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LUGAR DE FALA AS HIERARQUIAS DE RECONHECIMENTO POLÍTICO E O FEMINISMO NEGRO NAS REDES SOCIAIS

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LUGAR DE FALA – AS HIERARQUIAS DE RECONHECIMENTO

POLÍTICO E O FEMINISMO NEGRO NAS REDES SOCIAIS

Larissa Meneses dos Santos1

Resumo: A comunicação oral proposta tem como objetivo trazer reflexões de uma pesquisa inicial de doutorado sobre o feminismo negro brasileiro em suas interações recentes com as mídias digitais. No intuito de contribuir com os estudos sobre movimentos sociais e sobre a teoria política feminista, pretende-se problematizar as chamadas novas formas de ativismo online, tendo como parâmetros teóricos os debates sobre interseccionalidade e consubstancialidade entre gênero, classe e raça, bem como elementos analíticos presentes em parte da Teoria de Movimentos Sociais. A pesquisa apresenta como parâmetros empíricos as relações das mulheres negras com espaços online de solidariedade, identidade e disputas políticas, a saber: grupos feministas fechados ou secretos no Facebook. O olhar para as interações nos espaços online entre mulheres aparece mediado pela ideia de “lugar de fala”, hoje amplamente difundida nas mídias em questão.

Palavras-chave: Feminismo Negro; Redes Sociais Online; Lugar de Fala; Interseccionalidade;

Ativismo.

Feminismo nas redes sociais online: Facebook e “lugar de fala”

Nos últimos anos, e por diversas frentes de análise, é possível dizer que o feminismo vivencia um notável crescimento e uma multiplicação de seus espaços de atuação (Hawesworth, 2006, p. 739; Alvarez, 1998 apud Ribeiro, 2006, pp.2-3). No Brasil, a presença do feminismo nas mídias sociais tem ganhado maiores proporções que são reconhecidas também em meio ao senso comum e nos veículos de comunicação de grande alcance2. Trata-se de uma presença que trouxe à tona diversos questionamentos à teoria política feminista, bem como colocou em evidência novas apropriações de conceitos e vertentes das teorias para uma suposta “democratização” ou “instrumentalização” de categorias clássicas dos estudos feministas para a militância online.

Estes questionamentos e apropriações suscitaram um aumento significativo da produção acadêmica brasileira que tenta articular teoria e ação política feministas e a análise das redes sociais

1 Larissa Meneses dos Santos é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Campinas – SP. Também é animadora sociocultural do Sesc SP, na unidade Pompeia.

2 Ver:“Jovens fizeram feminismo crescer em quantidade e qualidade” – Rede Brasil Atual, 2016. Disponível em

http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2016/02/2018jovens-fizeram-o-feminismo-crescer-em-quantidade-e-qualidade2019-afirma-pioneira-2127.html (acesso em 07/09/2016).

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http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/03/politica/1446573312_949111.html (acesso em 07/09/2016). “Feministas tomam a internet e as ruas em protesto e são alvos de ataques” – G1- Globo, 2015. Disponível em:

http://g1.globo.com/profissao-reporter/noticia/2015/12/feministas-tomam-internet-e-ruas-em-protestos-e-viram-alvo-de-ataques.html

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online3 na última década. E com redes sociais online, mídias sociais, ou ainda, mídias digitais, referimo-nos a alguns dos espaços e tempos criados, reproduzidos e experienciados mediante o uso da internet, tais como: blogs, Facebook, Twitter, Tumblr, Instagram, entre muitos outros – “A expressão ‘redes sociais online’, nesse sentido, refere-se a um número considerável de formas de interação entre indivíduos a partir da construção de páginas ou de perfis. Cada um desses, assim como cada uma das redes, tem suas próprias características e, por conta disso, permite tipos diferentes de interação” (Martino, 2015, p. 74).

Ainda segundo o autor (Idem, Ibidem), ao analisar a obra de Pierre Merklé (2004), é possível identificar algumas das principais especificidades das redes sociais online:

“(1) possibilidade de criar um espaço pessoal de apresentação de si mesmo, onde se pode colocar à disposição de todos as imagens e os textos que se escolher. (2) A possibilidade de acessar perfis de outras pessoas (...). (3) Chance de estabelecer relações com outros participantes da rede, na observação de seus perfis, a partir de interesses e afinidades comuns.

