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Academic year: 2021

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A Morte da Competência

Os Perigos da Campanha contra o Conhecimento Estabelecido

Tradução de Bruno Vieira Amaral

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Prefácio

A «MORTE DA COMPETÊNCIA» é uma daquelas expressões que

anunciam com grandiloquência a sua própria importância. É um título que corre o risco de alienar muitas pessoas antes sequer de abrirem o livro, e que quase desafia o leitor a encontrar algures um erro que envergonhe o autor. Compreendo a reação porque sinto o mesmo em relação a semelhantes declarações radicais. A nossa vida cultural e literária está cheia destes funerais anteci-pados de tudo e mais alguma coisa: da vergonha, do senso co-mum, da masculinidade, da feminilidade, da infância, do bom gosto, da literacia, da vírgula de Oxford e por aí fora. A última coisa de que todos precisamos é de mais um tributo a uma coisa que ainda nem sequer morreu.

Mas, embora a competência não esteja morta, está em difi-culdades. Alguma coisa está a correr terrivelmente mal. Os Estados Unidos são hoje um país obcecado em venerar a sua própria ignorância. Não se trata apenas de as pessoas não saberem muito sobre ciência, política ou geografia. É verdade que não sabem, mas esse problema é antigo. Na verdade, isso nem sequer é um problema, na medida em que vivemos numa sociedade que fun-ciona com base na divisão do trabalho, um sistema planeado para aliviar cada um de nós do fardo de ter de saber tudo. Os pilotos

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pilotam aviões, os advogados põem processos, os médicos pres-crevem medicamentos. Nenhum de nós é um Da Vinci, a pintar a Mona Lisa de manhã e a projetar helicópteros à tarde. É assim que deve ser.

Não, o grande problema é que nos orgulhamos de não saber. Os americanos atingiram um ponto em que a ignorância, sobre-tudo a que se refere às políticas públicas, é uma verdadeira virtude. Rejeitar a opinião dos especialistas equivale a uma pro-clamação de autonomia, uma forma de os americanos protegerem o seu ego cada vez mais sensível da possibilidade de alguém lhes dizer que estão errados. É uma nova Declaração da Independên-cia: já não defendemos que estas verdades são evidentes, defende-mos que todas as verdades são evidentes, mesmo as que não são verdadeiras. Tudo é passível de se conhecer e uma opinião sobre qualquer assunto vale tanto como outra qualquer.

Isto não é a mesma coisa que a desconfiança tradicional dos americanos em relação aos intelectuais e aos tudólogos. Sou pro-fessor e apercebo-me disso: a maioria das pessoas não gosta de professores. Quando comecei a minha carreira no ensino, há qua-se 30 anos, foi numa faculdade não muito longe do lugar onde eu vivia, e por isso parava de vez em quando na tasca do meu ir-mão para cumprimentar as pessoas. Certa noite, depois de eu sair, um dos clientes virou-se para o meu irmão e disse: «É pro-fessor, hã? Mas parece ser boa pessoa.» Nesta profissão, habitua-mo-nos a isto.

Mas não foi por isso que escrevi este livro. Os intelectuais que se indignam com acusações sobre a inutilidade dos intelec-tuais deviam procurar outra profissão. Fui professor, conselheiro político, trabalhei como especialista quer para o governo, quer para empresas privadas, e fui comentador em diversos órgãos de comunicação social. Estou habituado a que as pessoas discordem

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de mim. Até as encorajo a discordar. Discussões sérias e funda-mentadas são um sintoma de vigor e de vitalidade intelectuais numa democracia.

Se escrevo este livro é por estar preocupado. Estas discus-sões sérias e fundamentadas já não existem. O conhecimento de base do americano médio é tão baixo que este há muito deixou de estar «desinformado», passou a fase de estar «mal informado» e vai agora a caminho de se afundar no «agressivamente errado». As pessoas não se limitam a acreditar em coisas parvas, mas re-sistem ativamente a aprender só para não terem de abdicar des-sas crenças. Não vivi na Idade Média, por isso não posso dizer que seja uma situação inédita, mas não me lembro de ver nada assim.

