• Nenhum resultado encontrado

As igrejas evangélicas luteranas livres e independentes em São Lourenço do Sul

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "As igrejas evangélicas luteranas livres e independentes em São Lourenço do Sul"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

571

As igrejAs evAngélicAs luterAnAs livres e independentes

em são lourenço do sul

Tamara Oswald

Mestranda em História pela Universidade Federal de Pelotas toswald@yahoo.com.br

Resumo: Este trabalho traz um estudo sobre a história das igrejas evangélicas luteranas livres e independentes no município de São Lourenço do Sul e sua relação com a imigração pomerana. O tema é importante, pois a religiosidade é um traço característico na preservação da cultura e identidade de muitos povos, e, neste trabalho, aparece como um modo aparentemente peculiar de fazer igreja da cultura pomerana. Cabe salientar ainda que este estudo foi desenvolvido através da consulta a bibliografias e fontes documentais, e a partir de entrevistas feitas com pastores luteranos livres.

Palavras-chave: Pomeranos. Igrejas Livres e Independentes. Luteranos

O presente artigo derivado do segundo e terceiro capítulos de minha monografia1, traz um estudo sobre as Igrejas Evangélicas Luteranas Livres e Independentes em São Lourenço do Sul – RS, e uma discussão sobre manutenção desse modo de fazer igreja, que encontra suas raízes na cultura pomerana desde o início da colonização germânica no município, que se deu em 1858.

Para iniciar é necessário dizer que poucas são as fontes que apontam as motivações desse grupo religioso de cunho luterano formar-se e permanecer “livre e independente” das duas principais Instituições Luteranas Eclesiásticas no Brasil, a IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e a IELB – Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Também existe outro aspecto interessante a apontar: as Igrejas Evangélicas Luteranas livres e independentes não são exclusividade do município de São Lourenço do Sul, porém, há algo que merece atenção especial: o município concentra, em relação a outros municípios, um número considerável dessas comunidades e de membros, o que justifica a demarcação espacial do estudo. No que diz respeito à cronologia, o marco inicial da pesquisa é 1863, pois consta ter sido este o ano da construção do prédio no qual funcionaria a primeira Igreja Luterana livre de São Lourenço do Sul.

O ano de 1824 é marco oficial da colonização teuta2 no Rio Grande do Sul, embora

1 OSWALD, Tamara. Igrejas Evangélicas Luteranas livres e independentes em São Lourenço do Sul. Mo-nografia apresentada ao Curso de Licenciatura em História, da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Licenciado em História. 2011.

2 No presente trabalho, a expressão “teuto (a)” está conceituando os pomeranos. A maioria dos imigrantes vindos a São Lourenço do Sul era de origem pomerana, vindos de uma região politicamente extinta

(2)

chama-572

isso não signifique que antes dessa data não tenham imigrado alemães para o Estado. Naquela época, grande parte das colônias de imigrantes no Brasil foi implantada pelo governo Imperial. Com a Proclamação da República, em 1889, as terras do governo central foram divididas e repassadas aos governos estaduais, e estes se tornaram os principais responsáveis pelas colonizações. São Leopoldo, Três Forquilhas, Santa Cruz, Santo Ângelo e Nova Petrópolis são alguns exemplos de colônias fundadas pelo governo estadual. Em alguns casos, os próprios municípios trataram de colonizar alguma parte da terra.3

Outras colônias foram implantadas através de empresas colonizadoras, que adquiriam terras do governo, sob determinadas condições, para fins de colonização, e ainda, através de colonizações particulares, nas quais as terras do governo passavam para as mãos de proprietários que ficavam comprometidos em fazer a medição e colonização das terras. Foi o caso da colônia de São Lourenço do Sul, fundada em 1858 por Jakob Rheingantz.4

Os colonos recém-chegados, além das dificuldades imediatas (moradia, distância, ambiente desconhecido, idioma, etc.), possuíam muitas necessidades de ordem social e religiosa, como a construção de escolas e igrejas. Majoritariamente, de origem pomerana e religiosidade luterana, os colonos, desde a chegada a São Lourenço, já mantinham sinais de união religiosa, fator importante que resultaria na fundação de diversas comunidades luteranas no interior do município.

