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(1)

José~'

·Luiz Fiorin

(2)

José Luiz Fiorin

O

REGIME

DE

1964

Discurso e· Ideologia

1988

SÉRIE LENDO Coordenação

(3)

Capa: Zildo Braz (sobre arte de Alexandre Martins Fontes)

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Composição: Linoart Ltda.

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! · Copyright@ José Luiz Fiorin

Dados de Catalogação na Publlcaçá() (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Fiorin, José Luiz.

F553r O regime de 1964 : discurso e ideologia/ José Luiz Fiorin.

87-0618

1. ed. - São Paulo : Atual, 1988.

(Série lendo) Bibliografia.

1. Brasil - História - Revolução de 1964 2. Brasil - Política · e governo - 1964-I. Título. II. Série. ·

1ndices para catálogo sistemático:

.1. Brasil: Discurso político, 1964- 320.98108 2. Brasil : História, 1964- 981.08

1:3. Brasil : Ideologia política, 1964- 320.98108 4. Revolução de 1964 : Brasil : História 981.08

Todos os direitos reservados à

ATUAL EDITORA LTDA. Rua José Antônio Coelho, 785

Telefone: 575-1544 04011 - São Paulo - SP LOYLNVV 24681097531 CDD-981.0B -320.98108

(4)

SUMÁRIO_

INTRODUÇÃO 1

· I - LINGUAGEM E IDEOLOGIA: A BUSCA DA

HISTó-RIA PERDIDA ... .

O Objeto da Lingüística ... . O Alargamento do Objeto da Lingülstica ... . Formalistas e ldeologistas ... :· ... . O Discurso: Autonomia e Determinação ... . Formcu;ões Ideológicas e Formações Discursivas ... . O Social e o Individual: Discurso e Texto ... . O Problema do Sujeito do Discurso ... . Conclusão ... · ... ; ... · .•... O Discurso Lacunar: Algumas Opções Metodológi~as ..

O Discurso Lacunar: Algumas Opções Metodológicas .. O Discurso Construído: Invariantes do Discurso de 64 . O Componente Narrativo e a Semântica do Comp'onente Discursivo ... , ...• , ... : ...•. Temas e Figuras: Posição de Classe do Narrador e do Narratário ... · ... : . Alguns Procedimentos Discursivos ... . O Componente Fundamental ...•...

3

3

4

5

6

12

14

15

17

18-18

20

21

118

125

133

III - A SACRALIZAÇÃO DO DISCURSO POUTICO ...

139,

' .

O Discurso Religioso e o Discurso Político ... ·

139 ·

O Problema da Sacralização ... 1~7

·

~ CONCLUSÃO ... ; . . . • . . . . • . . .

152

BIBLIOGRAFIA

...

...

-

... ..

-

154

(5)

1. LINGUAGEM E IDEOLOGIA:

Á

BUSCA

DA HISTÓRIA

PERDIDA

O Objeto da Llngilistica

"acabou vendo Joan Brossa que os verbos do catalão tinham coisas por detrás eram só palavras, não."

João Cabral de Melo Neto

Saussure, em seu Curso de Lingütstica Geral, mostra que a

linguagem é um fenómeno "multiforme e heteróclito", com muitos

níveis e dimensões, uma vez que é física, fisiológica e psíquica, individual e social. Diante dessa multiplicidade de fenômenos, se-ria preciso estabelecer o objeto da ciência da linguagem. Propõe ele, então, a distinção entre língua e fala. A língua é suscetível de

uma definição autônoma, pois é a "parte social da lingut\gem,

ex-terior ao indivíduo, que não pode criá-la nem modificá-la". Para Saussure, a língua é um produto acabado que o falante registra em sua memória. Constitui ela um sistema que conhece apenas sua própria ordem. A líl\,lYlla não é, para Saussure, uma lista de palavras ou de sons, mas um conjunto de relações. Segundo ele, na língua não há senão diferenças. Assim, a língua é forma e não substância. O exemplo do jogo de xadrez ilustra essas concepções. Não importa para o jogo que as peças sejam grandes ou pequenas, de marfim ou de madeira, etc. O que importa é o valor que as pe-ças têm, ou seja, as diferenpe-ças que uma tem em relação a todas

as outras, o que lhe dá uma função específica dentro do jogo.

As-sim também,

o

valor específico de "mala" advém do fato de que ela é diferente de "bala", "sala", "mata", "mela", etc.

A fala é a atualização do sistema lingüístico (língua) numa dada situação. Por isso, a fala é individual, é um ato de vontade e de inteligência, é o lugar da liberdade e da criação. Se a língua constitui um código, a fala são as combinações pelas quais o indi-víduo realiza o código da língua com a finalidade de exprimir seu

pensamento. ·

Ao separar a língua da fala, Saussure estabelece que o objeto

da Lingüística é a língua. Afasta, assim, a fala da ciência da lin-guagem. Ao mesmo tempo, ao verificar a autonomia da língua, põe

à marge1ll da Lingüistica tudo aquilo que ele chama elementos

externos da língua, entre eles as relações entre língua e hist6ri~

(6)

pr9prio sistema, como, por exemplo, a instabilidade das oposições

isoladas ou

o

preenchimento de

casas

vazias para o estabelecimen·

to~ de correlações perfeitas.

O pensamento saussuriano é bastante complexo e trouxe

ine-gáveis progressos para a ciêncía da linguagem. A distinção de base

de Saussure sorreu alterações, mudanças, ac.réscimos ao longo da história da Lingüística. Houve mesmo mudanças significativas na maneira de encarar o objeto da Lingülstica. No entanto, resumin-' do de uma maneira um tanto esquemática, poderíamos dizer que a Lingüística moderna desenvolveu durante muito· tempo a Lin· güística da língua, pautando-se sempre pelo princípio da imanência e deixando de lado, portanto, os elementos considerados externos. Tudo na linguagem deveria ser exp1icado pelas relações internas.

Por isso, os campos que conheceram

um

extraordinário

desenvol-vimento nas últimas décadas foram a fonologia, a .morfologia e

a sintaxe. São esses os níveis em que a língua tem autonomia em

relação à prática social. A semântica, ao contrário, teve até recen·

temente um pequeno avanço, pois o estudo dos significados não

poderia ser feito só na bas.e dos métodos da fonologia.

O Alargamento do Objeto da Llngüístlca

Um dos problemas da Lingüística da língua é que seu limite é o nível da frase, uma vez que o texto pertence muito mais à fala

do que propriamente à língua. No entanto, a única realidade para

o falante .são os discursos e não os fonemas, os morfemas ou as frases isoladas.

Com o tempó, esse e outros problemas novos se colocam. Lembremos, rapidamente, alguns: o problema do uso da lingua·

gem, dos atos de fala, da contextualização, das relações entre lin·

guagem e sociedade, das condições de produção do discurso, da argumentação, da enunciação, da textualização. O número das no-vas questões que se discutem é imenso. Os lingüistas sentem as insuficiências da teoria e a estreiteza de seu objeto de estudos. Começam a ajuntar os problemas novos ao clássico objeto da Lin-gilistica como espécies de anexos mais ou menos heterogêneos em relação ao corpo téórico assentado. A Llngüística inicia sua crise epistemológica.