Não quero com isto dizer que é a primeira vez que medito sobre o assunto. No final dos anos 80, quando estava a trabalhar em Washington, apercebi-me da rapidez com que as pessoas, mesmo em conversas informais, me diziam imediatamente o que devia ser feito num conjunto de áreas, mesmo em áreas que eu dominava, como a do controlo dos armamentos e a da política externa. (Normalmente, «o que devia ser feito» significava «o que eles têm de fazer».) Eu era jovem e com pouca experiência, mas ficava espantado com a forma como pessoas que não tinham a mínima ideia sobre o assunto me davam instruções convictas so-bre a melhor maneira de conseguir um acordo entre Moscovo e Washington.

Até certo ponto, isto era compreensível. A política convida à discussão. E, sobretudo durante a Guerra Fria, quando estava em jogo a aniquilação global, as pessoas queriam ser ouvidas. Aceitei o facto como o mal necessário de ter de trabalhar no mundo da política governamental. Com o tempo, fiquei a saber que vários especialistas em diferentes áreas de intervenção ti-nham passado pelo mesmo, submetidos por leigos a elucubra-ções irrealistas sobre impostos, orçamento, imigração, ambiente

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e muitos outros assuntos. Quando se é perito em política, isso faz parte do trabalho.

Contudo, mais recentemente, comecei a ouvir histórias idênticas da parte de médicos. E de advogados. E de professo-res. E, na verdade, de muitos outros profissionais cuja opinião geralmente não é fácil de rebater. Estas histórias surpreende-ram-me: não eram sobre pacientes ou clientes que faziam per-guntas sensatas, mas sobre esses mesmos pacientes e clientes a explicarem convictamente àqueles profissionais porque é que a opinião deles estava errada. Em todos estes casos, a ideia de que o perito sabia o que estava a fazer era praticamente rejeitada à partida.

Pior, aquilo que me choca particularmente hoje em dia não é que as pessoas descartem a competência, mas a frequência com que o fazem, em relação a assuntos tão diversos, e a raiva com que o fazem. Repito: pode ser que os ataques ao conhecimento especializado sejam mais visíveis devido à ubiquidade da Internet, à natureza desregrada das conversas nas redes sociais ou às exi-gências dos ciclos noticiosos de vinte e quatro horas. Mas há nes-ta nova rejeição do conhecimento especializado, pelo menos para mim, uma presunção e uma fúria que não é apenas desconfiança, vontade de questionar ou de procurar alternativas: é narcisismo, ao qual se junta um desdém pela competência numa espécie de exercício de autodidatismo.

Isto torna muito mais difícil que os peritos reajam e insis-tam para que as pessoas tenham juízo. Seja qual for o assunto, a discussão perde-se numa espiral de egos enfurecidos e termina sem que as opiniões mudem, por vezes com custos para relações profissionais e de amizade. Em vez de rebater os argumentos, es-pera-se que, na pior das hipóteses, os peritos aceitem essas dis-cordâncias como salutares divergências de opinião. Presume-se

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1Locais onde ocorreram duas importantes batalhas da Guerra do

Viet-name, a de Khe Sanh em 1968, e a de Ia Drang em 1965. (N. do T.)

que temos de «concordar em discordar», frase que é agora utilizada a torto e a direito como um extintor coloquial. E se insistirmos que nem tudo se situa no campo da opinião, que há coisas que estão certas e outras que estão erradas, então é porque obviamen-te somos uns idiotas.

É possível, presumo, que eu seja apenas o sintoma de uma mudança geracional. Cresci durante as décadas de 60 e 70, numa época em que os peritos talvez fossem demasiado respeitados. Era aquele período inebriante em que a América estava na van-guarda não só da ciência, mas da liderança internacional. Os meus pais eram pessoas informadas mas sem muitos estudos que, tal como a maioria dos americanos, presumiam que as pessoas que tinham posto o homem na Lua provavelmente sabiam mais sobre outros assuntos importantes. Não cresci num ambiente de obediência absoluta à autoridade, mas, no geral, a minha família não destoava das outras ao confiar que quem trabalhava em áreas específicas, da podologia à política, sabia o que estava a fazer.