Em 1863, foi construído o primeiro prédio que serviria de escola e templo por quatro décadas, denominando-se Igreja Livre de Confissão Luterana de Picada Moinhos, na localidade de mesmo nome. Em 1868, foi fundada a Igreja Evangélica Independente Harmonia II, e em 1883, a Comunidade Evangélica Luterana Independente Cristo Salvador, de Gusmão.

Os pastores dessas igrejas livres eram leigos, sem formação religiosa e exerciam o ofício com autorização provincial. Celebravam casamentos, batizados e encomendações. Geralmente, eram professores contratados por famílias que se reuniam em associações escolares. Esses professores acabavam exercendo também a função de pastor.5

Em 1886, foi fundado o Sínodo Rio-Grandense, que mais tarde, junto com outros sínodos e associações de comunidades evangélicas, formaram a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Além disso, a IELB (Igreja Evangélica Luterana

da Pomerânia, localizada ao norte do que hoje é a Alemanha e a Polônia. 3

CEM ANOS DE GERMANIDADE NO RIO GRANDE DO SUL – 1824-1924: 2000: 7.

4 CEM ANOS DE GERMANIDADE NO RIO GRANDE DO SUL – 1824-1924, 2000: 07. 5 HAMMES, 2010: 169.

(3)

572

573

do Brasil), também já fundava comunidades no Brasil em 1900. Mesmo com esses dois ramos do Luteranismo já atuando no Rio Grande do Sul, as comunidades livres e Independentes preferiram continuar sem ligação à IECLB e IELB. Em “CEM ANOS DE GERMANIDADE NO RIO GRANDE DO SUL”, editado em 1924, se escreveu: “Ao lado dos dois Sínodos, o Rio-Grandense e o de Missouri, existem atualmente uma série de comunidades de igrejas protestantes independentes. A maioria encontra-se no município de São Lourenço.”6

Para tentar explicar a fundação dessas comunidades livres no início do processo de colonização teuta no país, especialmente em São Lourenço do Sul, bem como sua manutenção no município, foram discutidas algumas hipóteses através de consulta a bibliografias, e fontes que incluem duas entrevistas com pastores livres em atividade. Essa discussão e os resultados serão expostos a seguir.

Nas primeiras levas de imigrantes vindos a São Lourenço do Sul, a partir de 1858, haviam trabalhadores de diversas profissões, porém nenhum pastor ou professor. Durante o processo de imigração teuta ao Brasil, os governos não pensaram nos problemas de ordem cultural que essa mudança de continente poderia acarretar: os colonos teutos chegaram ao Brasil falando apenas a Língua Alemã e alguns de seus dialetos, o que traria dificuldade principalmente na questão educacional. Outro aspecto era o religioso: a maioria dos imigrantes teutos que para cá vieram eram luteranos e, no Brasil, a religião oficial era o Catolicismo Apostólico Romano.

Em São Lourenço do Sul, praticamente todos os primeiros imigrantes germânicos eram luteranos vindos da região da Pomerânia. Desamparados pela Igreja Luterana da Europa e pelo governo provincial, mas com a necessidade de cultivar suas manifestações religiosas e garantir o ensino às crianças, os colonos escolheram na sua própria comunidade o mais letrado e que pudesse, ao mesmo tempo, expressar a fé luterana e cuidar da educação, criando a figura do “pastor-colono”. Esses pastores passaram a realizar cultos e ensinar as crianças em qualquer local que apresentasse condições de recebê-los. Esse parece ser o primeiro grande motivo que levou à fundação de comunidades e escolas livres pelos colonos:

As escolas foram um dos principais motivos de organização das comunidades pomeranas. Junto a elas faziam-se as celebrações, geralmente realizadas por um professor escolhido pela comunidade, que se baseava em livros, bíblias e hinários em língua alemã trazidos do além-mar. (EGGERT, 2004: 3)

Ao que parece, educação e religião são inseparáveis no que diz respeito à criação dessas comunidades pelos colonos. Tanto uma quanto a outra foram necessárias para que

(4)

574

os imigrantes pudessem manter sua cultura viva e fortalecerem seus laços e sua identidade em uma nova terra, que não lhes garantia nenhum tipo de auxílio e assistência, pelo menos até o final do século XIX:

[...] os poucos pastores que atuavam no Rio Grande do Sul o faziam por iniciativa pessoal. Nenhuma instituição os tinha enviado para o Brasil. As Igrejas Evangélicas Regionais da Alemanha, até então, não tinham se preocupado com os seus membros que tinham deixado o país. Por consequência, no que dizia respeito à preservação e cultivo de sua fé, os imigrantes evangélicos estavam entregues à própria sorte. Adeptos de uma religião apenas tolerada pela Constituição do Império, sem poder contar com o auxílio do Estado para questões referentes à sua Igreja, os imigrantes estavam postos diante de uma encruzilhada: resignar e abandonar a Igreja Evangélica, já que por ela também tinham sido abandonados, ou buscar soluções em seu próprio meio. Enveredando por este segundo caminho, foi que se abriu a oportunidade para o surgimento dos assim chamados pseudopastores ou pastores livres, sem vínculo com nenhuma instituição eclesiástica, senão apenas com a comunidade, também esta, uma comunidade livre. (WITT, 1996: 81)

Não se sabe até que ponto a falta de formação teológica, de preparação religiosa e educacional dos “pseudopastores” pode ter influenciado na formação cultural e espiritual dos colonos, mas ao que tudo indica, eles supriram as necessidades iniciais dos imigrantes, sendo a alternativa encontrada para a manutenção da cultura, incentivando a religião e a educação.

Existe a possibilidade dos imigrantes pomeranos terem mantido suas comunidades livres por não aceitarem outro tipo de culto. Sendo o Catolicismo Apostólico Romano a religião oficial do Brasil durante o período, o governo não teria dado atenção aos assuntos religiosos dos não-católicos:

[...] eram autorizados a realizar as práticas religiosas em moradias particulares ou em casas construídas pelas comunidades, que, entretanto, não podiam exibir qualquer sinal externo de templo. A princípio, os matrimônios evangélicos não tinham qualquer valor oficial.” (CEM ANOS DE GERMANIDADE, 2000: 521)

Apenas em 1863, por influência do embaixador do rei prussiano S. Ex. Von Eichmann, o governo brasileiro colocou em cumprimento a lei de 11 de setembro de 1861, que determinava que os casamentos celebrados ainda na Europa tivessem reconhecimento a partir da apresentação da certidão, e que os casamentos celebrados a partir desta data somente teriam validade se o pastor que o presidisse fosse registrado pelo governo e, a certidão de casamento, registrada na câmara municipal. Essa determinação, de certa

(5)

574

575

forma, garantiu que mesmo os pseudopastores pudessem celebrar casamentos, pois o governo não os questionava sobre sua qualificação. Isso contribuiu para que os colonos luteranos livres pudessem manter sua religiosidade sem precisar aderir ou recorrer a outros cultos e religiões.

Ainda assim, os “pseudopastores” continuaram a ser alvo de críticas clericalistas, mas, “As pessoas das comunidades não estavam tão interessadas na discussão institucional, e, sim, interessadas em sua liberdade, devido a profundas marcas vividas como sujeitos subjugados em sua pátria mãe, em especial na Pomerânia.” (EGGERT, 2004, p. 4 e 5)

Esse desejo por liberdade religiosa característico na cultura pomerana, também fica claro para RIETH, que afirma que essa busca por liberdade se deu ainda na Europa, quando algumas pessoas não aceitaram a união de elementos de tradições como a calvinista, anabatista, valdense, etc. nas igrejas territoriais:

Cerca de 60% dos imigrantes de fala alemã vindos ao Brasil eram protestantes. Em suas regiões de origem, eles pertenciam a comunidades geralmente vinculadas a igrejas territoriais, isto é, igrejas que em questão de doutrina e praxe eclesiástica dependiam bastante da tradição confessional do território ou da política dos governantes. Algumas dessas igrejas territoriais protestantes seguiam uma linha mais reformada, isto é, mais de acordo com a tradição de Zwínglio e Calvino. Outras seguiam uma linha mais luterana. Também vieram ao Brasil, valdenses e anabatistas. Por outro lado, desde o início do século passado, houve igrejas territoriais que se tornaram unidas, isto é, procuraram conciliar elementos das tradições reformada e luterana. Muita gente se rebelou contra essa união e acabou fundando comunidades livres, pois não toleravam participar da Santa Ceia com quem tivesse doutrina diferente, nem aceitavam uma liturgia diferente. (RIETH, 2009: 210 e 211)

