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Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro ECO/UFRJ

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O Cinema Documentário como Documento-Verdade1

Autora: Julia Lemos Lima2

Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – ECO/UFRJ

Resumo

Problematização do cinema documentário e seu estatuto de verdade, abordando sua utilização como documento de memória. Estudar o destacado papel ocupado pelo registro de memória na sociedade, ação imprescindível para possibilitar seu questionamento, e permitir seu uso considerando os processos sociais de construção de sentido que lhe deram origem. Analisar as razões pelas quais produções fílmicas documentais se comprometem com uma suposta objetividade, traçando um breve histórico do documentário, mais especificamente, do documentário brasileiro. Neste contexto, contrapor a estrutura clássica documental ao cinema auto-reflexivo, vertente cinematográfica comprometida com o antiilusionismo no campo do audiovisual, através da análise de filmes pertinentes ao tema abordado.

Palavras-Chave

Cinema documentário; Documento-Verdade; Memória; Registro.

Corpo do Trabalho

Introdução

O sub-projeto O Cinema Documentário como Documento-Verdade foi elaborado a partir das atividades de pesquisa do projeto ao qual está vinculado – Texto Fílmico,

Informação e Memória, desenvolvido na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

– UNIRIO. As questões levantadas na pesquisa e as problematizações concernentes à área da Comunicação Social, mais especificamente, do Jornalismo, evidenciaram a necessidade de se construir um sub-projeto que as conjugasse.

O estudo do texto fílmico como documento de registro nos levou a observar a relação que este estabelece com a verdade. Neste âmbito, torna-se imperativo destacar o

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Trabalho apresentado à Coordenação de Eventos Especiais III: Intercom Júnior 2

Aluna da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – ECO/UFRJ, cursando o 5º perío do da habilitação de Jornalismo. Autora do sub -projeto O Cinema Documentário e seu Estatuto de Verdade, selecionado para a 4ª Jornada de Iniciação Científica da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO no ano de 2005. Discente integrante do grupo de pesquisa do projeto Texto Fílmico, Informação e Memória em desenvolvimento na UNIRIO. Contato: juliallima@yahoo.com.br

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papel do cinema documentário como fonte do saber histórico. E a partir deste momento, iniciar o processo de desconstrução, ou pelo menos, relativização, da objetividade aparentemente inerente à produção documental cinematográfica.

Com o objetivo de evidenciar o documentário como um discurso construído, e possibilitar sua utilização consciente como registro de memória, o projeto pretende, inicialmente, analisar este tipo de produção em seu estatuto de documento. Para tal, é essencial traçar um breve histórico do documentário como gênero fílmico, mais especificamente, do documentário brasileiro.

Para dar continuidade à pesquisa e efetivamente questionar a tradição documental, pretendemos analisar o cinema auto-reflexivo como vertente cinematográfica comprometida com a desmistificação no campo audiovisual. Estudar como a auto-reflexividade, principalmente no cinema brasileiro, levanta questões sobre a necessidade de se evidenciar os processos de construção de um filme, revelando-o como uma produção subjetiva.

Ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, a análise fílmica torna-se essencial, para que seja possível reconhecer os mecanismos utilizados pelo cinema documentário tanto para nos manter no ilusionismo – no caso de filmes pertencentes à tradição documental – como para nos retirar dele – no caso do cinema auto-reflexivo.

A Verdade no Documento e no Cinema

Muitos discursos têm em si o estatuto da verdade. Ocupam esta posição já que são importantes instrumentos de poder e controle social. Quando entramos em contato com tais discursos, como por exemplo, o discurso histórico, acadêmico ou jornalístico, não questionamos sua autenticidade, uma vez que todas estas instituições construíram para si ou impuseram, em determinados casos, uma confiabilidade que, para muitos, é absoluta.

Todos estes discursos possuem grande credibilidade pois representam uma fala de poder. Não importa que tipo de informação carreguem, e como a exponham, tais textos são encarados como instituições de certeza, como premissas para garantir o valor de verdade em algo.

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O cinema documentário pode ser observado dentro dessa perspectiva. Ele é tido, por vezes, como uma verdadeira “janela para a realidade”, uma pretensa demonstração do real tal qual ele é. Não se pensa no documentário como uma construção, como um discurso subjetivo. E justamente aí, reside o ilusionismo documental.

Este tipo de produção ocupa uma posição privilegiada dentro do cinema, considerado uma forma realista de representação do mundo. Seu comprometimento com a verdade é praticamente implícito, garantido-lhe o estatuto de “documento histórico neutro”.