Os críticos do conhecimento especializado dizem, e com toda a justiça, que naquela altura depositávamos a confiança em pessoas que tinham levado Neil Armstrong ao Mar da Tranquilidade, mas que também tinham levado milhares de americanos muito menos célebres a lugares como Khe Sanh ou o Vale de Ia Drang, no Vietname1.

Contudo, agora estamos a caminhar na direção oposta. Já não alimentamos uma desconfiança salutar em relação aos peri-tos: em vez disso, ficamos ofendidos com eles, com muitas pes-soas a defender que os peritos estão errados pelo simples facto de serem peritos. Apupamos os «intelectuais» — insulto que está outra vez na moda —, enquanto explicamos ao nosso médico

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qual o medicamento de que necessitamos ou enquanto insistimos com os professores que as respostas dos nossos filhos nos testes estão certas, mesmo que estejam erradas. Não só ninguém é mais inteligente do que ninguém, como somos os mais inteligentes de sempre. E estamos bem enganados.

São muitas as pessoas a quem devo agradecer pela ajuda que me deram para escrever este livro e ainda mais aquelas que devo absolver de qualquer associação com as opiniões e conclusões nele veiculadas.

Em 2013, comecei por escrever no meu blogue pessoal, The

War Room, um post que intitulei «The Death of Expertise»

[A Morte da Competência]. Sean Davis, do Federalist, reparou nessa publicação e contactou-me para escrever um artigo sobre o assunto. Estou grato ao Sean e ao Federalist por terem acolhido o artigo, que em pouco tempo foi lido por mais de um milhão de pessoas em todo o mundo. Foi então que David McBride, da Oxford University Press, leu o artigo e me contactou para escre-ver um livro a partir da tese central do artigo. Os seus conselhos e orientação editorial foram fundamentais para desenvolver o argu-mento numa extensão maior, e agradeço a ele e à Oxford, bem como aos avaliadores anónimos do projeto, por trazerem o livro à luz do dia.

Tenho a sorte de trabalhar no US Naval War College, e muitos dos meus colegas aí, incluindo David Burbach, David Cooper, Steve Knott, Derek Reveron e Paul Smith, entre outros, deram-me as suas opiniões e informação. Mas as opiniões e con-clusões que constam do livro são minhas: de forma alguma repre-sentam a opinião de qualquer outra instituição ou de qualquer agência governamental americana.

Muitos amigos e correspondentes de diversas áreas tiveram a amabilidade de comentar, ler capítulos ou responder a inúmeras

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questões fora da minha área de conhecimento, e neles estão incluídos Andrew Facini, Ron Granieri, Tom Hengeveld, Dan Kaszeta, Kevin Kruse, Rob Mickey, Linda Nichols, Brendan Nyhan, Will Saletan, Larry Sanger, John Schindler, Josh Sheehan, Robert Trobich, Michael Weiss, Salena Zito e, espe-cialmente, Dan Murphy e Joel Engel. Devo um agradecimento especial a David Becker, Nick Gvosdev e Paul Midura pelos co-mentários aos vários esboços do manuscrito.

Estou profundamente grato à Harvard Extension School, não apenas pela oportunidade de lecionar no curso, mas também pelos inúmeros e excelentes assistentes de investigação que a es-cola fornece aos docentes. Kate Arline foi uma auxiliar preciosa neste projeto: até mesmo às perguntas mais insólitas ela respon-deu com rapidez e desenvoltura. (Quer saber quantos estabeleci-mentos de fast-food abriram na América desde 1959? A Kate tem a resposta.) Contudo, quaisquer erros e interpretações incor-retas no livro são da minha exclusiva responsabilidade.

