• Nenhum resultado encontrado

ESTUDO DO CASO EM: DISCURSO INCOERENTE?

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "ESTUDO DO CASO EM: DISCURSO INCOERENTE?"

Copied!
5
0
0

Texto

(1)

ESTUDO DO CASO EM: DISCURSO INCOERENTE?

Nirvana Ferraz Santos Sampaio - UESB

Introdução

Apresentamos, nesta comunicação, resultados parciais de um estudo de caso do sujeito EM, 51 anos, diabético e hipertenso, que teve um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e, como seqüela, ficou com afasia e hemiplegia à direita. Hoje, encontra-se em uma Instituição asilar. No prontuário da Instituição, encontramos registrado que EM é disfásico e tem um discurso incoerente. Pensando como Coudry que o afásico não é afásico o tempo todo e que há linguagem na afasia quando há sujeito, passamos a analisar e acompanhar o funcionamento da Linguagem de EM desde setembro de 2008. Dessa forma, os objetivos que compõem a pesquisa são: Investigar o funcionamento da linguagem do sujeito EM e verificar, em meio a situações significativas, dado-achados que comprovem coerência em seu “discurso”. Baseamos, dessa forma, em dados que são detalhes, indícios que guardam relação com aquilo que o investigador se propõe a compreender do ponto de vista teórico, ou seja, partimos do paradigma indiciário, explicitado pelo historiador Carlo Ginzburg (1986) no escopo das Ciências Humanas esse modelo baseado no singular apareceu no final do século XIX.

1. Referencial Teórico

Sabemos que as alterações de linguagem limitam o desenvolvimento pessoal e podem restringir a experiência inter-pessoal porque as dificuldades na produção e interpretação da linguagem restringem a interação social, o que dizer da linguagem de um sujeito que se encontra institucionalizado em um asilo para idosos? Tomamos por base o arcabouço teórico metodológico da Neurolingüística discursivamente orientada (ND) – Coudry (1996/1988). Na ND, o sujeito é visto em relação ao seu meio, ou seja, social e historicamente, conforme a perspectiva luriana. Também na ND não se considera o indivíduo como “amostra” de uma população, mas sim como um sujeito, com uma história de vida, o que se reflete na metodologia do dado-achado.

Em relação ao sujeito na afasia, Coudry (2002) afirma que há linguagem na afasia quando há sujeito e que afásico e não afásico partilham de um sentimento/atitude comum de incompletude frente à linguagem e à língua. A autora questiona “Quem nunca passou por situações de se sentir mais incompleto do que usualmente, hesitando, retomando, interrompendo, tendo menos controle sobre o que diz?” e afirma que na afasia podem ocorrer várias dessas dificuldades, e outras, com a diferença de ser trabalhoso para o sujeito afásico sair desse mau momento, que se repete em várias situações e que não é tão passageiro (como pode ocorrer com pessoas não afásicas). São situações difíceis que o afásico enfrenta, sobretudo levando em conta o grau de tolerância zero que se tem hoje em dia para com os normais. A concepção abrangente e pública nessa Neurolingüística, segundo a autora, não é posta para banalizar a afasia, mas, ao contrário, para compreendê-la. Nessa perspectiva há lugar para o sujeito, o que torna possível estudar a linguagem pública usada por sujeitos afásicos que compõem uma comunidade de falantes.

Coudry (1988), ao descrever as condições e estratégias da prática clínica com a linguagem que envolve procedimentos metodológicos como a agenda, o álbum de retratos, o caderno de atividades, o trabalho com leitura do jornal, a interação com a família, a tematização de fatos e atividades de interesse social, defende que, com esses e outros procedimentos, é possível a reconstituição do paciente como sujeito.

Assim, no campo da Neurolingüística Discursiva, critica-se a avaliação padrão de sujeitos afásicos e a aplicação de certos modelos teóricos da lingüística, centrados essencialmente em parte do que recobre a atividade metalingüística. Coudry, na prática clínica com esses sujeitos, expõe uma concepção de linguagem segundo a qual as línguas naturais são resultado de um trabalho coletivo, histórico e cultural e não mero fruto de convenção (FRANCHI, 1977).

Freire (2005), a partir dos estudos de Coudry, afirma que a Neurolingüística Discursiva se baseia, de um lado, na preocupação de Jakobson em explicar o modo como o sistema da língua se organiza; e, de

(2)

outro, correlaciona a essa noção de uso da língua os fatores ântropo-culturais de uma dada comunidade lingüística, compartilhando, assim, de uma visão abrangente e pública de linguagem. Essa autora afirma que Coudry, ao interpretar os estudos de Jakobson, quando esse se refere à prevalência de funcionamento de um eixo na afasia, postula que há projeção desse eixo sobre o outro, ou seja, embora o “déficit primário” possa atingir um dos eixos em especial, o seu mau funcionamento acarreta um re-arranjo do outro eixo, que pode ser interpretado também como uma redistribuição do modo de funcionamento da língua.

