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A CONSTRUÇÃO DA BIOGRAFIA E DA HEROÍNA CUBANA CÉLIA SANCHEZ NA REVISTA BOHEMIA NO ANO DE

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A CONSTRUÇÃO DA BIOGRAFIA E DA HEROÍNA CUBANA CÉLIA SANCHEZ

NA REVISTA BOHEMIA NO ANO DE 1980 1

Andréa Mazurok Schactae (História – UEPG/FAFIT/UFPR)

Palavras-chave: biografia; relações de gênero; heroína

Os espaços da guerra e das instituições armadas são historicamente identificados como pertencentes ao masculino. Também tendem a serem os lugares onde surgem homens e mulheres serão transformados em símbolos nacionais - os heróis e as heroínas -, bem como, em modelos de cidadania. O processo de construção desses símbolos é marcado pela escrita das biografias dos eleitos. Essas narrativas constituem pessoas em símbolos que passam a identificar a nação.

As construções discursivas – monumentos, cerimônias, símbolos, língua, história, memória – ordenam e constroem uma homogeneidade nas comunidades imaginadas, que ocultam a heterogeneidade e as contradições existentes na coletividade. Para Benedict Anderson, os Estados Nacionais são comunidades imaginadas, porque para ele, “todas as comunidades maiores que as aldeias primordiais onde havia contacto cara a cara [...] são imaginadas.”2

Os discursos e práticas que definem o aparato simbólico construído pelo Estado e por suas instituições de poder, com o objetivo estabelecer as identidades nacionais, tende a reafirmar o masculino enquanto poder dominante na esfera pública. Os heróis, nos Estados Nacionais na América Latina, tendem a ser militares ou oriundos de instituições armadas. Portanto, esses símbolos nacionais são marcados por características identificadoras de uma masculinidade hegemônica. Para Robert Connell, a masculinidade hegemônica

1 Esse texto são reflexões iniciais dentro do projeto de pesquisa: A(s) Biografia(s) de Célia Sanchez: a

construção de uma heroína e de um ideal de feminilidade em Cuba, o qual está em andamento. Os documentos utilizados para construção desse texto foram consultados no ano de 2010, dentro do Projeto MES/Cuba, do Núcleo de Estudos de Gênero da UFPR (Brasil) e do Observatório de Gênero da Universidade de Holguín (Cuba), com apoio financeiro da CAPES.

2 ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e expansão do nacionalismo. Lisboa,

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se pelas masculinidades militares, construídas ao longo do século XIX e do século XX3, as quais orientam a edificação de ideais de hombridade nas sociedades ocidentais.4

Entre esses espaços de construção da hombridade na América Latina está a Revolução Cubana, um movimento iniciado na década de 1950, em oposição ao governo de Fugêncio Batista. Após um golpe de Estado, no ano de 1952, o General Batista iniciou mais um período de ditadura. Uma prática que marca a história de Cuba após a conquista da Independência, no final do século XIX.

É oportuno destacar que há interpretações historiográficas sobre a Revolução Cubana que tendem a destacar o processo com uma ação de homens guerrilheiros.5 Portando, essa historiografia tende a reproduzir um discurso do Estado Cubano, ao reafirmar que o espaço revolucionário é uma construção orientada pelas ações de sujeitos do sexo masculino.

Objetivando iniciar uma reflexão sobre a ação do Estado Cubano no processo de construção de uma das heroínas da Revolução Cubana, no final do século XX, o texto está dividido em duas partes. A primeira é uma reflexão entre biografia, heróis/heroínas e gênero. E para fechar a reflexão, é analisado um dos textos fundadores da biografia da cubana Célia Sanchez, o qual foi publicado na Revista Bohemia, em janeiro do ano de 1980.

As biografias e a construção das heroínas

3 Sobre a construção de modelos das masculinidades no século XIX e XX, ver: CORBIN, Alain (org).

História da virilidade : o triunfo da virilidade no século XIX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013; CORTINE,

Jean-Jacques (org.) História da virilidade: a virilidade em crise? Séculos XX-XXI. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013

4 CONNELL, R. W. Políticas da masculinidade. Educação e Realidade, v. 20, n. 2, jul/dez 1995, p. 185-206,

p. 192-195. Sobre o conceito de masculinidade hegemônica ver também: CONNELL, R. W. La organización social de la masculinidad. In: VALDÉS, T.; OLAVARRÍA, J. (eds). Masculidad/es: Poder y Crisis. Santiago, Chile: Ediciones de las mujeres, n. 24, 1997, p. 31-48. Disponível em: <http://www.pasa.cl/biblioteca/La_Organizacion_Social_de_la_Masculinidad_Con nel,_Robert.pdf>. Acesso em 15 jan 2009. CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Hegemonic masculinity: rethinking the concept. Gender & Society. Vol.19, 2005, <http://gas. sage pub.com>, CAPES, acesso: 27 mai 2009.