Ao que tudo indica, a análise de RIETH sobre este aspecto pode estar correta, pois a Confissão de Augsburgo7 nos traz algumas informações da desunião religiosa resultante da Reforma e da organização das cidades livres, na região desses imigrantes:

No dia 21 de janeiro de 1530, o Imperador Carlos V convocou uma dieta imperial a reunir-se em abril seguinte, em Augsburgo, Alemanha. Ele desejava ter uma frente unida nas suas operações militares contra os turcos, e isso parecia exigir um fim na desunião religiosa que tinha sido introduzida como resultado da Reforma. Consequentemente, convidou os príncipes e representantes das cidades livres do Império para discutir as diferenças religiosas na futura dieta, na esperança de superá-las e restaurar a unidade. De acordo com o convite, o Eleitor da Saxônia pediu aos seus teólogos em Wittenberg que preparassem um relato sobre as crenças e práticas nas igrejas da sua terra. (SCHÜLER,

7 Uma das partes apresentadas no LIVRO DE CONCÓRDIA que reúne as confissões da Igreja Evangélica Luterana.

(6)

576

1993: 24)

Talvez essa medida do Imperador Carlos V, exigindo o fim da desunião religiosa aos príncipes e representantes de cidades livres, possa ter influenciado na união das chamadas igrejas territoriais. Por outro lado, quando os Artigos de Schwabach e Torgau foram enviados a Augsburgo, decidiu-se fazer uma declaração luterana conjunta, mas que não reunisse os luteranos aos demais protestantes.

Juntamente com outros documentos, os Artigos de Schwabach e Torgau foram levados para Augsburgo. Lá foi decidido fazer uma declaração luterana conjunta em vez de uma simples declaração saxônica, a explanação a ser apresentada ao Imperador. Circunstâncias também exigiram que se deixasse claro na declaração que os luteranos não fossem reunidos ao acaso com os demais oponentes de Roma. Outras considerações indicaram que seria desejável enfatizar mais a harmonia com Roma do que as diferenças. Todos estes fatores contribuíram para determinar as características do documento que estava sendo preparado por Felipe Melanchthon. Os Artigos de Schwabach tornaram-se a base para a primeira parte do que veio a ser chamado de Confissão de Augsburgo, e os Artigos de Torgau tornaram-se a sua segunda parte. (SCHÜLER, 1993: 24)

Parece que o conteúdo dos artigos da Confissão de Augsburgo, por não reunirem os Luteranos aos protestantes de outros cultos reformados, pode ter influenciado e inspirado a formação de comunidades luteranas livres.

Outro aspecto a ser considerado, é que os imigrantes, longe de sua terra natal, puderam estabelecer no Brasil uma prática religiosa mais autônoma, que lhes permitiu manter práticas de religiosidade popular, como a benzedura, com uso de ervas medicinais, mesmo frequentando a Igreja Luterana. Na Europa Reformada, certamente essas práticas seriam condenadas, mas nas comunidades do interior de São Lourenço do Sul essa prática se mantém desde a colonização e mulheres luteranas admitem terem procurado benzedeiras e utilizarem medicina popular. (EGGERT, 2004: 4 e 5)

Por último, talvez outro grande motivo dos luteranos livres e independentes não terem se vinculado a nenhum Sínodo, é de que dessa forma também puderam manter autonomia frente ao Estado, tanto na questão do dízimo, quanto na própria liberdade organizacional e de culto.

Poucas são as fontes documentais específicas que permitem relatar a história das comunidades livres e independentes. Tratando-se dessas comunidades no município de São Lourenço do Sul, a única fonte documental encontrada e utilizada durante esta pesquisa e que traduz um pouco daquilo que representaram essas comunidades no início da colonização é o livreto escrito por Carlos Rheingantz, que traz algumas observações acerca das igrejas e pastores livres e independentes. Além desse livreto, certamente

(7)

576

577

existem outros documentos ainda não explorados nos arquivos das próprias comunidades, com informações mais específicas (relação de membrezia, atas, estatutos, certidões de batismo, casamento e óbito, etc.) e que podem auxiliar no prosseguimento desse estudo e em pesquisas futuras.

Com relação às fontes orais, as duas entrevistas8 que realizei com pastores livres e independentes, trazem questões formuladas de acordo com aquilo que se pretende conhecer a respeito da origem, fundação e manutenção dessas comunidades ao longo de dois séculos em São Lourenço do Sul.

