologia: una divina, de qua tractamus (quam dividit Boethius circa naturalem et mathematicam, in libro De Trinitate, et me-taphysicam includit sub rationi philosophia), alia est mundana theologia philosopho-rum per mundandas rationes tantum, sine fide, sicut tractat Plato, Aristoteles et multi alii de Deo. Ista est pars metaphysicae quae transcendit naturalem scientiam et dividit contra naturalem et mathematicam” (cf. Anonymus, Quaestio de divina scientia, codex manuscriptus: Praga, Univ. IV. D. 13, ff. 79rb-80vb, in Sileo, L., 2 vols., p. 145).

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e não separado da matéria, ao passo que a teologia ocupa-se do que é sem movimento, é abstrato e separável da matéria, uma vez que Deus é imóvel e imaterial. Ao ler Boécio, Alberto introduz elementos avicenianos no esquema original e afirma:

Se alguém desejasse definir a substância enquanto substância ou quisesse considerar seu ser, veria que nada de sensível ou móvel pertence a seu ser ou sua noção, pois, se tais coisas pertencessem ao ser da substância ou a sua noção, seguir-se-ia que pertenceriam ao ser e à noção de toda substância. Ora, isso não é verdadeiro, pois nada disso se aplica ao caso das substâncias separadas (Albertus Magnus, Physica, p. 160-67).

Alberto vale-se, portanto, do procedimento tipicamente avi-ceniano de apresentar o subiectum de uma disciplina por meio de proposições reduplicativas. O que, todavia, em um primeiro momento, possui apenas o aspecto de um procedimento lógico de formular definições vai rapidamente revelar-se o pivô da introdu-ção da teoria aviceniana das essências. A cada uma das três partes da filosofia correspondem não mais três tipos de objetos, mas de essências: as intelligibilia tantum, à metafísica; as intelligibilia et imaginabilia, às matemáticas; e as intelligibilia et imaginabilia et sensibilia, às ciências naturais. Mesmo que a metafísica ocupe-se do que é abstrato e separado da matéria, isso não significa que ela tenha Deus por subiectum, como uma certa leitura de Boécio po-deria sugerir. Ao final do primeiro livro da sua Physica, o mestre dominicano torna-se mais explícito:

E, quando se diz que o metafísico ocupa-se do que é separado, não se deve entender o separado do modo pelo qual as inteligências são separa-das, mas como dizendo respeito a essas coisas que são separadas quanto à definição e o ser. Essas são, com efeito, aquelas coisas que encontramos nas quididades simples, como dissemos no proêmio dessa obra (id., ibid.,

Physica, p. 7651-56).

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lu-gar, utilizar a relação causal entre elas para justificar a hierarquia das disciplinas e, em seguida, encontrar o objeto de investigação da metafísica na quiditas essentiae absolutae7. Admitindo-se que esta é o ens no sentido universal, ou seja, o ens não limitado às determinações da matéria, segue-se que a metafísica é a ciência universal e que seu subiectum é o ens inquantum ens8. Ademais, como o ens universal divide-se em in principio et de principio esse, a metafísica é também a ciência dos princípios, de tal modo que pertence a ela provar os princípios das demais disciplinas.

Resta, no entanto, mostrar por que Deus não é o objeto in-vestigado por essa disciplina. Para isso, Alberto retoma o célebre debate entre Avicena e Averróis (Hernández 6; Mesbahi 12, p. 73-80) e decide a questão em favor do filósofo persa:

Existe outra crítica feita por Averróis a Avicena e que é menos adequada. Avicena falou corretamente quando disse que não se identificam o que é investigado em uma ciência e aquilo que é suposto. Com efeito, Deus e as substâncias ou formas separadas são investigados pela filosofia primeira e assim não são verdadeiramente supostos por ela, não podendo, portan-to, ser o subiectum da filosofia primeira. Ignoro por que Averróis fez essa crítica, pois o que Avicena disse é necessário. Sabemos, com efeito, que o ente é o subiectum da filosofia primeira e que as divisões e propriedades do ente é o que é tratado pela filosofia primeira, a saber, o ser por si e por acidente, em ato e em potência, o uno e o múltiplo, o que é separado e o que não o é (Albertus Magnus, Physica, p. 7637-48)9.

7 “Adhuc autem, cum prima simplex quiditas primum det esse, a quo fluit esse huius quiditatis in mensurato per quantitatem, a quo ulterius etiam profluit esse huius sen-sibilis distincti per quantitatem et disticti per formas activas et passivas, erit primum absque dubio causa secundi et tertii, unde tam mathematica quam naturalia causantur a metaphysicis et accipiunt principia ab ipsis, et quia ibi probata sunt, ideo non peccant supponendo ea” (id., ibid., p. 276-84).

8 “Adhuc autem, cum quiditas essentiae absolutae sit entis in universali non contracti in partem aliquam, quiditas autem essentiae contractae ad materiam quantitativam vel contrarias formas passionis et actionis habentem sit entis secundum partem accepti, sequitur necessario, quod metaphysica sit scientia universalis, speculans ens inquantum ens” (id., ibid., p. 285-35). E também: “Dico autem omnibus communem primam

philoso-phiam, quae est de ente, quod omnibus commune est” (id., ibid., p. 166-9).

9 A passagem foi posta em evidência em Noone 14, p. 31-52. Noone limita suas análises a Physica e Metaphysica.

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A passagem acima resume perfeitamente bem a posição de Alberto. Para que a metafísica possa satisfazer os requisitos de cientificidade, ela deve ter uma certa estrutura. Deve, notada-mente, possuir um subiectum ou objeto próprio de investigação acerca do qual prova seus teoremas. Essa estrutura, todavia, so-mente é possível se o ens inquantum ens for o objeto dessa ciência e se a existência de Deus for algo passível de ser provado. Ade-mais, a metafísica é a ciência suprema não apenas porque prova que Deus existe, mas ainda porque demonstra os princípios das demais disciplinas.

Quase doze anos mais tarde, quando comenta a Metafísica, Alberto pronuncia-se novamente sobre as mesmas questões. Ele continua a aceitar a tripla divisão das ciências teóricas e a cha-mar a metafísica de “teologia” ou “ciência divina”10. Em virtude das exigências do texto que comenta, Alberto é, no entanto, mais meticuloso no momento de estabelecer a estrutura dessa ciência. Inicia seu comentário pela determinação das relações entre as dis-ciplinas teóricas. O caminho escolhido parece ser, de início, bas-tante clássico, mas a situação rapidamente muda. Leiamos, pri-meiramente, uma passagem tirada do início de seu comentário:

Em virtude disso, quando o físico supõe a existência do corpo em movi-mento e quando o matemático supõe a existência do contínuo ou do dis-creto, aceitam isso, pois não o podem provar com base em seus próprios princípios. É preciso que a existência seja provada com base na existência

simpliciter. E assim esta ciência [a saber, a metafísica] tem por função

es-tabelecer os subiecta e os princípios de todas as demais ciências (Albertus Magnus, Metaphysica, ed. B. Geyer, p. 275-81)11.

10 “Patet igitur ex omnibus quae inducta sunt, quod tres erunt philosohiae theoricae et non plures, mathematica videlicet et physica et theologia sive divina” (id., ibid., ed. B. Geyer, p. 30525-28).