5 FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana. São Paulo: Expressão Popular,

Ed. 2012. WILLIAMSON, Edwin. História da América Latina. Lisboa: Edições 70, 2009. MONIZ, Luiz Alberto Bandeira. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

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Historicamente o Estado e as suas organizações de poder, como as instituições militares, são espaços ocupados por homens, nos quais os seus símbolos e suas práticas são identificadores de masculinidades. Os heróis, as fardas e as armas são construções simbólicas do Estado e de uma masculinidade identificada pela violência, força, coragem e honra. Essas construções constituem identidades de gênero, afirmando um “saber a respeito das diferenças sexuais”,6 que é expresso em práticas, símbolos e leis que organizam e identificam o Estado e suas instituições.

Voltando o olhar para a construção dos símbolos nacionais, observa-se que os heróis e os símbolos tendem a serem construídos para representar um ideal de masculinidade, e que os símbolos femininos se acercam de representações da maternidade e da santidade. Portanto, ao longo da história, enquanto os homens são identificados como os guerreiros e as mulheres são às mães dos guerreiros.

A imagem do guerreiro é composta por objetos simbólicos como a vestimenta e a arma. Esses objetos remetem a características que historicamente foram incorporadas em corpos de homens e reafirmadoras de uma identidade masculina, para a instituição e para seus membros, fundada na virilidade. Uma identidade, apropriando-se de Pierre Bourdieu, “construída diante dos outros homens, para os outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo do feminino, [...]”7. Sendo assim, a identidade do guerreiro foi construída para afirmar a virilidade no homem e libertá-lo do perigo da feminilidade, para torná-lo forte e corajoso.

Os valores e as características que identificam os heróis são construções simbólicas, que são adaptadas as necessidades apresentadas pelo presente e tendem a reproduzir um ideal de masculinidade. Enquanto para as heroínas nacionais é construído um modelo de feminilidade que está vinculado à maternidade e a santidade, portanto a esfera privada, o modelo masculino está ligado à esfera pública e as armas – instituições armadas e conflitos armados. Para Robert Connel, o Estado e as instituições armadas possuem um aparato simbólico identificador de um ideal de masculinidade. Uma construção ideal, segundo o autor, que é explicada pelo conceito de “masculinidade

6 SCOTT, Joan W. Prefácio a gender and politics of history. Cadernos Pagu, n. 3, 1994, p. 11-27, p. 12. 7 BOURDIEU, Pierre. A Dominação masculina. Rio de Janeiro, Betrand, 2007, p. 67.

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hegemônica”. Um modelo que não é fixo e imutável, mas está vinculado a posições de poder e tende a ser reproduzido.8

Para Luis Bonino há no ocidente um modelo de masculinidade hegemônica que se impõe sobre as outras masculinidades. Essa identificação de masculinidade é marcada um uma continuidade. Para ele as crises são apenas ajustes da masculinidade hegemônica e não indicam rupturas, pois ela se mantém como dominante e independente, subordinando outras masculinidades e as feminilidades. Segundo o autor as características que representam a definição de masculinidade hegemônica são a independência (individualidade, autonomia, egocentrismo, poder, etc.), o domínio (combate, luta, heroísmo), a hierarquia (liderança, obediência, disciplina, lealdade, sacrifício, etc.) e a heterossexualidade. Esses valores, que significam o que é ser homem, segundo ele, estão presentes no imaginário social.9

A construção da guerreira é caracterizada por mulheres rompem com o padrão de comportamento aceito como pertencente ao sexo feminino e assumem um comportamento desviante. Prática que é reconhecida e aceita quando legitimada pelo objetivo de defesa da Nação ou da Pátria. O espaço da guerra e das armas deixa de ser domínio exclusivo dos homens, e indica a construção de diferentes relações entre ideais de masculinidade e feminilidade.