As primeiras questões formuladas foram a respeito da nomenclatura. Indaguei sobre o porquê das comunidades se denominarem livres e independentes no início da colonização e por que mantêm essa denominação atualmente:

Pastor Emir: Acho que independente justamente porque eles quiseram ficar independentes. Nós conversamos sobre os Sínodos, né? Acho que eles não quiseram mesmo. Acho eu né, pelo que a gente entende das pessoas mais antigas, eles quiseram sempre ficar independentes. E independentes, significa hoje ainda, e vem desde aquela época, uma comunidade da outra, ela tem um pouquinho de Estatuto diferente uma da outra. Um pouquinho de lei diferente uma da outra. Cada comunidade, por exemplo, tem o seu projeto de lei dentro da comunidade: - Bom, nós precisamos isso e isso pra nossa comunidade. - Aí para a outra ali mais adiante, outra comunidade da mesma Igreja Luterana Independente, aquela lei que é aplicada pra essa comunidade aqui pode não ser boa pra outra. Ou a outra tem uma lei melhor, uma ideia melhor, por isso acho que ela ficou Independente [...]Se ela se ligasse a um Sínodo que parece que, as pessoas de mais idade quando a gente fala com elas, elas dizem que seriam então presas e teriam que acatar com um Estatuto único, do Sínodo. Na verdade depois eu parei e pensei um pouco e é exatamente isso, porque aí ela tá ligada a um Sínodo, aí vem um estatuto único. Hoje não. Hoje nossas comunidades Independentes elas tem um estatuto como eu falei, aqui nessa comunidade é diferente da outra lá, mas todas elas são um conjunto de comunidades que se denominam Independentes.

Parece que o “ser livre e independente”, no que diz respeito à nomenclatura, estava associado no século XVIII, início da colonização, ao distanciamento do Estado em relação às questões religiosas. Já a partir do início do século XX até a atualidade, ser livre e independente passa a estar associado à resistência sobre a subordinação aos Sínodos, hoje IECLB e IELB. A questão referente à liberdade estatutária de cada comunidade parece ser outro ponto importante, pois permite que as comunidades se organizem de forma mais

8 Entrevista com o Pastor Emir Schmechel Bartz, Acervo Particular – CD ROM, 11/10/2011. Entrevista com o Pastor Arinaldo Geri, Acervo Particular – CD ROM, 14/11/2011.

(8)

578

autônoma, o que não ocorreria caso estivessem atreladas a uma estrutura eclesiástica. A manutenção de estatutos próprios também permite respeitar as particularidades e necessidades de cada igreja. Essa resistência frente às congregações religiosas parece refletir também na formação dos pastores livres, que não possuem formação teológica externa, apesar do Rio Grande do Sul contar com escolas de teologia. Outra observação a ser feita é que assim como no passado, atualmente os pastores ainda são escolhidos pela própria comunidade:

Tamara: O Sr. tem alguma formação teológica?

Pastor Arinaldo: - Não. Eu vou falar que nem o apóstolo São Paulo disse: Tudo que eu tenho Deus me deu.

Pastor Emir: - Eu fui convidado para trabalhar nas comunidades Luteranas Independentes na época né, e quando nós começamos havia uma grande falta de pastores. Os que vinham trabalhando já eram de bastante idade, e aí entrou um projeto nas comunidades de formar novos pastores, visto que os de idade já estavam começando a ficar doentes e tinham uma dificuldade pra se locomover de um lugar para o outro, na época com carroça né, não tinha a facilidade que nem hoje.E eu me senti bem em receber o convite, e a gente fez vários cursos e foi aprovado, a gente fez testes também nessas comunidades para ver se a gente poderia seguir esse trabalho, a gente começou em fase de teste, depois fomos aprovados em reuniões:- Não, mas o guri tem condições, vamos contratá-lo.

Outro aspecto sabido e que não foi questionado durante as entrevistas, mas de importância considerável, é que os dois entrevistados possuem pelo menos um membro na família que também é pastor livre: no caso do Pr. Emir, seu genro, e no caso do Pr. Arinaldo, seu pai, demonstrando que o histórico familiar de um pastor luterano livre também pode influenciar na indicação de futuros representantes pela comunidade.

