BEM JURÍDICO E DIREITO PENAL ECONÔMICO Helena Maria Ramos de Mendonça1 De acordo com o Dicionário de Filosofia de Abbagnano (2007,p. 121), “bem é tudo que possui valor, preço, dignidade, a qualquer título. Na verdade, bem é a palavra tradicional para indicar o que, na linguagem moderna, se chama valor”. Acrescentando o adjetivo jurídico a tal substantivo, obtém‐se que “bem jurídico” é tudo aquilo que é valioso para o direito, ou ainda, aquilo a que a esfera jurídica atribui valor. Obviamente, não se pretende, no breve espaço reservado ao desenvolvimento deste texto, tratar do complexo conceito de “valor”, no entanto é oportuno ressaltar que tal noção é histórica e, em certa medida, subjetiva, uma vez que dirige o pensamento para uma “escolha ou preferência” (ABBAGNANO, 2007, p. 1176), ou seja, a idéia “bem jurídico” permite a construção de uma definição (“aquilo que tem valor para o direito”), o problema está em verificar o que “cabe” dentro dela, na medida em que a variável “valor” representa seu elemento essencial.
Apesar de se aplicar a outras circunstâncias, esta dificuldade foi bem ilustrada pelo seguinte exemplo:
“Se tanta incerteza pode surgir nas humildes esferas do direito privado, quantas mais não encontraremos nas grandes frases grandíloquas de uma Constituição, por exemplo nos Quinto e Décimo‐Quarto Aditamentos à Constituição dos Estados Unidos, quando se estatui que ninguém será ‘privado da vida, liberdade ou propriedade sem a observância dos trâmites legais’? Acerca disto disse um autor que o verdadeiro sentido desta frase é na realidade bastante claro. Significa que ‘nenhum w será x ou y sem z, sendo que w,x,y e z podem assumir quaisquer outros valores dentro de um extenso conjunto’.” (March apud HART, 2007, p. 17)
Trazendo para a discussão alguns dos vários conceitos de “bem jurídico” fornecidos pela doutrina, é possível constatar o raciocínio acima desenvolvido: “[Bens jurídicos] são aqueles pressupostos valiosos e necessários para a existência humana”. Ou ainda: são “aqueles objetos dos quais o homem precisa para a sua própria livre auto‐realização” (Souza apud GUZELLA, 2010, p. 06). Nas duas assertivas, o conceito fica suspenso pela noção de “valor” e, portanto, depende de uma “escolha” do intérprete e de uma determinação temporal ou histórica (critério da necessidade). Na realidade, as perspectivas que envolvem a
1Doutora em Teoria e Dogmática do Direito pelo Programa de Pós‐ Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco ‐ PPGD/UFPE.
noção de “valor” integram dois dos grandes vieses de tratamento das questões humanas, ou seja, a perspectiva que privilegia as operações mentais realizadas pelo indivíduo (“subjetivismo”) e a perspectiva que privilegia o social como área de compreensão e explicação das experiências humanas. É certo que uma abordagem adequada de tais questões situa‐se em algum ponto eqüidistante dos extremos acima mencionados, no entanto este equilíbrio não é tarefa simples de ser resolvida. Por esta razão, este texto concentrará sua atenção em um espaço mais próximo do “extremo social”, colocando em destaque elementos históricos com o objetivo de demonstrar que a incidência da proteção jurídica varia na medida em que determinados valores sociais são destacados.
Sendo assim, trabalhando o tema “a proteção dos novos riscos e o bem jurídico penal”, Guzella (2010, pp. 06‐07) faz algumas relações entre períodos históricos, valores privilegiados e objetos protegidos pela esfera jurídica: 1) Alta Idade Média: Valorização da família e da comunidade – forte reação diante dos delitos de traição; 2) Baixa Idade Média: Desenvolvimento das relações mercantis – Defesa dos feirantes; 3) Século XIII: Centralização do poder nas mãos do monarca (o direito canônico inicia processo de transferência do ius
puniendi à autoridade real) – Noção de crime como ofensa à comunidade nacional; 4) Século
XVII: Jusnaturalismo laico – Direito natural e razão legitimando instituições públicas; 5) Século XVIII: Predomínio do direito natural – Combate à arbitrariedade, proclamação dos direitos que pertencem a todos os indivíduos. Vale salientar que é no Século XVIII que “a limitação do poder punitivo pela teoria do contrato social trouxe a afirmação do princípio da legalidade [...] que permite a elaboração de um conceito material de crime, representando o embrião do conceito de bem jurídico penal” (Cunha apud GUZELLA, 2010, p. 07); 6) Século XIX: Concepção positivista do bem jurídico (interesse concreto prévio à norma) – Listz reconhece a existência de bens jurídicos supra individuais e Binding reconhecia como bem jurídico tudo aquilo que, “[...] aos olhos do legislador, tivesse valor como condição para uma vida saudável dos cidadãos”; 7) Século XX: Grandes conflitos mundiais / Moderna Sociedade Industrial (Globalização) – Direito penal do risco (tendência a transcender o individualismo do direito penal clássico ‐ tutela de interesses penais difusos e coletivos).