11 Cf. ainda: “Palam igitur ex dictis est, quia philosophi primi, cuius est speculari de

substantia prima, quae est substantia omnium dicta, eo quod est causa omnium, est perscrutari etiam de principiis primis syllogisticis, ex quibus omnis scientia demonstrat

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A referida disciplina merece plenamente o título de philoso-phia prima, no sentido de ciência dos primeiros princípios. Alber-to, todavia, procura atribuir-lhe igualmente o nome de scientia divina e justificar que seja designada metafísica. Como os prin-cípios da matemática e da física fundam-se nos prinprin-cípios do ens simpliciter, e admitindo-se que este transcende o domínio físico, a disciplina em questão é “trans-física”, sendo, por essa razão, “me-ta-física”12. E, como todos os seus princípios são divinos, melhores e primeiros, a metafísica é também a ciência divina13. Ora, essas mesmas designações encontram-se também em Avicena. Mas a fonte de Alberto aqui é outra. A expressão “esse simpliciter”, nu-clear para o argumento, é explicada pela intervenção do Liber de Causis (Pattin 15, p. 90-203; Costa 4). O investigado pelo metafí-sico é identificado à primeira coisa criada, ou seja, a prima

efflu-xio dei14. A modificação é importante na medida em que implica

uma releitura da noção de filosofia primeira. Alberto acrescenta um novo aspecto à tese clássica segundo a qual todas as ciências baseiam-se na metafísica: essa ciência é a perfeição do intelecto divino. Ademais, seus objetos de investigação são simples, pois não são ligados ao tempo ou ao contínuo15. Voltaremos adiante às relações entre o ens inquantum ens e o ens simpliciter. Por ora, tentemos explicar melhor em que medida esse último pode ser o subiectum da metafísica.

O capítulo 2 do Primeiro Tratado versa diretamente sobre a

12 “Propter hoc ista scientia transphysica vocatur, quoniam quod est natura quaedam determinata quantitate vel contrarietate, fundatur per principia esse simpliciter, quae transcendunt omne sic vocatum physicum” (Albertus Magnus, p. 288-92).

13 “Vocatur autem et divina, quia omnia talia sunt divina et optima et prima, omnibus aliis in esse praebentia complementum” (id., ibid., p. 292-31).

14 “Esse enim, quod haec scientia considerat, non accipitur contractum ad hoc vel illud, sed potius prout est prima effluxio dei et creatum primum, ante quod non est creatum aliud” (id., ibid., p. 31-4).

15 “Et ipsa est intellectus divini in nobis perfectio, eo quod est de his speculationibus quae non concernunt continuum vel tempus, sed simplices sunt et purae ab huiusmodi esse divinum obumbrantibus et firmae per hoc quod fundant alia et non fundantur; admirabiles ergo sunt altitudine et nobiles divinitate” (id., ibid., p. 320-26).

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determinação do objeto de investigação da metafísica (Courtine 5, p. 101-8). Avicena não é diretamente nomeado, mas sua influ-ência é perceptível a cada etapa do argumento. De um modo ge-ral, podemos agrupar as teses que o dominicano busca combater em três: as duas primeiras afirmam respectivamente que as quatro causas e Deus são o objeto de investigação dessa ciência, ao passo que a terceira nega que o ens o seja. Segundo Alberto, as tentativas que visavam a fazer de Deus ou das quatro causas o subiectum dessa ciência repousam sobre uma má compreensão da noção de ente. A dificuldade seria a seguinte: como o ens não é um gênero e como tudo o que existe é um ens, então uma ciência do ente seria uma ciência de omnibus. Assim, todas as demais disciplinas tornar-se-iam supérfluas. Para evitar esse inconveniente, alguns propuseram que Deus ou as quatro causas seriam o objeto de in-vestigação da metafísica16. Ao raciocinar desse modo, caíram to-davia em erro. Em primeiro lugar, não compreenderam uma tese aristotélica central, posta em evidência por Avicena: não cabe a uma ciência provar a existência de seu objeto17. Em segundo, in-terpretaram equivocadamente o ens. Ainda que tudo o que existe seja um ens, essa noção não é unívoca, ou seja, os diferentes tipos de ser não são ens no mesmo sentido. Portanto, as provas feitas com base em uma das partes do ser não valem nem para o ente enquanto ente nem para outra de suas partes. Alberto não empre-ga aqui a expressão “analogia”, mas o argumento é claro e Alberto não tardará a explicitá-lo (Libera 10, cap. III). No Liber IV, após ter mostrado que o ens não se diz nem de modo unívoco nem equívoco de suas partes18, o dominicano afirma:

16 “Amplius, si ens, ut inquiunt, esset subiectum et omnia stabilirentur in esse et parti-bus entis, certificaret ista scientia omnia quae sunt, et principia omnium. Et tunc om-nes aliae scientiae superfluerent, eo quod nobilissimam scientiam de omnibus habere-mus nec minus nobilem tunc oporteret invenire scientiam” (Albertus Magnus, p. 438-42). 17 “Quod autem erronea sit haec opinio, constat per hoc quod nihil idem quaesitum est et subiectum in scientia aliqua; deus autem et divina separata quaeruntur in scientia ista; subiecta igitur esse non possunt” (id., ibid., p. 438-42).

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Do que foi dito, é manifesto que pertence a uma e mesma ciência investi-gar os entes, enquanto são entes, ou seja, tomados na totalidade completa do ente. Pois o ser é dito verdadeiro de modo análogo e por dependência de algo uno, de onde primeira e simplesmente provém o nome (Albertus Magnus, Metaphysica, p. 16484).

É justamente a noção de ens, a qual Alberto qualifica de “peripatética”, que pemite responder à pergunta: “qual é o su-biectum da metafísica?” A resposta é o ens inquantum ens et ea quae sequuntur ens, ou seja, suas propriedades ou afecções. Mas trata-se verdadeiramente de uma noção peripatética? Aos olhos de Alberto, sem dúvida. Segundo a historiografia contemporânea, de forma alguma (Libera 8, cap. II). Seja como for, o fundamental é o modo com que o pensador de Colônia concebe a relação entre o ens inquantum ens e o ens simpliciter. Alberto analisa esse ponto diversas vezes, voltando insistentemente à indagação de Avicena acerca da possibilidade de a metafísica provar os princípios do ente, uma vez que ela é a disciplina que o supõe como objeto. Recairia novamente o metafísico na violação da tese segundo a qual uma ciência não pode provar os seus princípios?19 A despei-to de o problema ser pautado por uma interrogação de origem aviceniana e de as respostas dos dois pensadores serem negativas,

partes ipsius. Et ideo non dicitur univoce, quia univocum de multis dicitur modo uno et ratione una, licet forte magis et minus conveniat illis de quibus univoca praedicatione praedicatur, sicut substantia maxime dicitur de prima substantia et minus de secunda, si ab actu substandi substantia dicatur. Ens autem cum multis modis diversis re et ra-tione de multis dicatur, dicitur tamen omnibus his modis ad unum nomine et ad unam

aliquam naturam, ad quam omnes illi modi dependent, et ideo non est aequivocum

secundum veram aequivocationem, secundum quam solum nomen commune est et ratio substantiae et naturae diversa est et ad unam naturam non dependet ipsa diversi-tas” (Albertus Magnus, p. 320-26).

19 “Dubitabit autem fortasse aliquis, quoniam si ista scientia est de esse, quod simplex est et ad quod ex additione est se habens esse mensurabile vel numerabile vel esse physicum et omne universaliter esse determinatum, videbitur haec scientia non posse inquirere de principiis illius esse” (id., ibid., p. 2821-26). Na verdade, o Cap. 11 retoma as discussões de Avicena 1 (doravante LPP), I, 2 p. 1346-1832. Esse fato não foi observado por Noone, que analisou a passagem (Noone 14, p. 47). Para as referências a Avicena na

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elas não são idênticas. O dominicano retoma as linhas gerais do texto aviceniano, mas o faz seguindo Boécio e definindo, por con-seguinte, o ente de um modo não aviceniano. Esse amálgama é representativo da maneira pela qual Alberto faz suas as teses do pensador persa acerca da natureza da metafísica. As afirmações de base, a saber, aquelas que caracterizam a estrutura da metafísi-ca, são preservadas, mesmo se Alberto nem sempre seja claro no momento de expô-las. É o Liber de Causis, interpretado todavia como uma obra autêntica de Aristóteles, que, ao fim e ao cabo, permanece a fonte última da noção albertiniana de ente (Swee-ney 19, p. 599-646).

