• Nenhum resultado encontrado

Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Eric Voegelin - Estudos de Idéias Políticas"

Copied!
88
0
0

Texto

(1)

Textos on-line de Eric

Voegelin

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS

ERIC VOEGELIN

**

A Idade Média

Dos Nibelungos a Jerónimo Bosch

-• A . O Crescimento do império

• 1 Estrutura Geral da Idade Média

• 2 Os Povos Germânicos Migrantes

• 3 O Novo Império

• 4 A Primeira Reforma

• B. A ESTRUTURA DO SÉCULO

• 5 Introdução

• 6 João de Salisbúria

• 7 Joaquim de Fiora

• 8 S. Francisco de Assis

(2)

• 9 Frederico II

• 10 O Direito

• 11 Sigério de Brabante

• C. O CLÍMAX

• 12 S. Tomás de Aquino

• D. A IGREJA E AS NAÇÕES

• 13 Carácter do Período

• 14 Ultramontanos e Egídio Romano

• 15 Monarquia Francesa

• 16 Dante

• 17 Marsílio de Pádua

• 18 Guilherme de Ockham

• 19 Política Nacional Inglesa

• 20 Da Cristandade Paroquial

à Cristandade Imperial

• 21 A Área Imperial

(3)

ERIC VOEGELIN

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS **

A época medieval Capítulo 7. Joaquim de Fiora

1. O progresso na história

Era geral na época o sentimento de que o crescimento das ordens significava um progresso da espiritualidade, inaugurando uma nova fase da vida cristã. A experiência revelatória de Joaquim accionou estas potencialidades e criou uma nova configuração da história. O passo

decisivo foi a concepção do Terceiro Reino não como um

sabbath eterno mas como a idade derradeira da história

da humanidade que se segue à eleição do filho.

O decurso de um reino abrange um período preparatório (de Adão a Abraão, 21 gerações) seguido pela initiatio, (Abraão a Uzias, 21 gerações) e a fructificatio (Uzias a Zacarias, 21 gerações) a última das quais é ao mesmo tempo o período preparatório para o próximo reino. Os reinos têm, pois, 42 gerações; e como a duração das gerações para o reino de Cristo é de 30 anos, o segundo reino terminaria em 1260. A data é antecedida para 1200 porquanto o próprio Segundo Reino é precedido por um curto período preparatório das duas gerações

precursoras de Zacarias e João Baptista de modo que Joaquim está no final do Segundo reino e pode ser o profeta do Terceiro. O começo de cada reino é marcado por uma trindade de dirigentes, dois precursores e o dirigente do próprio reino com os seus doze filhos

(Abraão, Isaac, e Jacob com os seus doze filhos carnais; Zacarias, João Baptista e Cristo o homem, com seus doze

(4)

filhos espirituais). O Terceiro Reino, a seguir a Joaquim, começará, portanto, com dois precursores a serem

seguidos na terceira geração por um novo dirigente, um

Dux e Babylone, que será o fundador do Reino do

Espírito.

2. O significado da história

O primeiro símbolo “é a concepção da história como uma

seqüência de três eras, das quais a última é claramente o terceiro reinofinalw.[1] Entre as variantes de notória

relevância política, estão a partição da história em épocas antiga, do cativeiro e dos santos na terra que marcou a revolução puritana; a doutrina Iluminista da sucessão de fases teológica, metafísica e enciclopédica marca a revolução de 1789; a dialéctica marxista com os três estádios de liberdade inconsciente, alienação e reino

da liberdade findou em 1989; o ciclo formado por santo império, império do Kaiser e terceiro império inspirou o Reich nacional-socialista dos mil anos que findou em

1945.[2]

3. Os elementos constantes da nova especulação política. a. A concepção de Joaquim resultou num conjunto de elementos formais para a interpretação do saeculum que, desde então, permanecerá, isolado ou em combinação, parte integrante da especulação política ocidental.

b. A Função do Pensador Político

O terceiro símbolo é o do profeta da nova Era, que pode surgir confundido com o dirigente. O próprio Joaquim de Fiora representa o primeiro modelo do intelectual que presume ter uma visão do curso da história como um todo acessível ao conhecimento. Sucessivas vanguardas iluminadas irão reclamar-se de idêntico conhecimento da marcha do tempo e propor as suas especulações como a lógica da história.

(5)

c. O dirigente do terceiro Reino

O terceiro símbolo é o de dux, o dirigente cuja erupção é constante em todos os movimentos revolucionários. Este dirigente desdobra-se por paráclitos agnósticos e ateus conforme a sensibilidade e as categorias de análise da época em que se faz anunciar. O símbolo ressurge nos

príncipes novos da Renascença, nos iluminados do

século das Luzes, nos revolucionários de 1789, nos

génios do Socialismo e nos dirigentes totalitários do

século XX.

d. A irmandade das pessoas autónomas

O quarto símbolo é o da irmandade ou fraternidade que se estabelece entre os que participam no Espírito. A noção de uma comunidade de perfeitos que vivem sem autoridade institucional e sem a mediação da Graça presta-se, segundo Voegelin, a inúmeras variações

históricas. Ressurgiu nas Igrejas puritanas dos santos e em numerosas ideologias da modernidade em cujos

autores a razão se incarnara tão perfeitamente que consideram a própria mente como critério de verdade; alguns, como Lenine e Hitler, desceram à arena política para canalizar os movimentos de massa para a acção destrutiva.

Nos três reinos predominam sucessivamente a lei, a graça e o espírito. No primeiro reino desenvolveu-se a vida do leigo, no segunda a vida do sacerdote, no terceiro a contemplação espiritual perfeita do monge. No nível da história espiritual a intelligentia spiritualis irá proceder do Velho e do Novo Testamentos, tal como o Espírito procede do Pai e do Filho. O Espírito irá manifestar-se socialmente através de uma nova ordem. A perfeição da vida é dada através dos três elementos de contemplação, liberdade e espírito. O novo aparecimento do Espírito está fora da história dos Evangelhos que constituem o segundo reino; os quatro evangelhos serão seguidos por um quinto, o evangelium eternum anunciado em

(6)

Apocalipse, 14, 6. Não será um evangelho escrito mas o Espírito na sua actualidade, transformando os membros da Ordem em membros do Reino, (evangelium regni

Mateus, 4,23) sem mediação sacramental. A Igreja deixará de existir no Terceiro reino porque os dons

carismáticos necessários para a vida perfeita, alcançarão o homem sem administração sacerdotal de sacramentos. Estas construções simbólicas criam uma evocação de uma nova ideia do homem como uma pessoa espiritual autónoma e livre, capaz de formar uma comunidade de solidariedade fraterna, independente da organização eclesiástica e feudal da sociedade. O homem, dotado de poderes espirituais amadurecidos surge como o

organizador potencial da comunidade. Podemos ver a linha que liga o protestantismo intelectual dos York Tracts, com o individualismo tiranicida de João de Salisbúria como a ideia joaquimita de libertação do homem de formas sociais, eclesiásticas ou profanas, e uma época que está morrer. Podemos ainda reconhecer as camadas sociais portadoras do novo sentimento; cresceram para além da população urbana da Pataria e de intelectuais isolados da população rural; Joaquim talvez fosse de origem rural.

Mas também são óbvias as limitações da ideia. O terceiro reino é constituído por uma elite religiosa. Perdeu-se o compromisso civilizacional que confere eficácia ao

cristianismo. O novo reino não tem lugar para as fraquezas do homem nem para a variedade dos seus dotes naturais. A riqueza humana da ideia de corpo místico perde-se no igualitarismo aristocrático de pessoas espiritualmente maduras. A evocação de

Joaquim pode originar um seita mas não um povo. A sua construção é a fórmula mais geral para o problema da era porque emana do centro espiritual mas o conteúdo social restrito deixa a ideia a flutuar. O homem

espiritualmente maduro de Joaquim segue-se ao

(7)

independente dos York Tracts. O leque de possibilidades intramundanas está a crescer mas não existe uma

síntese à vista.

A concordância tradicional entre os dois numa sequência a exigir um terceiro momento, o da plena manifestação do Santo. Às três pessoas da Trindade correspondem três fases da humanidade.

Na era do Pai com temor e tremor, até ao nascimento de Jesus Cristo.