Não é nossa intenção discutir todos os problemas que se co-locam hoje para a Lingüística. Tomaremos apenas um aspecto, o das relações entre linguagem e história e esboçaremos a respeito

desse problema algumas idéias, que carecelll ainda d~ refinamen1o.

A preocupação com as relações da linguagem com a história

não deriva da opção pessoal de alguns Ungüistas pela novidade in· conseqüente, nem. de seu gosto por aquilo que se considerou, por

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muito tempo, como elementos extralingüísticos, nem mesmo de seu desejo de incorporar a Ciência da linguagem à ciência da his-tória, mas decorre do. próprio desenvolvimento da Lingüística. Quando esta começa a estudar problemas como as condições de produção discursiva, a enunciação, a intertextualidade, etc., surge o problema da determinação histórica da linguagem. Pode-se dizer que o aparecimento dessa questão no âmbito da Lingüística tem sua origem na crise epistemológica da ciência da linguagem, ou seja, na própria história da Lingilistica.

Formalistas e ldeologlstas

Aqueles que se interessam pelos estudos lingüísticos podem-se dividir, de maneira esquemática, em duas grandes tendências: o formalismo e o ideologismo.

A primeira, em termos gerais, concebe a linguagem como uma ·autarcia, ou seja, como um sistema fechado em si mesmo;

com-preende o texto como um todo que se basta a si mesmo, não. se importando com as relações entre a linguagem e a história. A se-gunda despreza os elementos lingüísticos e procura relacionar, de maneira direta e .mecânica, tal ou qual aspecto do texto com a es-trutura social. Bakhtin (Todorov, 1981), ao fazer um balanço das duas tendências, mostra que, embora os formalistas estejam fun-dados sobre pressupostos filosóficos falsos, .eles contribuíram, de maneira inegável, para o avanço da Lingüística, ao discutir pro-blemas do funcic::iamento específico da linguagem que não podem

mais ser ignorados. Seu julgamento em relação aos ideolegistas é

muito mais severo: eles não só ajudaram no desenvolvimento dos estudos lingüísticos, como contribuíram, de maneira poderosa, para a vulgarização do marxismo. Segundo Bakhtin, é preciso herdar o ,, formalismo, recolocando-o sobre riovas bases filosóficas.

O primeiro problema do lingüista é, pois, perceber que a lip- •

guagem goza de uma certa autonomia em relação às fo:rmações sociais, mas, ao mesmo tempo, sofre determinações histórícas. As-sim, uma teoria geral da linguagem deveria começar por reconhe-cer os níveis e as dimensões em que a linguagem tem uma reconhe-certa autonomia e aqueles em que ela sofre determinações.

A renúncia a considerar a existência dos diferentes níveis de articulação e as variadas dimensões da linguagem gerou erros en- · tre os quais um "sociologismo" e um "historicismo", c9mo os da teoria marrista, que pretendem explicar toda a linguagem e as suas mutaçõç_s pelas mudanças na infra-estrutura econômica e que trazem como conseqüência a impossibilidade de explicar certas . categorias lingilisticas e determinadas mutações internas que se operam em alguns níveis. da linguagem, como, por exemplo, no

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ní-vel fonológico. Não se_poderá explicar a sonorização das consoan-tes surdas intervocálicas na passagem do latim ao português por mutações na infra-esttutura. Nota o próprio Engels, em carta a Bloch, que nem todas as alterações se explicam por causas eco-nômicas e exemplifica essa afirmação com a mutação consonântica do alto alemão, que se processa por fatores exclusivamente lingüís-ticos (Marx e Engels, 1977, 34). Dessa forma, a língua, no sentido saussuriano, goza de certa autonomia em relação às formações sociais. O russo e o chinês têm o mesmo sistema fonológico e mor· fossintático antes e depois da Revolução. O sistema fonológico do português é fundamentalmente o mesmo do século XVI até nossos dias. Abandonado, pois, o sistema, voltemo-nos para a fala, para investigar se ela sofre determinações sociais.

A fala, em Saussure, é o domínio da liberdade e da criação. Nota Régine Robin (1977, 25) que essa concepção de discurso ar· ticula-se no interior de uma "filosofia do sujeito neutro", que se conhece muito bem (uma filosofia anterior a Freud). e da concep-ção de sujeito como um ser que não. sofre qualquer determinaconcep-ção

sócio-ideológica (uma filosofia de antes de Marx). E. mais uma idéía

de que "eu falo" do que a de que "eu sou falado" por um determi-nado discurso. Daí tornar-se impossível uma ciência da atividade lingüística, pois, nesse campo, tudo se passa como se fosse inde-terminado, como se nada fosse comum, como se não houvesse re-. petição. No entanto, dois pontos devem ser examinados: a "liber-dade;, da fala, na maioria das vezes, dissolve-se no interior de falas estereotipadas (lembremo-nos das pessoas que falam sentenciosa-mente por meio de provérbios); há determinações que incidem so-bre a linguagem, levando à criação desses estereótipos.

De agora em diante, não se usará mais o termo fala, mas

so-mente o vocábulo discurso. Esta não é simplesmente uma

mudan-ça terminológica, mas revela uma determinada postura diante do problema da atividade lingüística, pois a noção de discurso pres· supõe a de sujeito. Co.qio a linguagem é um fato caracteristica· mente humano e social, só se pode falar de sujeito no quadro das relações sociais que se estabelecem no interior de uma formação

social. Assim, falar de discurso é remeter ao problema da relação

da linguagem com a história.

O Discurso: Autonomia e Determinação

Quando se fala em determinação do discurso, pergunta-se ime· diatamente se ele é um fenômeno de superestrutura. Muitos éon-sideraram o próprio sistema lingüístico como um fenômeno de

classe. A língua em sr não é um fenómeno de classe, uma vez que

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classes e continuará existindo quando as classes forem abolidas. Como mostra E!1gels (s.d.b, 174-175), ela surge da necessidade de relações sociais, 'que não se reduzem, porém, ao mero intercâmbio de idéias, uma vez que a linguagem é tão complexa quanto os de-mais fenômenos sociais. Enfatiza Engels que o trabalho é a cate-goria fundadora da história e que, a partir do processo de traba· · lho, estabelecem-se relações sociais que estão na base da origem da linguagem. Por seu turno, trabalho e linguagem estão associa-dos no desenvolvimento da capacidade de pensar, que, por sua vez, aperfeiçoou a linguagem e os processos de trabalho. Assim, a lin-guagem não é um . fenómeno de classe, mas recebe as marcas da existência das classes sociais, ou seja, as classes, ou frações de classe, apropriam-se da linguagem para transmitir suas represen· " tações ideológicas e, assim, agir no mundo. Não é a linguagem propriamente um fenõmeno de superestrutura, mas é o veículo das manifestações superestruturais que, por isso, moldam nela suas representações. Determinações sócio-ideológicas estão pre- í.

sentes na linguagem, ou mais precisamente no .diSÇUrso, uma vez que consideramos o sistema um elemento que goza de relativa • autonomia em relação às formações sociais. A determinação sobre o discurso não é, porém, reecânica, mas passa por sucessivas me-diações, e tem, por isso, também o discurso relativa autonomia.