Vale destacar, que o principal lugar de construção dos heróis e heroínas são as biografias, que alimentam a memória nacional e orientam a construção de modelos de masculinidade e feminilidade. O historiador Pierre Nora, indica as biografias como lugares da memória de um grupo10.

Essas construções discursivas ordenam e constroem uma homogeneidade que ocultam a heterogeneidade e as contradições existentes na coletividade. A biografia torna o herói e a heroína como identificadores da coletividade. Porém, essas narrativas também estabelecem a diferença entre os sujeitos comuns e aqueles que são apresentados como

8 CONNELL, R. W. La organización social de la masculinidad. In: VALDÉS, T.; OLAVARRÍA, J. (eds).

Masculidad/es: Poder y Crisis. Santiago, Chile: Ediciones de las mujeres, n.º 24, 1997, p. 31-48. Disponível em: <http://www.pasa.cl/biblioteca/ La_Organizacion_Social_de_la_Masculinidad_Connel,_Robert.pdf>. Acesso em: 15/01/2009. CONNELL, R. W. JAMES, W. Hegemonic Masculinity: rethinking the concept. Gender e Society, n. 19, 2005. Disponível em: <http://gas.sagepub.com>. Acesso em: 09 de junho de 2009.

9 BONINO, L. Masculinidad hegemônica e identidad masculina. Dossiers feministes -Masculinitats: mites,

de/construccions y mascarades, n. 67, 2002, p. 07-36.

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excepcionais, bem como, se constituem em ferramentas de transmissão de modelos que devem orientar o comportamento de homens e mulheres.

Na concepção de Raoul Girardet essas narrativas são construtoras de mitos políticos. O mito político é “[...] instrumento de reconquista de uma identidade comprometida. Mas ele aprece também como elemento constitutivo de uma certa forma de realidade social.”11 Portanto, para o autor, esses símbolos são produzidos por uma realidade social, bem como contribuem para construir essa realidade.12

Destarte, as biografias, dos heróis e heroínas nacionais, são narrativas construtoras de significados que representam realidades e as constroem. Conforme destaca François Dosse,13 desde a Antiguidade o gênero biográfico serviu para construir modelos. Deste modo, utilizar como fontes biografias, sejam estas escritas por agentes do Estado ou não, permite reconhecer os valores, ou as maneiras de viver que foram estabelecidas como modelos em diferentes épocas, as quais deveriam inspirar e nortear o comportamento de homens e mulheres. Portanto, as biografias das heroínas são lugares legitimam transgressões da ordem estabelecida, mas também, re-afirmam um ideal de feminilidade. São expressões das contradições que constituem as realidades sociais.

Ao observar as narrativas sobre a heroína Joana D´Arc, a autora Walnice Nogueira Galvão, destaca qualidades masculinas atribuídas à heroína – a coragem, a bravura e o combate em defesa da Pátria –, e também qualidades femininas – a pureza e virgindade –, que são as virtudes identificadoras, segundo a autora, de uma “donzela-guerreira”. Uma mulher que cortou os cabelos e se vestiu de soldado, e por sua transgressão foi queimada como bruxa. Depois de anos foi constituída em heroína e tornada santa pela mesma instituição que a matou.14 Para complementar a ideia da autora, de transgressora ela foi constituída em santa, porque se acreditava que ela foi enviada por Deus para guiar os soldados. Assim, a sua condição de predestinada se afirma como identificadora da heroína e não as suas virtudes de guerreira.

11 GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologias políticas. Companhia das Letras, SP. 1987, p. 183. 12 GIRARDET, R. [...]. Ibidem, p. 187.