As redes sociais permitem a criação de ‘identidades transparentes’, estabelecidas em conexões interpessoais desenvolvidas a partir da interação entre perfis. Ao mesmo tempo, convivem também com ‘identidades carnavalescas’ – no sentido das máscaras de carnaval e das mudanças de identidade – nas quais projeções de si mesmo e as relações desconhecidas ou propositalmente falsas, os perfis fake, garantem tipos diferentes de exposição de si e, consequentemente, de interação” (Idem, Ibidem).

Dentre as redes sociais online mais populares no Brasil, encontra-se o Facebook4. De acordo com dados liberados no início deste ano pela empresa em um grande evento de tecnologia, o Facebook comporta 99 milhões de usuários brasileiros ativos mensais e 89 milhões de usuários brasileiros móveis ativos mensais5. E, tendo em vista o grande número de usuários, não é de se espantar que os usos políticos cotidianos dessa rede social online salte aos olhos. E estes usos são os mais variados; desde a criação de páginas, perfis, grupos, postagens (textuais ou imagéticas),

3 Ver, por exemplo: “Feminismo e redes sociais na Marcha das Vadias no Brasil” (Ferreira, 2013, Revista Artemis),

“Feminismo e Preconceito no Facebook: uma análise das relações dialógicas” (Ferreira e Ludovice, 2016, Revista Investigação), “(Re)definições e (des)construções identitárias em comunidades ativistas do Facebook: contribuições das epistemologias pós-feminista e queer” (Biondo e Signorini, 2015, Delta).

4 “O Facebook é um sítio eletrônico no qual as pessoas criam um perfil pessoal, adicionam outros usuários como amigos e trocam mensagens e conteúdos de forma geral. A plataforma foi criada em 2004, por Mark Zuckerberg, Eduardo Saverin, Dustin Moskovitz e Chris Hughes. Atualmente, qualquer indivíduo pode participar desta rede social, a partir dos interesses pessoais e profissionais. (...)oferece uma vasta lista de ferramentas e aplicativos que permitem aos usuários comunicar e partilhar informações, adicionar fotografias, vídeos, comentários, ligações, enviar mensagens, integrar com outros websites, dispositivos móveis e outras tecnologias. Ainda, permite o controle de privacidade, ao selecionar qual informação e com quem deseja compartilhar” (Educause Learning Initiative - ELI. (2007). 7 things you should know about Facebook II. Recuperado de http://net.educause.edu/ir/library/pdf/ELI7025.pdf apud BOUSSO, Regina Szylit et al.Facebook: um novo locus para a manifestação de uma perda significativa. Psicol. USP [online]. 2014, vol.25, n.2, pp.172-179).

5 Disponível em:

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eventos, extensos diálogos em comentários, até a reprodução parodiada e o compartilhamento exaustivo destes conteúdos criados, os chamados memes. Toda esta miríade de atividades online permitidas pelo Facebook pode ser e é apropriada politicamente por ativistas e militantes, sejam eles de partidos políticos, movimentos sociais, causas ou campanhas.

No caso do ativismo feminista, e no do ativismo das feministas negras que nos importa aqui destacar, a criação de grupos de mulheres secretos ou fechados no Facebook, bem como a ampla adesão de perfis que possuem, são fenômenos latentes6 ainda não abordados diretamente pelas pesquisas em Ciência Política no Brasil. Os grupos no Facebook operam como um fórum temático: a partir de um tema específico que o denomina, perfis de usuários interessados em dialogar e/ou compartilhar informações, dúvidas, relatos, imagens e vídeos sobre ele, podem entrar ou serem convidados a entrar no grupo. Os grupos podem ser: i. abertos – visíveis e acessíveis à participação a todos os membros do Facebook; ii. fechados – visíveis a todos os membros do Facebook, porém acessíveis à participação apenas de acordo com avaliação e crivo de uma ou mais figuras mediadoras (denominadas pelo Facebook como administradores); iii. secretos – invisíveis a todos os membros do Facebook, exceto a aqueles que destes grupos fazem parte, e a participação é possível somente mediante convite de um dos membros integrantes, seguida pela avaliação e crivo de mediadores/administradores.