Dizer que as representações ideológicas moldam o discurso, mas que há uma relativa .autonomia da linguagem em relação~ à ideologia, ou seja, que o nível lingüístico -não se reduz ao nível ideológico, implica distinguir níveis e dimensões do discurso e os componentes de cada nível.

O discurso não é um amontoado de frases, mas é regido por ' Íeis de estruturação, para que ganhe sentido. Esses mecanismos de estruturação discursiva, sua sintaxe, são dotados de uma relativa autonomia em relação às formações sociais. Mecanismos como o discurso direto, o discurso indireto, o discurso indireto livre, uma vez criados, podem veicular conteúdos de distintas formações ideo-• ideo-• lógicas. Isso significa que o lugar por excelência da manifestação

ideológica é o nível semântico do discurso. Mas é preciso ir deva-gar. Diversas objeções já se levantam.

Distinguimos inicialmente uma sintaxe e uma semântica no discurso. No entanto, há que pensar também que, depois de Chomsky, a Lingüística não pode mais deixar de considerar a exis· tência de uma estrutura superficial e uma estrutura profunda. Assim, deve-se pensar, ao propor um modelo de análise, que a es· trutura discursiva é constituída de níveis de invariância sempre crescente, que explicam como ir da manifestação à instância ab

quo da geração do sentido. O modelo de análise vai propor a exis·

(10)

A necessidade de uma análise do discurso por meio de um percurso gerativo justifica-se na medida em que um investimento semântico mais abstrato como a conjunção de um sujeito com o objeto-valor "liberdade" pode ser recoberto por diferentes atores, temas e figuras. O enunciador pode manifestar o sujeito como um indivíduo ou uma classe social. A conjunção com a liberdade pode ser a evasão temporal, figurativizada, por exemplo, pela volta à infância ou pela volta à Idade Média; a evasão espacial, figurati· vizada pela ida para. lugares exóticos ou para outros planetas; a derrubada de opressores; a violação de usos e costumes, figura-tivizada, por exemplo, pelo uso da "calça velha, azul e desbotada". Para compreender bem a multiplicidade dos investimentos semân~ ticos concretos, é preciso reduzi-los a investimentos mais abstra· tos. Entendendo o elemento abstrato e a concretização possível, não se vai apreender, por exemplo, a "liberdade" e a "democracia" como elementos indistintos, apareçam onde e como aparecerem. Na análise do percurso gerativo de sentido, há que distinguir, em primeiro lugar, a imanência da manifestação. Aquela é o plano de conteúdo, e esta a· união de um plano de conteúdo com um pla-no de expressão. Tal distinção se faz necessária, pois o mesmo plano de conteúdo pode ser veiculado por diferentes planos de expressão: verbal, visual, etc. O Beijo da Mulher Aranha é livro, filme e peça de teatro. E. claro que também o plano de expressão agrega significados ao cónteúdo. Não é totalmente indistinto trans-mitir um determinado conteúdo por este ou aquele meio .de ex-pressão. Mas voltaremos a isso mais àdiante.

Em segundo lugar, há que distinguir os diferentes níveis de generalização do conteúdo.

Greimas (1979, 157-160) propõe um percurso gerativo de sen· tido (referente, portanto, ao plano do conteúdo), que, embora su-jeito a críticas~e revisões, revela-s~ operatório para o estudo do discurso em níveis crescentes de invariância. Poderia ele ser es· quematizado da seguinte forma:

Componente sintáxico Componente semântieo

Estruturas

Nível Sintaxe

· sêmio-narra· Semântica-fundamental

tivas profundo fundamental

.

Nfvel da Sintaxe Semântica narrativa

superfície narrativa

(11)

Sintaxe discursiva Semântica discursiva Discursivização Estruturas discursivas actorialilação

J

J

tematização temporaliz:ação figurativização espacialização

O nível profundo é constituído dos elementos mais abstratos,

responsáveis pela produção, pelo funcionamento e pela compreen-são do discurso, que pode ser manifestado verbalmente ou não

verbalmente; é a instância ab quo do percurso gerativo. A semân- • •

tica fundamental aparece corno um inventário de oposições se-mânticas, que serão trabalhadas pelo sujeito da enunciação. Assim,

no romance A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, a categoria

de base com que opera o autor é a oposição

/civilização/vs./natu-reza/. Um dos elementos da categoria semântica de base é consi-derado eufórico e o outro disfórico. No caso, ao final do romance, verifica-se que a civilização é o termo disfórico e a natureza o ter-mo eufórico.

As duas operações da sintaxe fundamental são a negação e a asserção. Ao negarmos um termo qualquer de urna oposição se-mântica, que é constituída de termos contrários entre si, temos

um termo contraditório: civilização - nãocivilização; natureza

-não-natureza. A asserção permite reunir os termos situados no eixo dos contrários (ex.: natureza e civílização) ou no eixo dos sub· contrários (ex.: não-natureza e não-civilização). O mito parece ser sempre a união de contrários ou· de subcontrários. No interior do sistema de valores do cristianismo, Cristo é, por exemplo, divino e humano, enquanto os anjos são não--divinos e não-humanos. Em

A Cidade e as Serras, es~as operações (transformações) são as

se-guintes; afirmação do termo a, civilização (vida em Paris); negação

do termo a, não-civilização (momento da chegada de Jacinto a

Portugal); afirmação do termo b, natureza (descoberta do valor

das coisas simples, em Portugal).

Os elementos do nível fundamental são retoma.dos pelo nível narrativo, que é constituído de um conjunto de estados (relação de um sujeito com um objetal e de transformações (alteração da relação de um sujeito com um objeto). O nível narrativo faz tor-narem-se um pouco menos abstratas as categorias do nível fun-damental. Os elementos semânticos do nível fundamental são ins-critos no objeto do nível narrativo. Assim, no nosso exemplo, a civilização disfórica é a doença e a infelicidade, enquanto a

natu-reza· eufórica é a saúde e a felicidade. O sujeito, na civilização,

está em relação conjuntiva coin a doenÇa e a infelicidade e, con-seqüentemente, em relação disjuntiva com a saúde e a felicidade.

(12)

No percurso narrativo, essa relação altera-se e o sujeito entra em conjunção com a saúde e a felicidade.· A semântica narrativa trata ·dos valores inscritos nos objetos, enquanto a sintaxe narrativa

contém as operações de transformação de ·estados.