2. Metodologia

A pesquisa se desenvolve a partir de gravações de acompanhamento longitudinal de EM idoso em situações comunicativas nas quais se observam a apreensão, compreensão e análise das representações que ele vem construindo sobre o espaço asilar, sobre si mesmo, bem como sua inserção nessa instituição e sua distância da família, do trabalho e aproximação e vivência do dia-a-dia do Albergue, nos momentos em que falam de si e do outro, das crenças, valores e comportamentos, para posterior análise lingüística. Considera-se aqui que no funcionamento de linguagem no contexto patológico podem perfilhar-se modos de arranjo e estruturação próprios da linguagem e que movimentos do processo enunciativo-discursivo são constitutivos desse funcionamento (esse é o ponto de vista que estará criando o nosso objeto).

3. Alguns Dados

Neste trabalho, enfocamos os primeiros contatos com o sujeito EM. Abaixo, podemos observar um trecho de um diálogo entre EM e Itp, aluna da Iniciação Científica.

QUADRO 1. Dado 11 Sigla

do locutor

Transcrição Observações sobre as condições de produção do enunciado verbal

Observações sobre as condições de produção do enunciado não verbal

Itp E o senhor toma remédio?

EM Toma...

Itp Quantos remédios o senhor toma?

EM 1 mostrando com o dedo também

Itp Me mostra aqui oferecendo as mãos

Itp pega a mão do pesquisador e

segura dois dedos Itp O senhor toma dois

comprimidos? EM Não! 2,2

Itp Dois dias sim, dois dias não?

EM Não! 1,2 Sinalizando com o dedo,

movimentando a mão. Itp Ah! Entendi: de manhã o

senhor toma um e a tarde o senhor toma outro. Ah entendi! (...)

Tom afirmativo

Itp E o senhor tem filhos?

1Dado apresentado no trabalho “O funcionamento da linguagem do idoso” (Paixão e Sampaio, 2008), que consta nos anais do Conpex (2008).

(3)

Quantos filhos o senhor tem?

EM 1, 2, 3, 4, 5

Itp Tudo isso?! Tom de surpresa

Itp faz sinal com as mãos pedindo

para esperar

EM Aqui oh:

1...2...3...4...5...6...7.Ai

faz sinal com as mãos colocando-os de um lado

Itp Parou né? EM Tem mais...

Itp Tem mais?! Quantos mais?

EM 1,2. Aqui sinal com as mãos separando-os

do outro lado. Itp Ah entendi! O senhor tem

sete que não mora aqui e dois que mora aqui. EM Não!

Itp Han... o quê? Me explica aí.

EM Oh: 1,2,3,4,5,6,7... Itp Han... parou... EM Ta aqui 1... Itp Sim...

EM Ta aqui . 2 ta ai. Itp Ta ai onde? EM Aqui!

Itp Tudo aqui em Conquista? EM É...!

Itp Ah ta! EM AÍ, 2.

Itp Ta aqui em Conquista também?

EM É... Itp Hum...

EM Tudo, tudo, tudo... Itp Tudo de uma mulher só?

Você teve todos esses filhos de uma mulher só? Então 7 de um...

Tom de

questionamento

EM Não!

Itp Então como é que foi? EM 1...

Itp Sim... EM 2

Itp Um foi de uma mulher só?

EM É... Itp Sim...

EM Ai vai, vai, vai...

Itp Os outros foram de outras mulheres...

(4)

Itp O senhor vê televisão? EM Não!

Itp Aqui tem televisão? EM Ó... 2 taí

Itp Duas o que? Televisão? EM É. (...)

Itp Antes do senhor vir pra cá, o senhor trabalhava? EM Trabalhava.

Itp Em que o senhor trabalhava?

EM Ó! 1...2...3...4...5...6 Itp O senhor teve seis

trabalhos? EM Foi.

O sujeito EM baseia-se na fala do seu interlocutor para responder as perguntas, o que, segundo Novaes-Pinto (2008), é uma característica do idoso que “acaba se apoiando mais nas falas de seus interlocutores a fim de suprirem suas dificuldades psicofísicas”. Além disso, para EM, devido a sua condição de afásico, a falado do outro se torna ainda mais necessária.

De acordo com Coudry (2002), quando se propõe um trabalho com sujeito cérebro-lesado, deve-se levar em conta a relação entre o sujeito, o outro e as realidades simbólicas mediadas pela linguagem. Dessa forma, ao contrário de um sujeito apagado e de uma língua(gem) una e pronta, a Neurolingüística Discursiva pondera o sujeito a partir do trabalho coletivo entre interlocutores e, a linguagem, como ação simbólica. Assim, EM, em cada resposta, tem como suporte a fala do seu interlocutor, como pode ser verificado no quadro 1.