Em um pré-campo que realizamos a partir de 2014 até hoje, pudemos constatar os vertiginosos surgimento e crescimento de grupos de mulheres e meninas no Facebook, entre o final de 2014 e o início de 2016. Neste ínterim, foi possível inferir a relevância desses grupos para o fortalecimento e a permanência do debate sobre feminismo nesta rede, bem como sobre suas relações com debates sobre racismo e pobreza entre mulheres. Quanto a esta relevância é necessário dizer que ela está embasada pela dinâmica de interação construída nos grupos:

“Essa mistura de vozes e verdades sobre identidades de gênero e sexualidade no mundo virtual reflete, em certa medida, a intensificação das transformações sociais de nossos tempos, que têm se acelerado e tornado mais exacerbada a convivência de culturas e de estilos de vida. No caso das comunidades do facebook aqui focalizadas, vemo-nos diante de práticas socioculturais de letramento digital nas quais há infinita expansão de relações sociais, convidando-nos, como destaca Moita Lopes (2010, p.395), a "co-participar da vida de pessoas que não conhecemos, que desarticulam nossas concepções de mundo e ideologias, e que multiplicam os discursos a que temos acesso de forma ilimitada". Desse modo, "a tela do computador deixa de ser somente um local onde se busca informação e

6 A saber (acessos em 08/09/2016): http://mdemulher.abril.com.br/cultura/elle/como-grupos-no-facebook-contribuiram-para-o-meu-feminismo; http://www1.folha.uol.com.br/paywall/adblock.shtml?origin=after&url=http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/0 5/1766587-grupos-secretos-em-rede-social-viram-comunidades-de-apoio-entre-mulheres.shtml; http://hojeemdia.com.br/almanaque/grupos-secretos-na-web-ajudam-a-tirar-d%C3%BAvidas-e-a-empoderar-as-mulheres-1.382409;

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passa a ser principalmente um lugar de construção, de disputa, de contestação de significados" (Moita Lopes, 2010, p. 398)”. (BIONDO, 2015, p. 211).

A dinâmica de interação nos grupos de mulheres no Facebook remete a esta ideia de “co-participação” da vida, pois está pautada pelo constante diálogo entre elas – mulheres em geral desconhecidas, interessadas em compartilhar experiências e conhecimentos, em pedir auxílios, aconselhamentos, visibilidade, ou em simplesmente estar entre mulheres.

E estar entre mulheres propicia, em vários casos, interpretar os grupos fechados ou secretos como ambientes seguros, nos quais se pode falar abertamente sobre temas como sexualidade, aborto, recuperação de transtornos alimentares, casos de violência, entre muitos outros. Todos estes temas, nesse contexto, aparecem mediados pelas noções de vivência ou experiência, e são tais noções que garantem a autenticidade e a legitimidade das interlocutoras para abordarem determinado tópico de debate.

Ao observar as interações nesses grupos, é possível evidenciar que ter vivido uma situação de opressão específica garante, a algumas mulheres, reconhecimento político para abordar certos temas em seus discursos e nos diálogos que estabelecem online. E a este reconhecimento atribui-se a denominação lugar de fala. Ou seja, quando, nestes grupos, aborda-se uma situação de racismo, a legitimidade e o reconhecimento público ficam logrados às mulheres negras participantes para debaterem sobre; quando se traz uma situação de LGBTfobia, apenas às mulheres lésbicas, bissexuais ou trans cabe falar com legitimidade sobre a questão, e assim por diante. Ademais, é possível dizer que se uma mulher soma em suas vivências mais de uma experiência de opressão – a exemplo: racismo, homofobia e pobreza – seu lugar de fala nos espaços online é tido como mais elevado, e suas possibilidades de debater com legitimidade e reconhecimento político das outras integrantes do grupo, muito maiores.