A sintaxe discursiva contém as operações de actorialização, de espacialização e de temporalização, que inscrevem os enunciados narrativos em coordenadas espaço-temporais e revestem os papéis narrativos, como sujeito e objeto, de atores discursivas. Isso se faz pelos mecanismos de enunciação. Nesse nível, colocam-se to-dos os problemas da relação enunciador-enunciatário, como, por exemplo, as estratégias argumentativas. As operações da sintaxe discursiva visam a criar efeitos de realidade e de verdade, com o objetivo de convencer o enunciatário, de fazê-lo crer. A semântica discursiva é constituída de temas e figuras, que são dois patama· res sucessivos de concretização do sentido e que geram, respecti· vamente, os discursos não-figurativos e os discursivas figurativos. A tematização é o revestimento de um dado percurso narrativo com atores e coordenadas espaço-temporais não concretizados. No nosso exemplo, reveste-se o percurso da busca da felicidade pelo sujeito com o tema da evasão espacial, que é o deslocamento de alguém no espaço. A figurativização é o revestimento de um tema por figuras, que são signos cujo plano de conteúdo remete a

ele-mentos presentes no mundo natural. Em A Cidade e as Serras, o

tema da evasão temporal é figurativizado como: Jacinto deixou Paris e partiu para Tormes. Como se vê, nesse romance, Paris e Tormes figurativizam, respectivamente, a civilização e a natureza. Já dissemos que o componente sintáxico do discurso garante sua estruturação peculiar e garante sua relativa autonomia em re-lação às formações sociais. Já o investimento semântico revela o universo ideológico do sujeito enunciador, pois não é indistinto o estabelecimento dos objetos "disciplina" ou "liberdade" (cf. os dis-cursos dos pensadores políticos autoritários e os dos anarquistas), "riqueza" ou "glória de Deus" (cf. os discursos do Tio Patinhas, de Walt Disney, e o discurso jesuítiéo que expressava sua finalidade pela máxima "Ad majorem Dei gloriam").

Por outro lado, a aplicação dos termos eufórico e disfórico às

categorias semânticas fundamentais não é neutra, mas revela um

universo ideológico. Assim, um conto de fadas como A Gata

Bor-ralheira revela uma determinada formação ideológica, ao

conside-rar eufóricas as virtudes da obediência, da submissão e da

hu-mildade, que são recompensadas, e disfóricos o orgulho e a

pre-potência, que são castigados. O romance Justine, de Sade, mostra

um universo ideológico contrário, pois nele disfórkos são o amor ·ao 1pró?'imo, a caridade e a bondade, que são sempre castigados, enquanto eufóricos são ludibriar os vutros e cometer malvadezas, que são ações premiadas.

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O nível por excelência de manifestação ideológica é, porém, o nível discursivo, ou seja, é no nível da semântica discursiva que, realmente, as formações ideológ{cas se manifestam, pois um m~s­ mo valor (elemento da semântica narrativa), como a "liberdade", pode ser tematizado, pela assunção do papel temático do homo

ludens e pela negação do papel temático do homo faber,

figurati-vizados por jovens no espaço e no tempo do lazer. Analise-se, por exemplo, a peça publicitária de jeans que diz "Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada". Nesse caso, a liberdade é o lazer, figurativizado pelo não-trabalho, indicado pela roupa. "Liberdade" pode ser tematizada pelo "direito à diferença", corno no cii.so dos discursos de minorias sexuais. Pode ainda ser tematizada pela "não-exploração da força de trabalho produtiva". Essas três tema-tizações diferentes do mesmo valor pertencem a formações ideo-lógicas distintas.

As duas primeiras pertencem ao universo ideológico que vê a liberdade como a -possibilidade de o indivíduo ou de um grupo de indivíduos libertar-se das coerções sociais. Embora pertençam elas ao mesmo quadro de valores, são distintas: a primeira coloca-se no domínio das opções permitidas; a segunda, no das injunções negativas, ãésejando tornar o que é proibido permitido, numa dada sociedade. A terceira pertence a outro universo ideológico, pois vê a liberdade como decorrência da . alteração de todo o

sis-t~ma de relações sociais.

O discurso religioso católico apresenta, em nossos dias, Cristo

em

dois papéis temáticos distintos: salvador e libertador. Insiste no papel temático "salvador" o discurso de parcelas tradicionais da Igreja. Ressalta o papel "libertador" a facção comprometida com a chamada "opção preferencial pelos pobres".

Nos discursos não-figurativos, a ideologia patenteia-se num dado conjunto de temas, enquanto nos discursos figurativos re· vela-se, de maneira explícita, na relação entre temas e figuras; pois o mesmo tema, relacionado com figuras distintas, pode aparecer em formações ideológicas distintas. O tema do "exílio'', em Gonçalves Dias, aparece relacionado às figuras da natureza em que a pâtria

é maior e melhor que a terra do exílio. Isso reflete o momento da constituição da nacionalidade. O mesmo tema aparece, em Murilo Mendes,. relacionado às figuras da dominaÇão cultural estrangeira ("Minha terra tem macieiras da Califórnia,/onde cantam gatura· mos de Veneza").

A determinação do discurso é bastante complexa, pois há um campo da manipulação eonsciente e um da determinação incons· ciente.

O campo da manipulação consciente é o da sintaxe discursiva, em que o enunciador lança mão de estratégiãs argumentativas e

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de outros procedimentos para criar efeitos de verdade e -de

rea-lidade, com a finalidade de convencer o interlocutor. O

enuncia-dor organiza a estratégia discursiva em função de um jogo de ima-gens: a imagem que tem do interlocutor, a imagem que pensa que o interlocutor tem dele, a imagem que deseja passar para o

interlocutor, etc. (Pecheux, 1975). é em função desse jogo de

ima-gens que ele usa certos expedientes argumentativos e não outros. Embora consideremos este o campo da manipulação consciente, pode-se, em virtude de hábitos adquiridos, usar esses recursos

de maneira inconsciente. ·

O campo das determinações inconscientes é constituído·· de um conjunto de temas e figuras que constituem a maneira domi· nante de explicar os fatos do mundo numa dada época e que são oriundos de outros discursos já articulados, cristalizados e cujas · condições de produção foram apagadas. Este é o campo da deter· minação ideológica propriamente dita. Conquanto seja

incons-ciente a determinação ideológica, pode ela ser também consciente.

É necessário agora precisar os conceitos de formação ideológica

e de formação discursiva.

Formações Ideológicas e Formações Discursivas

Marx mostra, em O Capital, que há no real um nível de

es-sência e um nível de aparência. No modo de produção capitalista, a aparência do real é vista como o próprio real. O capitalismo

engendra formas que mascaram sua essêncj.~. Assim, por exem·

plo, no nível da circulação (aparência), todos os homens apare-cem como iguais, pois todos são detentores de mercadorias, que são trocadas. Alguns vendem seu trabalho, livres de quaisquer vínculos de dependência pessoal; são livres para estabelecer rela-ções contratuais com outros homens e em troca recebem um sa-lário. Aprofundando-se, no entanto, a análise, nota-se que eles não vendem seu trabalho, mas sua força de trabalho. Com isso, ob-serva-se que a jornada de trabalho divide-se em tempo de traba-lho pago e tempo de trabatraba-lho não pago. O capitalista apropria-se

do trabalho não pago, constitutivo da mais-valia. O salário, que

não é senão o elemento destinado à reprodução da mão-de-obra, apaga a distinção entre tempo de trabalho necessário à repro-dução da força de trabalho e tempo não pago. O salário, no nível da aparência, aparece como o pagamento do trabalho e não da força de trabalho.