Respondidas as questões sobre a nomenclatura, perguntou-se aos pastores o motivo das comunidades atualmente serem livres e independentes, se são livres e independentes por tradição, ou resistência. Os dois concordam que ainda existe resistência por parte das comunidades. Mas aquilo que o Pr. Emir vê como tradição, o Pr. Arinaldo prefere chamar de necessidade:

Pastor Emir: - Eu acho que as duas coisas. Resistência e um pouco de tradição também. A gente fala com o pessoal aqui fora né, os nossos, os que a gente atende, nossos membros, e eles também querem ficar independentes, então é um pouco por uma tradição e outro por resistência e por já estar acostumado ali né. É um trabalho bom que eles fazem. A gente tem as diretorias e os membros, e eu acho que é por causa que eles já acostumaram né, então...

(9)

578

579

Pastor Arinaldo: - Quanto à resistência é isso aí, sei lá, quem vem de fora e não tá muito no meio do povo, não conhece a verdadeira realidade das pessoas, então por isso, talvez as pessoas pensem, se tu quer considerar isso como resistência [...] É isso que acontece por lá. Vamos para a tradição. Bom, eu vou te colocar não como tradição, que acaba fatalmente acontecendo a tradição, mas não é isso. Isso aconteceu, as comunidades se uniram por uma necessidade, que tinha que ter, as coisas de Deus, porque lá eles entendiam e entendem hoje ainda, que não há um desvio assim, sabem que já fatalmente vai acontecer, isso a Bíblia tá escrevendo, elas querem segurar isso, as coisas de Deus, mas fatalmente vai acontecer.

O Pr. Emir aparentemente procurou justificar a resistência como produto do costume dos membros, pois estes estariam habituados com a igreja na forma que conhecem e por estarem satisfeitos com o sistema organizacional dessas comunidades, já o Pr. Arinaldo defende essa resistência como fruto das necessidades dos colonos. Em certo momento, os colonos precisaram se organizar de tal forma que pudessem garantir o acesso à religiosidade e à educação, e que atualmente essa organização se reproduz na lógica de algo que se tornou uma tradição religiosa.

A segunda parte das entrevistas tratou sobre a questão da legitimidade das comunidades perante o Estado. Lembrando que as igrejas livres e independentes não se vincularam no passado a nenhum Sínodo e hoje não possuem vínculos nem com a IELB, nem com a IECLB, o que pode dificultar de certa forma, o reconhecimento e o controle do Estado sobre essas comunidades. Questionados sobre se procuram o reconhecimento do Estado, eles responderam:

Pastor Emir: - Com toda certeza. Geralmente quando a gente faz um casamento, por exemplo, eu não vou dizer que seja uma obrigação total, mas a gente sempre exige antes o civil. Porque no civil a gente vê se a pessoa realmente não é casada com outra. Os óbitos também são todos legitimados, a assinatura já vem do hospital, a certidão de óbito, quanto tempo ficou internado, do que morreu, tudo certinho. Isso tem tudo documentado, a família vai lá com os documentos certinhos, e isso é tudo encaminhado pela diretoria.”

Pastor Arinaldo: - “Estamos bem assim, nós não procuramos o reconhecimento do Estado, porque quem tem que reconhecer é Deus.

Uma das interpretações ao analisar as duas afirmações, é que as questões burocráticas, de ordem documental, como certidões, etc., são exigidas pelo Estado, e para o Estado. Por outro lado, percebe-se que não existe uma preocupação dos luteranos livres e independentes em serem reconhecidos enquanto instituição religiosa legítima pelo Estado.

A terceira parte das entrevistas foi direcionada ao histórico das comunidades livres e independentes. Apesar de não terem suas origens históricas neste século, o

(10)

580

questionamento acerca dessa questão aos pastores foi importante pelo fato de perceber a consciência deles em relação à proposta e concepção teológica original que permeou a organização das primeiras comunidades.