Comparemos brevemente as respostas dos dois pensadores. De início, Avicena e Alberto aceitam que a solução da questão repousa sobre uma boa compreensão da noção de princípio de todos os seres, uma vez que, tomada de maneira absoluta e sem restrição, essa noção é absurda20. Mas o argumento prossegue, nas páginas do pensador persa, de uma maneira mais sistemática. Avicena distingue as partes, as questões e aquilo que é demons-trado na metafísica. Alberto, por sua vez, anuncia rapidamente seu argumento, chegando a quase obliterar a distinção entre o subiectum e os problemas da metafísica. Lançando mão de uma formulação bastante rápida (haec scientia est de quattuor in uni-verso), apresenta o que é investigado pela metafísica, a saber: i) o ente enquanto ente e suas partes; ii) as coisas que se seguem do ente enquanto ente, como a unidade e a pluralidade; iii) as reali-dades físicas e matemáticas enquanto possuem sua fonte no ente simples; iv) as coisas cujo ser é completamente separado: Deus e as inteligências. A maneira elíptica de Alberto exprimir-se é

in-20 “Si enim omnium entium esset principium, tunc esset principium sui ipsius; ens autem in se absolute non habet principium; sed habet principium unumquodque esse quod scitur” (LPP, I, 2, p. 1458-61).

“Non enim omne quod est, principium habet, quia sic ipsius principii esset principium et non staret illud usque in infinitum, sed omne quod est scitum, oportet, quod habeat causas et principia […]” (Albertus Magnus, Metaphysica, p. 2843-46).

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quietante. Pretendeu ele fornecer uma enumeração dos subiecta da metafísica? Se for esse o caso, então ele modificou sua posição anterior e adotou a tese da existência de diversos objetos para essa disciplina, tese categoricamente rejeitada no início de sua obra (Albertus Magnus, Metaphysica, p. 534-49).

Ora, ainda que uma tal mudança possa, de fato, ser consta-tada em outras obras, não consideramos que esse seja o caso na Metaphysica. O mestre dominicano procura antes pôr em evidên-cia a noção de ente simples a pronunevidên-ciar-se acerca da estrutura da metafísica. A referência à noção boeciana de esse vai, em todo caso, nessa direção. Ademais, após apresentar a divisão, Alberto afirma que a metafísica pode manter sua unidade em virtude de uma característica comum a todo o campo de estudo: quoniam de omnibus his est secundum esse non conceptum cum continuo et tempore. Encontramos uma passagem paralela em Avicena (LPP, I, 2, p. 1713-20), na qual é afirmado que o esse de que se trata non

est existens per materiam. São, portanto, as duas posições equiva-lentes? Talvez. Mas não há indícios suficientes para decidirmos definitivamente o problema.

Focalizemos agora a segunda passagem na qual Alberto ana-lisa a relação entre o objeto da metafísica e a noção de ens sim-pliciter. Dessa vez, a questão aparece na forma da oposição, da parte dos sofistas, a uma ciência do ente. Com efeito, os sofistas sustentavam que: a) nada é predicável do ente que lhe seja distin-to; b) o ente é predicável de tudo21. Já conhecemos esse problema. Ele foi posto no início da Metaphysica, e sua solução residia na

21 “Dubitabit autem fortasse aliquis, si de ente possit esse scientia, cum nihil diversum praedicabile sit de ente; omnis autem scientia est passionis, quae sic est in subiecto, quod in numero est cum subiecto; differentia autem causa est numeri; ubi igitur nulla differentia et nulla diversitas, nullus est numerus et sic nulla demonstratio et nulla scientia.

“Amplius, ens est causatum primum et non est ante ipsum causatum aliquod; igitur nulli subicibile esse videtur, sed praedicabile de omnibus. Et sic scientia non videtur esse de ente ut de subiecto neque ut de praedicato, cum non habeat differentiam ad aliquod entium” (Albertus Magnus, Metaphysica, p. 16281-1638).

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distinção entre o ente e suas partes, distinção dita “peripatética”. Alberto retoma-a agora para acrescentar uma precisão importante: o ens deve ser entendido na acepção do Liber de Causis como a primeira das coisas criadas. Todas as demais são per informatio-nem. Assim, nada existe anteriormente ao ens, e tudo o que vem após é causado e o supõe a título de sujeito. O ens, no entanto, não é sujeito no mesmo sentido em que a espécie é sujeito da diferença específica, mas, antes, no sentido em que é pressuposto por toda forma que advém a algo, sendo, por isso, substrato de todas as formas22. Dito de outro modo, o problema do sofista era encontrar uma diferença entre o ens e suas propriedades a fim de fornecer a complexidade mínima requerida para um discurso significativo acerca do ens. Segundo Alberto, essa diferença existe, mas não na ordem do real. Não existe uma coisa acerca da qual podemos afirmar que, por ser distinta dele, não é um ens. A dife-rença reside antes na distinção entre o ens e seus modos. Isso basta para explicar o discurso acerca do ens. Basta igualmente para que a filosofia primeira seja uma ciência23.

A metafísica, ciência do ens inquantum ens, é eo ipso a ciên-cia do esse simplex. Como bem o demonstrou J.-F. Courtine, essa aproximação implica uma relação importante “entre Deus e a metafísica ou, mais precisamente, seu sujeito: Deus, causa do esse simpliciter, é a causa do sujeito da metafísica” (Courtine 5, p. 106). A literatura contemporânea toma essa afirmação por uma hesitação de Alberto a propósito do objeto da metafísica (id., ibid., p. 107; Noone 14, p. 51-2; Thomassen 21, p. 61-82). Não entraremos nos detalhes desse debate. Para os nossos interesses, é suficiente chamar a atenção para o modo pelo qual Alberto considera-se um

22 “Nec dicitur esse subiectum sicut species, quae subicitur generi differentia constitu-tiva, sed dicitur subiectum id quod praesupponitur in omnibus sequentibus et omnibus substat eis” (id., ibid., p. 16318-22).

23 “Et sic patet, quod licet sequentia realem ad ipsum non habent differentiam, habent tamen ad ipsum differentiam in modo, et haec differentia sufficit scientiae primae philosophiae” (id., ibid., p. 16322-25).

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peripatético no que diz respeito à física e a metafísica. Um dos traços característicos de seu pensamento consiste em tomar o pre-ceito da divisão das ciências a sério. As diversas disciplinas são es-pecificadas por seus princípios, perguntas e proposições provadas. Certamente essa divisão implica uma ordem hierárquica na qual o topo é ocupado pela filosofia primeira. Gostaríamos, contudo, de sublinhar que Alberto encontra nesse quadro uma outra carac-terística: a autonomia das ciências.

O espírito que anima as teses de Alberto Magno sobre as ciên-cias pode ser sintetizado em uma formulação recorrente em seus escritos:

O filósofo não pode inventar nada e não pode afirmar senão o que pode ser demonstrado pela razão (Albertus Magnus, Metaphysica, p. 49579-81)24.

As razões ou argumentos que uma disciplina pode fornecer são sempre circunscritos aos limites internos dessa disciplina. As competências adquiridas em uma disciplina não podem ser transportadas para outra. Na Physica, esse ponto é expresso por meio do uso de formulações tais como inquantum naturales su-mus, ou seja, enquanto somos investigadores das coisas naturais. Com isso, ele visa a marcar os limites e as exigências internas de uma disciplina. Enquanto investigador do domínio físico, Al-berto pronuncia-se somente sobre questões que dizem respeito a esse domínio. A independência e autonomia metodológicas são, portanto, necessariamente resultantes da estrutura das ciências. Se, por um lado, nenhuma disciplina pode provar seus

princí-24 Cf. ainda: “foedum et turpe est in philosophia aliquid opinari sine ratione” (id., ibid., p. 16322-25). Sobre esse ponto, veja-se Mojsisch 13, p. 27-44. Sublinhemos, en passant, a diferença entre a tese albertina e o artigo 145 condenado por Tempier em 1277: “145 (6): Quod nulla questio disputabilis est per rationem quam philosophus non debeat dispu-tare et determinare, quia rationes accipiuntur a rebus. Philosophia autem omnes res ha-bet considerare secundum diuersas sui partes” (Piché 16). Com efeito, a tese de Alberto é menos geral, pois ela afirma simplesmente que, se uma proposição é filosófica, ela é racionalmente demonstrável, ao passo que o artigo 145 sustenta que toda proposição verdadeira é filosoficamente demonstrável.