Observe-se, então, que, no nível da circulação, as relações so-ciais aparecem como relações entre indivíduos livres e· iguais. Entretanto, no nível da !fSsência, essas relações são entre classes e não entre pessoas. Não existe a troca, mas a exploração. Não

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há, nesse nível, nem igualdade nem liberdade, mas relações de poder. A partir da produção estabelecem-se as classes, sociais; aí há exploradores a explorados. O real, no nível da aparencia, põe-se invertido e é, a partir daí, que põe-se elaboram as repiepõe-sentações que servem para pensar a relação dos homens entre si. Assim, ideologia é o conjunto de representações elaboradas a partir da aparência do real, o conjunto de racionalizações que justificam, no nosso caso, a sociedade burguesa.

No entanto, há a seguinte questão. Por que a Economia Polí-tica s6 ficou na aparência do real, ao analisar a sociedade capita-lista, e não chegou à sua essência? A resposta é que ela se identi-ficava com os interesses da burguesia e, portanto, só poderia ir até aquelas formas do real engendradas para mascarar a essên-cia da sociedade capitalista. Isso não quer dizer que a classe he-gemónica só revele os fatos que lhe interessam, ocultando, deli-beradamente, outros para ludibriar o proletariado. Embora não se possa excluir essa possibilidade, as representações ideológicas estão presentes na maneira de todas as classes pensarem a socie-dade. Elas justificam· a hegemonia de uma classe para todos os membros da sociedade. Assim, os problemas que a Economia Po-lítica clássica se colocava eram aqueles relacionados com a apa-rência do real. Isso significa que nenhum conhecimento é neutro, pois ele expressa sempre uma visão de mundo. Dessa forma, há um corihecimento que sobrepaira as aparências e outro que vai até a essência do real. Podemos, pois, entender, nesse sentido, a ideologia como uma visão de mundo, que não é senão o ponto de vista de uma classe social. Assim, poder-se-ia historicizar o éonceito de ideologia: são representações que se elaboram a par-tir da realidade, seja de suas formas aparentes, seja de suas 'for-mas essenciais.

A partir daí, pode-se observar que não há uma separação en-tre ideologia e ciência, como queria, por exemplo, Althusser, pois a ciência que trata das aparências do real analisa também ele-mentos reais como o salário, a mercadoria, o preço, etc. A ideolo-gia é assim constituída pela realidade e constituinte da realidade. Na sociedade burguesa, o ponto de vista burguês

é

a visão de mundo elaborada a partir das aparências do real, enquanto a proletária é organizada a partir de sua essência. Há que observar, entretanto, que a visão de mundo domina,nte na sociedade bur-guesa é a cosmovisão burbur-guesa.

Como se materializam essas visões de mundo? Materializam-se na linguagem em suas di~rentes manifestações: a verbal, a visual, a gestual, etc. Essas visões de mundo corporificam-se num estoque de temas e figuras, que constituem a maneira de pensar o mundo numa dada época. Esses temas e figuras São repetidos na maior parte dos discursos produzidos numa formação social

(16)

concreta. Temos, então, que considerar a formação ideológica

como urna visão de mundo, ou seja, o ponto de vista de uma elas· se presente numa determinada formação• social, e a

f

armação dis· cursiva como o conjunto de ternas e figuras que materializam uma dada formação ideológica.

Ainda resta o espinhoso problema do sujeito que produz o discurso. Em primeiro lugar, existe o sentimento arraigado de que o homem é livre para pensar e para produzir enunciados. Em segundo, nota-se que os textos que os homens produzem não são iguais, o que invalidaria, segundo certos críticos, a idéia de que os discursos são determinados pelas formações ideológicas. Comecemos pela segunda objeção. Para respondê-la é preciso pen-sar um outro nível da linguagem, o da manifestação.

O Social e o Individual: Discurso e Texto

Até agora estivemos refletindo sobre o plano do conteúdo. O

conteúdo manifesta-se por meio de um plano de expressão. A ma-nifestação é, pois, o encontro do plano de conteúdo discursivo com um plano de er:pressão, que pode ser verbal, visual, gestual, etc. O plano de expressão veicula o significado. Nesse plano, ocor-rem os efeitos estilísticos e as múltiplas coerções do material uti-lizado.

Os efeitos estilísticos agregam sentidos da· expressão ao pla-no do conteúdo. No verso "Pedras, pingos pulam de alegria", do poema "Chuva de Pedra", de Augusto Meyer, a aliteração do /p/ patenteia o saltitar das "gotas duras". No verso de Garcilaso "ces· tillos blancos de purpúreas rosas", mostra Dâmaso Alonso que o vermelho «ias rosas oferecidas à ninfa morta é destacado certa· mente pelo contraste com o branco dos cestinhos em que eram trazidos, porém esse contraste é reforçado pela ordem quiástica das palavras dos dois sintagmas, pelo contraste dos timbres

a

e

u

nos adjetivos e pelos acentos colocados sobre essas duas vogais.

A coerção do material é responsável pelo fato de

determina-dos aspectos do sentido serem mais bem expressos por um plano de manifestação do que por outro. A cor tem importância muito ·grande no filme "Gritos e sussurros", de Bergman. Há todo um sentido derivado do contraste entre os tons escuros e os tons claros e luminosos. Dificilmente esse sentido seria revelado por um plano verbal de manifestação. Essa coerção ocorre também quando usamos uma língua e não outra. Daí a dificuldade de tra-dução do texto poético, que faz ·largo uso dos efeitos estilísticos de expressão. Se se traduz o verso virgiliano "Stetit illa tremens" por "E ela parou tremendo", perdemos o valor sonoro do tremor, dado pela aliteração do /t/.

(17)

O discurso ·pertence ao plano do conteúdo.

:e.

o cemponente

do. percurso gerativo p~ sentido em que as formas do componente

narrativo são r~vestidas de temas e figuras, localizadas ac::orial,

espacial e temporalmente. O texto é o lugar da união de um plano

de conteúdo com um plano de expressão.

O texto é também um lugar da manipulação consciente, em '/-que o falante pode organizar os recursos da expressão para vei-cular, da melhor maneira possível, certo discurso. A formação discursiva constitui a matéria-prima. de que um homem de uma dada formação social dispõe para elaborar seus discursos. Ele, no geral, reproduz em seus discursos os temas e as figuras

pre-sentes nos discursos dominantes de uma dada época. No entanto,

cada pessoa textualiza diferefl:temente os temas e ~:s figuras

-repe-tidos na maior parte dos discursos produzidos numa certa época,

numa dada formação social. O discurso é o lugar do social, en- i.

quanto o texto é o lugar por excelência do individual.

A ilusão da liberdade discursiva situa-se no fato de que o

texto é individual, ou seja, é único e irrepetível. O discurso símu·

la ser individual, porque o texto, que o veicula e que, enquanto plano de expressão não tem sentido, varia de pessoa para pessoa.

Entretanto, deve-se ressaltar que, se a textualização é individual,

ou seja, subjetiva, essa subjetividade é objetivada, isto é, essa

individualidade é socializada, uma vez que ela é formada por meio

de operações modelizantes de aprendizagem, que incluem o apren-dizado da língua, da retórica e dos procedimentos de formas de elocução.

O mesmo discurso pode manifestar-se por muitos textos di:·

ferentes. Por isso, a liberdade de textualizar é muito grande e

está condicionada apenas pelos processos modelizantes de apren· dizagem, ou seja, pela tradição textual.