Sobre a origem dessas comunidades, o Pr. Emir concorda com a possibilidade dessas igrejas de matriz luterana terem sua formação ainda na Europa, já o pastor Arinaldo diz não ter conhecimento sobre o assunto:

Pastor Emir: - Eu acho que veio junto com a imigração. Não sei se na época tinha igreja Independente da onde vieram os nossos pomeranos, né. Hoje a gente diz imigração alemã, mas na verdade, os nossos imigrantes, a maioria foi pomerano. Veio um e outro alemão né, e eu não sei se veio, eu acho que não veio nenhum pastor junto com a imigração, formado, como nós conversamos antes, eu acho que quem sabia mais sobre leitura, sobre matemática, digamos assim, foi então de início o professor e o pastor. É o que a gente sabe dos nossos avós, bisavós, que nos contaram isso quando a gente ainda era moleque. E veio de lá, a Igreja veio junto sim. E se na Europa hoje, eu não sei qual é a formação deles hoje lá, na África, na Europa, se existe a Igreja Independente, como é a formação dos pastores hoje lá, e como ela funciona lá, se é o mesmo projeto daqui, isso eu não posso dizer, mas a nossa comunidade Independente é mais no Brasil.

Pastor Arinaldo: - Vou ficar te devendo. Do que eu tenho certeza? Eu vi meu pai ensinando, doutrinando, em um templo construído como igreja usado também como escola. Isso foram tosas as antigas. Com certeza se não existia no município pra coordenar isso, anos mais tarde meu pai, ele teve a obrigação de se adequar a continuar sendo professor, teve que fazer concurso pra poder ser professor, mas já não foi mais como um professor ou como um pastor livre. A igreja era com escola e mantida pelas famílias.

A partir dessas respostas, é possível perceber que a história das igrejas luteranas livres e independentes que os pastores conhecem é aquela que lhes foi passada através dos relatos de seus avós e bisavós, ou seja, pela tradição oral. E a tradição oral confirma aquilo que dizem as fontes documentais sobre a criação de escolas e comunidades, bem como o histórico de pastores-colonos – que também atuavam como professores, escolhidos no seio da comunidade, diante da falta de pastores formados, de assistência educacional por parte do Estado.

Quando questionados sobre a Confissão de Augsburgo, ambos não mostraram muito interesse e conhecimento, o Pastor Arinaldo disse que não possuía conhecimento da Confissão, e o Pastor Emir disse já ter ouvido falar, mas nunca a leu. Talvez isso demonstre que se esse modo de fazer igreja, representado pelas comunidades luteranas livres e independentes,surgiu ainda na Europa e foi trazido ao Brasil,e aqui, ele pode ter sido adaptado e reconceituado, principalmente no que diz respeito aos traços e concepções

(11)

580

581

religiosas originais dessa matriz luterana. Outra questão que vale ressaltar está relacionada à origem étnica dos membros. O Pastor Arinaldo afirma claramente que os membros são majoritariamente de origem pomerana, inclusive colocando isso como uma forma de resistência:

Pastor Arinaldo: - Existe muita resistência ainda. Algumas comunidades fizeram assembleias. Mas se acontecer de vir um que não for da nossa origem se associar, como é que nós vamos fazer? Eles podem vir se associar, mas eles têm que trazer a sua origem, e tem que já ser de nossa origem, aí ele pode entrar. Vai existir alguém que é de nossa origem que vai trazer de lá pra poder entrar, não vai ter. Todas as comunidades têm condições. De ser uma pessoa assim, assim e assim, pra poder ser como um membro da comunidade e para isso, se essas pessoas vêm e não forem de nossa origem, como será, vão ser aceitos, pode ou não, pra que no dia que aconteça o presidente não tenha que pensar sozinho, já pensou com a comunidade toda, aí foi colocada essa norma. Tem que trazer o comprovante de que já tem origem desses. Porque se ele não for dessa origem então ele pode procurar uma de onde ele é de origem. É uma lógica feita por eles para que qualquer um não tenha a porta de acesso. Por isso, praticamente todos são de origem pomerana.