Para exemplificar este fenômeno, basta observarmos a proximidade estabelecida entre documentário e o discurso jornalístico. Constantemente utilizado no telejornalismo e em programas de grandes reportagens, o documentário tem aí a função de confirmar a fala do repórter, de ilustrar o que já foi afirmado por uma narração em off.

O documentário, então, acumula para si as qualidades conferidas ao relato jornalístico. Assim como este último, é também reconhecido como um importante lugar da História. Segundo Ana Paula Goulart Ribeiro, os meios de comunicação determinam o que é histórico ou não, e constituem o principal lugar de memória das sociedades contemporâneas. Através das operações lingüísticas da mídia, é realizada a produção de significado das transformações sociais. E o que não é abordado por esta é igualmente ignorado pelo conjunto da sociedade.

A autora afirma que este fenômeno pode ser associado ao mito de neutralidade e objetividade que surgiu com o jornalismo informativo em meados do século XIX. No Brasil, tal modelo se consolidou com as reformas editoriais da década de 50, que introduziram o modelo norte-americano e permanece em voga até hoje.

Na tradição da produção documental, o cinema direto é o que mais se aproxima do discurso jornalístico. Segundo Silvio Da-Rin, os principais representantes desta vertente, Robert Drew e Richard Leacock, não consideravam seus trabalhos nem mesmo documentários, mas “cine-reportagens”, ou “jornalismo filmado”. Na busca da imparcialidade, tais documentaristas acreditavam num método “observacional”, eliminando ao máximo as intervenções da equipe de filmagem em uma situação.

Dentro do campo do registro, pode-se dizer que o documentário também é percebido com uma forma “elevada”. Por lidar com imagens, esta produção fílmica garante para si grande credibilidade. As imagens de um filme, ficcionais ou não, existiram em

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algum momento da história, pois foram registradas por uma câmera. Muito mais do que um documento escrito sobre um fato, que pressupõe a interpretação daquele que o escreveu, o documentário se aproxima, ou parece se aproximar, da realidade por sugerir uma relação direta entre espectador e acontecimento. A única mediação existente aí seria realizada pela câmera, instrumento mecânico, ou seja, sem opiniões ou subjetividades para “contaminar” o registro do real.

O filme nos chega com a força de documento autêntico pois sabemos, pelas leis da reprodução mecânica, que o que vemos na tela aconteceu de fato, em certo sentido, diante da câmera (...), a impressão fílmica da realidade, por sua vez, beneficia -se, em sentido literal ou figurado, da expressão da ideologia do visível (“ver para crer”) (STAM, 1981, p.143).

Em A Obra de Arte na época de sua Reprodutibilidade Técnica, Walter Benjamin mostra como o cinema se aproxima do real. Ele compara um cameraman a um pintor, afirmando que enquanto o último representa o real a uma certa distância, o primeiro – através da aparelhagem, da técnica – penetra nele em profundidade.

A discussão sobre a impossibilidade de uma neutralidade inerente ao documento histórico está presente no estudo da documentação. Ao analisar um registro – seja este em forma de texto, imagem ou som – todo pesquisador precisa estar consciente de que tal material é uma produção social, ou seja, foi organizado segundo interesses e intenções de determinados grupos sociais. Jacques Le Goff, em seu texto Documento/Monumento, explicita a necessidade de se encarar qualquer documento como um monumento, isto é, perceber nele sua intencionalidade, seu aspecto artificial:

O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer papel de ingênuo (LE GOFF, 1994, p. 548).

Tendo isso em vista, torna-se imprescindível a avaliação do documentário como um monumento. Não se trata aqui de negar a produção fílmica documental como um todo. Acreditamos que ela pode fornecer informações valiosas sobre uma dada realidade representada. Porém, é importante enfatizar tal característica inerente a qualquer documento: a da re-apresentação do mundo à nossa volta. Sendo assim, a crítica à

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qualidade objetiva do documentário é essencial para sua utilização como documento histórico de forma consciente.

Antiilusionismo no Cinema: a auto-reflexividade

Com o intuito de exemplificar o questionamento do documentário como forma de representação fiel do real, pretendemos estudar o chamado cinema reflexivo3, isto é, o cinema comprometido com o fim do ilusionismo cinematográfico. Muitas vezes, para se comprovar uma hipótese, é preciso levá-la ao extremo, e é exatamente isso que o cinema mencionado se compromete a fazer. Tal produção possui vertentes tanto na ficção quanto no documentário, tendo como marca freqüente a transgressão das regras de separação entre esses dois gêneros.