O Prob\ema do Sujeito do Discurso

Muitas vezes se diz, que é !mp~ssível pensar o proble~,a ~ª­

relação entre classe social e discurso, porque o enunciador real pode simular um discurso que não represerita a formação ideoló-gica a que ele está ligado. Desse modo, não se pode dizer que quem pl'Oduziu um discurso seja um burguês ou um proletário .

.. Esse é um falso problema. Senão vejamos. Bakhtin mostra

que a realidade da consciência é a linguagem. Os conteúdos da

consciência são lingüísticos. Segundo ele, sem linguagem. não se pode falar em psiquismo humano, mas somente em processos fisiológicos ou processos do sistema? nervoso. Não há, para ele, uma atividade mental independente da linguagem. O discurso não

(18)

é expressão de uma consciência, mas esta é formada pelo

con-junto de discur~os interiorizados pelo indivíduo. Se os discursos

são ·sociais, a consciência também o é.

A ideologia burguesa reluta em apoiar a tese de que a cons· ciência é social, pois repousa sobre o conceito de individualidade e concebe a consciência como o lugar da liberdade do indivíduo. No âmago do seu ser, ele estaria livre da opressão social. Desses conceitos derivam as idéias de uma liberdade abstrata de pensa· mento e expressão e de uma criatividade que ·seria preciso culti· var, pois seria a expressão da subjetividade da consciência indivi·

dual. No entanto, como a consciência é constituída de discursos,

ela é social. Não existe a liberdade absoluta do indivíduo

preco-nizada pela ideologia burguesa, pois o indivíduo é produto de

relações sociais.

O enunciador, enquanto ser social, é depositário de várias formações discursivas que existem numa formação social concre-. ta dividida em classes sociais distintas, embora, em geral, ele seja suporté apenas da formação discursiva dominante, aquela que materializa a formação ideológica dominante. Assim,· a análise do discurso não se interessa por saber se o enunciador real está

re-velando ou pcultando, com o discurso, sua posição de classe.

Aná· •

lise do discurso não é investigação policial. O interesse da análise

é pela ideologia transmitida pelo enunciador inscrito no interior

do discurso, ou seja, aquele que, no discurso, diz eu.

O enunciador real sempre vocafü:a as formações ideológicas existentes na formação social em que vive. Ao enunciar, revelan· do ou ocultando sua posição de classe, ele dá voz aos diferentes

agentes

do discurso, que são as classes ou as frações de classe de uma determinada formação social. Tolstoi era aristocrata, mas em seus romances ele dá voz, por exemplo, ao campesinato. O que é certo é que um enunciador não foge nunca a uma das for-mações discursivas da sociedade em que vive.

O discurso não é, portanto, o lugar da liberdade e da criação, ~

mas é o lugar de reprodução dos discursos das classes e das

frações de classe. O indivíduo não fala o que quer, mas o que as

formações discursivas querem que ele fale. Ele não fala, mas é

falado ·por um discurso. Quando se diz, porém, que cada classe tem o seu discurso, não se pode esquecer que, assim como a

·ideo-logia dominante é a da classe dominante, o discurso dominante é

o da classe dominante. Não se exclui, evident~ente, a

possibili-dade de o homem forjar discursos críticos, qiferentes, portanto, dos discursos dominantes. Só que o discurso crítico não surge do nada, mas está previsto numa formação social.

Se o sujeito do discurso não é um indivíduo, pouco importa• que seu discurso seja sincero ou mentiroso, ele estará sempre

(19)

manifestando alguma formação discursiva exfstente na sociedade. Mesmo quando cria outros mundos, como, por exemplo, na ficção científica, ele revela os valores, as carências e as angústias )>re- · sentes· numa dada formação social.

Conclusão

. . . .

Uma teoria geral da linguagem deve estar atenta. para as de- • • • terminações sociais que incidem sobre a linguagem e para a rela-fiva autonomia da linguagem em relação às formações sociais.

Para isso, unia teoria deve começar por distinguir níveis e dimen-sões determinados ou autônoroos, individuais ou sociais. O lin-güista deve ter presente a fala de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas;

"Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estãe> para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gen.te tem que necessitar de aumentar a cabeça para o total."

(20)

II. O DELITO SEMÃNTICO

"A semântica tortuosa dos demagogos transmudava o mal em bem e o bem

em mal, prenunciando a trágica noite da naufrágio de nossas mais puras tra-dições culturais."

Ernesto Geisel

O Discurso Lacunar: Algumas Opções Metodológicas

A "revolução" produziu uma enorme massa de discursos. Para tratar esses dados tivemos que tomar algumas decisões meto-dológicas. Em primeiro lugar, limitamos a nossa tarefa, principal-mente, ao estudo dos discursos do marechal Castelo Branco. Cre-mos que seus discursos são representativos do discurso do movi-mento militar de 64, porque, conforme constatamos, seus temas e as figuras invariantes estão presentes, em sua plenitude, no dis-curso do primeiro presidente pós-64 e porque, agindo o presidente, assim como todos os demais que se lhe seguiram, como delegado e representante do que se convencionou chamar "sistema", fala· ria a palavra do núcleo do poder. Ademais, como chefe de um poder executivo todo-poderoso, que tirou do legislativo muitos dos seus poderes, submetendo-o a seus desígnios por meio de uma maioria dócil e da cassação dos mandatos dos insubmissos, que subtraiu, por meio de atos institucionais, muitas das suas atividades da apreciação do judiciário, que conseguiu muitas vi-tórias políticas nos tribunais superiores, cassando alguns dos seus membros, aumentando ou diminuindo o número de juízes conforme seus interesses e suspendendo as garantias constitu· cionais de vitaliciedade e inamovibilidade da magistratura, o pre-sidente da República imprimia a linha a ser seguida nos discursos situacionistas. Além disso, todos os presidentes que se segui· raro ao marechal Castelo Branco apresentaram-se como

con-tinuadores da obra da "revolução de 64" e, assim sendo, não poderiam falar um outro discurso.

-Em segundo lugar, deliberamos

esc~lher,

dentro da massa de

dados, os pontos que serão analisados. O ato de conhecer é uma

interação entre o sujeito cognoscente e o objeto.

o

conhecimento

não é, como queriam os idealistas, apenas produto ou construção

da subjetividad_e, nem como ensinavam os _positivistas, produto ' da realidade objetiva. O sujeito desernpenhà um papel ativo no processo cognitivo. No entanto, deve-se entender que. o sujeito

(21)

não é uma subjetividade pura, mas uma consc1encia, que contém predileções, pontos de vista. _ l:nfim, uma visão de mundo, que resulta das condições materiais de existência. Essa subjetividade tem origens sociais e, por isso, ela não qualifica apenas um dado indivíduo. Assim, se ela é resultante dos condicionamentos sociais, exteriores ao indivíduo, é- uma subjetividade objetiva. Objetividade e subjetividade fundem-se no processo do conhecimento (Bakhtin, 1972, 21-22, 34; Marx, 1968, 59).