Segundo Luciano Nascimento Silva (2008),
“A globalização como novo modelo social ou poder hegemônico se inicia de forma incisiva como fenômeno econômico de maximização dos mercados. Num primeiro momento, com a expansão do sistema de comunicação funcionando como instrumento de dominação, numa sistemática de oferecimento da informação e notícia como os principais produtos de consumo da nova era, provocada por uma conseqüência inerente, que é a da evolução tecnológica. E,
num segundo, de completude e materialidade, de forma a realizar o fechamento do poder hegemônico, o surgimento da integração, em regime de blocos econômicos discutindo a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre países através, entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários, restrições não tarifárias à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida de efeito equivalente. É a existência de um poder hegemônico centrado e planificado num espaço integrado e homogêneo.”
Ou seja, após a experiência de destruição proporcionada pelas duas grandes guerras mundiais e vivendo um contexto de fronteiras cada vez mais fluidas, o direito compreende que atuar na punição dos resultados pode ser ineficiente diante de prejuízos irreversíveis. Desta maneira, o valor “segurança coletiva” passa a apresentar uma vulnerabilidade cada vez maior, exigindo condutas que lhe ofereçam proteção eficiente.
Surge assim o que Ulrich Beck chamou de “sociedade de risco”, influenciando o Direito Penal a antecipar a proteção penal a esferas anteriores ao dano e criando conceitos como “crimes de perigo abstrato” (atribuindo punição a condutas potencialmente perigosas sem a necessária concretização do resultado) e “delitos de acumulação”, na expressão de Lothar Kuhlen, representando condutas que individualmente não provocam risco ao bem jurídico, mas se praticadas por um conjunto de pessoas devem atrair a tutela penal. Ao admitir tais conceitos, o direito penal do risco cria os requisitos essenciais para o que se chama “expansão do direito penal”, uma vez que cria condições para que a esfera penal interfira em áreas que lhe eram alheias, mas que passaram a reivindicar sua avaliação.
Os parágrafos desenvolvidos expressam um reduzidíssimo diagnóstico do moderno direito penal. Desta forma, de acordo com o tema proposto para este texto (“Bem jurídico e direito penal econômico”), resta estabelecer uma relação entre tal realidade e o que se constata como uma das faces da expansão do direito penal, ou seja, o direito penal econômico.
Pedindo perdão pelas repetições, faz‐se necessário afirmar que a problemática da relação entre bem jurídico penal e bem jurídico penal‐econômico passa, fundamentalmente, pela questão acima sinalizada da “expansão do direito penal”. Ora, “expansão”, como a palavra sugere, é dilatação, desenvolvimento, movimento para fora, ou seja, é uma ação que ultrapassa os limites originais, o que expõe o espaço raiz a elementos estranhos e, por vezes, incompatíveis. Ao expandir‐se, o direito penal abre seu espaço a novas realidades e precisa realizar adaptações.
Segundo Silva (2010),
“Quatro são os princípios que possibilitam a identificação de quais bens jurídicos devam ser tutelados pelo Direito Penal. O primeiro é o princípio da lesividade, segundo o qual é indispensável para a tutela penal de um bem jurídico a comprovação da lesão efetivamente sofrida por este, sem a qual não será possível a aplicação de qualquer sanção pelo Estado ao seu ofensor. O segundo é o princípio da intervenção mínima, pelo qual o Direito Penal somente deverá atuar na proteção de bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não possam ser eficazmente tutelados por outros ramos do direito. O terceiro princípio é o da fragmentaridade, segundo o qual somente agressões e ataques socialmente intoleráveis a bens jurídicos de extrema relevância os sujeitam a tutela penal. O quarto e último princípio é o da subsidiaridade, pelo qual o Direito Penal é remédio extremo, somente utilizável quando a atuação de qualquer outro dos ramos do direito, como o Direito Civil ou Administrativo, se quedar insuficiente.” (Grifo do autor)
Este é o espaço do direito penal clássico, original.