Na era do Filho, anunciada por Uzias, em fé e humildade, desenvolveu-se

A terceira era, a do Espírito Santo, já anunciada por S. Bento trará a

Perante esta nova escatologia tornava-se secundário que, conforme especulações numerológicas correntes, Fiora calculasse que a “terceira era” principiaria em 1260 ao manifestar-se o dux ex Babylone, dirigente apocalíptico da nova época.[6]

34 A re-interpretação do saeculum cristão

Para Huizinga a inserção de Joaquim de Fiora como

grande precursor da Renascença assenta numa corrente de ideias definida com precisão. Para Spengler, ele foi "o

primeiro pensador de estatura hegeliana a abalar a configuração mundial dualística de Agostinho, um formulador da Nova Cristandade com o seu intelecto

essencialmente gótico". Norman Cohn descreveu Fiora

como"inventor do novo sistema profético que haveria de

ser o mais influente de todos os conhecidos na Europa até ao aparecimento do marxismo". Embora as edições

críticas destes textos estejam ainda hoje incompletas, os materiais historiográficos são abundantes graças a uma sequência de estudiosos como Denifle, Renan, Fournier, Grundmann, Benz, Buonaiuti, Tendelli e Taubes, activos desde finais do século passado. Mas, lembrava Friedrich

(8)

Heer em 1953 "ainda estamos longe no início de uma

interpretação de Fiord'.

Voegelin seleccionou Joaquim de Fiora como criador do

"conjunto de símbolos que preside, até hoje, à

auto-interpretação da sociedade moderna".[3] Compostos

nos fins do séc. XII, os escritos joaquimitas foram

publicados pela primeira vez em Paris em meados do séc. XIII, tendo o editor escolhido para título da colecção das obras principais a expressão nelas frequente "um novo

Evangelho Eterno''. Reconhecidas como obras autênticas

são a Concordia Novi ac Veteris Testamenti (1184-89),

Expositio in Apocalypsim (1184-1200) e Psalterium decem Chordarum (1184-1200). Entre as obras menores depois

coleccionadas encontram-se Tra,ctatus super Quatuor

Evangelia, De Articulis Fidei, Adversus Iudeos e o tratado

perdido De Essentia seu Unitate Trinitatis. É ainda relevante o Liber Figurarum, atribuído a um discípulo, cujos diagramas representativos - três círculos enleados e parcialmente sobrepostos e cruzados pelo

Tetragrammaton - correspondem a cada uma das épocas

da Trindade e acrescentam um dinamismo temporal à ênfase habitual na revelação do Deus uno e trino.[4] A originalidade resulta mais evidente se confrontada com os escritos do seu tempo e com as respostas às

interrogações filosóficas sobre as características do ser divino.[5]

Seguindo esta via, Voegelin atribui a Fiora o símbolo culminante da imanentização do eschaton: "O primeiro

símbolo é a concepção da história como uma sequência de três era,s, da,s quais a última é claramente o terceiro reino

final".[7] Entre as variantes notórias, contam-se a

partição da história em antiga, medieval e moderna; as doutrinas iluministas e positivistas acerca da sucessão de fases teológica, metafísica e científica; as dialécticas hegeliana e marxista com três estádios de liberdade

inconsciente, alienação e reino da liberdade; e enfim, o

(9)

Dritte Reich nacional-socialista.[8] Nesta leitura

voegeliniana entrelaçam-se motivos positivos e negativos que revelam uma relação muito complexa que quase poderíamos classificar de edipiana. Voegelin denuncia a falsificação fiorita do carácter trinitário numa gnose que rebate o ser divino sobre o tempo histórico. Rejeita que a

idade do espírito, identificada por símbolos como consummatio, renovatio, reformatio, recreatio e

ressurrectio seja a de uma nova era da humanidade.

Rejeita o primado do futuro sobre as idades do presente e passado, expresso na preferência concedida a símbolos tais como proficere, ascendere, progressio, mutatio,

processus, sucessio. Rejeita que o alvo final da história

humana na terra seja a liberdade do mútuo

reconhecimento trazida por uma nova fraternidade, baseada na comunidade de monges. Rejeita que tenha qualquer sentido, pura e simplesmente, falar de um desenlace terreno da existência humana. A censura é radical. Mas até que ponto esconde Voegelin as

diferenças profundas entre o pneumatismo de Joaquim e o imanentismo moderno que afirma ser sua

consequência obrigatória ? Como se comprova pela

movimentação dos franciscanos espirituais em ordem à

terceira era, tal visão não conduz necessariamente às

construção imanentistas da modernidade.

Acresce que, ao anunciar o advento de um mundo novo, Fiora interpreta o seu tempo como época de colapso e desarticulação apocalíptica. Poder temporal e poder espiritual combatiam-se sem tréguas corrompendo a ordem cristã que se deveria reger pelo equilíbrio entre os dois poderes. Está a acabar o período do Filho e o

momento é propício para pregar o abandono do mundo velho. A desarticulação da ordem cristã imperial viabiliza o anúncio de uma nova ordem, sem Império nem Igreja e com uma religião desmundanizada. Donde o anúncio da

terceira era a ser instaurada pelos monges, os santos

cidadãos da cidade de Deus. O que levou Voegelin a este nexo entre profetismo e imanentismo ? Por que razão

(10)

pensou que a Idade Média floresceria contra a

auto-interpretação cristã ? Porque concebeu a tensão medieval entre o “reino de Deus” e a sociedade

dessacralizada seguida pela mais grave das quedas? E que civilização poderia desenvolver-se contra a sua própria ideia directiva ?

[1] NSP, p.115.

[2] Moeller van den Bruck criou o símbolo do Dritte Reich em obra com idêntico título, editada em Hamburgo, em 1923, ao trabalhar na edição das obras de Dostoievski sobre a Terceira Roma. A sua intenção claramente nacionalista mas romântica era incompatível com a ideologia nacional-socialista que se apropriou do termo.

[3] NSP, pp.110-113. Lembre-se o verso que Dante lhe dedica na Divina Comédia , Paraíso, XII, 139-141: "...e lucemi da dato/ Il

Calabrese abate Gioacchino/Di spirito profetico dotato". Na sua

interpretação, Voegelin tem presente TAUBES 1947, em

particular pp.192-4, para o qual a história espiritual do Ocidente é a da dinâmica e dialéctica da alienação existencial; cita ainda LÕWITH 1949, GRUNDMANN 1927 e BUONAIUTI 1931.

[4] Cf. bibliografia joaquimita in RUSSO 1954.

[5] Para MURRAY 1970, pp.102-104, a consciência historiográfica no séc. XII, depende da interpretação da restauratio ou

reformatio, tratadas quer como retorno a um passado modelar

quer como criação de um futuro inaudito.

[6] Cf. LÕWITH 1949,pp.148-9:"The first dispensation is

historically an order o f the married, dependent on the Father; the second an order o f clerics, dependent on the Son; the third an order o f monks dependent om the Spirit o f Truth The first age is ruled by labor and work, the second by learning and discipline, the third by contemplation and praise, The first sta.ge possesses

scientia, the second sapientia ex parte, the third. plenitudo intellectus".

(11)

[8] Moeller van den Bruck criou o símbolo do Dritte Reich em livro com idêntico título, editada em Hamburgo, em 1923, ao trabalhar na edição das obras de Dostoievski sobre a Terceira Roma. A sua intenção nacionalista não coincide com a ideologia nacional-socialista que se apropriou do termo.

(12)

Estudos de Ideias Políticas - II. A Idade média - Capítulo 8.

São Francisco de Assis

Como figuras simbólicas da sua época, as personalidades de São Francisco de Assis e de Joaquim de Fiora estão intimamente ligadas. São Francisco não teria sido visto pelos Espirituais como a figura decisiva que inaugurava uma época nova na história cristã, se as profecias de Joaquim não fornecessem o padrão simbólico para a sua interpretação; e as profecias de Joaquim não poderiam ter exercido a sua forte influência no séc. XII, e em Dante, a menos que a aparecimento de São Francisco confirmasse a previsão do Dux de uma nova era.

Tal como no caso de Joaquim, na interpretação de São Francisco, temos de atentar na peculiar relação

dialéctica entre as suas ideias e as suas acções. A doutrina de São Francisco é um evangelho de amor

fraterno, de pobreza, obediência e submissão. A acção de São Francisco é revolucionária; dimana de uma vontade auto-afirmadora, inflexível e dominante, e cria um estilo de vida para o simples leigo, o idiota, sem grau feudal nem eclesiástico, mas equiparado às duas grandes ordens da autoridade temporal e espiritual. O

denominador comum da acção evocativa neste tempo é o impulso de forças humanas para encontrar o seu lugar num mundo cristão preocupado com os poderes

estabelecidos.