Neste sentido, a dinâmica de debates, construída pelas mulheres nos espaços online, atribui novos e diferentes pesos e medidas para os discursos sobre poder e opressão, a depender dos lugares de fala de seus interlocutores. Novos porque são parâmetros que tentam inverter a lógica de reprodução das opressões que as mulheres vivenciam fora das redes sociais online. E diferentes porque criam uma diversidade de hierarquias de fala e escuta, raras ou não presentes em outros espaços de discussão.

Trata-se, então, de um processo criativo e coletivo de construção de novos parâmetros de legitimidade e reconhecimento dos discursos políticos entre mulheres nas mídias sociais. Sendo importante destacar que compreensão destas dinâmicas de interação pode auxiliar no

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aprofundamento das pesquisas sobre formação política e recrutamento de ativistas e militantes mediante os usos da internet.

Entretanto, o principal recorte de nossa investigação é apreender centralmente as interações iniciadas ou fomentadas por mulheres negras nos grupos do Facebook. Pois, para grande parte delas, o advento da ideia de lugar de fala em meio à militância online foi relevante para conquistarem uma ampliação da escuta de suas vozes e de espaços de destaque nas mídias sociais.

Debate bibliográfico: o que pode estar por trás da ideia de lugar de fala nas redes sociais online

Para tentarmos analisar quais os conceitos e significados que preenchem de conteúdo a ideia de lugar de fala, é preciso criar paralelos entre os debates que ela suscita nas redes e elementos teóricos de diversas fontes que sugerem suas interpretações mais recorrentes. Segundo Braga (1997, p. 107), o conceito “lugar de fala” deve ser retratado como um lugar de significação que “se constrói na trama entre a situação concreta com que a fala se relaciona, a intertextualidade disponível, e a própria fala como dinâmica selecionadora, atualizadora de ângulos disponíveis e construtora da situação interpretada”. Como visto, a apropriação do conceito pelo ativismo online se relaciona com os elementos citados pelo autor, ao analisarmos a importância das experiências ou situações concretas que balizam as dinâmicas de fala, de escuta e de construção de interpretações políticas no interior dos grupos de mulheres. No entanto, esta apropriação é uma dentre outras, referentes a conceitos e elementos de reflexão caros à teoria política feminista e à teoria dos novos movimentos sociais, por exemplo.

A ideia de lugar de fala, como ponto de partida para criação de patamares de reconhecimento entre ativistas no debate político nas mídias sociais, evoca uma serie de discussões teóricas fundamentais que consideraremos aqui e que são o panorama analítico indispensável à nossa pesquisa; a saber: relações e limiares entre esfera pública e privada, identidade e reconhecimento, formação política de militantes, interseccionalidade e consubstancialidade entre gênero, classe e raça.

A teoria política feminista está atrelada à reflexão crítica sobre a dualidade entre esfera pública e esfera privada. Biroli (2014, p. 31) atribui essa dualidade a compreensões restritas da política, que tem como premissa a universalidade da esfera pública, e que elencam uma série de assuntos e experiências como privados e assim, não políticos: “é uma forma de isolar a política das

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relações de poder na vida cotidiana, negando ou desinflando o caráter político e conflitivo das relações de trabalho, e das relações familiares” (Idem, Ibidem). O argumento central da autora é que este isolamento da política e das relações de poder na esfera privada traz profundas perdas no âmbito da teoria política. Pois, não apenas deixa na sombra experiências da vida dos indivíduos, mas torna deficitária a compreensão do que ocorre na esfera pública; já que há conexões importantes entre posições e relações de poder na vida doméstica, no mundo do trabalho, e na esfera dos debates, na produção de decisões políticas. Ou seja, trata-se de compreender, que há consequências políticas dos arranjos privados (Idem, p.33).