13 DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo, 2009.

14 GALVÃO, W. N. A donzela-guerreira: um estudo de gênero. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 1998,

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No Brasil, as heroínas também são construídas como modelo de feminilidade, conforme apresenta o livro “Heroínas Bahianas”, publicado pela primeira vez no ano de 1936, vinculado à “Coleção Participação da Mulher na Independência”, cujas narrativas da vida das heroínas representam um ideal de heroísmo feminino. A obra narra a vida de três mulheres, a primeira é Joana Angélica, uma religiosa, que é identificada como “a primeira heroína da Independência do Brasil”, por sua vida santa, dedicada à Igreja e sua morte brutal, foi assassinada por soldados na “guerra da independência do Brasil”15. Maria Quitéria de Jesus Medeiros é a segunda “heroína da guerra da Independência na Bahia”. Ela cortou os cabelos e se disfarçou de homem, segundo o autor da obra, “violentando o destino pacífico de seu sexo, [alistou-se] num batalhão”.16 Com o uso da arma ela lutou com a bravura, a valentia e o heroísmo de um soldado, na defesa da Pátria. A última é “a heroína da caridade”, Anna Justina Ferreira Nery, enfermeira voluntária da Guerra do Paraguai, é a última a ser citada. Na narrativa da trajetória dessas mulheres, identificadas como heroínas, apenas uma pega em armas e é acusada pelo autor de violentar a sua natureza de mulher, que está na santidade e no cuidar do outro. As outras representam o modelo de feminilidade ideal.

O ideal de feminilidade maternal também está presente nas biografias de mulheres que participaram das lutas de independência da América Latina. Conforme estudo apresentado por Maria Ligia Coelho Prado, as biografias produzidas no século XIX e inicio do século XX indicam a presença de muitas mulheres nas lutas pela independência, muitas das quais ingressam nos exércitos como soldados. Nas narrativas biografias, escritas geralmente por homens, afirma a historiadora, “as mulheres eram modestas, altruístas, generosas e abnegadas. [...] Suas ações respondiam apenas aos apelos do coração. [....] Naturalmente são apresentadas como modelos de mãe e esposa.”17 Mulheres rebeldes e que romperam com a ordem, segundo a autora, foram transformadas em “modelos de esposa e mãe, glorificadas por todas as virtudes cristãs intimamente trançadas com as virtudes

15 SOUZA, B. J. de. Heroínas bahianas: Joanna Angélica, Maria Quitéria, Anna Nery. Rio de Janeiro:

Paralelo; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972, p.121.

16 SOUZA, B. J. [...]. Idem.

17 PRADO, M. L. A participação das mulheres nas lutas pela independência política da América Latina. In:

____ . América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999, p. 28-51, p. 46-47.

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patrióticas.”18 Os biógrafos, continua a autora, as retiram do espaço público e as devolvem para o espaço privado, enquanto a historiografia contemporânea sobre as independências tendem a silencia-se sobre a ação das mulheres nos processos.

Os textos biográficos dessas mulheres, produzidos no século XIX e XX, tendem a reproduzir um modelo ideal de mulher, ao se escrevem biografias de mulheres, que atuaram nesse espaço historicamente masculino, que é a luta armada, indicam uma reprodução de uma ordem simbólica tradicional. Embora a participação de mulheres na política e nas instituições armadas seja crescente, os ideais de herói e heroína aparentemente permanecem intocados.

Apropriando-se de Pierre Bourdieu19, podemos afirmar que ao re-construir a trajetória de uma pessoa para transformá-lo em símbolo/mitos – heróis e heroínas –, o Estado Nacional se inventa e re-inventa. As biografias dos heróis e heroínas são lugares da integração da comunidade imaginada. Portanto, a identidade do biografado se constitui na identidade da nação e o sujeito histórico, transformado em um símbolo, é constituído por práticas e valores generificados. Os heróis e heroínas são propagadores de ideais de masculinidade e de feminilidade, porém, também podem expressar rupturas com esses ideais. A biografia de uma mulher, que é mãe e guerreira, torna-se uma grande contradição, pois o ideal de maternidade20 é caracterizado por práticas como o cuidado e a proteção.

A heroína cubana Célia Sánchez: a face feminina da Revolução e do Estado Cubano

A mulher que se tornou uma das heroínas da Revolução Cubana, Célia Sánchez Manduley, nasceu em 09 de maio de 1920 e faleceu em 11 de janeiro de 1980. Nos últimos 30 anos, o Estado Cubano publicou diversos textos que construíram a Célia Sanchez, guerrilheira, deputada, secretária de Estado, amiga de Fidel, amiga do povo, mulher... A filha do médico Manuel Sánchez Silveira, fundador do partido Ortodoxo em Pilón, na década de 1940.

18 PRADO, M. L. [...]. Ibidem, p. 51.

19 BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: _____. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da

ação. Campinas, SP: Papirus, 1996, p. 74-82.