Escrever um livro pode ser uma experiência maravilhosa e envolvente para o autor e uma experiência muito diferente para quem o rodeia. A minha mulher, Lynn, e a minha filha, Hope, foram tão pacientes como sempre durante o tempo em que estive a escrever este livro, e devo-lhes toda a gratidão por me aturarem durante o processo de escrita. Dedico o livro a ambas, com amor. Por último, tenho de agradecer às pessoas que me ajudaram a escrever o livro, mas que, por razões óbvias, preferem manter o anonimato. Agradeço aos muitos profissionais da área da medici-na, jornalistas, advogados, professores, analistas políticos, cientis-tas, académicos, peritos militares e outros que partilharam as suas experiências e ofereceram as suas histórias para este livro. Sem eles não poderia tê-lo escrito.

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Espero que, de alguma forma, este livro ajude estes e outros peritos no trabalho deles. Mas, em última análise, os clientes de todos estes profissionais são as pessoas que fazem parte das socie-dades em que eles vivem, e é por isso que, acima de tudo, espero que este livro ajude os meus concidadãos a compreender e a re-correr mais eficazmente aos peritos dos quais todos dependemos. Mais do que qualquer outra coisa, espero que este livro contribua para reduzir o fosso que separa os peritos dos leigos e que, a lon-go prazo, ameaça não só o bem-estar de milhões de americanos, mas também a sobrevivência do nosso projeto democrático.

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Introdução

A morte da competência

«Existe, e sempre existiu, nos Estados Unidos um culto da ignorância. A cor-rente do anti-intelectualismo tem sido um padrão constante que atravessa a nossa vida política e cultural, alimentada pela ideia falsa de que democracia significa que “a minha ignorância vale o mesmo que o teu conhecimento”.» ISAACASIMOV

NO INÍCIO DOS ANOS90, um pequeno grupo de «negacionistas da

SIDA», incluindo Peter Duesberg, um professor da Universidade da Califórnia, atacava, enfrentando praticamente toda a comunida-de médica, a icomunida-deia estabelecida comunida-de que o vírus da imunocomunida-deficiência humana (VIH) era a causa da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (SIDA). A ciência evolui com estes desafios contrain-tuitivos, mas não havia provas que sustentassem as crenças de Duesberg, que acabaram por se revelar completamente infunda-das. Logo que os investigadores descobriram o VIH, médicos e res-ponsáveis pela saúde pública conseguiram salvar inúmeras vidas através de medidas destinadas a prevenir a transmissão do vírus.

A teoria de Duesberg poderia ter acabado derrotada pela in-vestigação, como acontece com tantas outras teorias rebuscadas. A história da ciência está repleta de becos sem saída semelhantes. Contudo, neste caso, uma ideia desmentida conseguiu, ainda as-sim, chamar a atenção de um líder político, com resultados que vieram a revelar-se letais. Thabo Mbeki, na altura presidente da África do Sul, pegou na ideia de que a SIDA não era causada por um vírus, mas por outros fatores, como a desnutrição e um estado

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1Pride Chigwedere et al., «Estimating the Lost Benefits of Antiretroviral

Drug Use in South Africa», Journal of Acquired Immune Deficiency Syndromes 49 (4), 1 de dezembro de 2008.

de saúde debilitado, e, como tal, rejeitou a oferta de medicamentos e de outras formas de auxílio para combater a infeção por VIH na África do Sul. Em meados da primeira década do século XXI,

o seu governo cedeu, mas só depois de a fixação de Mbeki no ne-gacionismo da SIDA ter custado, pelas contas dos médicos da Harvard School of Public Health, bem acima de 300 mil vidas e o nascimento de cerca de 35 mil crianças seropositivas cuja infe-ção poderia ter sido evitada1. Até hoje, Mbeki está convencido de que havia ali qualquer coisa.

Muitos americanos podem fazer pouco deste tipo de igno-rância, mas não deviam confiar em demasia nas suas próprias capacidades. Em 2014, o Washington Post perguntou aos america-nos se pensavam que os Estados Unidos deveriam intervir militar-mente no seguimento da ocupação russa da Ucrânia. Os Estados Unidos e a Rússia são velhos inimigos desde os tempos da Guerra Fria e ambos possuem armas nucleares de longo alcance. Um conflito militar no centro da Europa, mesmo junto à fronteira com a Rússia, corre o risco de desencadear uma Terceira Guerra Mundial de potenciais consequências catastróficas. Contudo, apenas um em cada cinco americanos — e menos de um em cada quatro licenciados — conseguia identificar a Ucrânia num mapa. A Ucrânia é o maior país com território exclusivamente na Euro-pa, e mesmo assim a mediana das respostas falhou o alvo por 2900 quilómetros.