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pios25, por outro, é tarefa precípua de uma disciplina demonstrar seus teoremas. Dito de outro modo, se duas disciplinas tratam dos mesmos objetos, esses são necessariamente considerados sob as-pectos distintos. Podemos, então, acrescentar a impossibilidade de contradição entre os teoremas de duas disciplinas quaisquer? Aparentemente uma resposta afirmativa impor-se-ia, uma vez que o Filósofo ensina que duas proposições do tipo “S é P qua M” e “S não é P qua N” não são contraditórias26. A posição de Alberto é, todavia, mais nuançada, pois, segundo ele, se considerarmos o problema do ponto de vista interno ao domínio das ciências especulativas, a resposta é, de fato, afirmativa. Disciplinas distintas provam proposições distintas acerca de um mesmo objeto sem que isso implique qualquer forma de contradição. Tal é o caso, por exemplo, das provas físicas e metafísicas acerca da existência de Deus. Se o conflito, no entanto, envolver, de um lado, a reve-lação e, de outro, o saber filosófico, então a situação torna-se mais delicada.

Consideremos o primeiro caso, problema típico do debate entre Avicena e Averróis (Noone 14, p. 49-51). O filósofo andaluz sustenta que a física considera as causas eficientes e materiais, en-quanto a metafísica ocupa-se das causas formais e finais. Alberto afasta-se dele ao afirmar que a física prova a existência de Deus pelo movimento, ou seja, prova a existência do primeiro motor imóvel, enquanto a metafísica demonstra que Deus é a causa de todo ser (universi esse) simultaneamente como forma e fim:

25 “Licet ergo contra tales negantes principia naturalis philosophiae disputare non habeamus, inquantum naturales sumus, quia eorum dubitationes et defectus sunt non

naturales, tamen quia sunt de naturis, fortassis propter faciliorem doctrinam bene se ha-bet aliquantulum disputare contra ipsos, quia respectus hic haha-bet philosophiam primam”

(Albertus Magnus, Physica, p. 1812-17).

26 De acordo com de A. de Libera, a posição de Boécio da Dácia – considerado por certo tempo na literatura especializada como a expressão da dupla verdade – apontava nessa direção: “entre l’affirmation du chrétien – le monde est nouveau – et celle du phi-losophe – selon l’ordre des causes et des principes naturels le monde n’est pas nouveau –, il n’y a pas plus de contradiction qu’entre Socrates est blanc et sous un certain rapport Socrate

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O filósofo primeiro considera, de modo principal, a forma e o fim pe-los quais demonstra, de acordo com as características de sua disciplina, aquilo que ela faz saber de modo eminente. Assim, tanto o físico quanto o metafísico consideram todas as quatro causas. Mas o físico considera-as na medida em que são princípios do ente móvel, ao passo que o filósofo primeiro reduz a eficiente ao caso da forma primeira e do fim último. Desse modo, a causa da existência do universo, sua forma e seu fim são idênticos27.

Ambas as disciplinas investigam as quatro causas, mas, como o fazem de pontos de vistas distintos, obtêm provas igualmente distintas.

Passando agora ao segundo caso, podemos aplicar o mesmo modelo às relações entre os dados da revelação e as provas filo-sóficas? A resposta é sim e não. Comecemos pelo lado positivo. Alberto é um dos primeiros a sublinhar, e de forma reiterada, que as disciplinas filosóficas possuem uma abordagem específica, distinta e, em certa medida, autônoma relativamente à fé. Pro-va dessa autonomia: a intervenção divina no curso dos eventos naturais não deve ser levada em conta pelo físico. Para deixar o ponto claro, Alberto formula para si a seguinte divisa: Nihil ad me

de Dei miraculis, cum ego de naturalibus disseram28. Ademais, a

aceitação inconteste de uma verdade posta pela fé não exclui a

prio-ri as investigações filosóficas29. Alberto chega mesmo a garantir

um status privilegiado a esse tipo de investigação, falando de duas maneiras distintas de aquisição do conhecimento: a filosófica e a divina. Cada qual possui causas próprias e domínio específico30.

27 Albertus Magnus, Metaphysica, p. 46285-46305. Cf. ainda idem, Super Dionysium, ed. P. Simon, p. 35234-47.

28 Idem, De Generatione et Corruptione, ed. P. Hossfeld, p. 12915-16 (Piché 16, p. 188). 29 “Est autem haec questio, an deus moveat aliquod corpus immediate. Hanc autem secundum philosophiam vultis vobis determinari, quia secundum fidem catholicam dubitari non licet, quin deus filius corpus, quod assumpsit, et immediate et corporaliter et distincte impleat et moveat” (idem, Problemata Determinata, ed. Weisheipl, p. 4650-55). 30 “duplex modus est, quo accipimus cognitionem de rebus, unus philosophicus et al-ter divinus. Philosophicus quidem modus est, secundum quod scientia nostra causatur ab entibus, quae subsunt nostro intellectui, vel quantum ad modum accipiendi

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sci-Há entre elas todavia uma diferença de nível e mesmo de comple-mentaridade. O saber filosófico possui limites que o impedem de produzir um conhecimento completo acerca de Deus. E isso não é irrelevante, pois unicamente o conhecimento de Deus pode sa-tisfazer o desejo natural que o ser humano tem de conhecer31. Podemos então concluir que Alberto reconhece dois tipos de ver-dades: as divinas e as filosóficas. As duas versam sobre os mesmos objetos, os quais são descritos de pontos de vistas distintos, mas complementares, ou seja, não contraditórios. Com efeito, Alberto é explícito sobre esse ponto: a filosofia nada pode provar contra a verdade divina32. Salientemos, contudo, que não se trata aqui de uma posição de princípio. Admitindo que as coisas não são em si mesmas contraditórias, a possibilidade de verdades contraditó-rias está excluída. Resta, no entanto, possível que certos filósofos afirmem proposições contraditórias à fé. Nesse caso há um erro que deve sempre ser procurado do lado do filósofo, e não do de Deus. O exemplo fornecido por Alberto é uma citação de Avice-na, implicada nas condenações de 1277, segundo a qual Deus não conhece os singulares:

Há aqui um duplo caminho para responder: o dos filósofos e o da fé. De fato, os filósofos afirmam que Deus não conhece e intelige senão os

entiam. Si enim non subessent nostro intellectui, intellectus noster non posset com-prehendere ea, nec formae ipsorum possent fieri in ipso, et sic nec cognosceret ea. Modus autem divinus est, secundum quod accipimus cognitionem ab eo quod est supra intellectum nostrum, inquantum illud immittit se nobis, non secundum proportionem suam, sed secundum potestatem intellectus nostri” (Albertus Magnus, Super

Diony-sium, p. 34856-68).

31 “Cum autem sic omnes homines natura scire desiderent et desiderium non sit infini-tum, oportet, quod in aliquo scire desiderium illud finire queant. Hoc autem non potest esse nisi illud scitum quod est causa et lumen omnium entium et scitorum; et hoc non est nisi intellectus divinus” (Idem, Metaphysica, p. 783-88).

32 “Quamvis enim philosophia nihil probet contra divinam veritatem, quam tradit fides, tamen non pertingit ad ipsam, sed habet aliquem terminum, usquequo devenit, et scit se tamen non totum comprehendere, et ideo debet admirari, non impugnare, sicut per philosophiam probatur, quod in deo sunt perfectiones omnium generum et quod in eo est summa simplicitas et quod ipse est sua actio et multa huiusmodi, quae non videntur se posse compati secundum pricipia rationis, ex quibus proceditur in aliis rebus” (Idem, Super Dionisii Epistulas, ed. P. Simon, p. 50530-40).