20 O estudo da historiadora Ana Paula V. Martins, demonstra que a preocupação em com a construção de um

modelo de maternidade existe na América desde o período colonial. MARTINS, Ana Paula V. “Vamos cria seu filho”: os médicos puericultores e a pedagogia materna no século XX. História, Ciência e Saúde, Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n, 1, p. 135-154, 2008.

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Ao se reconstruir a trajetória de Célia, a partir dos textos oficiais, percebe-se que sua atuação na política antecede seus vínculos com Fidel Castro. Uma trajetória que é compartilhada com diversas mulheres que participaram ativamente da política em Cuba, desde o século XIX. Portanto, a participação das mulheres na luta armada em Cuba, na década de 1950 – entendendo que a guerrilha é mais uma organização de resistência a ditadura de Fugêncio Batista –, ganha significado se inserida na História de Cuba, do final do século XIX e meados do século XX. Os estudos de Julio Cesar Páges González21 e Ivette Sóñora Soto22 indicam que esse período é marcado pela atuação de inúmeros movimentos organizados por mulheres, um indicativo da atuação feminina na esfera pública. Portanto, é possível afirmar que o período entre o final do século XIX e meados do século XX, em Cuba, constitui-se por uma significativa participação de mulheres no espaço da política. E a Célia é uma entre essas mulheres.

Observando a sua trajetória política identifica-se que no ano de 1947, ela atuava como membro da Juventude do Partido Ortodoxo, na Província do Oriente, e no ano de 1952, ela assumiu a tarefa de organizar uma rede de resistência à ditadura de Batista, na região de Pilón. A sua atuação na resistência a coloca em contato com duas lideranças de oposição, em Santiago de Cuba, Frank País e María Antonia Figueroa, ambos militantes do Partido Ortodoxo23.

Também é importante considerar que muitas mulheres estavam vinculadas a outras organizações. Em Santiago de Cuba surgiram a Acción Libertadora e a Acción

Revolucionaria Oriental, esta fundada por Frank País e María Antonia Figueroa24, que no

ano de 1954 assumiu uma função na direção do Movimento Nacional Revolucionário, juntamente como Frank País.25 Vale destacar, que María Antonia é também integrante da Frente Cívica de Mulheres do Centenário Martiniano, uma dentre as diversas organizações

21 GONZÁLEZ, Julio César Pagés. Em busca de un espacio: Historia de mujeres em Cuba. La Habana:

Editorial de Ciencias Sociales, 2005. GONZÁLEZ, Julio César Pagés. La Republica Femenina: Organizaciones Revolucionarias de Mujeres 1952-1958. Universidade de Havana: Havana, 1991.(mimeo)

22 SÓÑORA SOTO, Ivette. Conciencia ciudadana. Cambio de mentalidades de las mujeres santiagueras y sus

utopias. Estudos Feministas, Florianópolis, vol. 17, n. 2, p. 395-416, 2009. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br>

23 ALVAREZ, Pedro Tabío. Celia: ensayo pra uma biografia. La Habana: Oficina de Publicaciones del

Cosejo de Estado, 2004.

24 ILISÁSTIGUI, Margarita Avilés; ALVAREZ, Gladys Rosa Porro. Melba: mujer de todos los tiempos. La

Habana: Ediciones Verde Olivo, 2005, p. 35.

25 ACOSTA, Herberto Norman. La palabra empeñada. Tomo 1. La Habana: Oficina de Publicaciones del

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femininas que se opunham a ditadura. Entre as organizações femininas, criadas na década de 1950, está a organização Mujeres Oposicionistas Unidas (M.O.U), criada no ano de 1956, como o objetivo de reunir as mulheres de diferentes grupos de oposição (Partido Socialista Popular; Diretória Revolucionário; Movimento 26 de Julho; Mulheres Católicas; Professoras Universitárias)26.

Com o inicio da atuação da guerrilha, na Sierra Maestra, essas mulheres que participavam dessas organizações urbanas, passaram a desenvolver atividades de apoio a guerrilha. E no ano de 1958, Fidel Castro criou o Pelotón Mariana Grajares como parte do Exército Revolucionário, o qual depois de 1959 se constituiu em parte das Forças Armadas Revolucionárias. No entanto, desde o início dos conflitos, no ano de 1953, durante o assalto ao Quartel Moncada, em Santiago de Cuba, as mulheres atuaram nos espaços de conflito armado.27 Antes da criação do Pelotão Feminino na Sierra Maestra, inúmeras mulheres realizaram atividades de mensageiras, enfermeiras, secretárias, transportando armas, munições, comidas e homens da cidade para a Sierra. Portanto, considerando que muitas das mulheres que atuaram durante a guerra (1956-1959) foram incorporadas as instituições militares cubanas, na década de 1960, Cuba é um dos primeiros países na América-Latina a permitir que mulheres ingressem no Exército.