- Se o conhecimento é uma interação dialética do sujeito cog-noscente e do objeto, não há possibilidade de uma única leitura dos textos, mas abre-se a possibilidade de diversas leituras que

f> se fundamentam nas escolhas __ que fªz o analist_a. O texto a ser

analisado é um texto construído com base nos diferentes textos· ocorrência. Com isso, estamos alertando para o fato de que o texto construído não apresenta todos os programas narrativos, os temas e as figuras e os processos de enunciação que aparecem nos textos-ocorrência, mas somente aqueles elementos pertinentes de cada nível de análise que constituem invariantes do discurso

•• "revolucionário". A marcha da análise é um vaivém do texto cons· truído para os textos-ocorrência.

Este estudo pretende desvendar as lacunas do cfGcurso do poder. Como mostra Marilena Chauí (1981, 21), o discurso ideoló· gico é lacunar e sua coerência não existe, apesar dessa lacuna· ridade, mas graças a ela. Diz a mesma autora que ele é coerente e eficaz porque não diz tudo nem pode dizê-lo. O preenchimen· to das lacunas não corrigiria o discurso ideológico, mas destruí-lo-ia, porque retiraria dele a condição necessária de sua existên· eia e de sua força. Esta provém de uma lógica que poderia ser

chamada "lógica da lacuna, lógica do branco". ·

Este trabalho pretende mostrar as lacunas do discurso "revo-lucionário". Como, porém, mostrá-las, cingindo-se apenas ao tex-' • , to analisado? Há contradições facilmente demonstráveis no texto.

A presença, entretanto, de um único enunciador garante ·uma cer-ta homogeneidade ao discurso. Diferentemente, por exemplo, de uma peça teatral em que há vários enunciadores, manifestando -diferentes visões- da realidade, e em que não há, senão nas

mar-cas cênimar-cas (ou às vezes no coro que sublinha uma visão do real), um narrador que exerce uma função veridictória, apresentando enunciados que determinam o que ~- verdade e o que

é

mentira, o discurso político tem um narrador único, presente corno ator na narrativa. Se não há vários narradores, não há várias visões da narrativa. Para mostrar a ambigüidade da narrativa, é preciso • ouvir narradores diferentes. No caso de discursos que têm por função precípua transmitir uma ideoloiia, é preciso ouvir narra-dores diferentes, colocados em lugares sociais distintos e q\le te-nhal11;, por isso, ideologias _diversas. -.

(22)

Tendo levantado os diferentes conteúdos aII).bíguos, a opção por uma das versões da narrativa se faz com fundamento numa postura ideológica. Nota Rastier (1973, 93) que, quando Greirnas, · no começo da descrição da narrativa mítica, considera que o

me-nino que viola a mãe é um tr.aidor, ele o faz eqm base no conhe-cimento de uma axiologia social que tem as relações. sexuais entre mãe e filho na conta de interdições. Nada impede que, den-tro de ouden-tro. sistema social, o mesmo ator seja o· herói. Da

mes-ma formes-ma, os conteúdos investidos no discurso do poder ganham

um determinado valor na versão de um ·enunciador e outro na de um segundo responsável pela enunciação. O traidor de uma

versão será o herói de outra, o que é eufórico numa será disfó-rico noutra e assim sucessivamente.

Reconhecemos que nosso estudo é fundado numa visão de • mundo, pois não admitimos, conforme explicamos em outra par-te, a neutralidade científica. Há, porém, estudos que ficam na • · aparência do real e outros que procuram chegár até sua essência.

Quer este trabalho mostrar que

o

discurso do golpe de 64 tenta fazer crer que formas aparentes do real constituíam a realidade total.

O

Discurso

Construído: . Invariantes do

Discurso

de 64 a) O povo elegeu Goulart vice-presidente da República. b) Goulart tomou posse da presidência na vacância do cargo por renúncia do seu titular .

.,,, c) Goulart conduz o país para o· caos (subversão política, estagnação económica e corrupção).

d) A imprensa informa o povo do verdadeiro sentido dos atos de Goulart.

e) O povo, descontente com

a

siruação, desqualifica Goulart e qualifica as Forças Armadas para dirigir o país. ·

.. f) As Forças Armadas depõem Goulart, para .salvar o pals do

comunismo. .

g) As Forças Armadas repõem o país no caminho da ordem e do desenvolvimento e acabam com a corrupção. O que as Forças Armadas fizeram foi uma revolução; · não deram um golpe . de

Estado, ·

h) Há algumas dificuldades no presente, mas anuncia-se para o país uma época· de grande prosperidade e tranqüilidade em que o Brasil realizará o seu destino histórico de grande potência. Nes-se tempo, todos os brasileiros colherão os butos do deNes-senvolvi- desenvolvi-ménto.

i) Há alguns antipatriotas que pretendem contestar o regime. j) O que cada um deve fai:er, dentro do sistema,

é

trabalhar para o engrandecimento do Brasil.

(23)

1) As realizações da revolução em seu trabalho pelo cresci-mento do Brasil são X 11 X 2, X 3• • • • X n·

m) O coqflito que se travou no Brasil_ está irlserido na luta

entre a democracia e o comunismo. ·

Ao relacionar. as proposições invarián tes do discurso do po- · • " der, o que fizemos foi transformar os discursos-oêorrência em "discurso do descritor", ou sej~, reduzimqs as variantes a

inva-riantes. Os discursos-ocorrência nada mais fazem do que saturar j

semanticamente a forma abstrata acima exposta. '

A redução foi feita, limitando-se as sinonímias parciais. Cons-tituíram-se, assim, as classes de conteúdo a operar. Essas classes definem atores e processos. Para. chegar, entretanto, aos enun-ciados canónicos da narrativa, onde serão identificados estados e' transformações, . é preciso substituir os enunciados lingüísticos derivados por sua estrutura de base {Rastier, 1973, 97-98.) Isso será feito à medida que cada enunciado for sendo analisado. .

Deve-se notar que os enunciados narrativos serão

apresen-tados na ordem de sucessão no tempo da narrativa e não na.

ordem de manifestação no discurso lingüístico.

O Componente Narrativo e a Semântica do Componente Discursivo

A Eleição de Jango

1. O mecanismo democrático

O princípio sobre o qual se fundamentam as democracias . burguesas é o que está inscrito no artigo primeiro da

Constitui-ção do Brasil: "Todo poder emana do povo e em seu nome é

exercido". Nota Marilena Chauí {1980, 88-89) que o liberalismo concebe a democracia exclusivamente como um sistema político· que repousa sobre cinco postulados institucionais:

a) eleição dos governantes por melo de consulta popular pe-riódica, em que prevalece a vontade da maioria;

b) competição entre posições diversas de homens, gIUJ?OS ou partidos nas eleições;

c) liberdade de expressão e de divulgação de opiniões diver-gentes na competição;

d) proteção à maioria contra a perpetuação de um grupo no poder e à minoria contra o alijamento das assembléias em que se discutem e decidem questões de. interesse público;

e) proteção dada pelo judiciário ao cidadão contra o arbítrio. dos governantes e ao sistema 'contra o despotismo, submete_ndo

governantes e. governados ·ao império da lei, ou seja, da corisfi· tuição.