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universais e que a sua providência alcança apenas as coisas necessárias. [...] Mas, porque dizer isso é herético, é preciso buscar o outro caminho, que é o da fé, e dizer que Deus não dá apenas a forma das coisas, mas que também, em virtude de sua potência infinita, produz todas as coisas (Albertus Magnus, Super Dionisii Epistulas, p. 3391-5 e 43-47)33.

Encontramos, portanto, em Alberto uma preeminência indis-cutível das verdades divinas. Em relação às filosóficas, elas são superiores, complementares e, em certa medida, diretivas, uma vez que apontam o caminho correto em caso de conflito entre as disciplinas. Em outras palavras, malgrado a autonomia e suficiên-cia da filosofia para resolver problemas teóricos, as disciplinas filo-sóficas, em particular a metafísica, são insuficientes para fornecer um conhecimento completo acerca de Deus.

Permanece, todavia, o problema de saber se as verdades divi-nas podem configurar uma disciplina científica. Após a caracteri-zação feita acima, Alberto não possui muitas alternativas, e com-preendemos o modo expeditivo com que ele responde à pergunta: Utrum theologia sit scientia?

Respondo dizendo que a teologia é a ciência mais verdadeira e que é a suma sabedoria disso que existe pelas causas mais altas, que são difíceis para o homem conhecer. Quem conhece isso é chamado sábio pelo Filó-sofo, no Livro I da Filosofia Primeira e ele chama ainda essa ciência de sabedoria (Idem, Summa Theologiae, ed. D. Siedler, p. 652-57).

Uma vez tomada a decisão de conferir o status de ciência à teologia, o mestre dominicano pode precisar sua estrutura, seu su-biectum, seus princípios e os problemas que ela deve resolver. No entanto, como teremos a ocasião de mostrar, Alberto encontrará

33 Muito antes da condenação de Tempier, essa doutrina já era vista como herética por Alberto. Mas esse indício não é suficiente para propor uma revisão da tese de van Ste-enberghen segundo a qual “cette doctrine n’a jamais été définie comme article de foi et elle est présentée comme un élément de la doctrine de la providence” (Steenberghen 17, p. 50; Hissette 7, p. 40).

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obstáculos quase intransponíveis, e sua posição final será bastante nuançada. Seu dilema consiste em tornar compatíveis duas teses: 1) o tipo mais rigoroso de conhecimento é aquele descrito pela noção aristotélica de ciência; 2) a verdade mais elevada provém da fé. Ou seja, aplicada às verdades filosóficas, a noção de ciência é perfeitamente inteligível. Os elementos estruturais são estabele-cidos de modo preciso e articulados em função de uma noção de verdade claramente definida. Mas como aplicar essa mesma es-trutura à teologia? A solução de Alberto passará, em um primeiro momento, pela modificação da noção de ciência e pelo reexame das noções de subiectum e principium. Ao final, será uma estrutu-ra mais festrutu-raca que deve ser aplicada à disciplina capaz de expressar o mais alto grau de verdade.

O subiectum da teologia

Os problemas ligados à noção de teologia como ciência ocu-param a mente de Alberto Magno desde suas primeiras obras teológicas. O primeiro artigo dos Comentários ao Livro das tenças de Pedro Lombardo (Albertus Magnus, In libros I-IV

Sen-tentiarum, ed. A. Borgnet, Paris, t. 25-30)34 versa justamente sobre

o objeto dessa disciplina. Segundo o Lombardo, a teologia trata das coisas e dos signos (res e signa). A tese suscita, todavia, uma objeção de inspiração aviceniana: res et signa não podem ser os objetos dessa disciplina, pois uma ciência não prova a existência de seu objeto, e a teologia investiga a ambos35. A resposta de Al-berto é, de início, uma divisão no seio da noção de ciência. Em sua acepção própria, aquela de origem aristotélica, uma ciência é

34 Sobre a noção albertina de teologia, consulte-se, sobretudo, Weber 23, p. 769-820, 812-6. Aí pode ser encontrada ainda uma bibliografia bastante extensa.

35 “Item, Avicenna, in primo Philosophiae dicit, quod in nulla scientia idem est su-biectum, et quaesitum in ea: sed, ut dicit Autor, circa res et signa versatur speculatio Theologiae: ergo res et signa non debent quaeri in ea: sed Auctor quaerit, ergo pecat” (Albertus Magnus, In I Sententiarum, p. 15a).

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especificada por sua estrutura, ou seja, por aquilo que ela aceita como pontos de partida e por aquilo que ela pretende provar. Nes-sa acepção, admite Alberto, nenhuma ciência investiga os seus princípios. Existe, contudo, uma segunda acepção de “ciência”: a doutrina ou conhecimento que pode ser ensinado e que deve ser apresentado de modo propício a sua aprendizagem36. Obvia-mente, uma ciência, tomada nesse sentido, pode investigar o seu sujeito, sobretudo quando se trata de coisas obscuras (occultae), como ocorre notadamente com a teologia. Posta logo no início da obra, essa distinção terá grande impacto na concepção albertina de teologia. Podemos resumi-la em uma palavra: a teologia não busca provar; ela busca ensinar. Contrariamente ao matemático ou ao filósofo da natureza, o teólogo não pode descobrir novas verdades. Ele alcança apenas uma melhor compreensão ou expli-cação das coisas e dos signos mediante a interpretação de verdades reveladas.

A mesma ideia é reforçada pela maneira pela qual Alberto descreve o subiectum da teologia. Observe-se, com efeito, que a expressão “subiectum scientiae” é ambígua. Em um sentido primeiro e geral (subiectum generaliter), o objeto (e suas partes) é tudo isso acerca do que uma disciplina trata. É nesse sentido que deveríamos compreender a afirmação de Agostinho, retomada pelo Lombardo, segundo a qual res et signa são os objetos da teologia. Isso é verdadeiro desde que os entendamos não de um modo absoluto, mas na medida em que são ordenados à realização da beatitudo e da fruitio. Em um sentido específico (subiectum specialiter), o objeto de uma ciência é aquilo acerca do qual ela prova as propriedades com base em princípios. Assim, os artigos de fé (os doze do Credo in Deum ou os quatorze do Credo in

36 “Responsio est ad hoc, quod est scientiam considerare duobus modis: uno modo in comparatione ad materiam de qua est scientia, et sic proprie scientia vocatur, et non quaerit subjectum suum, sed supponit: alio modo prout est doctrina quae faciliori modo discendi procedere habet” (Albertus Magnus, In I Sententiarum, p. 15a).

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unum Deum) e os preceitos morais que deles se seguem são ditos constituírem o objeto da teologia. São ensinados nas Sagradas Escrituras e explicados pela teologia. Enfim, em um sentido especial (subiectum speciale), o objeto é aquilo que é o mais digno de consideração por uma disciplina. Logo, Deus é o objeto da teologia. Deus não é, contudo, investigado de modo absoluto por essa disciplina, mas como princípio e fim (Alpha et Omega). As coisas que estão em Deus (sunt in ipso) são investigadas pela teologia na medida em que elas são os princípios dele provenientes (principia ab ipso).

Devemos interpretar essa tripartição do objeto como uma mudança de posição em relação às obras nas quais o mestre do-minicano se faz comentador de Aristóteles? Uma resposta defini-tiva seria, nesse momento, prematura. Assinalemos apenas que essa divisão diz respeito à doutrina teológica, e não à ciência em sentido aristotélico. Contrariamente a uma ciência, uma doutrina pode investigar seu objeto, o que ela faz segundo os três modos acima mencionados. Ademais, aos olhos de Alberto, a relação en-tre os princípios e os teoremas não é exatamente a mesma nos dois casos. Em uma demonstração científica, os princípios são as causas da verdade das conclusões, ao passo que, nos argumentos teológicos, os princípios são tão somente a causa da compreensão da conclusão.