Para Martino (2014, p.94), a divisão entre esfera pública e esfera privada decorre de outra segmentação, referente à formação de espaços públicos e de espaços privados. Estes espaços seriam diferenciados por sua visibilidade: o espaço público é o campo em que tudo é potencialmente visível, já o espaço privado seria o campo das ideias, coisas e práticas que não devem ser vistas; o campo, então, da intimidade, que deve estar protegido do olhar público e no qual só entra aquele que for convidado. Ainda segundo o autor, a internet traz a necessidade de um novo olhar para esta diferenciação, pois ela “introduz uma outra dimensão nessa questão, mesclando, em muitos casos, as questões públicas e privadas por conta da exposição, cada vez maior de detalhes da vida particular no espaço público digital” (Idem, Ibidem).

Logo, não é difícil inferir que o encontro entre a crítica feminista e a internet tenha sido, e é bastante fortuito. A ideia de espaço público digital cria meios empíricos para que as fronteiras teóricas entre esfera pública e privada sejam problematizadas. Quando as redes sociais online são ocupadas por muitas mulheres que levam a público conteúdos tidos como da vida doméstica, privada ou ainda da ordem dos afetos, esta exposição traz impactos à compreensão destas mulheres, e de outros indivíduos presentes nas redes, sobre a relevância de tais conteúdos e seu pertencimento também a uma esfera pública.

A internet aparece, assim, como um campo em que as relações entre as duas esferas – pública e privada – podem se tornar mais evidentes, e como uma oportunidade à reflexão crítica feminista, tal como propõe Biroli (2014, p. 33), na qual esfera pública e privada devem ser discutidas “como um complexo diferenciado de relações, de práticas e de direitos – permanentemente imbricados, uma vez que os efeitos dos arranjos, das relações de poder, e dos direitos garantidos em uma das esferas serão sentidos na outra” (Idem, Ibidem).

Esta dinâmica complexa entre público e privado, potencializada pelas redes sociais online, é perpassada ainda pelas relações entre gênero, sexualidade, classe e raça dos inúmeros perfis que

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interagem em tais espaços. Como temos visto, as múltiplas experiências de opressão – advindas do âmbito tido como privado, ou não – garantem uma diversidade de reconhecimentos políticos entre mulheres nos grupos de Facebook, através da ideia de “lugar de fala”.

Em meio à teoria feminista, é possível identificarmos as potenciais origens da construção do “lugar de fala”, tal como compreendido pelas militantes online. E estas origens se encontram no debate sobre interseccionalidade e consubstancialidade entre gênero/sexualidade, classe e raça. Um primeiro ponto para o aprofundamento desse debate – segundo Hirata (2014, p. 1) – é a análise dos conceitos de “conhecimento situado” ou de “perspectiva parcial”. Formulados no interior da epistemologia feminista, estes conceitos trazem a “ideia de um ponto de vista próprio à experiência da conjunção das relações de poder de sexo, de raça, de classe (...), pois a posição de poder nas relações de classe e de sexo, ou nas relações de raça e de sexo, por exemplo, podem ser dissimétricas” (Idem, Ibidem).

Nesse sentido, os pontos de vista próprios à experiência informam à teoria política feminista, sendo parte de seus constructos teóricos. No que concerne ao debate entre interseccionalidade e consubstancialidade, cabe destacar que ele remonta a trabalhos de duas autoras emblemáticas para reflexão quanto à experiência e à interdependência entre relações de poder de gênero, classe e raça: Kergoat (1978) e Crenshaw (1989). O que ambas proposições tem em comum é a tentativa de não hierarquização entre as formas de opressão. Porém, oriundas de preocupações distintas presentes nestas obras, as conceitualizações em torno da interseccionalidade ou da consubstancialidade trouxeram também impactos diferentes para interpretações em meio à prática política de feministas. Ainda de acordo com Hirata (2014, p. 3), é possível identificar que a preocupação que orienta as formulações de Kergoat é a dinâmica coextensiva das relações sociais de classe e de gênero, já a preocupação de partida de Crenshaw perpassa a intersecção entre raça e gênero, deixando as questões de classe em uma condição analítica menos visível.

Entretanto, sem avançar nas minúcias da crítica a ela, é esta ideia de intersecção como preocupação teórica que nos importa destacar. Isto, pois, interseccionalidade se tornou um conceito extremamente mobilizado a partir da segunda metade dos anos 2000 e pode ser compreendido também como um instrumento de luta política (Idem, ibidem), muito aparente nos debates sobre feminismo junto ao ativismo online.