É fácil errar em testes com mapas. O mais preocupante é que esta falta de conhecimento não impediu os inquiridos de manifestarem opiniões muito seguras sobre o assunto. Na verda-de, isto é um eufemismo: o público não só exprimiu opiniões contundentes, como manifestou entusiasmo por uma intervenção

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1Kyle Dropp, Joshua D. Kertzer e Thomas Zeitzoff, «The Less Americans

Know About Ukraine’s Location, the More They Want U.S. to Intervene»,

Monkey Cage Blog, Washington Post online, 7 de abril de 2014.

militar na Ucrânia na direta proporção do seu desconhecimento sobre

a Ucrânia. Por outras palavras, as pessoas que situaram a Ucrânia

na América Latina ou na Austrália eram as mais empolgadas com o recurso à força pelo Exército dos Estados Unidos.1

Vivemos tempos perigosos. Nunca tantas pessoas tiveram tanto acesso a tanto conhecimento, sendo completamente resis-tentes a aprender seja o que for. Nos Estados Unidos e noutros países desenvolvidos, pessoas que podem ser consideradas inteli-gentes desvalorizam os feitos intelectuais e rejeitam a opinião dos peritos. Há um número cada vez maior de leigos a quem faltam conhecimentos básicos e que rejeitam a regra do ónus da prova e se recusam a aprender a elaborar um argumento lógico. Ao fazê--lo, arriscam-se a desperdiçar séculos de conhecimento acumula-do e a enfraquecer as práticas e os hábitos que nos permitem desenvolver mais conhecimentos.

Trata-se de algo mais do que um ceticismo natural em rela-ção aos peritos. Temo que estejamos a testemunhar a morte do

ideal de competência em si, um colapso da separação entre

profis-sionais e leigos, alunos e professores, sábios e opinadores — por outras palavras, entre aqueles que fizeram alguma coisa em qual-quer área e os que não fizeram nada — alimentado pelo Google, fundado na Wikipédia e disseminado pelos blogues.

Os ataques ao conhecimento estabelecido e a forma como disseminam informação errada pelo público em geral são por ve-zes divertidos. Às veve-zes são mesmo hilariantes. Os humoristas dos talk shows do serão inventaram uma indústria a fazer pergun-tas às pessoas que revelam a sua ignorância em relação às ideias que defendem fervorosamente, a sua fixação com as modas e a

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sua incapacidade de admitir que não sabem nada sobre temas da atualidade. Por exemplo, não vem nenhum mal ao mundo quan-do as pessoas afirmam eloquentemente que evitam o glúten e de-pois são obrigadas a admitir que não fazem a mínima ideia do que seja o glúten. E sejamos honestos: ver pessoas a improvisar opiniões de modo confiante sobre cenários tão estapafúrdios como «o impacto positivo da ausência de Margaret Thatcher em Coachella num ataque nuclear da Coreia do Norte» é uma coisa que nunca perde a graça.

Contudo, quando se trata de questões de vida ou morte, não há graça que resista. As artimanhas patetas de cruzados antivaci-nas como os atores Jim Carrey e Jenny McCarthy proporcionam sem dúvida bons momentos de televisão ou uma bela tarde de di-vertimento a acompanhar o Twitter. Mas quando eles e outras celebridades e figuras públicas mal informadas pegam nos mitos e na informação errada sobre os perigos das vacinas, há milhões de pessoas que ficam novamente sob a ameaça de doenças evitáveis como o sarampo e a tosse convulsa.