O cinema reflexivo não tem como preocupação “o mundo representado, mas o próprio processo de representação” (DA-RIN, 2004: 170). Em outras palavras, em maior ou menor grau, o cinema reflexivo prioriza a tematização e a problematização do meio, furando o cânone da supremacia da narrativa e do conteúdo, em oposição à forma. Neste sentido o cinema se revelaria como manifestação estética e não apenas como uma narrativa.

Além de se assumir como manifestação estética, o documentário reflexivo tem por objetivo evidenciar as marcas de produção do filme. Ao invés de escondê-las, para garantir sua isenção, este tipo de filme faz questão de se revelar como discurso construído, como um ponto de vista sobre uma dada questão.

Em suas produções, este objetivo pode ser alcançado de várias formas: dando sinais, através da ficção ou não, do processo de construção de um filme, aumentado-os de forma a transformá-los sempre perceptíveis; através da mistura de modalidades documentais e ficcionais dentro de uma mesma obra; através da pura e simples paródia de um gênero ou através do uso da metalinguagem em diversos níveis de complexidade e importância dentro da trama (seja fazendo um filme sobre a feitura de um filme, seja com apenas uma fala que conscientize o espectador da artificialidade do que está sendo visto). De acordo com

3 O autor Bill Nichols utiliza esta nomenclatura quando se refere a um dos seis modos possíveis do cinema documentário. Para este trabalho, vamos nos referir a qualquer produto, ficcional ou não, que tenha tal característica, como auto-reflexivo, ou apenas reflexivo.

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Bernardet, o cinema reflexivo não pretende dar a impressão de algo real, mas apenas significar e assumir esta significação de mundo.

Através dessas abordagens, e outras que serão explicitadas ao longo do desenvolvimento deste trabalho e das análises de filmes, esta forma fílmica põe em cheque toda a história e tradição documental. Utilizando as próprias técnicas do chamado documentário ilusionista para enfrentá-lo – com a intenção de mostrar como e porque este tipo de filme se compromete com a transparência – , o documentário reflexivo evidencia de forma inovadora e criativa a impossibilidade do registro do real em uma imagem.

Momentos de Ruptura: Dziga Vertov e Eduardo Coutinho

Robert Stam identifica três formas possíveis e não-excludentes entre si de se “refletir” o cinema dentro do cinema: a de natureza lúdica, a de natureza agressiva e a de natureza didática. Na primeira, tal reflexão é feita como que um exercício artístico-formalístico. “Tirar a própria máscara pelo prazer de brincar com os códigos do espetáculo” (DA-RIN, 2004: 171). Na forma agressiva, tem-se uma atitude contestatória, confrontando o espectador diretamente. E por último, no modo didático, o propósito principal é o de esclarecer e informar pedagogicamente o espectador, tornando-o mais consciente do processo audiovisual. O cinema reflexivo quer que o espectador faça um percurso até a conscientização através de sua participação na criação de sentido no filme. É preciso estabelecer relações, raciocinar, construir o filme conjuntamente; nada é entregue “de bandeja”.

Os três modos de antiilusionismo podem aparecer juntamente em um mesmo filme, em diferentes graus de proporcionalidade. Neste contexto, pode-se falar em O Homem da

Câmera (1928), que mesmo sendo primariamente didático em sua proposta, apresenta

também traços lúdicos.

O filme conjuga ao mesmo tempo o processo cinematográfico e a percepção óptica humana, através de movimentos em velocidades diferentes, imagens sobrepostas, dissolvidas, refletidas, animadas entre outras formas de quebra da gramática da ilusão.

Dziga Vertov leva o espectador à ilusão para logo depois, de forma abrupta, tirá-lo. Tal exemplo pode ser verificado na cena em que o cinegrafista está em cima de um carro

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filmando outros carros passando e, logo após, tem-se esta tomada filmada por ele. Ou então, no momento em que a narrativa é interrompida e a cena na tela transforma-se em um

frame de um conjunto de negativos, sendo recortados e montados por uma montadora – a

própria mulher de Vertov – desmistificando o processo de montagem do filme. O autor provoca estranhamento também ao utilizar imagens captadas de improviso e que não se encaixam em uma narrativa linear, estando fora de uma lógica espaço-temporal. Neste contexto, a montagem sai do segundo plano a que é geralmente designada e ocupa um papel principal, revelando-se presente em todas as etapas de criação do filme.