Em outras palavras, sejam uma proposição P que descreve um evento físico e um indivíduo I que não acredita que P seja verdadeira. Segundo Alberto, que segue Aristóteles nesse ponto, I é dito ter apenas uma opinião (acredita, suponhamos, na falsidade de P) e não um verdadeiro conhecimento. Suponhamos agora que ele consiga obter uma prova de P. Ele terá obtido eo ipso o conhecimento de P. Assim, em regra geral, o conhecimento científico implica um ganho epistêmico por relação à opinião. Essa pode ser confirmada ou não. Mas o essencial é que o conhe-cimento exclui, de modo definitivo, a dúvida. Esse esquema é compartilhado por todas as disciplinas teóricas, mas não se aplica

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à teologia, a qual não tem por finalidade última afastar as dúvidas acerca das verdades divinas. Evidentemente, não é logicamente impossível que alguém seja pessoalmente convencido por argu-mentos oriundos dessa disciplina. Caso isso ocorresse, no entanto, tratar-se-ia, segundo Alberto, de um feliz acidente. O fundamen-tal é que a teologia organiza-se em função da admissão prévia das verdades divinas.

Assim, no caso da teologia, contra aquele que nega as verdades da Sagra-da Escritura não há discussão relativamente aos artigos Sagra-da fé. Mas, para aquele que concede a verdade, podem-se apresentar muitas razões [refe-rentes ao artigo] (Albertus Magnus, In I Sententiarum, p. 26b).

Não há nada de paradoxal no fato de que a teologia, a disci-plina mais elevada, não consiga provar as verdades mais elevadas. Isso significa apenas que a atividade do teólogo não é a busca da verdade, mas de sua compreensão. A verdade lhe é fornecida ab initio, pois é revelada. O teólogo não necessita prová-la, mas ape-nas compreendê-la. Ora, Alberto emprega algumas vezes as pala-vras “conhecimento” e “ciência” para falar da fé, mas, como ele explicitamente admite, o faz em uma acepção bastante específica e diferente da empregada na metafísica. O dominicano apresenta, com efeito, cinco razões para distinguir o conhecimento natural do da fé: 1) no que diz respeito à noção de ciência, o conheci-mento filosófico de Deus é um processo natural que opera por meio da razão (subest rationis), ao passo que o conhecimento da fé ultrapassa a razão (est supra rationem); 2) A noção de princípio é distinta nos dois casos. Os da teologia filosófica são evidentes (per se nota), enquanto os da teologia revelada são a luz infusa (lumen infusum) que, concedendo forma ao conhecimento, con-vence a razão mais por suscitar na vontade um amor pela verdade revelada que por intermédio de um argumento racional. Essa luz é, em realidade, um argumento da realidade não aparente que ilumina a razão e que a convida a receber os objetos da fé. Somos

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assim em face de duas maneiras radicalmente distintas de explicar a aceitação de princípios. Na primeira, eles são aceitos porque são reconhecidos como verdadeiros, a evidência não sendo outra coi-sa que um critério de verdade. Na segunda, ao contrário, o papel da verdade é praticamente aniquilado. Por óbvio, os princípios continuam a ser tomados como expressando verdades, mas as ra-zões que motivam a aceitação dos princípios são de outra ordem; 3) A causa eficiente não é a mesma. Para a razão natural, a causa eficiente é a noção (ratio) de uma realidade tomada como objeto, ao passo que, para a fé, trata-se da Primeira Verdade (prima veri-tas), a qual é simultaneamente a causa final e a eficiente da fé; 4) Há igualmente uma diferença no que toca ao objeto conhecido, pois apenas a teologia pode falar da essência divina37; 5) A fé acha-se no intelecto ativo, acha-sendo mais um ato da vontade que da razão. O conhecimento natural encontra-se, por sua vez, no intelecto especulativo, o qual não diz nada acerca do que deve ser feito ou evitado (Albertus Magnus, In I Sententiarum, p. 94a-95b).

Em suma, a teologia funda-se na fé, e essa não é uma ciên-cia. Ora, uma proposição é científica se, e somente se, ela é: a) um princípio ou verdade evidente (manifestum per se); ou b) uma conclusão, ou seja, uma proposição provada com base nos princípios. Mas nenhuma dessas duas condições é satisfeita pela fé. Não sendo nem evidentes nem demonstráveis, as verdades da fé ultrapassam a razão. Logo, pode-se concluir que a fé não per-tence ao gênero das ciências (id., ibid.). Isso não implica, toda-via, que a teologia seja idêntica à fé. “Teologia”, “fé” e “Sagradas Escrituras” são, na verdade, três noções distintas, mas interde-pendentes, pertencentes à religião cristã. As Sagradas Escrituras relatam os eventos individuais ou particulares, ao passo que a teologia, enquanto doutrina, ocupa-se dos universais. Trata-se aqui de um problema recorrente nos debates teológicos. A

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ção de Alberto reside na separação do dictum das Escrituras e da ratio dicti investigada pela teologia (McInerny 11, p. 54-5). A fé é, por sua vez, uma virtude; mais precisamente uma das virtudes teológicas. Ela é a virtude pela qual acreditamos nas coisas que não vemos. Não se trata de qualquer coisa, mas unicamente das religiosas. É a fé que fornece os princípios pelos quais a teologia pode tratar de Deus. E, como os princípios descrevem o objeto mais alto da maneira mais elevada, a teologia suplanta em digni-dade as disciplinas filosóficas:

Esta ciência [i.e., a teologia] é dita ser a sabedoria no sentido principal do termo: conhecimento do altíssimo e do modo mais elevado, pois trata de Deus por meio dos princípios da fé. As demais ciências que fo-ram inventadas pelos filósofos também são ditas sabedoria, pois tratam das coisas elevadas, mas não do modo mais elevado. Tratam através de princípios que são submetidos à razão (Albertus Magnus, In I

Senten-tiarum, p. 19a).

Encontraremos a mesma problemática em uma das últimas obras de Alberto, a Summa Theologiae sive de Mirabile Scientia Dei (1270). Nela, o pensador de Colônia volta a ocupar-se das mesmas questões, mas as posições centrais tornam-se mais pre-cisas em relação aos Comentários ao Livro das Sentenças. Desde o prólogo, a ênfase recai sobre a superioridade da ciência das Sa-gradas Escrituras. Essa pretensa superioridade repousa, todavia, em uma distinção implícita e que será explicitada por Tomás de Aquino: segundo a natureza, a teologia é a disciplina capaz do mais alto grau de verdade; segundo o intelecto humano, esse lugar é reservado à metafísica. A distinção é, com efeito, um pressuposto necessário para o tipo de argumento desenvolvido por Alberto, ainda que o dominicano pareça nem sempre querer aceitá-la. Ele acredita poder escapar à dificuldade por sua teoria da luz divina, a qual lhe permite demarcar-se de seu aluno mais

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brilhante, Tomás de Aquino38.

Não obstante a complexidade da teoria acerca da evidência das primeiras verdades, a tensão que encontramos nos Comentá-rios ao Livro das Sentenças reaparece com toda a sua força. Alberto termina por aceitar algumas conclusões inevitáveis estabelecidas por Tomás de Aquino como pontos que caracterizam a teologia, mesmo se elas signifiquem um verdadeiro impasse para sua teo-ria. De maneira previsível, Alberto anuncia na Metaphysica uma separação clara entre as disciplinas filosóficas e a teologia:

A teologia não está de acordo com a filosofia no que diz respeito aos princípios, pois funda-se na revelação e na inspiração, e não na razão, de modo que não podemos discutir na filosofia sobre essas coisas (Albertus Magnus, Metaphysica, p. 54225-29).