Apesar da dificuldade de formular definições, é preciso criar um núcleo mínimo à noção de bem jurídico penal econômico para dar continuidade à discussão. Desta forma, tem‐ se que o direito penal econômico elege como bem jurídico “algum aspecto da ordem pública econômica concreta estabelecida em determinado país, em certa época” (BALDAN, 2005, p. 65) tutelando interesses difusos2, ou seja, "interesses indivisíveis de grupos menos determinados de pessoas, entre as quais inexiste vínculo jurídico ou fático muito preciso" (Mazzilli apud SILVA, 2010). Esta é a primeira incompatibilidade entre o espaço original do direito penal e o espaço de expansão que atinge o direito penal econômico: conciliar a tutela de interesses difusos e o princípio da lesividade, uma vez que a determinação da lesão torna‐ se difícil de ser identificada diante da fluidez do grupo de pessoas atingido. Por outro lado, tanto o princípio da intervenção mínima quanto o princípio da subsidiariedade sugerem controvérsias, questionando uma possível administrativização do direito penal, de acordo com o argumento de que tal ramo jurídico, ao pretender tutelar a esfera econômica, passaria a ser instrumento de políticas públicas; assim como questiona‐se a desconsideração das sanções administrativas, ou seja, ao apelar‐se imediatamente à esfera penal, o critério de ultima ratio estaria comprometido.
A doutrina tem elaborado diversas teorias reconhecendo, em maior ou menor grau, as arestas geradas pela “sociedade de risco” (GUZELLA, 2010, pp. 10‐13): 1) Teoria monista‐ pessoal dos bens jurídicos ou teoria antropocêntrica: defendida por alguns integrantes da
2 A perspectiva que privilegia a tutela de interesses difusos pelo direito penal econômico vem da característica de “conflituosidade” atribuída a tais interesses, considerando‐se a criminalidade econômica, predominantemente, como criminalidade dos poderosos.
Escola de Frankfurt ( Hassemer, Naucke, Albrecht), afirma que o direito penal não é o espaço adequado ao tratamento das questões geradas pela moderna “sociedade de risco”, ou seja, conduzir tais questões ao âmbito penal seria ineficiente, além de ameaçar características essenciais de tal área do direito, como “os limites de aferição de responsabilidade, que devem ser individualizados”; 2) Teoria pessoal dualista dos bens jurídicos ou teoria personalista dos bens jurídicos supra‐individuais: defende a criação de bens jurídicos com novas características, aptos a atenderem as demandas surgidas pela “sociedade de risco”, desde que dotados de referência pessoal; 3) Teoria dos bens jurídicos meio ou instrumentais: esta teoria busca legitimar a antecipação da proteção penal, entendendo que tal antecipação, nos casos de crimes de perigo abstrato, por exemplo, são bens jurídicos meio à bens jurídicos fins; 4) Teoria dos bens jurídicos coletivos: reconhecimento do bem jurídico coletivo com a “capacidade de exercer o padrão crítico de incriminação”; 5) Proposta de abandono do paradigma de bem jurídico: defesa de uma “tutela direta de relações ou contextos de vida.” Diante dos dois extremos esboçados, este texto defende a permanência do paradigma do bem jurídico, aproximando‐se do entendimento privilegiado pela Escola de Frankfurt.
Referências Bibliográficas:
‐ABBAGNANO, Nicola. Bem. In: Dicionário de Filosofia. 5ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
‐BALDAN, Édson Luis. Direito Penal Econômico. Disponível em
http://books.google.com.br/books. Acessado em 11 de Maio de 2010.
‐ GUZELLA, Tathiana Laís. A Expansão do direito penal e a sociedade de risco. Disponível em http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/brasilia/13_357.pdf. Acessado em 11 de Maio de 2010.
‐HART, Herbert. O Conceito de direito. 5ª Ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2007.
‐ SILVA, Luciano Nascimento. O moderno direito penal econômico. A ciência criminal entre o econômico e o social. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4840. Acessado em 11 de Maio de 2010.
‐ SILVA, Rosana Ribeiro da. Tutela Penal dos interesses difusos. Disponível em http://www.ambito‐
juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=848. Acessado em 11 de Maio de 2010.