Todo o método de Vertov se organiza em torno desta contradição dialética entre factualidade e montagem; ou seja, articulação entre o “cine-registro de fatos reais” e a criação de uma nova estrutura visual capaz de interpretar relações visíveis e invisíveis – como, por exemplo, as relações de classe. A verdade não era encarada como algo “captável” por uma câmera oculta, mas como produto de uma construção que envolvia as sucessivas etapas do processo de criação cinematográfica: “os filmes do ‘cinema-olho’ estão em montagem a partir do momento em que se escolhe o assunto até a cópia final, ou seja, estão em montagem durante todo o processo de fabricação do filme” (Idem, 2004:117).

De acordo com Da-Rin, o cineasta privilegia a “montagem disruptiva-associativa”, na qual uma imagem descontextualizada aparece em uma seqüência, gerando desconforto e curiosidade naqueles que assistem. O espectador, então, é obrigado a pensar, participando da construção de sentido do filme, que com certeza não será a mesma para todos.

A pedagogia encontrada no filme está em plena sintonia com o contexto sócio-político russo no qual o filme foi produzido.Vertov faz questão de desmistificar o trabalho cinematográfico, através da inserção de cenas que desvelam o processo técnico de um filme, mostradas em conjunto com cenas de trabalhos de outras naturezas. O trabalho do cineasta se iguala a qualquer outro trabalho, como o de um operário, por exemplo. O diretor pretendia desvelar a magia que envolvia o cinema até então, conscientizando o espectador de que esta era mais uma forma de expressão da ideologia burguesa alienadora; enfim, Vertov defendia o cinema de “desencantamento revolucionário”.Tal estética o levou ao centro da crítica ideológica, inspirando inúmeros outros movimentos contrários ao modo expositivo de representação, inclusive na área do documentário.

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Retomando as relações entre o documental e a ficção, temos que ambos não são estruturas tão estanques como se costuma imaginar. Aliás, o cinema antiilusionista se utiliza desta problemática como meio e fim, misturando documentário e ficção para evidenciar aspectos importantes e vitais de cada um, além de revelar que um não se encontra tão distante do outro, como se convém pensar.

No cinema brasileiro, a tendência auto-reflexiva encontrou resistências. A idéia de revelar os meios de produção de um filme, acabando com o espetáculo ilusionista, não era compatível com o discurso sóbrio do documentário. No entanto, a partir dos anos 80, a nova produção documental do Brasil assinalou, em alguns de seus filmes, a preocupação em reposicionar o estatuto do documentário, isto é, em abordar o objeto documentado de forma inovadora.

Um nome de destaque dentro dessa nova produção é o de Eduardo Coutinho. Ao longo de sua trajetória cinematográfica e através de seus filmes, é possível observar o questionamento do documentarista em relação à pretensa objetividade assumida pelo documentário.

O filme Cabra Marcado Para Morrer (1984), é um documentário que realmente se constrói na frente da câmera, trazendo à tona questões de metalinguagem. Ele marca, na carreira do cineasta, o início de sua ruptura com a tradição documental.

Na primeira parte do projeto de realização do filme, o objetivo do cineasta era realizar um filme de ficção, que reconstituísse a história do assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira, com um elenco de atores camponeses, no interior da Paraíba. Com o golpe militar de 1964 o filme foi interrompido – aliás, o único no país – e parte do material gravado foi apreendida pelos militares. No entanto, alguns negativos do filme foram salvos, permitindo que, em 1979, Coutinho desse início a seu novo projeto: descobrir o paradeiro dos camponeses que haviam participado da produção em 64 e realizar um documentário sobre o que ocorrera com eles desde então.

Cabra Marcado Para Morrer inaugurou uma nova fase do cinema documentário

brasileiro. A estrutura da história difere-se daquilo que era feito em documentários históricos da década de 70 e 80. Não se tratava ali de representar grandes nomes, grandes personagens históricos. Muito menos, de criar a figura de um camponês que pudesse ser aplicada a todos, fabricando uma visão generalizante.

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O que faz Cabra Marcado é justamente identificar as variações, as inflexões, as marcas sutis que mostram que essas trajetórias anônimas não são homogêneas e que não há o “camponês” propriamente. Há, sim, uma multiplicidade de existências com uma experiência comum nas lutas sociais dos anos 60, mas com inserções diferenciadas nessas lutas e caminhos posteriores bastante distintos (LINS, 2004:33).