As fontes para a conceitualização da interseccionalidade se situam no feminismo negro, principalmente norte-americano, da década de 1970, denominado por parte da bibliografia como Black Feminism. No confronto tanto ao predomínio masculino no movimento negro, quanto à

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predominância branca e burguesa no feminismo, as feministas negras figuram apresentando novas pautas de reivindicação e um novo enquadramento teórico para a compreensão dos problemas da dominação. Entre as autoras, destacam-se Angela Davis, Bell Hooks, Patricia Hill Collins, Audre Lorde e Barbara Smith (Miguel, 2014, p.89).

No entanto, segundo Hirata (2014, p. 4), as formulações sobre interseccionalidade, desenvolvidas principalmente a partir dos anos 1990 tem na definição de Sirma Bilge, uma boa síntese:

“A interseccionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais” (BILGE, 2009, p. 70 apud HIRATA, 2014, p. 4).

Em um primeiro e rápido experimento de transpor a perspectiva teórica da interseccionalidade acionada pelas militantes feministas online e suas práticas de debate no Facebook, vemos que a construção dos “lugares de fala” advém da tentativa de trazer ao centro do espaço público digital a ideia de “conhecimento situado” e da importância de tornar visível um conjunto complexo de relações de poder, opressão e dominação.

Contudo, a dinâmica das redes que promove buscas incessantes por recursos políticos como curtidas e seguidores faz com que essa complexidade possa ceder espaço a uma hierarquização das experiências de opressão, com vistas a gerar maior identidade e reconhecimento de demais interlocutores, sejam militantes ou não.

E, justamente, um último aspecto concernente ao debate teórico que propomos à nossa pesquisa diz respeito ao conceito de identidade como preceito à mobilização política e à formação de militantes para ação coletiva. A identidade emerge como crucial em discussões sobre a teoria política feminista e, também, em parte da teoria dos movimentos sociais. Porém este emergir ocorre, em cada campo teórico, por vias distintas. A ideia de identidade foi e tem sido problematizada por feministas negras e marxistas, que analisam se tratar de uma terminologia muito abrangente e até mesmo essencialista. Pois não levaria em conta, pensando em uma condição feminina, elementos como raça, classe, renda ou orientação sexual, silenciando assim a multiplicidade de experiências específicas entre mulheres (Miguel, 2014, p.89).

Já em obras da teoria dos movimentos sociais, a identidade e/ou a variedade delas dá corpo e explica, mesmo que parcialmente, a coesão entre militantes e lideranças nas ações coletivas (cf.

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Melucci, 1989; Mische, 2008). Dentre algumas das teóricas feministas, também fica demarcada a importância da identidade para a mobilização política. Brah (2006) destaca a conformação de uma identidade coletiva como um processo em que se formam bases para identificação em um determinado contexto econômico, cultural e político. E Spivak (1985 – apud Miguel, 2014, pp.83-4), propõe um “essencialismo estratégico”, ou seja, um uso estratégico das categorias tidas como essencializadoras, como identidade, tendo em vista a importância vital da produção da identificação para a mobilização política.

Sem dúvida, a questão da criação e da manutenção da identidade política é um marco do debate sobre ação coletiva, tanto no interior da teoria feminista como na teoria dos movimentos sociais. E nos parece crucial para compreensão da ideia e dos usos dos lugares de fala nas redes sociais online. Embora aparentemente oculta das discussões e trocas entre mulheres nas redes sociais, a necessidade de construção de identidade atravessa as dinâmicas de interação online para que indivíduos e grupos sejam mais vistos, mais acessados, mais curtidos e para que assim estejam em posições mais centrais na rede, atribuindo cumulativamente maior visibilidade àqueles conteúdos e discursos políticos que pretendem replicar amplamente.