A necessidade trágica da criação de uma Ordem, mesmo de amor, e que exige uma dureza daimoníaca de acção que ofende os circunstantes, matiza a página franciscana do Louvor das Virtudes. A virtude da obediência tem

como função a completa submissão do corpo à lei do espírito; o homem está submetido aos seus

companheiros e mesmo aos animais selvagens: O

pacifismo radical de não-resistência em São Francisco parece ser o oposto da violência tiranicida em João de

(13)

Salisbúria.

Afinal, as virtudes têm a função militante de confundirem os vícios do mundo. É impossível

compreender a atitude franciscana se as categorias éticas de virtude e vícios forem referidas apenas ao

carácter individual. No contexto dos escritos, virtudes e vícios são forças que emanam dos poderes supremos do bem e do mal, de Deus e do satã e que se apoderam dos homens. A luta das virtudes contra os vícios é uma

empresa colectiva. Sem alcançar a rigidez maniqueísta, existe aqui uma matiz de imanentismo maniqueísta. A simplicidade tem que confundir a sabedoria deste

mundo; a pobreza luta contra os cuidados mundanos; a humildade contra o orgulho. Possuir as virtudes exige atacar o mundo e as instituições de família, propriedade, herança, autoridade governamental e civilização

intelectual. O ataque reveste-se da forma social de uma pregação das virtudes.

Ao sentir-se demasiado doente para pregar, São

Francisco utilizou a forma da carta aberta divulgando a sua mensagem aos fiéis. A mais importante destas

cartas, e a mais notável pela sua dignidade é a carta de 1215 ”A todos os Cristãos” (Opusculum commonitorium et

exhortatorium (epistola quam misit omnibus fidelibus).

2. O estilo da pobreza

O ataque ao mundo em nome dos conselhos evangélicos parece revigorar a expectativa escatológica de um reino que não é deste mundo. Contudo, é uma força e uma fraqueza de S. Francisco a criação da ideia de uma vida em conformidade com Cristo como modo de existência. Tentou realizar o que Joaquim de Fiora projectara; estabelecer uma nova ordem do espírito no mundo. A sua atitude e linguagem sofrem desta dualidade. Quando ataca o mundo (mundus ou saeculum ) utiliza o

(14)

vocabulário evangélico mas com um novo significado evangélico. O homem não é chamado a arrepender-se porque o reino de Deus está próximo ( Mateus, 3, 2) mas porque a vida de pobreza e obediência é aconselhada como a constituição permanente do mudo em

conformidade com a vida do Salvador. Os escritos de São Francisco apresentam assim elementos que se

contradizem flagrantemente. A primeira Regra delineia a

"vita evangelii' para a qual São Francisco obteve

permissão oral de Inocêncio III; aconselha a romper com pai e mãe e à quebra rude com a família e as suas

obrigações, a fim de tomar a cruz e seguir o Senhor. Retoma-se a dureza escatológica de Cristo não só nas palavras dessa regra como na sua atitude para com os pais. Por outro lado, aceita incondicionalmente a

existência da Igreja sacramental como única evidência corpórea mundana do Filho de Deus. Não só pretende basear a vida de perfeição evangélica directamente no Evangelho como mantém um sentimento para com a Igreja a lembrar o dito de Santo Agostinho de que não acreditaria em Cristo se não fosse a Igreja.

3. A submissão à Igreja.

Estes conflitos profundos ajudam-nos a determinar de modo mais preciso a posição e a função de São

Francisco. O espírito de revolta contra os poderes

estabelecidos espalhava-se por todo o mundo ocidental, dos intelectuais, aos burgueses e camponeses. O

movimento era cada vez mais dirigido contra a

organização feudal da sociedade, incluindo a Igreja

sacramental. Quando o movimento encontrava apoio de massas, adoptava a forma de seitas fundamentalistas, desenvolvendo fricções com a Igreja, quer

intencionalmente quer por pressões circunstanciais; o regresso ao ideal evangélico de perfeição era o único simbolismo revolucionário disponível para a civilização cristã desse tempo.

(15)

Não temos que nos preocupar demasiado com a questão de saber se a glorificação franciscana da Irmã Pobreza foi ou não influenciada pelo conhecimento dos ideais dos Pobres de Lião. Em qualquer caso, o ideal de pobreza, juntamente com outros conselhos evangélicos, estava

destinado a ser o símbolo da revolução.

O que separava São Francisco de dirigentes sectários, e o tornou um santo em vez de um heresiarca, era a sua

sinceridade convincente, a sua realização exemplar dos ideais que ensinava, o seu encanto, a sua humildade, uma ingenuidade que não era deste mundo.

Para a sua submissão à Igreja e para a sua crença de que a fraternidade dos pobres em Cristo poderia persistir sem institucionalização, não temos outra explicação

senão uma cegueira para as vias do mundo, originada pela grande pureza do seu coração. Os desapontamentos inevitáveis que experimentou podem ser fortemente

sentidos nas admoestações aos irmãos no Testamento: manter a simplicidade da Regra, não a acrescentar nem diminuir, não fazer glosas nem interpretar o Testamento como uma nova regra e não procurar privilégios de

qualquer tipo da Cúria.

O mundo não cedeu ao seu ataque mas por seu turno, penetrou a sua irmandade. A santidade do seu carácter teve consequências de grande alcance no domínio da

política. Ao mesmo tempo que conduzia a cruzada contra os Albingenses, Inocêncio III confirmava a Regra de São Francisco. Se considerarmos o apelo de São Francisco, a rápida difusão da Ordem e em particular, o influxo

maciço na Ordem Terceira, é difícil imaginar que formas a revolução social teria adoptado, se a Igreja não

captasse o movimento através da pessoa de São

Francisco, e a integrasse na sua organização graças, sobretudo, à acção do Cardeal Ugolino de Ostia, futuro papa Gregório X.

(16)

4. A Igreja dos leigos

A vida de São Francisco permite diagnosticar a doença que afligia o corpo místico da Igreja. O império cristão transferira o cristianismo do ambiente urbano para a

sociedade rural. A dinâmica da vida cristã passou das comunidades para as hierarquias, espirituais e

temporais. O surgimento do idiota, desde o sec.XII é uma força nova que assinala a reentrada da comunidade

urbana como força social no mundo cristão. O

significado original de ecclesia é de comunidade-Igreja. No império romano a ecclesia local era uma ilha do

populus christianus num mar de paganismo. No império

carolíngio, a autoridade temporal fora integrada no sistema dos carismas cristãos de modo que as duas ordens do corpo único de Cristo cooperavam na tarefa difícil (e que hoje seria considerada totalitária) de criar um povo cristão uniforme com base em hierarquias pré-existentes.

Agora, no séc. XII, a ecclesia corre o risco de se reduzir a uma organização sacerdotal enquanto os idiotae, os

leigos, formam uma comunidade que tenta viver em paz com o clero. Na linguagem de S. Francisco

(Testamentum,3) o leigo vive em conformidade com Cristo e o sacerdote em conformidade com a Igreja Romana. Assim nasce uma nova necessidade de ajustamento da

ecclesia. A ecclesia Franciscana é apenas um começo. Os

problemas reaparecerão quando novas ecclesiae nascerem de cidades, classes e nações e tiverem que lutar por um lugar no sistema dos velhos poderes.

5. A conformidade com Cristo e a natureza

A pessoa e a religião de São Francisco constituíam forças intramundanas em oposição ao imperium, dotado de

(17)

do ideal de vida em conformidade com Cristo. A

religiosidade franciscana poderá parecer apenas um retorno às ideias do cristianismo primitivo. Mas não é assim.

Os fiéis das primeiras comunidades seguiam o Messias e queriam o reino de Deus para participar na Sua glória. São Francisco imita o homem Jesus a partir de uma nova compreensão do sofrimento sacrificial e da

humildade na terra. Trata-se de um novo entendimento da dignidade do sofrimento e da criação sem voz. São Francisco é espantosamente sensível à criação divina onde ela é mais “criada” e menos auto-afirmativa: sofredores, pobres, doentes e moribundos, animais, flores e a ordem silenciosa do cosmos. É uma nova atenção que agora floresce a um reino de ser já

observada nos York Tracts, a penetração do Espírito no reino da natureza. Francisco utiliza fórmulas

escatológicas duras mas o sentimento que o move não renega o mundo; pelo contrário, adiciona-lhe uma dimensão até então silenciada no cristianismo.