38 Eis os textos:

Tomás de Aquino S. Th. I, q. 1, a. 5 ad 1, p. 16b

AdprimumergodiCendum quod nihil prohibet id quod est certius secundum naturam, esse quoad nos minus certum, propter debilitatem intellectus nostri, qui se habet ad manifestissima naturae,

sicut oculus noctuae ad lumen solis, sicut

dicitur in II Metaphys. Unde dubitatio quae accidit in aliquibus circa articulos fidei, non est propter incertitutem rei, sed propter debilitatem intellectus hu-mani. Et tamen minimum quod potest haberi de cognitione rerum altissima-rum, desiderabilius est quam certissima cognitio quae habetur de minimis re-bus, ut dicitur in XI de Animalibus.

Albertus Magnus

Summa Theologiae, Prologus, p. 325-43

Cum igitur iam constet, quod haec scientia est de scibili primo, prout lux luminum est in seipso et relucens in om-nibus aliis, constat, quod in ipsa maxime quiescit animus hominis.

Et si obicitur, quod dicit phiLosophus, quod “dispositio nostri intellectus ad manifestissima naturae est sicut disposi-tio oculorum vespertilionum ad lumen solis”, oculus autem vespertilionis nihil videt in lumine solis, sed fugit ipsum, ergo et intellectus noster manifestissima et prima fugiet et non quiescit in eis: dicimus, quod hoc accidit oculis vesper-tilionis, inquantum sunt vespervesper-tilionis, non inquantum sunt oculi. Oculi qui-ppe herodii applicantur lumini solis in rota et quiescunt in ipso. Et sic accidit intellectui, inquantum noster est, hoc est cum continuo et tempore, reverbera-ri a naturae manifestissimis et preverbera-rimis. In-quantum autem intellectus est et quae-dam natura divina, ut dicit phiLosophus in X eThiCorum, nihil adeo convenit ei sicut quiescere in primis.

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Essa cisão entre as duas disciplinas precisa ser explicada por uma demarcação de domínios, o que será feito na Summa Theolo-giae. Evidentemente, não basta afirmar que a teologia é uma ciên-cia segundo a religião (secundum pietatem) ou que a fé é uma luz que põe o crente em contato com a primeira verdade, ultrapas-sando as capacidades da razão natural. É preciso ainda mostrar a estrutura e o método específico dessa disciplina. Voltamos assim, pela mão de Alberto, novamente à pergunta: “qual é o subiectum dessa disciplina?” Preocupado em tornar compatíveis quatro posi-ções sobre o tema (a de Agostinho, res et signa; a de Hugo de São Victor, opera reparationis; a dos Salmos, Cristus et ecclesia; e uma quarta, Deus), Alberto parece desdizer-se, modificando sua antiga tese não apenas sobre o objeto da teologia, mas também sobre o da metafísica. Abandona a afirmação segundo a qual uma ciência não possui senão um único objeto, optando por uma concepção tripartite: a) o objeto da parte principal; b) as afecções e proprie-dades de suas partes; c) tudo o que é a serviço das duas primeiras acepções. No primeiro sentido, a teologia e a metafísica possuem o mesmo objeto: Deus. No segundo, a teologia trata de Cristo, da Igreja e das opera reparationis, ao passo que a metafísica tem por objeto o ente e suas afecções, a saber, unum et multa, poten-tia et actus, necesse ens et possibile. Por fim, no terceiro sentido, a teologia ocupa-se das res et signa, enquanto a metafísica versa sobre as posições dos antigos filósofos e os princípios próprios da demonstração.

Como foi observado por A. Zimmermann, essa posição não é original para um pensador do século XIII (Zimmermann 25, p. 149). O surpreendente é a maneira lacônica com que Alberto realiza essa mudança de posição. A interrogação aviceniana, ado-tada em outras obras, desaparece completamente sem que nenhu-ma justificação seja dada. Sem dúvida, encontramos ainda traços da tendência, que se insinuava já na Metaphysica, de pôr Deus como a causa do objeto daquela disciplina, o que pode mesmo ser interpretado como uma antecipação da tese de Tomás

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(Cour-tine 5, p. 107-8). Mas o mestre dominicano não explora essa via. Além disso, encontramos na mesma Metaphysica uma passagem ambígua na qual Alberto afirma que essa ciência trata de quatro coisas, mas, como as duas listas apresentadas são distintas, não temos elementos para falar de uma verdadeira evolução histórica (Albertus Magnus, Metaphysica, p. 2861-90).

As razões que motivaram essa mudança permanecem para nós ignoradas. Contentar-nos-emos, contudo, em salientar um aspecto da questão que nos parece de suma importância: mal-grado a origem filosófica de certas noções, é no momento de precisar a estrutura da teologia que as discussões acerca do su-jeito, do conhecimento, da verdade, da ciência, etc. tornam-se relevantes. Aos olhos do mestre de Colônia, era a teologia, e não a metafísica, que precisava encontrar um fundamento. Era a estrutura daquela que demandava uma análise mais detalhada. O caráter inusitado das respostas revela, talvez, a marca de um pensamento que sentia a insuficiência de suas posições anterio-res e que buscava sempre encontrar o bom caminho a seguir. Mas quais eram essas insuficiências? Tampouco para essa ques-tão dispomos de uma resposta definitiva, devido ao laconismo adotado por Alberto. Se precisássemos sugerir uma, pensaríamos nas tensões e hesitações que descrevemos nas páginas preceden-tes. Essa hipótese pode ser reforçada se considerarmos as preci-sões que a Summa acrescenta. Enfatizemos algumas que dizem respeito à teologia.

Em primeiro lugar, pode-se constatar um sensível aumento na importância concedida à analogia. Nos comentários às Senten-ças, a noção era empregada para explicar a unidade da teologia e para diferenciá-la tanto da philosophia prima quanto das demais ciências. A tese central era que a unidade da teologia não provém de uma coisa que seja o sujeito de diversos acidentes, como é o caso da substância em relação aos acidentes. Ela depende antes de algo que é uno segundo uma certa proporção, ou seja, uno

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por relação ao fim que torna feliz39. Ora, essa precisão é decisiva, pois separa, em última instância, a teologia e a metafísica. Com efeito, a metafísica dispõe igualmente de uma unidade analógi-ca, pois considera as partes do ens enquanto essas se relacionam com a substância40, ao passo que a teologia considera as realidades

(res) não enquanto realidades, mas enquanto participantes da be-atitude. Na Summa, o problema da unidade da teologia adquire uma dimensão completamente distinta em razão da pluralidade de objetos dessa disciplina. Não basta mais dizer que a unidade é proportione ad unum quod est finis beatificans. É preciso agora passar a uma teoria da forma e de suas diversas maneiras de ser, a principal das quais é ser simpliciter. O argumento de Alberto possui dois momentos. De início, distingue a teologia das ciências particulares. Em seguida, particulariza-a em relação à metafísica. O problema é fundamentalmente o mesmo no caso das duas dis-ciplinas, na medida em que ambas compartilham certas caracte-rísticas. Ambas não investigam uma espécie ou modo do ente e ambas possuem um pluralidade de objetos. Em outros termos, se a unidade de uma disciplina não resulta de seu objeto, ela deve ao menos depender de uma noção que lhe é comum. E, como essa comunidade não pode ser da ordem do gênero ou da espécie, ela é analógica. A unidade do gênero confere unidade às ciências par-ticulares. Já a unidade analógica confere-a às ciências comuns41.

Essa última afirmação revela-se, contudo, problemática, exi-gindo uma precisão suplementar, segunda etapa do argumento de Alberto. Consideremos a seguinte questão: a teologia é, de fato,

39 “Dicendum est, quod haec scientia una est proportione non ad unum quod subjec-tum sit aliorum, sicut substantia subjecsubjec-tum est accidentium: sed proportione ad unum quod est finis beatificans” (Albertus Magnus, In I Sententiarum, p. 17b).

40 “Scientia universalis licet non uniatur genere uno, unitur tamen proportione ad unum, sicut prima Philosophia quae considerat partis entis, secundum quod per analo-giam respiciunt substantiam” (id., ibid., p. 17b).