Lugares de fala e hierarquias de reconhecimento político: primeiros aspectos

É preciso ter em conta que há uma natureza dinâmica e volátil nas redes sociais online que precisa ser considerada nas escolhas metodológicas de pesquisa (Braga e Cruz, 2014, p. 146). Apesar de haver hoje uma série de métodos quantitativos de captação dos dados em redes sociais, nossas primeiras análises tem enfoque qualitativo. Porque, em primeiro lugar, temos tentado apreender dinâmicas de debate político e interação; e, em segundo lugar, porque o Facebook não possui, diferente de outras mídias, uma ampla base de dados disponível à pesquisa. Sendo assim, embasamos nossa análise empírica na observação participante e na etnografia em mídias sociais, em sintonia com os debates metodológicos trazidos por Polivanov (2013), Agrosino (2011, apud Fragoso, Recuero e Amaral, 2011, p. 168), e Hine (2000).

No interior destes primeiros olhares etnográficos para as interações entre mulheres negras nos grupos fechados ou secretos no Facebook, é possível destacarmos já alguns dentre os parâmetros mais importantes que circundam a ideia de lugar de fala e os variados reconhecimentos políticos a ela atrelados. De início, faz-se visível que a dualidade entre sofrimento e privilégio é a

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marca e a régua mensuradora para que a determinação de lugares de fala aconteça. A mobilização de determinadas narrativas de sofrimento amplamente compartilhadas determina, em cada ambiência online, o que é uma narrativa de privilégio e qual audiência daquela postagem detém privilégios frente a outras. E quanto menos privilégios identificados na mensuração junto aos sofrimentos, maior a legitimidade da fala, e maior a possibilidade de veto à fala de outra pessoa vista como privilegiada em relação a uma experiência vivida.

Um segundo parâmetro específico destas dinâmicas de interação diz respeito a como a mobilização das narrativas de sofrimento é peça chave para criação de categorias de identificação que são vivificadas para manter o debate sobre o feminismo negro nas pautas das redes sociais online e aumentar a militância em seu entorno. E neste caso, as narrativas de sucesso e superação – marcadas pela ideia de empoderamento, também surtem o mesmo efeito. Reproduzir postagens com elementos do que é ser empoderada ou com elementos vividos das experiências com um, ou mais de um tipo de opressão, dão forma a laços de solidariedade, identidade e reconhecimento político nas redes. Isto, quando em meio a um público informado sobre o que é a ideia de lugar de fala.

Um terceiro e último parâmetro para reflexão pode ser atribuído à inevitável busca das militantes feministas por recursos políticos quando no meio online. Inevitável porque esta busca também ocorre nas organizações e movimentos sociais offline. Mas também, porque as redes sociais atribuem novos sentidos a estes recursos, através das curtidas, seguidores, visualizações e ampliação do espectro de alcance de ideias, narrativas e ações em ambientes muitas vezes hostis e competitivos. E neste sentido, a ideia de lugar de fala contribui para ampliação destes recursos para aquelas mulheres que acumulam vivências de opressão. No entanto, estes recursos tendem a estar limitados em meio aos perfis de mulheres e coletivos com vivências próximas e similares de opressão. Ao mesmo tempo em que a tensão entre as construções do que é sofrimento e do que é privilégio, tal qual vista nas redes sociais online, tende a potencializar conflitos e diminuir as chances de criação de laços de solidariedade entre mulheres com experiências muito diversas de opressão. Ou seja, trata-se de adquirir novos recursos políticos nas redes, mas com eles não conseguir ampliar diálogos e visibilidades políticas suficientes para fomentar a ação coletiva.

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PLACE OF SPEECH – THE HIERARCHIES OF POLITICAL RECOGNITION AND BLACK FEMINISM IN SOCIAL NETWORKS

Abstract: The proposed oral communication aims to bring reflections of an initial doctoral research on Brazilian black feminism in its recent interactions with digital medias. In order to contribute to the studies on social movements and on feminist political theory, we intend to problematize the so-called new forms of online activism, having as theoretical parameters the debates about intersectionality and consubstantiality between gender, class and race, and analytical elements of part of the Theory of Social Movements. The research presents as empirical parameters the relations of black women with online spaces of solidarity, identity and political disputes, namely: closed or secret feminist groups on Facebook. The look at interactions in online spaces between women appears mediated by the idea of "place of speech", now widely used in the online medias in Brazil.

Referências

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