A auto-reflexividade de Cabra Marcado Para Morrer decorre do fato deste ser um filme que tenta resgatar a sua própria história. Ele retorna a seu tema utilizando novos métodos, trazendo novas questões sobre a produção documental que a simples continuação do filme como uma ficção não traria. Ao tornar seu projeto em um documentário, Eduardo Coutinho torna-se metalingüístico, e coloca o cinema dentro do próprio fazer cinematográfico.

Uma das primeiras imagens do filme, a preparação da projeção do que havia sido gravado na primeira versão para os camponeses, é extremamente antiilusionista. O contato com a exibição de equipamentos, dos técnicos, com a intervenção direta do diretor, força o espectador a construir o documentário juntamente com a equipe, num esforço intelectual para a criação de sentido em um filme extremamente baseado em fragmentos, de memória ou de documentos, que “refletem verdades situadas, contingentes e relativas” (DA-RIN, 2004: 217). Seus entrevistados não relatam fielmente o que aconteceu, nem poderiam, mas não é isso o que importa para Coutinho. “Ele não quer saber o que realmente aconteceu, mas sim “como essas lembranças surgem no presente, como são narradas no momento da filmagem, mesmo que não coincidam com a história oficial. É a ‘memória do presente’” (LINS, 2004:47).

O conceito de verdade como uma observação passiva do desenrolar dos fatos frente à câmera não mais pode se aplicar ao cinema documentário inaugurado por Coutinho. Seu objetivo não é criar uma verdade única, incontestável e justificável pelo simples fato de sua presença diante do acontecimento no momento da filmagem. O cineasta quer evidenciar em que condições seu filme foi produzido, para que os espectadores percebam que tudo aquilo é uma criação e que, por isso, possui uma impressão profunda das subjetividades do diretor e sua equipe.

A verdade da filmagem significa revelar em que situação, em que momento ela se dá – e todo o aleatório que pode acontecer nela. ... É importantíssima, porque revela a contingência da verdade que você tem ... revela muito mais

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a verdade da filmagem que a filmagem da verdade, porque inclusive a gente não está fazendo ciência, mas cinema (COUTINHO apud LINS, 2004:44).

Metodologia

A abordagem metodológica que se pretende adotar para o desenvolvimento do trabalho inclui duas frentes de pesquisa. A primeira consiste em um levantamento bibliográfico nas áreas de estudos de cinema e documento. As informações coletadas neste momento serão utilizadas como base teórica para a realização da fase seguinte.

Posteriormente, serão selecionados filmes considerados pertinentes à temática do projeto, ou seja, produções que problematizem sua condição de documentário e assumam seu discurso como uma construção social. Para limitar temporalmente a abordagem, serão analisados documentários brasileiros produzidos a partir da década de 80. Estes títulos serão o principal alvo de estudo do projeto, no entanto, poderão ser comparados com marcos do cinema documentário mundial para que sejam bem situados na tradição e transformação deste tipo de produção cinematográfica.

Algumas Considerações

Todas as conclusões apresentadas aqui são parciais, uma vez que o trabalho apresentado refere-se a uma fase inicial de um projeto de pesquisa. No entanto, pode-se afirmar que este estudo recupera a importância da crítica à objetividade em qualquer documento, inserindo-a em um novo contexto: o campo cinematográfico.

Entrando em contato com a vertente auto-reflexiva do cinema brasileiro, torna-se importante compreender a assim chamada estrutura clássica do documentário, suas técnicas e seus objetivos. E com isso, problematizar seu uso como documento histórico, conhecendo as razões pelas quais ele, durante muito tempo, se pretendeu como uma “janela para realidade”.

Neste sentido, é preciso encarar o documento “como o repositário/veículo da memória de um grupo, comunidade, sociedade etc., por estarem nele inscritas as representações que dão forma a esta memória social ou coletiva” (RIBEIRO, WILKE,

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OLIVEIRA, 2004, p.2). O destacado papel ocupado pelo registro de memória na sociedade torna imprescindível seu questionamento, para, assim, permitir que seu uso seja realizado considerando-se os processos sociais de construção de sentido que lhe deram origem.

Ao unir num mesmo estudo tradição e transformação, podemos entender como este segmento da recente produção de documentários realiza uma importante quebra no cinema brasileiro. E perceber como daí surge algo inovador: uma assumida combinação entre realidade e criação que só tem a enriquecer nossa visão sobre o mundo.

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REFERÊNCIAS FÍLMICAS

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