A alegria da existência das criaturas e a expansão alegre da sua alma, alcançando em amor fraterno essa parte muda do mundo que glorifica Deus apenas pela

humildade de ser criado, a alegria simples na

comunidade recém-descoberta da criação divina, torna São Francisco o grande Santo. Através da descoberta e aceitação do estrato mais baixo da criação como parte significante do mundo, tornou-se uma das figuras

relevantes da história ocidental. Tomou os humildes pela mão e conduziu-os à sua dignidade, não para um reino de Deus no outro mundo, mas num reino de Deus que é deste mundo. Conferiu à natureza a sua alma cristã e com ela a dignidade que a torna objecto de observação. A expressão sublime deste sentimento são os Louvores

das criaturas. O cântico abre com o louvor de Deus,

depois louva os corpos celestiais, os elementos, a terra que cria frutos e flores, os humildes que perdoam e

(18)

vivem em paz, e a morte corpórea; encerra com o aviso de que todos sirvam a Deus “com grande humildade”.

§6. O Cristo intramundano

A preocupação com estas novas descobertas resultou, porém, numa limitação da experiência cristã. São

Francisco alargou o nosso mundo mas a sua tónica na nova dimensão negligenciou outras dimensões. Traz a irrupção de novas forças intramundanas; não traz a

síntese; a espiritualização da natureza é um naturalismo. A fórmula da vida em conformidade com Cristo é

conformidade com o sofrimento de Cristo, não com Cristo-rei em sua glória. Na conformidade com Cristo o homem alcança a eleição suprema através dos estigmas na noite de La Verna. Mas como se conformar com o Messias?

A evocação de São Francisco criou o símbolo do Cristo intramundano que absorve a parcela pessoal do salvador que se conforma com os humildes e sofredores. Mas o Cristo dos pobres não é o Cristo da hierarquia sacerdotal e régia, nem a cabeça do corpo místico de Cristo e da humanidade. A evocação de São Francisco desestabiliza o compromisso com o mundo, característico do período imperial ocidental e a diferenciação dos homens e o

estabelecimento das duas ordens como funções do corpo místico. O mundo rompe-se quando Cristo deixa de ser a cabeça do corpo diferenciado da cristandade e se torna o símbolo de uma sua parte. A evocação de São Francisco é o símbolo mais impressionante da desintegração do

sacrum imperium. Enquanto o Santo atingia o seu clímax

com os estigmas, subia a estrela do imperador que era considerado o Anticristo, e que pela primeira vez desde a Antiguidade se apresentava como a lei animada, nomos

(19)

ERIC VOEGELIN

ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS ** A época medieval Capítulo 9 Frederico II Dominus Mundi 1. A deslocação do império 2. A constituição de Melfi 3. Cristandade Cesárea

1. A deslocação (Peripateia ) do império

O último imperador medieval foi o fundador do primeiro estado moderno. Em ordem a compreender o seu papel e o seu desempenho consciente, tem que se observar a estrutura política em mutação do mundo Ocidental que foi o horizonte da sua vida e perceber que a crise da época encontrou nele um símbolo estupendo.

O factor que determinou a transformação e a

desintegração da ideia imperial foi o surto de unidade políticas periféricas. No séc. XI essa franja de principados ganhara importância suficiente para inspirar a Gregório VII com a visão de uma comunidade de reinos nacionais, dependentes da autoridade semi-feudal e semi-espiritual do papado como contrapeso ao próprio império. Entre

(20)

esses eventos, conta-se a expansão normanda dos

séculos X e XI, a fundação dos reinos ilhas da Sicília e da Inglaterra e a expansão dos poderes insulares para o

continente, A expansão normanda para Sicília, Itália do Sul e Inglaterra adicionou dois poderes consideráveis; a conquista permitiu aos duques normandos organizar o poder como uma grande racionalidade até então

desconhecida. Basta mencionar que Guilherme o

Conquistador e os seus sucessores desenvolveram uma administração régia centralizada, e puderam manter à distância os poderes e os senhores feudais e a

concentração do poder nas mãos do rei foi a base de desenvolvimento da gentry inglesa e da classe média, e consequentemente da evolução recente das formas constitucionais de governo. Na Sicília Frederico II

aperfeiçoará o Estado de Rogério II (1130-1154) facilitado pela tradição da administração muçulmana e bizantina.

Este escrutínio dos factos principais é extremamente incompleto mas serve para mostrar a modificação completa da cena política. A importância relativa do

sacrum imperium diminui porque os novos poderes

surgem na periferia e fazem inflectir o centro da política para Ocidente e para Sul. A ascensão destes poderes desintegra a ideia imperial e suplanta-a com novas evocações adaptadas a um mundo de poderes rivais: o princípio Gelasiano como evocação dominante do

Ocidente decresce e emerge o problema do equilíbrio do poder, no sentido moderno. A irrupção de forças

intramundanas no campo da evocação imperial exprime-se através de três formas principais: o

aparecimento da arte do Estado, o aparecimento do estadista e o crescimento da consciência nacional como factor determinante na política. O aparecimento da razão de estado nota-se nas conquistas normandas. A situação de conquista teve um efeito semelhante entre o séc. XI e XIII semelhante ao da revolução no período posterior ao

(21)

dos estados nacionais; varridos os interesses dominantes estabelecidos, tornava-se possível uma reconstrução

racional da organização governamental. A melhoria da administração financeira e militar aumentou

enormemente o poder político. A Sicília era cobiçada porque tinha um sistema de impostos que fazia do seu monarca o mais rico da Europa. A racionalização militar permitiu a derrota da cavalaria feudal pela infantaria burguesa ou o triunfo da cavalaria profissional e da milícia burguesa de Filipe II de França como as forças feudais em Bouvines (1214). Frederico II apoiava-se em tropas mercenárias sarracenas.

Em segundo lugar, surgem os mestres do poder político. Mesmo o imperador Henrique VI e o papa Inocêncio III são representantes dos velhos poderes são homens de estilo novo. Significativo é o Testamento do Imperador Henrique VI que abandona as suas pretensões imperiais sobre todo o Ocidente reconhecendo-se como o Império como uma unidade política entre outras. (Testamentum,

Monumenta Germaniae Historia, Constitutiones et Acta Publica Imperatiorum et Regum, vol. 1, n° 397). e

finalmente, a consciência nacional é a pressão colapso ao império Angevino com a formação das nacionalidade francesa e inglesa. A consciência nacional espanhola cristaliza rapidamente sob o esforço da reconquista; em

1135 Afonso VII de Castela é coroado imperador, título sem efeito prático mas indicativo do sentido de igualdade em grau como a cabeça do sacrum imperium.

2. A constituição de Melfi.

A posição de Frederico II tornou-o um Salvador para os amigos, um Anticristo para os inimigos O título de

dominus mundi, atribuído pelos seus cortesãos, oscila entre o significado de senhor imperial do orbis terrarum e de príncipe satânico deste mundo. O fascínio luciferino do imperador ainda dificulta actualmente a sua imagem.

(22)

A tentação é grande de o ver à luz do renascimento de um governante clássico ideal e pré-cristão; e também é possível vê-lo como o primeiro homem moderno; alguns consideram-no um espírito forte que não acreditava na imortalidade da alma; outros descreveram-no como um bom católico; enalteceram-no como herói; historiadores nacionalistas alemães condenaram-no pela sua falta de empenho na germanização do império; uns admiraram a sua majestade imperial; outros a sua evocação de um colégio de príncipes europeus.