Ao ser questionado sobre a profissão que exercia antes do AVC, EM, a partir do trabalho coletivo entre interlocutores, consegue se fazer entender, vejamos:

QUADRO 2. Dado 2. Sigla

do locutor

Transcrição Observações sobre as condições de produção do enunciado verbal

Observações sobre as condições de produção do enunciado não verbal

Ins Em que o senhor trabalhava?

EM Não sei. Balançando a cabeça negando.

Ins O senhor não sabe ou não consegue falar?

Tom questionador.

EM Isso. Tom afirmativo. Balança a cabeça afirmando. Ins Não consegue falar a

palavra?

EM Isso. Tom afirmativo.

Ins O senhor era motorista?

EM Isso. Tom afirmativo.

Ins Que tipo de carro o senhor dirigia?

EM Tudo. Ins Tudo o quê? EM Tudo, tudo. Ins Caminhão?

EM Sim! Oh! Oh! um, oh! Oh! 2.

Faz sinal de chamamento com a mão e gesticula com um dedo, depois com dois dedos. Como se fosse passageiros em um ponto de

(5)

ônibus. Ins Ônibus?

EM Isso!

Ins O senhor transportava pessoas?

EM Isso!

Ins O senhor dirigia carros pequenos, ônibus e caminhão?

EM Sim! Com um sorriso.

Ins Então o senhor viajava muito! O Brasil todo!

Itp mostra algumas fotos de paisagens brasileiras e EM se emociona muito.

Com base na literatura da Neurolingüística Discursiva, o sujeito cérebro lesado é interpretado a partir do funcionamento da sua linguagem, que perde a conotação basicamente patológica e ganha outro sentido, ou seja, o que a literatura especializada chama de patológico, a Neurolingüística Discursiva abrange como processos de significação utilizados na tentativa de garantir a efetividade de se significar na interlocução. No episódio acima, EM, por meio de gestos, faz seu interlocutor compreender que ele era motorista de ônibus, esse processo é inerentes ao funcionamento da lingua(gem) e não tem vínculo necessariamente direto com a lesão neurológica em si.

Considerações finais

Ao olhar para a linguagem desse sujeito, a partir da ND que relaciona língua(gem), cultura e sociedade e pela construção do saber dessa abordagem na relação entre língua(gem), cultura e sociedade; acredita-se que, nas situações comunicativas em que se engajam sujeitos cérebro-lesados, a língua(gem) apresenta-se constitutivamente incompleta, falha e heterogênea, características da ordem própria e estrutural da língua quando usada também pelos sujeitos não-cérebros-lesados. (Cf. Sampaio, 2006).

Referências

COUDRY, M. I. H. (1986) Diário de Narciso: discurso e afasia. São Paulo: Martins Fontes. 1988. ___ Linguagem e Afasia: Uma abordagem discursiva da Neurolingüística . In: Cadernos de Estudos Linguísticos, 42, Campinas, IEL, UNICAMP, 99-129. 2002.

FRANCHI, C. Linguagem – Atividade Constitutiva. In: Cadernos de Estudos Lingüísticos. Campinas: (22):9-39. 1977.

FREIRE, F. M. P. Agenda Mágica: linguagem e memória. Tese de Doutoramento. IEL/UNICAMP. 2005.

GUINZBURG, C. Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário. In:_____. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia de Letras, 1986.p.143-180.

NOVAES-PINTO, R. C. Preconceito lingüístico e exclusão social na normalidade e nas patologias da linguagem, 2008. (a sair).

SAMPAIO, N.F.S. Uma abordagem sociolingüística da afasia: O Centro de Convivência de Afásicos (UNICAMP) em foco, Tese de Doutoramento. Inédita. Campinas: IEL/ Unicamp, 2006.

Referências

Documentos relacionados

Figura A53 - Produção e consumo de resinas termoplásticas 2000 - 2009 Fonte: Perfil da Indústria de Transformação de Material Plástico - Edição de 2009.. A Figura A54 exibe

ITIL, biblioteca de infraestrutura de tecnologia da informação, é um framework que surgiu na década de mil novecentos e oitenta pela necessidade do governo

O processo de gerenciamento da capacidade foi desenhado para assegurar que a capacidade da infraestrutura de TI esteja alinhada com as necessidades do negócio. O

Com base nos resultados da pesquisa referente à questão sobre a internacionalização de processos de negócios habilitados pela TI com o apoio do BPM para a geração de ganhos para

“O aumento da eficiência e o plano de produção fizeram com que a disponibilidade das células de fabricação aumentasse, diminuindo o impacto de problemas quando do

Para Dewey (1959), o processo de educar não consiste apenas na reprodução de conhecimentos, mas em uma constante reconstrução da experiência, de forma a dar ao aluno

Portanto, podemos afirmar que alcançamos o nosso objetivo, pois o resultado do estudo realizado nos forneceu dados importantes para a compreensão daquilo que nos

xii) número de alunos matriculados classificados de acordo com a renda per capita familiar. b) encaminhem à Setec/MEC, até o dia 31 de janeiro de cada exercício, para a alimentação de