O crescimento deste tipo de ignorância convicta na Era da Informação não pode ser entendida como uma mera consequên-cia da ignorânconsequên-cia generalizada. Muitas das pessoas que pro-movem ataques ao conhecimento especializado são, de resto, competentes e bem-sucedidas na vida. De certa maneira, isso é ainda pior do que a ignorância: é arrogância sem fundamento, a indignação própria de uma cultura cada vez mais narcisística e incapaz de aceitar o mínimo sinal de desigualdade, seja em que área for.

Quando falo da «morte da competência», não me refiro ao fim das competências reais dos peritos, o conhecimento específi-co que distingue certas pessoas nas mais diversas áreas. Haverá sempre médicos e diplomatas, advogados e engenheiros, e muitos outros especialistas em diversos domínios. Sem eles, o mundo

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não funciona no dia a dia. Se partirmos uma perna ou formos presos, precisamos de um médico ou de um advogado. Quando viajamos, assumimos que o piloto conhece o funcionamento do avião. Se tivermos um problema no estrangeiro, recorremos a um funcionário consular de quem esperamos que saiba o que fazer. Contudo, isto é depender dos peritos enquanto técnicos. Não é um diálogo entre peritos e a comunidade, mas o recurso ao conhecimento especializado como uma solução instantânea à medida das nossas necessidades e só quando solicitada. Trate da minha perna, mas não me venha com sermões sobre a minha dieta. (Mais de dois terços dos americanos são obesos.) Ajude--me a resolver este problema fiscal, mas não me diga que eu devia fazer um testamento. (Aproximadamente metade dos americanos com filhos não se deram ao trabalho de o fazer.) Mantenha o país seguro, mas não me baralhe com as contas e os custos da de-fesa nacional. (A maioria dos cidadãos dos Estados Unidos não faz a mais pequena ideia de quanto gasta o país com as forças ar-madas.)

Todas estas escolhas, de uma dieta alimentar à defesa do país, dependem de um diálogo entre os cidadãos e os especialis-tas. Tudo indica que os cidadãos estão cada vez menos interessa-dos em manter esse diálogo. Preferem acreditar que dispõem da informação suficiente para tomarem as suas próprias decisões, isto quando se preocupam em decidir seja o que for.

Por outro lado, muitos especialistas, sobretudo os académi-cos, desistiram do dever de interagir com as pessoas. Refugiaram--se no jargão e na irrelevância, e preferem interagir uns com os outros. Enquanto isso, as pessoas que estão no meio e a que ge-ralmente chamamos de «intelectuais públicos» — apraz-me pen-sar que sou um deles — mostram-se cada vez mais tão frustradas e radicais como o resto da sociedade.

A morte da competência é mais do que a rejeição do conhe-cimento existente. É essencialmente uma rejeição da ciência e da

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racionalidade desapaixonada, que são os alicerces da civilização moderna. É o sinal, como certa vez o crítico de arte Robert Hughes descreveu a América do final do séculoXX, de «uma

comuni-dade obcecada com terapias e que desconfia dos formalismos da política», permanentemente «cética em relação à autoridade» e «presa a superstições». Demos uma volta de 360oda época pré--moderna, em que a sabedoria popular colmatava as lacunas ób-vias do conhecimento humano, passando por um período de desenvolvimento acelerado assente em grande parte na especiali-zação e no conhecimento especializado, até ao mundo pós-indus-trial, guiado pela informação, em que todos os cidadãos se julgam especialistas em tudo.

Enquanto isso, qualquer demonstração de conhecimento por parte de um perito provoca explosões de raiva em certos qua-drantes da sociedade americana, que se queixam de imediato de que tais demonstrações não são mais do que «apelos à autoridade», si-nais inequívocos de um temível «elitismo» e uma tentativa clara de puxar dos galões para reprimir o diálogo que a «verdadeira» democracia exige. Atualmente, os americanos acreditam que go-zar de direitos iguais num sistema político implica aceitar que a opinião de qualquer pessoa não é inferior à de nenhuma outra. É esta a crença que um número significativo de pessoas professa, não obstante ser um rematado disparate. Esta defesa oca da ver-dadeira igualdade carece sempre de lógica, por vezes tem piada e, muito frequentemente, é perigosa. Este livro é, pois, sobre a com-petência. Ou, para ser mais exato, sobre a relação entre peritos e cidadãos numa democracia, as razões do colapso dessa relação e aquilo que todos nós, cidadãos e peritos, podemos fazer.