Não tencionamos adoptar como definitivo qualquer

destes retratos. A grandeza do Imperador não reside nem na força de um carácter firme e claro, nem nos méritos de uma política, nem na consistência com que a

empreende. Reside, antes, na força e vastidão de uma alma igual às tensões da época. Reaparece a expectativa entre a evocação antiga e a irrupção de forças

intramundanas característica das teorias de João de Salisbúria, agora com a escala e a responsabilidade da acção imperial. A experiência da plenitude dos tempos que determinou a construção apocalíptica de Joaquim de Fiora exprime-se no jogo de Frederico com o símbolo de Augusto, o iniciador da Idade de Ouro. É uma figura da história profana em paralelo com Crist; a Quarta Écloga de Virgílio parece ter sido aplicada pela primeira vez na história cristã, não a Jesus, mas a um governante. E a conformidade franciscana ao Cristo sofredor tem paralelo na conformidade do Imperador ao Messias vitorioso, a um ponto tal que confina com a evocação do Deus feito homem.

Quando tentamos recuar até aos papéis desempenhados, em busca da qualidade da pessoa que os reúne,

encontramos uma vitalidade e sensualidade abundantes, uma capacidade sempre pronta a desempenhar o papel sugerido pelas circunstâncias da situação; uma vontade alegre de investigar, até aos limites, a estrutura da

(23)

empíricos da caça ao falcão, nos problemas intelectuais das Questões Sicilianas, na técnica dos procedimentos da corte, ou em contra-manifestos apocalípticos às acusações papais. Ele, é impossível traçar uma linha entre o homem de acção e o actor, entre a selvajaria da sua vontade e a ironia do seu jogo. Liga-se aos seus actos a qualidade da representação; na pompa barroca da

linguagem, no seu sentido do ritual, na representação plástica e arquitectónica do culto da Justiça na porta de

Cápua e na consciência representativa da sua majestade. Também é impossível demarcar a sua curiosidade

intelectual da sua descrença dogmática. Quando na

Carta a Jesi se refere-se ao seu local de nascimento em

termos de Belém e à sua mãe como uma theotokos, não sabemos quanto seja um jogo com símbolos

representativos e quanto seja conformidade ao Messias com a finalidade política, e quanto talvez apenas

ingenuidade. Quando o papa o designa de Besta

apocalíptica oriunda do Mar e ele dá o troco, chamando o Papa de “corcel vermelho do Apocalipse” não podemos saber até que ponto a réplica seja política, convicção religiosa ou pura brincadeira. Temos de atender a estas tensões na alma em ordem a compreender a impressão que o imperador exerceu sobre os contemporâneos. Estavam assustados porque ninguém poderia prever o que um homem desta capacidade faria a seguir e a que extremos o conduziria um temperamento duro e

selvagem. A visão nietzscheana de Cesare Borgia como Papa está perfeitamente dentro das possibilidades da alma de Frederico II.

Abundam os materiais para a interpretação de Frederico II. O mais importante documento para o presente

propósito é o Proemium das Constituições de Melfi, de 1231, o acto conclusivo da reorganização política da Sicília. Proclamadas pelo imperador, codificam o direito constitucional, administrativo, penal e processual para a Sicília. Estamos no início da transformação das

(24)

modernas O imperator in regno suo é uma transição entre o imperador e o príncipe soberano. Também importante é a mistura de categorias cristãs e romanas imperiais, para transformar a lei da humanidade cristã na lei do estado secular. Os princípios orientadores são a paz e a justiça cristãs mas rodeadas dos símbolos de Augusto e

Justiniano. As constituições fora chamadas Liber

Augustalis e o próprio Proemium imita a introdução do Corpus Juris, no estilo imperial de Justiniano. Os

símbolos romanos servem a descrição do sacro império, instituindo para uma província do império categorias que deveriam ficar reservadas para a totalidade.

O Proemium teoriza a função régia da legislação, segundo uma interpretação decorrente do símbolo cristão da

origem do poder após o pecado. Com a criação, Deus fez do homem a criatura máxima, impondo-lhe tão só a observância da lei. A transgressão foi punida com a perda de imortalidade. Para não destruir a ordem da criação, a perda da imortalidade foi compensada com o dom da fertilidade e os governantes foram providenciados para preservar a ordem da humanidade.

Esta descrição não é a narrativa do Génesis mas antes uma selecção de elementos nela presentes e fundidos numa nova unidade. Desapareceu o problema moral da Queda, bem como a redenção através de Cristo. A Queda é apenas uma ofensa legal que continua a ter que ser punida, como se não houvesse redenção. Ademais o mundo tem uma enteléquia quando o resto do mundo perde a sua forma A comunidade de homens mortais substitui o homem imortal e este tipo de criação atinge o seu pleno com a figura do governante. A alma deste

desce da necessitas rerum; as suas acções resgatam o significado da criação. Sem dúvida que existe um apelo entre esta teorização e certas correntes da primitiva filosofia cristã do direito natural. Mas enquanto esta abordava o problema da comunidade humana em ligação com a história sagrada, o proemium usa o símbolo

(25)

cristão ao serviço de uma doutrina naturalista do poder, derivando a função de governar das estruturas da

realidade intramundana. A necessitas rerum é uma primeira forma da futura raison d’état.

Enfim surge o elemento averroístico. O casal do paraíso foi substituído pelas gerações humanas. A imortalidade colectiva sucedeu à imortalidade individual. Embora o

Proemium não elabore as implicações desta posição, certo

é que a interpretação colectivista da humanidade se opoe à ideia cristã do corpo místico. A ideia colectivista

absorve a personalidade homem no espírito de grupo. O homem e individuação de um intelecto genérico e a morte é apenas a despersonalização. Tal como Averróis colocou a teoria da alma segundo Aristóteles

A antropologia averroísta pode tornar-se em síntese, a base filosófica de uma organização colectivista da

sociedade .

No caso do Proemium não vai tão longe. É pouco provável que a doutrina averroísta tenha sido conscientemente incorporada porque o averroismo só surge consciente em meados do séc. XIII. Mas é importante perceber que as Constituições de Melfi representam um estádio avançado da situação política que permitiu a receptividade das ideias averroistas. A consciência da unidade espiritual do povo surgiu em ligação com heresias populares. A

primeira legislação civil contra heresias surgiu com a

Assize de Clarendon (1166). A questão tornou-se

premente com o pontificado de Inocêncio, a cruzada contra os Albigenses e o estabelecimento da Inquisição. O processo inquisitorial culminava com a selecção de ... e julgamento sem queixa privada. Melfi faz

desaparecer a linha entre heresia religiosa e

insubordinação política. O artigo 1° trata da perseguição de heréticos e patarenos. A protecção da fé e integrada na guerra contra as ideias lombardas dominadas pelo Patarenos; a guerra contra os heréticos faz parte da

(26)

o Príncipe. Acusa-se os patarenos de romperem a “indivisível unidade da fé” como muito mais tarde se falará da “indivisível soberania da nação” da revolução francesa. A queixa de que os Patarenos destróem-se a si mesmos ao terem que ser queimados pelos governantes faz lembrar Hobbes e Hitler.

O Artigo IV estabelece que a discussão das leis, decisões e nomeações régias seria sacrilégio, pelo que devem ser proibidas. Esta medida que datava já de Rogério II

mostra a nova dignidade sacramental de que se pretende revestir o governo secular.

A receptividade crescente das ideias colectivistas deve-se a factores diversos. Primeiro, a desintegração do corpo místico. através da emergência das novas comunidade heréticas. Os movimentos populares heréticos acarretam uma contracção da substância da fé por parte das forças tradicionais que elaboram posições ortodoxas, processos inquisitoriais e estrita obediência a critérios. Em segundo lugar, a tensão crescente entre hierarquias espiritual e temporal que agudiza a respectiva luta pelo poder.

Terceiro é o crescimento das nações como subdivisões organizadas do populus christianus.

Este três factores apontam para uma ecclesia política intramundana. Uma comunidade de seres mortais reúne-se pela evocação da continuidade das gerações assegurada por um governante. A substância espiritual é fornecida pelo rei; a fé deriva a sua validade de uma

autorização estatutária; os ditames régios equivalem a um credo religioso; qualquer dissensão é sacrilégio. A humanidade divide-se em massa e governante. Esta irrupção da força intramundana do governante no reino do cristianismo; este corpo místico de mortais sob a direcção do governante teria de precipitar uma crise, como veio a suceder quando Frederico II passou aos actos.

(27)

Assim designou den Steinen a tendência do imperador em assimilar a sua função imperial ao de Messias.