Embora tenha ocorrido uma ampla participação de mulheres no movimento revolucionário, poucas se constituíram em heroínas. Célia Sánchez figura entre as mulheres que participaram da Revolução e faz parte de um pequeno grupo de mulheres reconhecidas como símbolos da Revolução.

Após sua morte, em fevereiro de 1980, Célia foi constituída em um modelo de cidadã cubana. E se identificarmos as biografias como monumentos, isto é, como construções definidoras um modelo de comportamento e parte do contexto no qual foram produzidas, as biografias são produtos que permitem analisar esse contexto. A tendência da biografia é ocultar as tensões e contradições que constituem a experiência de um agente. Portanto a história de vida como uma narrativa coerente e ordenada de uma trajetória, é

26 GONZÁLEZ, Julio César Pagés. La Republica Femenina: Organizaciones Revolucionarias de Mujeres

1952-1958. Universidade de Havana: Havana, 1991.(mimeo)

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uma ilusão, pois a trajetória de um agente é constituída por movimentos no espaço social, o qual é marcado por tensões e contradições.28

Nas biografias que constituem os heróis e as heroínas, há uma tendência de ocultar as contradições e se constrói uma narrativa marcada pela coerência e geralmente pela ideia de predestinação. A narrativa biográfica revela que o biografado desde a infância apresenta características e comportamentos que indicam sua destinação a constitui-se em herói ou heroína.

A primeira biografia de Célia foi publicada na Revista Bohemia, no dia 18 de janeiro de 1980. Criada no início do século XX, a Revista passou a compor o aparato de comunicação do Estado Cubano, na década de 1960, e se constituiu em um dos principais meios de comunicação do Estado Cubano. Ainda hoje é uma publicação semanal, que circula a nível nacional. Foi essa voz do Estado Cubano que apresentou uma trajetória fundadora a heroína Célia. Ao imbricar a trajetória de Célia ao processo revolucionário, a biografia da heroína é parte do processo de reconstrução da ideia de Revolução Cubana, no início da década de 1980.

Ao longo de mais de 20 páginas, a Revista apresenta dezenas de fotografias de Célia, a maioria delas na companhia de Fidel Castro. O elemento central da narrativa está voltado para a sua participação no movimento guerrilheiro e sua proximidade ao líder, Fidel Castro. A narrativa a apresenta como uma das primeiras mulheres a ingressar na revolução liderada por Fidel, bem como um dos agentes fundadores do Movimento 26 de Julho, no Oriente, e como a pessoa que organizou o desembarque do Granma.29

O discurso de Armando Hart, constrói a necessidade de ter Célia como um exemplo de cidadania e de feminilidade. E ele inicia sua fala a definindo como um símbolo da Revolução.

(...) la más hermosa y autóctona flor de la Revolución. Célia era, y será siempre para todos sus compañeros, la fibra más intima y querida de la Revolución Cubana.

Para para medir quén fue esta hermana nuestra, basta subrayar que será imposible escribir la historia de Fidel Castro, sin reflejar a la vez la vida revolucionaria de Célia Sanchez Manduley.30

28 BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996.

29 ESTADO CUBANO. Revista Bohemia, La Habana, Cuba, año 72, n. 3, 18 de janeiro de 1980.

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Esses dois primeiros parágrafos indicam que Hart está preocupado com a percepção que a população tem da Revolução e de Fidel. A popularidade de Célia, que é destacada nas páginas anteriores, é um indicativo da necessidade de vincular a sua imagem a de Fidel e da Revolução. Portanto, de construir uma imagem feminina da Revolução, pois se constituiu em:

una combatiente revolucionaria con excepcional intuición, sensibilidad, e inteligencia femeninas. A su valor personal, mostrado en toda su vida de revolucionara y, en especial en difíciles momentos de la guerra y en los instantes cruciales y decisivos por los que ha atravesado nuestro proceso, se unia una sencillez, una modestia y una exquisita sensibilidad de mujer.31

A construção dessa narrativa da trajetória da Célia indica que a Revolução necessita destacar uma face feminina. Isso não significa que não existam heroínas anteriores a ela. As guerrilheiras que atuaram na clandestinidade, Lidia Doce Sánchez e Clodomira Acosta Ferrales, as quais foram presas e assassinadas pela polícia de Batista, no ano de 1958, são parte da memória da Revolução. Inclusive foram publicadas fotos de Célia na companhia dessas heroínas. Portanto, de certa forma Célia também assume as faces dessas heroínas.