A partir dessa afirmação, pode-se pensar que além dos imigrantes de origem pomerana estarem diretamente ligados às comunidades luteranas livres e independentes, estes se mantêm resistentes frente às demais culturas, e, principalmente, à própria igreja luterana da Europa, como mostra um importante relato dos próprios colonos disponível numa obra intitulada “Pomeranos sobre o Cruzeiro do Sul – Colonos Alemães no Brasil”

Os imigrantes uma vez declararam publicamente: “Fomos livres, permanecemos livres e queremos continuar livres! Não queremos mais ficar submissos a uma suprema ordem da igreja de Berlim!” Antigamente, na Pomerânia, eles tiveram más experiências, pois os proprietários mais importantes ditavam as regras na comunidade e os pastores simplesmente aceitavam a imposição dos mesmos. Isto os pomeranos nunca esqueceram e, além disto, a igreja pouco se importou com os mesmos quando se instalaram na região entre São Lourenço e Pelotas. (GRANZOW, 2009: 146)

Talvez essa resistência religiosa também seja uma das formas de preservação da própria cultura pomerana, que em diversos momentos, ao longo da história, teve de se adaptar frente a outras culturas para não perder a identidade, mas manteve vivos, ainda que em segundo plano, traços importantes como o próprio dialeto pomerano, a culinária,

(12)

582

os rituais no matrimônio, os Stiepens9 e por que não, esse modo de fazer igreja, de uma

forma mais autônoma.

referênciAs BiBliográficAs:

A CONFISSÃO DE AUGSBURGO – 25 DE JULHO DE 1530. Tradução e notas por Arnaldo Schüler, Ed. Sinodal e Ed. Concórdia, 1993. Disponível em: www.luteranos. com.br/confissao.html, Acesso em: 30/07/2012.

CEM ANOS DE GERMANIDADE NO RIO GRANDE DO SUL – 1824-1924. –Hunder

Jahre Deutschtum in Rio Grande do Sul (1824-1924). Trad. Por Arthur Blasio Rambo.

São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2000.

EGGERT, Edla. Pomeranas parceiras no caminho da roça: um jeito de fazer Igreja,

Teologia e Educação Popular. Cadernos IHU Idéias, ano 2, nº 13, 2004. Disponível em:

http://www.ihu.unisinos.br/uploads/publicacoes/edicoes/1163187932.97pdf.pdf, Acesso em: 30/07/2012.

GRANZOW, Klaus. Pomeranos sob o Cruzeiro do Sul: colonos alemães no Brasil. Vitória (ES): Arquivo Público do Estado do. Espírito Santo, 2009. Disponível em: http:// www.ape.es.gov.br/pdf/pomeranos_sob_o_cruzeiro_do_sul.pdf, Acesso em: 30/07/2012. HAMMES, Edilberto Luiz. São Lourenço do Sul: Radiografia de um município – das

origens ao ano 2000. V. 2. São Leopoldo: Studio Zeus, 2010.

RIETH, Ricardo Willy. Raízes Históricas e Identidade da Igreja Evangélica Luterana

do Brasil (IELB). Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 9, n. 2, julho/dezembro de 2009.

Disponível em: http://www.est.edu.br/periodicos/index.php/estudos_teologicos/article/ view/83/77, Acesso em: 30/07/2012.

WITT, Osmar. Igreja na migração e colonização. Dissertação (Mestrado), São Leopoldo: Sinodal, 1996.

9 Termo que designa um costume que atualmente ainda é usado na Páscoa, no interior do município de São Lourenço do Sul, quando jovens fazem visitas levando alegria na forma de músicas e danças, regadas a bebidas, às casas da vizinhança, na noite do sábado de aleluia.

Referências

Documentos relacionados

★ Decisão (UE) 2021/176 do Conselho, de 5 de fevereiro de 2021, relativa à celebração das alterações do Acordo respeitante à cooperação na luta contra a

O resultado provisório do Processo Sele�vo de Vagas Remanescentes dos cursos técnicos de Informá�ca e Agropecuária integrados ao Ensino Médio 2020/1

Resultados de um trabalho de três anos de investigação da jornalista francesa Marie-Monique Robin, o livro Le Monde Selon Monsanto (O Mundo Segundo a,Monsanto) e o

candidaturas: as candidaturas devem ser efetuadas nos 10 dias úteis a contar a partir da data da presente publicação, em suporte de papel através do preenchimento de formulário

a) “Os critérios de avaliação são indicações claras acerca do que é importante aprender e, consequentemente, avaliar através de uma ou mais tarefas. Os critérios

[r]

Se optares por uma base casa na árvore, escolhe a maior e mais alta que puderes — de preferência árvore da selva — para ser mais difícil aos mobs avistarem-te.. Não te esqueças

Por se tratar de uma pesquisa crônica, o estudo de Hodgson et al (2018) não realizou realização imediatamente após a técnica, mas sim 4 semanas após, a fim de