Francisco transformou Cristo humilde em Jesus sofredor com a consequência de que as hierarquias ficaram

decapitadas da cabeça messiânica. Frederico II

representa a tentativa de criar uma imagem de governo em conformidade com o Cristo cosmocrator, com o

(28)

Tomás de Aquino

Compactação e tradução de Mendo Castro Henriques A publicar em "Estudos de Ideias Políticas" ** A Idade Média" 2001

C . O clímax. São Tomás de Aquino §1 História

a. Verdade e Ser

A obra de São Tomás de Aquino (1225-1274) absorveu-o literalmente - morreu exausto antes de perfazer 50 anos - e absorveu-o existencialmente porque foi a expressão de uma vida ao serviço da investigação e ordenamento dos problemas da sua época. Afirmar que foi um grande

pensador sistemático é uma meia-verdade. Sabia aplicar a sua mente imperial à multiplicidade de assuntos que o atraíam e distinguia-se por ter uma personalidade rica em sensibilidade, magnanimidade, energia intelectual e espírito sublime. A exclusiva vontade de ordenamento poderia produzir um sistema que fosse mais notável pela coerência do que pela captação da realidade. A grande receptividade poderia ter originado uma enciclopédia. Mas as duas faculdades combinaram-se num sistema que assinala o impulso dinâmico de Deus para o mundo através da causalidade criadora, e do mundo para Deus através do desiderium naturale: A origem desta

combinação deve-se ao sentimento que fez de Tomás um santo: a experiência da identidade entre a verdade de Deus e a realidade do mundo. "A ordem das coisas na verdade é a ordem das coisas no ser". Esta frase da Summa Contra Gentiles significa que o intelecto divino está impresso na estrutura do mundo; que a descrição ordenada do mundo resultará num sistema que descreve

(29)

é Deus. A frase tambem se aplica ao homem individual. Ontologicamente, o intelecto humano veicula a marca do intelecto divino. Metodologicamente, o uso do intelecto revela a verdade de Deus manifesta no mundo.

Praticamente, a tarefa do pensamento significa a orientação da mente para Deus.

b. O intelectual cristão

O melhor dos auto-retratos do Santo surge nos capítulos de abertura da Summa Contra Gentiles. São Tomás de Aquino concebe a filosofia como arte de ordenar as coisas para um fim. Entre todas as artes, a filosofia é a superior porque contempla a finalidade do universo, ou seja Deus, e apresenta os conteúdos do mundo a Ele ordenados.

Ora Deus é Intelecto. A finalidade da filosofia é o bem do intelecto, que é a verdade. No termo veritas fundem-se os três sentidos da verdade: a fé revelada pela incarnação

(João, 18,37); a auto-manifestação da Deus na criação; o trabalho intelectual que é a manifestação do intelecto divino. Ao invés do intelectual averroista, Tomás dignifica a autoridade intelectual porque o intelecto humano é a ratio da existência humana criada por Deus. Através da vida intelectual o homem aproxima-se da divindade. O intelectual sabe mais que o homem comum mas este não é um vilis homo. ao qual se aplica o termo idiota ou

então rudis homo. com o duplo sentido de leigo cristão e leigo no saber. Tudo o que o filósofo sabe através da

actividade do intelecto, o leigo sabe através da revelação de Deus em Cristo. A manifestação sobrenatural da

Verdade em Cristo ao homem comum identifica-se à manifestação natural da verdade no sabedor.

c. Fé e razão

Fé e razão não entram em conflito porque o intelecto humano veicula a marca do intelecto divino. Deus não

(30)

para a fé revelada verdades inacessíveis à razão, tais como o carácter trinitário da divindade. Este dinamismo teórico separa as esferas da teologia natural e

sobrenatural. A esfera sobrenatural está removida do debate intelectual e pertence à revelação e às decisões dogmáticas da Igreja. A parte natural fica livre para ser integrada num sistema de conhecimento humano sob a autoridade da razão. Esta magnífica harmonização de fé e razão influenciou decisivamente o destino da ciência no mundo ocidental, resultado tanto mais admirável

quanto, na época, a evolução da ciência estava nas mãos de clérigos e as célebres Condenações de 1277 ainda consideravam heréticas algumas teses tomistas. O

avanço da compreensão empírica e intelectual do mundo requer uma permanente redifinição da separação entre verdade sobrenatural e natural, problema difícil para a Igreja e para os intelectuais, mas a que Tomás deu a melhor formulação e solução possível no seu tempo. O retrato do Santo que emerge da sua metafísica é o do descobridor de uma síntese das forças intramundadas que poderiam destruir o cristianismo, se ficassem

entregues a si mesmas. O intelecto não é uma autoridade independente. A orientação transcendental do intelecto torna-se uma expressão legítima do homem natural e não uma rival intramundana da fé. O seu sentimento de valor intelectual não é inferior ao de um Sigério de

Brabante como se depreende da descrição da filosofia como arte ordenadora e da justaposição do filósofo em que se manifesta a verdade natural com o Cristo que é a verdade incarnada espiritualmente; mas é um

sentimento de valor temperado pela espiritualidade que aceita a revelação.

d. Propaganda intelectual

(31)

e pregador. Mas o seu Cristo não é apenas para os

pobres em espírito e em bens; é um Cristo que expande o Seu reino através da propaganda intelectual. A Summa Contra Gentiles foi escrita para que as missões

dominicanas em Espanha enfrentassem a influência intelectual muçulmana. Tomás afirma no Proemium que é possível argumentar com os Judeus com base no

Antigo Testamento, e com heréticos com base no novo Testamento; com os maometanos, contudo, é preciso apelar à autoridade do intelecto, tal como os pagãos nos estádios da lei segundo S. Paulo. E o intelecto que

produz resultados cristãos torna-se o instrumento da propaganda inter-civilizacional, fundando a pretensão que a civilização ocidental é racionalmente obrigatória para a humanidade. Tal pretensão sobreviveu à perda de conexão com a espiritualidade cristã e tornou-se

agressiva na Idade da razão secular. As raízes da

dinâmica internacional da civilização ocidental residem no tomismo cuja força duradoura resulta da harmonia das operações intelectuais com a espiritualidade Cristã. Quando se esquecem estas raízes, perde validade a

pretensão de validade da razão autónoma e a razão fica enigmática. E sempre que declina o ímpeto Cristão do intelecto, a revolta contra a razão clama insensatamente por uma nova espiritualidade qualquer.

e. As hierarquias

A abordagem tomista da relação entre os dois poderes é mais ampla que a franciscana. O retrato do príncipe em De Regimine Principum - desenvolvido com o aparato da Política de Aristóteles - mostra a impressão causada por Frederico II e a importância de que se reveste o fundador e governante de uma comunidade. Já quanto ao poder espiritual, a posição é muito semelhante à franciscana. A Igreja é uma instituição que ministra sacramentos; na

(32)

governo temporal (ST I,ii,qq.90-114) mas não explicita uma doutrina da Igreja e menos ainda do Direito

Canónico. Sendo possível apresentar uma doutrina tomista da Igreja - como fez Grabmann - é significativo que a falta de ênfase tomista se deva à época de

interregno em que vive: o Sacrum Imperium está a desaparecer, crescem múltiplos poderes políticos com estrutura natural imanente e o poder espiritual está a tornar-se a super-estrutura espiritual da multidão de civitates.

f. Evangelium Aeternum - Imperialismo Ocidental

A adaptabilidade de Tomás às exigências da realidade histórica é patente no modo como distribui as tónicas espirituais e políticas do seu tempo. Condena como insensata a ideia de um terceiro reino do Espírito

-stultissimum est dicere quod Evangelium Christi non sit Evangelium regni (ST, I, ii, quaestio 106, art.4). A vida sob a lei nova é a mais perfeita que se pode conceber. O Evangelium foi todo anunciado ao universo de uma só vez, sendo necessária a pregação até que a Igreja se

estabeleça em todas as nações.(ST I-II 106 4 ad.4 ). A era de Cristo diversifica-se conforme o espaço, o tempo e as pessoas, e conforme a presença da graça do Espírito. Tomás vive entre duas épocas: morreu a unidade

medieval do Império mas ainda não nasceu o mundo dos estados nacionais. Talvez tenham razão os que o acusam de não possuir uma filosofia da história, caso estiverem a considerar a história política. Mas o seu sentido histórico permitiu-lhe exprimir a vontade imperial da civilização cristã. Em vez de simbolizar o cumprimento da história cristã por uma nova descida do Espírito numa

irmandade elitista, abraça todo os conteúdos naturais do mundo e do intelecto humano e da sociedade, organizada numa pluralidade de comunidades. A sua filosofia da