41 “Unitas enim generis facit unitatem scientiae specialis, unitas autem analogiae facit unitatem scientiae communis” (idem, Summa Theologiae, p. 1313-15) e “[…] et talis unitas est primae philosophiae et theologiae” (id., ibid., p. 136-7).

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uma ciência universal? Segundo o que acabamos de ver, uma resposta positiva pareceria impor-se. Ela traria consigo, todavia, o inconveniente de transformar a teologia na ciência dos primeiros princípios42, e esta se tornaria assim indiscernível da metafísica. A única solução possível parece, então, consistir em dizer que a teologia não é nem universal nem particular43. A afirmação parece paradoxal. Ela é, na verdade, uma etapa importante na caracte-rização da teologia. Ela implica que esta não é uma disciplina teórica, conclusão que será explorada em detalhes pelo mestre de Colônia na questão 4 do Primeiro Tratado, a saber: Utrum theo-logia sit scientia ab aliis scientiis separabilis? A resposta depende da caracterização dos elementos estruturais da disciplina, ou seja, da determinação do objeto, de suas propriedades, bem como dos princípios dos quais partem os seus argumentos44.

Se acrescentarmos que a teologia é mais prática do que teóri-ca, torna-se difícil45 ver exatamente por que a teologia suplanta a

42 “Sicut ergo omnes particulares scientiae principia sua accipiunt a scientia universali, quae prima philosophia est, sic a theologia accipient, si ipsa est scientia universalis; hoc autem falsum est. Ergo theologia non est scientia universalis” (Albertus Magnus,

Summa Theologiae, p. 1418-22).

43 “Ad quod dicendum, quod theologia proprie loquendo nec est particularis, nec uni-versalis. Proprie enim universalis est, quae est de ente, quod universale est essentialiter omnibus. Particularis autem, quae est de aliqua specie entis sive parte entis per formam substantialem coartati sub ente communi sicut sub principio, et non sub genere. The-ologia autem non de ente ut ens nec de partibus entis est, ut partes entis sunt, sed est de ente determinato per formam analogiae ad id quo fruendum est, et est de partibus entis, secundum quod specialem habent analogiam ad illud. Et ideo non simpliciter est universalis vel particularis, sed quodammodo est et universalis et particularis” (id.,

ibid., p. 1423-36).

44 “[…] haec scientia separatur ab aliis subiecto, passione et principiis confirmantibus ratiocinationem. Subiecto quidem, quia in aliis scientiis subiectum est ens vel pars entis, a natura vel a nobis causata, ut dicit Avicenna in principio suae Metaphysicae In theologia autem subiectum est fruibile vel relatum ad ipsum per modum signi vel utilis. Passione autem, quia quod in hac scientia ostenditur de subiecto, vel divinum attribu-tum est vel ordinaattribu-tum ad ipsum; in aliis autem scientiis proprietas entis est a nobis vel a natura causati. Principio vero, quia quod in ista scientia probatur, per fidem, quae est articulus, quod creditur, vel antecedens fidem, quod est scriptura, vel per revelationem probatur ut per principium; quod autem in aliis scientiis probatur, probatur per princi-pium, quod est dignitas vel maxima propositio” (id., ibid., p. 1517-32).

45 “In veritate sacra scriptura practica est” (id., ibid., p. 1358-59). Para a interpretação dessa tese, consulte-se Weber 22, p. 559-88.

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metafísica e as demais disciplinas especulativas. Pareceria tratar-se antes de uma outra espécie de discurso, e não do científico, um discurso que escaparia aos modelos de cientificidade. Alberto reconhece a dificuldade e tenta evitá-la mostrando que a teologia possui o mais alto grau de certeza, especificando seu método de argumentação e, finalmente, sustentando que todas as demais dis-ciplinas são ancillae theologiae.

No que diz respeito ao grau de certeza, Alberto supõe, como já dissemos, a distinção entre o mais certo em si e o mais certo para nós. Com efeito, o dominicano parte de uma dupla gradação da verdade. De um lado, existem as verdades que são ilimitadas, não criadas e eternas; de outro, as verdades criadas. A disciplina capaz do mais alto grau de certeza é aquela que parte da verdade mais alta, e esse é justamente o caso da teologia46. O binômio “criado

vs. eterno” é, assim, a pedra de toque da argumentação. Ocorre ainda aqui um apelo indireto à ideia aristotélica segundo a qual não há ciência a não ser do necessário, pois o eterno é imutável e, portanto, necessário. Poder-se-ia, contudo, objetar que essas ver-dades não são per se notae, sendo, a esse título, menos evidentes que as verdades de que tratam a metafísica e as demais disciplinas. Mas a objeção não prospera. As ciências partem de verdades per se notae em virtude da relação entre o sujeito e o predicado nas naturezas criadas, ao passo que a teologia parte dessas que são per

se notae in luce prima veritate47. Segue-se, portanto, que essas são

as verdades mais certas. Ademais, nada impede que o mais certo se ache justamente no discurso menos evidente48.

46 “Theologia autem innititur primae veritati incircumscriptae et increatae et aeternae, aliae vero scientiae veritatibus creatis, et ideo nec primis, nec immutabilibus nec aeter-nis, quia omne creatum ut dicit Damascenus, vertibile sive mutabile est; theologia ergo certior omnibus est” (Albertus Magnus, Summa Theologiae, p. 182-6).

47 “aliae scientiae ex per se notis procedunt secundum habitudinem subiecti ad prae-dicatum in natura commutabili creata, theologia autem ex per se notis in luce primae veritatis et immutabilis et increatae, et ideo omnibus certior est” (id., ibid., p. 1824-29). 48 “nihil prohibet certius esse id quod relucet in sermone non manifesto, quam id quod relucet in sermone manifesto” (id., ibid., p. 1830-32).

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Em resumo, o modo propriamente teológico de argumentar é sensivelmente diferente daquele empregado pelas disciplinas especulativas. Alberto já se havia pronunciado acerca disso nos comentários às Sentenças, e ali ele explicava que a teologia é antes uma doutrina que uma ciência. Dessa vez, contudo, o modelo escolhido aproxima-se mais do método dialético no sentido aris-totélico do termo. Trata-se de sustentar a plausibilidade de uma tese com base na aceitação prévia de outras teses, a saber, dos artigos da fé, das Sagradas Escrituras ou das verdades reveladas. Não se trata de argumentar em favor da verdade primeira, a qual permanece em si ininteligível, mas com base nela e de modo que se alcance o que é primeiro para nós49. E isso não implica, como queria uma certa objeção, que a teologia não possa tornse ar-gumentativa porque parte da fé. Ora, os argumentos que o ser humano é capaz de desenvolver são sempre restritos aos limites da razão, ao passo que a fé ultrapassa esses limites50. No entanto, isso não impede que a fé possa, por ela mesma e com base nas con-sequências do que é objeto de fé (ex posterioribus crediti), buscar a inteligibilidade pela razão. Contrariamente ao que se passa nas disciplinas especulativas, a investigação teológica não se define como uma pesquisa pela verdade. Trata-se antes de compreender uma tese, e não de prová-la.

Mas como é possível que alguém aceite a verdade de uma tese sem a compreender? Uma comparação com o proceder cien-tífico pode esclarecer o ponto. Segundo a concepção aristotélica de ciência, diversas razões podem levar alguém a aceitar a ver-dade de uma proposição, mas apenas um certo grupo de razões caracteriza-se como digno de produzir ciência: o das razões que

49 “quia licet ratio non possit in primam veritatem, eo quod super ipsam est ex priori-bus simpliciter, facit tamen persuasionem ex posterioripriori-bus, quae priora sunt quoad nos” (Albertus Magnus, Summa Theologiae, p. 1977-80).

50 “Adhuc, teologia fidei innititur, fides autem supra rationem est. Omnis autem argu-mentatio de his est quae sub ratione sunt; ergo theologia arguargu-mentatione uti non potest” (id., ibid., p. 199-12).

Referências

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