O discurso da Revista indica uma necessidade de reinvenção das relações de gênero nas narrativas da Revolução Cubana e o Estado. Essa necessidade está expressa no discurso de Hart, nas fotografias e nos demais textos publicados sobre a Célia. Provavelmente não seja um ato consciente, porém as necessidades do contexto orientam a construção dessa narrativa fundadora da heroína. O que estava acontecendo no Estado que indica essa necessidade de se construir uma face feminina para a Revolução, para Fidel Castro, Raul Castro, Che Guevara e Camilo Cienfuegos?

Embora a presença de mulheres no processo de luta revolucionária seja significativa, os heróis mais destacados da Revolução Cubana são homens (Fidel, Che Guevara e Camilo Cienfuegos), e reproduzem um ideal de masculinidade orientado pelo símbolo do guerreiro. No entanto, o discurso de Hart busca um equilíbrio entre os femininos e os masculinos, bem como, expressa a contradição entre um ideal de masculinidade e um ideal de feminilidade que permeia as entrelinhas do discurso fundador

año 72, n. 3, 18 de janeiro de 1980.

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da heroína Célia Sanchez Maduley. Um espaço entre a flor e o fuzil, no qual devem estar todos os cubanos. Esse é o discurso do Estado.

Ao se tornar heroína Célia é constituída em um símbolo. Ela deixa de ser uma mulher e se torna um ideal que é encarnado em uma pessoa. O poder simbólico na construção da heroína está em torná-la uma encarnação do ideal de nação. Ela se tornar uma encarnação do Estado Cubano.

Um modelo que revela a construção de uma identidade nacional constituída por características, que historicamente são definidoras do feminino e do masculino, as quais são assumidas por homens e mulheres. A heroína cubana possuir características masculinas e femininas. Portanto, é uma contradição em relação ao do modelo de feminilidade tradicional e dentro do próprio Estado Cubano. Um Estado marcado pelo militarismo e o poder simbólico das armas, no qual se destacam os heróis homens, que também afirma a presença de mulheres em um espaço que tradicionalmente e historicamente pertence aos homens – a política e as armas. Uma inserção que existe devido a participação de inúmeras mulheres no processo revolucionário, da década de 1950. Portanto, os heróis cubanos não podem ser construídos sem vínculo com as heroínas.

Para Lynn Stoner as heroínas cubanas são apresentadas como símbolos de sacrifício ao líder homem e a nação.32 Porém, vale destacar que embora exista uma tendência da heroína em legitimar o poder do líder, ela se constitui em uma contradição dentro de um Estado marcado pela relação entre o militar e o cidadão. A ampla participação das mulheres, nos movimentos que constituem a Revolução Cubana, impede que a identidade nacional cubana e história oficial da Revolução sejam construídas e orientadas apenas por um ideal de masculinidade. Foi necessário incorporar um ideal de feminilidade, embora ele tenda a ser subserviente ao líder masculino.

Portanto, a construção da identidade nacional cubana, após a década de 1950, é marcada pela contradição e a presença feminina é constituinte dessa contradição. Para compreender essa construção é fundamental analisar as biografias que o Estado constrói para seus heróis e heroínas, pois são importantes ferramentas para perceber essas

32 STONER, K. L. Militant heroines and the consecration of the patriarchal state: the glorification of loyalty,

combat, and national suicide in the making of Cuban National Identity. Cuban Studies, v. 34, 2003, p. 71-96. Disponível em: <http://muse.jhu.edu/jounals/cub/summary/v034/34.1stoner01.html>. Acesso em: 20 de dez. 2010.

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contradições e as relações entre os femininos e os masculinos na construção de feminilidades e masculinidades hegemônicas em Cuba. Estudar a construção da heroína Célia é o primeiro passo para perceber as contradições que permeiam a construção da identidade nacional cubana.

Referências

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