(33)

do homem maduro, intelectual e espiritualmente. Esta evocação permaneceu uma componente do imperialismo no período do estado nacional. Reaparece no sec. XVI em Espanha com Francisco de Vitória; reaparece na

Inglaterra Elizabetina; reaparece no sec. XVII em

combinação com o imperialismo comercial de Grócio; e reaparece nas lutas subsequentes por impérios coloniais que impliquem uma ideia providencial do domínio do Ocidente sobre o resto do mundo.

g. O espírito histórico

Se por teoria entendermos a ordenação sistemática de uma problemática não-histórica, Tomás não era um teórico. Para ele, a relação entre fé e razão é uma

harmonização de forças históricas. A verdade de Deus manifesta-se num mundo cheio de dinamismo das forças históricas. O trabalho da filosofia não se esgota em

especulaçãos aprioristas; deve recrear num sistema a unidade do mundo historicamente concreto. A forma das Questões da Summa Theologica é ideal para executar esta tarefa porque permite organizar o material num enquadramento estável e oferece oportunidades de descer ao detalhe histórico em notas polémicas que precedem e prosseguem o corpo da quaestio. A Summa não é um tratado sistemático: contém transições

frequentemente obscuras ou omissas e, por vezes,

digressões excessivas. Este sistema muito pouco rígido é o símbolo perfeito de uma mente que não é apriorista nem empirista e que exprime um indivíduo que

experimenta a sua harmonia com a manifestação de Deus no mundo histórico.

§2. Política

Na apresentação da política tomista topamos, pela primeira vez desde a recepção de Aristóteles, com a

(34)

evidentemente à polis helénica dos secs. VI a IV a.C. A sendo que a sua adopção posterior é um exercício

humanista com escassa relevância para os novos

problemas políticos. Por exemplo, Tomás traduz polis por civitas, mas também por gens, regnum, provincia. Gens e regnum são organizações políticas muito diversas.

Provincia provém do vocabulário imperial romano. Todo este suspense em relação ao tipo de organização política contemplada mostra que a teoria tomista do governo não é suficientemente geral para captar os elementos de

todas as formas políticas nem suficientemente específica para se aplicar a uma unidade política concreta. E ainda hoje não ultrapassámos a vagueza humanística que

atribui validade geral às categorias intermédias resultantes da recepção de Aristóteles.

b. A dedicatória ao rei de Chipre

Muita da força da teoria política helénica resultou do facto de que as poleis mais antigas se empenhavam em fundar novas cidades e colónias. A possibilidade de selecção do espaço, do planeamento da cidade e do esboço da constituição são o pano de fundo para a

construção de Estados ideais, em Platão e Aristóteles, tal como a partir do sec.XVI , a descoberta da América e o estabelecimento de colónias abriu horizontes

semelhantes. No sec.XIII uma situação algo comparável resultou das migrações normandas e do movimento das Cruzadas. Em particular, a fundação de novos

principados nos domínios bizantinos e arábes invadidos pelos Cruzados foi uma tentativa de expansão da

civilização ocidental entre as gentes, tentativa cujo fracasso não era ainda previsível na época de Tomás. Este escreveu em 1265-66 o De Regimine Principum, dedicando-o precisamente a Guy de Lusignan, rei cruzado de Chipre, e não a um poderoso monarca ou

(35)

No teoria política de Tomás, a ideia de fundação substitui o lugar da evolução da família para a aldeia e para a

polis em Aristóteles, regressando assim à ideia platónica da cidade fundada pelo espírito. A série de analogias entre Deus como criador e governante do universo, a alma governante do corpo, e o príncipe como fundador e governante da civitas (RG, I,13) subvertem a visão

aristótelica de que a cidade tem uma evolução estritamente natural. Perde sentido a sequência

obrigatória de comunidades - família, aldeia, polis. A sequência é traduzida por familia, civitas, provincia, interessando sobretudo o chefe de família e o rei que pode ser de civitas ou provincia. A função régia é de ordem natural e não espiritual. O dom da regia virtus recebido por um indivíduo (RP,I,9) não é a autoridade espiritual de Platão nem a arete de Aristóteles; é apenas uma virtú mas sem o elemento demoníaco de tipo

maquiavélico. Mantém-se a evidência natural da sociedade porque o homem isolado não poderia

desenvolver as suas capacidades ("Naturale autem est homini ut sit animal sociale et politicum, magis etiam quam omnia alia animalis; quod quidem naturalis necessitas declarata /(I,1); mas permanece

indeterminada como seria uma comunidade perfeita que satisfizesse as carências naturais e a vida intelectual. d. A comunidade de cristãos livres

A grande novidade em relação a Platão e Aristóteles é de que o rei funciona como governante da comunidade dos livres (liberorum multitudo R.P. I,1). Liberdade e servidão tornam-se critérios do bom e mau governo, Se os

membros da comunidade cooperam livremente nas tarefas da existência comum, o governo é bom, tenha forma de monarquia, aristocracia ou politeia. Se um ou alguns homens exploram os restantes em proveito

(36)

livre e maduro, ideia magnânima semelhante à do igualitarismo aristocrático de S. Francisco. Tomás experimenta a liberdade do cristão mas não coloca o homem numa comunidade natural com obrigações

próprias. Os livres são apenas uma multitudo resultante da livre cooperação criadora. Não apresenta uma teoria do contrato social que institui obrigações nem uma teoria da organização política do povo. Interessa-lhe apenas o populus christianus. Na Summa Contra Gentiles quando ainda não adoptou as categorias de Aristóteles,

apresenta o homem como naturaliter animal sociale, e vive inclinado para o amor mútuo e a solidariedade (SCG, III 117,). Mas a finalidade social não reside a esfera

natural; o que constitui a comunidade humana é a

finalidade comum de amor a Deus e a ordenação da vida para a felicidade eterna. Os laços de afeição que que têm que existir entre os que se estimam (III,117) exigem

regras de comunidade dadas por Deus (III,111-146). Na Summa Theologica (ST I ii 90,2) em que desenvolve a

mesma posição, Tomás deixa cair do céu a citação de que a polis é a comunidade perfeita porque conduz à

felicidade. Contudo, para Aristóteles, a polis histórica é um absoluto em que se insere a acção contemplativa; na

Summa a felicidade é o absoluto que atrai a si uma vida de comunidade sem qualificação política. Também a recepção do termo de Aristóteles animale politicum não

significa adopção do sentido. O homem de Aristóteles realiza-se na polis e nada mais é do que politikon enquanto o homo christianus está orientado para a finalidade transcendental espiritual, sendo tambem político. A figura central da política tomista é o homo christianus (RG,I,14) e não o zoon politikon. A sequência de analogias - Deus no universo, príncipe na civitas, a alma no corpo - não é a palavra final na politica tomista porquanto a multidão de cristãos tem que viver sob

(37)

todos os reis e povos estão subordinados (RP I,14). Assim, a velha dicotomia de poderes - espiritual e temporal - é substituída pela dicotomia moderna de religião e política. A esfera política no sentido moderno ainda está completamente orientada para o espiritual; mas começa a evolução para a privatização de religião (à maneira de Locke), o monopólio da esfera pública pela política e a possibilidade de uma integração totalitária da espiritualidade intramundana na esfera pública da

política.

e. Teoria do governo constitucional Tão forte é o carácter humanístico da teoria de São Tomás de Aquino que mal refere a existência de um sistema da instituição do

governo, sendo que os princípios desenvolvidos com

referência às instituições israelitas e helénicas são pouco adaptados ao sec.XIII. Cada comunidade perfeita tem que ser estruturada nos três reinos de optimates,

populus honorabilis, populus vilis, (ST I 108, 2), modelo inspirado na nobilitá, popolo grasso, popolo minuto das cidades italianas. A partir da liberdade cristã, é possível desenvolver instituições governamentais para o homo christianus enquanto homem político. Não sabemos o que Tomás pensaria sobre a evolução nas cidades

italianas onde as revoltas dos Ciompim em Florença, e dos Patarenos, em Milão, exigiam a integração do terceiro estado no governo; nem sabemos como aplicaria o seu princípio na Iglaterra que atingia então o