A resposta imediata da maioria das pessoas quando con-frontada com a morte do conhecimento especializado é culpar a Internet. Quando se deparam com clientes e consumidores que

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acham que eles é que sabem, os profissionais tendem a pôr a culpa na Internet. Como veremos, essa não é uma visão comple-tamente errada, mas é demasiado redutora como explicação. Há uma longa tradição de ataques ao conhecimento estabelecido, e a Internet é apenas a ferramenta mais recente de um velho proble-ma que, no passado, se serviu indevidamente da televisão, da rá-dio, da imprensa e de outras inovações da mesma forma.

Se é assim, porquê tanto alarido? Quais foram as mudanças dramáticas que me levaram a escrever este livro e a que você este-ja a lê-lo? Estaremos mesmo perante a «morte da competência» ou isto não passa das queixas habituais de intelectuais a que nin-guém dá ouvidos apesar de se autoproclamarem os mais inteli-gentes do bairro? Talvez isto seja apenas a angústia em relação às massas que assola os profissionais a cada ciclo de mudança social ou tecnológica. Ou talvez seja a demonstração normal da vaidade indignada de professores elitistas e com estudos a mais, como eu. Na verdade, a morte do conhecimento especializado pode até ser um sinal de progresso. Ao fim e ao cabo, os profissionais instruídos já não detêm o monopólio do conhecimento. Os se-gredos da vida já não estão guardados em gigantescos mausoléus de mármore, essas grandiosas bibliotecas cujos corredores intimi-dam até o relativamente pequeno número de pessoas que pode visitá-las. Sob tais condições no passado, a tensão entre peritos e leigos era menor, mas só porque era simplesmente impossível aos cidadãos pôr em causa os peritos de uma forma pertinente. Além disso, antes da época da comunicação massiva, eram poucos os lugares públicos em que tais desafios pudessem ser apresentados. Até ao início do séculoXX, a participação na vida política,

intelectual e científica estava muito circunscrita, com os debates sobre ciência, filosofia e políticas públicas a serem conduzidos com papel e caneta por um círculo restrito de homens instruídos. Não estamos propriamente a falar de uma Idade de Ouro, e isso

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não foi assim há tanto tempo. Muitos americanos ainda são do tempo em que a maioria das pessoas não acabava o secundário, em que muito poucas iam para a universidade e em que só uma ínfima parte se especializava.

As mudanças sociais verificadas apenas nos últimos 50 anos puseram finalmente termo às barreiras de raça, de classe e de sexo não apenas entre os americanos em geral, mas também entre os cidadãos sem instrução e a elite de peritos em particular. O alar-gamento do espaço de discussão trouxe mais conhecimento, mas também uma maior fricção social. A educação universal, o empo-deramento das mulheres e das minorias, o crescimento da classe média e uma maior mobilidade social foram fatores que puseram em contato direto uma minoria de especialistas e uma maioria de cidadãos, após quase dois séculos em que raramente interagiram. Contudo, isto não resultou num maior respeito dos ameri-canos pelo conhecimento, mas no crescimento de uma crença ir-racional de que ninguém é menos inteligente do que ninguém. Isto é a negação do conceito de educação, que devia ter como ob-jetivo fazer com que todas as pessoas, por muito inteligentes e realizadas que fossem, estivessem sempre a aprender ao longo da vida. Em vez disso, vivemos atualmente numa sociedade em que a mínima instrução que se obtém é o ponto de chegada, quando devia ser o ponto de partida, da educação. E isto constitui um perigo.

O que vem aí

Nos capítulos seguintes, apontarei as várias origens deste problema, algumas das quais são intrínsecas à natureza humana, outras que são específicas da América, e algumas que são o resul-tado inevitável da modernidade e da abundância.

Referências

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