Parlamentarismo, e menos ainda na França, feudal e comunal. No Regimine Principum, que permaneceu

incompleto, a teoria do governo constitucional surge em ligação com o problema da tirania (II,6). O tiranicídio é condenado, sendo da responsabilidade da auctoritas publica a deposição do governante injusto. O melhor seria a prevenção da tirania através da delimitação do poder régio. Na ST I ii q.95,4 o regimen conmixtum é

(38)

a melhor forma de governo mas está mais sujeita à

tirania. Esta nonchalance na definição da melhor forma de governo parece provir da democracia primordial de Israel, em que o Senhor recebeu com desagrado o desejo popular de ter um rei como as demais nações(loc. cit. ad.2). Tomás adopta o princípio orientador de que cada um deve ter a sua parte no governo. A politeia deveria ter por magistrados o rei, a nobreza e os representantes dos povos, contribuindo assim para a prevenção da tirania, provocada pela compra de votos, pela eleição de

personalidades indignas, (I,ii, 97,1) e pela expoliação dos proprietários. As fontes principais do pensamento

politico tomista são a teoria aristotélica da política, a constituição romana, a democracia original e monarquia de Israel, a democracia das cidades italianas e o

sentimento da liberdade cristã. Estes elementos não estão integrados; co-existem no estilo harmonizador do pensamento tomista. A síntese possível é a ideia de governo constitucional baseada em dois princípios: a estabilidade de governo que depende da participação do povo e o princípio espiritual cristão da liberdade do

homem maduro. A evocação é humanistica porque as operações intelectuais com a terminologia de Aristóteles ainda não penetrara suficientemente nos problemas concretos da política. Esta síntese de natureza e

espiritualismo cristão dominou a evolução da política ocidental, até hoje.

§ 3. Os quatro tipos de Direito a. A teoria do Direito

Uma compreensão adequada da teoria do direito, tem que atender ao lugar em que ela é tratada na ST. A primeira parte da Summa trata de Deus e da Sua

criação, a segunda do Homem e a terceira de Cristo. A Prima Secundae (I,IIae) trata das acções humanas.

(39)

em acções voluntárias especificamente humanas

(qq.6-21) e as paixões que são tipos de acção comum aos animais (qq.22-48). Os princípios internos da acção

humana são subdivididos em poderes e hábitos

(qq.48-89). O princípio externo que move o homem para o bem é Deus, operando através do Direito (qq.90-108) ou com a assistência da Graça (qq.109-114). A teoria da lei é a instrução dada por Deus ao homem para motivar os seus actos para a beatitude. Este esboço da teoria da direito aplica princípios ontológicos. O mundo é uma criação de Deus e, como tal, portador da marca do divino intelecto; o significado da existência criada é o

movimento de retorno a Deus. A regra que motiva a

acção humana de retorno a Deus é a ratio da criação no intelecto do próprio Deus. A criação imprime no homem esta ratio divina que é a Lex aeterna, pelo que o direito natural é o ditame da razão que vive no homem. Como o homem é imperfeito, a adaptação da lei natural às

contingências humanas é chamada de direito humano. Como o homem não é apenas um ser natural mas

orienta-se para o espírito transcendente é necessária uma revelação especial que constitui a direito divino, apresentado no Antigo e Novo Testamento.

b. Definição de Direito

O direito é definido como ordenamento da razão para o bem comum, feito pelo governante e promulgado (90.4). A definição soa como uma definição do direito positivo mas pretende ser uma definição dos quatro tipos de direito. A tónica recai sobre a comunidade politica e os órgãos de legislação mas a problemática da autoridade legislativa não está ainda separada da autoridade da ordem por virtude da justeza dos seus conteúdos. Os elementos da razão e bem comum são especulativos e comuns aos quatro tipos de lei. O elemento de

(40)

pelos governantes. As dificuldades surgem com a feitura da lei pelo representante da comunidade. O elemento refere-se a Deus, e ao príncipe (91,1) Mas a analogia quebra porque a lei eterna não pode ser feita mas existe desde a eternidade na mente divina. Por outro lado, (90 art. 3) Tomás refere apenas a feitura da lei em

comunidade nacional perfeita. Tomás está a tentar criar uma teoria do direito positivo que leva a conflito com a teoria dos conteúdos da ordem jurídica dada na

classificação das quatro variedades. Toda a lei é criada por Deus com excepção da lei eterna incriada. Os

homens participam nessa criação através da feitura da lei humana. Mas esta feitura humana consiste em

encontrar os elementos rectos da lei de acordo com lei divina e natural. A lei feita faz parte do retorno do

homem a Deus. A feitura da lei tem a estrutura dialéctica de fazer lei por Deus através do instrumento da acção humana, ou orientação do homem para Deus através de regras de acção conforme a vontade legislativa divina. A dialéctica da lei positiva resultante da posição ontológica nunca é tratada adequadamente. Em vez disso

encontramos identificação da lei posta com a essência da lei (90, 4) e com lei humana em 95, 1 e 2) A confusão neste ponto corresponde a falha no sistema: a

comunidade perfeita a constituição e acção legisladora são recebidas factualmente no sistema mas Tomás não criou um enquadramento teórico satisfatório para elas. c. A teoria do direito natural

A força da filosofia jurídica tomista reside na teoria dos conteúdos da lei natural. A lei eterna induz nas pessoas uma inclinação para as acções justas. É esta

participação da criatura racional na lei eterna que se chama de lei natural. A luz da razão natural que

(41)

preservação da natureza racional através do desejo de conhecimento de Deus, e inclinação para a ideal da vida em comunidade (94,2). A construção assemelha-se a teoria estóica de lei natural, koinos nomos e participa nela atrrvés de apospasme, a centelha do nomos no homem individual. Mas a antropologia é cristã. A concepção estóica poderia conduzir a teoria da iluminação como em Santo Agostinho ou a teoria

colectivista da anima intellectiva como em Averroes. A participação tomista é objectiva na medida em que não depende da iluminação individual (Agostinho) e confere peso à singularidade da pessoa porquanto concebe a comunidade como o esforço cooperativo de homines Christiani livres. A fundamentação tomista é talvez a única sustentável posição para uma filosofia do direito.

Caso não existir uma fundação ontológica temos a seguinte alternativa: ou não ter fundação ontológica e aceitar como válida qualquer ordem jurídica positiva que possa compelir à submissão ou erigir como absolutos elementos intramundanos tais como instintos, desejos, carências, razão secular, vontade de poder, ou

sobrevivência dos mais aptos. A primeira opção é niilista a segunda positivista e não permite integrar a

experiência transcendental religiosa na filosofia da

Direito. A clássica solução tomista fornece uma fundação religiosa e uma ordem jurídica que respeita a estrutura ôntica da existência humana; harmoniza a personalidade espiritual cristã com a comunidade natural perfeita que pode corresponder a povos ou federações, desde que

dotados de identidade espiritual. A solução tomista surge quando instituições tradicionais estão a desaparecer, sendo depois absorvida pela teoria da interpretação natural do período dos estados nacionais.

Referências

Documentos relacionados

Assim sendo, a. tendência assumida pela pós - graduação em co- municação nos anos 60 contribuiu muito menos para melhorar e.. Ora, a comunicação de massa , após a Segunda Guerra

Portanto, mesmo percebendo a presença da música em diferentes situações no ambiente de educação infantil, percebe-se que as atividades relacionadas ao fazer musical ainda são

Para definição dos índices de sensibilidade ambiental a derramamentos de petróleo e derivados serão utilizados os métodos da NOAA (2002) e Petrobras (2002). Com esse intuito,

TEMPLO: CAMPO MAIOR-PI MINISTRO: GEVATO PRESIDENTE ANTONIO PINTO RODRIGUES. ZONA RURAL DE CAMPO MAIOR - COMUNIDADE ALTO

As oficinas realizadas nas duas escolas citadas anteriormente foram dividas em quatro momentos: o primeiro quando se tratou sobre o entendimento teórico e prático dos

Este trabalho tem como objetivo analisar o selo ambiental da lavoura de arroz irrigado na perspectiva do técnico que presta assistência as lavouras de arroz, dos produtores

5.2 Importante, então, salientar que a Egrégia Comissão Disciplinar, por maioria, considerou pela aplicação de penalidade disciplinar em desfavor do supramencionado Chefe

Verificar a efetividade da técnica do clareamento dentário caseiro com peróxido de carbamida a 10% através da avaliação da alteração da cor determinada pela comparação com