(24)

Não se pretende discutir aqui se esses postulados correspon·

dem ou não à realidade, quais são suas fraquezas e seus pont-os

falhas. Serão aceitas, para efeito de argumentação, da maneira como estão postos. Teoricamente, numa democracia, o povo é o detentor do poder. Por isso, nesse sistema político deve haver, peÍiodicamente, eleições livres em que os governantes são esco· lhidos pela maioria dos eleitores e as minorias estão represen· tadas no Parlamento. Isso se faz conjugando-se o sistema de elei· ções rnajoritárias com o sistema de eleições proporcionais>

O processo democrático pode ser analisado como uma série

de enunciados narrativos. Uma eleição é um contrato entre um

destinador e um destinatário-sujeito. O destinador é a maioria dos cidadãos de um país, de um Estado ou de um município nas eleições rnajoritárias ou· uma parte deles nas eleições proporcio-nais. O destinatário pode ser um homem, um grupo ou um par· tido. O contrato é unilateral, pois o destinador manifesta urna

proposição que pode ser interpretada como: D1 (destinador) quer

que D2 (destinatário) seja governante e faça aquilo que ele propôs

fazer em seu plano de governo; o destinatário, por sua vez, as·

sume o compromisso que não_ é senão o dever de D2 de execut:rr

o querer de D1• O contrato unilateral é composto de uma deter·

minação e uma aceitação. Por isso, o contrato altera o. estatuto

de cada participante. No momento em que se dá o contrato (elei·

ção), o destinador torna o destinatário-sujeito competente segundo o poder, pois lhe transmite o /poder-fazer/ (todo poder emana do povo), embora não renuncie a ele (o povo é sempre detentor do poder), mas ao seu exercício direto (o poder é exercido em nome do povo). Ocorre, aqui, o dom do /poder-fazer/, porque a

uma atribuição do objeto a D2 corresponde uma renúncia por parte

de D1• O destinador atribui o poder ao destinatário e ren_uncia a seu

exercício.

O contrato estabelece um dever-fazer para D2 (prescrição) e,

ao mesmo tempo, institui um /não-poder-não-fazer/ (obediência), que implica um /poder-fazer/. Correlacionados o /dever-fazer/ de

D2 , que é conforme com o /querer/ de D1, e o

/não-poder-não-fazer/, que obriga o governante a fazer aquilo que está previsto no plano de governo, o /poder-fazer/ daí resultante poderia ser denominado "liberdade vigiada".

No final da execução do fazer do sujeito (fim do mandato). o destinador (povo) exerce a sua sanção sobre seu fazer. A sanção executada pelo destinador é cognitiva e pragmática, positiva ou negativa. Se o sujeito cumpriu as obrigações contratuais recebe a recompensa (positiva). Em caso contrário, sofre a punição (ne-gativa). No sistema democrático, se a sanção cognitiva e pragmá-tica for positiva, o destinador tem como recompensa a ·

(25)

atri-buição do poder por um outro período determinado (novo

man-daw).,Se for negativa, a punição ser-á,a-cas&açãe,oo:poder atribuído anteriormente (não-reeleição). O poder e o querer são intrínsecos à

condição de cidadão. -,

Para que haja democracia é preciso que haja competição liV're entre os concorrentes ao papel de contratante com o povo. O des-tinador, então, escolhe seu destinatário. Desse modo, o contrato é precedido por uma outra operação da ordem do saber em que programas virtuais de fazer (programas de governo) são propos-tos para o destinador. Essa operação é cognitiva e pressupõe um fazer persuasivo dos que pretendem ser o destinatário do /poder-fazer / atribuído pelo povo e um /poder-fazer interpretativo do destina-dor do poder. Os diferentes candidatos procuram comunicar um objeto do saber (plano de governo), modalizado como verdadeiro. Os eleitores exercem um fazer interpretativo que procura avaliar o objeto a partir da sua visão de mundo.

:a

um fazer dedutivo, que tem um estatuto formal comparável ao do raciocínio mate· mático: "os teoremas que se podem deduzir de um axioma dado são corretos, mas não são verdadeiros no sentido estrito do ter-mo; seu valor de verdade depende inteiramente da verdade dos enunciados constitutívos do axioma" (Greimas, 1976, 188). Assim, os eleitores estabelecem a

verdade/falsidade/mentira

do objeto transferido, com base em valores da sua visão de mundo, tomada

como

um axioma.

o

saber que adquirem, nesse caso' não é

neces-sariamenie verdadeiro, mas é correto em relação à sua ideologia. Nessa operação de transferência do saber, os candidatos são des-tinadores e o povo é o destinatário. Os candidatos apresentam-se como sujeitos competentes segundo o saber. Tendo o povo reali-zado o fazer interpretativo, realiza a seleção de um dos progra- ', mas e quer que ele seja executado. Para isso, sendo o destinador segundo o poder, conced~ a competência /poder-fazer/ ao candi· dato escolhido, que é o destinatário segundo o poder, o querer e, agora também, segundo o sâber.

O discurso político é_ essencialmente persuasivo. Distingue-se em discurso político da situação e da oposição.

o

discurso situa-cionista é o diSCW"sa da prestaçãa .de contas, ou seja,. aquele que visa a persuadir o destinàdor da sanção de que o que foi contratado foi cumprido e de que, por isso, o sujeito deve receber uma san· ção positiva no plano cognitivo e no plano pragmático. O díscurso oposicionista pretende mostrar que

o

fazer não foi executado ou que foi danoso ao povo e que, por isso, o sujeito deve sofrer uma sanção negativa. Além ·disso, propõe a execução de um outro fa. zer e, para isso, deseja obter o poder de que o povo é detêntor. Situação e oposição desejam fazer com que o povo atribua a um partido e não a outro o poder. A eleição é, antes _de mais nada, um conflito de manipuladores, em que o povo escolhe um deles~

(26)

É fundamental, para que haja processo democrático, que pos· sa haver competição entre pessoas, grupos ou partidos, o que im· plíca a possibilidade de alternância no poder, ou seja, que exista uma relação entre desapossameI1to_e atribuição do poder. Não pode, entretanto, haver uma oposição entre desapossamento e atribuição, pois cada uma dessas operações não é a projeção si -métrica da outra. A relação entre elas é, então, urna relação fun. dada em um princípio de sucessão. No entanto, como cada um dos termos sucessivos projeta a sua imagem invertida, ocorrendo uma relação entre desapossamento e atribuição, devem essas trans-formações estar correlacionadas, respectivamente, com a apropria-ção e a renúncia. O povo, na eleiapropria-ção, apropria-se do poder que atribuíra a um destinatário e, por conseguinte, desapossa-o dele. Em seguida, atribui-o a outro destinatário ou ao mesmo e renun·

:i.;. eia a seu exercício direto. A eleição

é

o momento em que há

nítida distinção entre o poder' e o seu ocupante, ou seja, entre objeto modal e sujeito.

As categorias semânticas usadas no discurso são temporali-zadas e, então, articulam-se numa nova categoria

/permanência/ vs. /incidência/ que é a adaptação ao tempo da categoria

/contínuo/ vs. /descontínu()/.

O discurso aparece, então, como uma sucessão de permanências e de incidências. Uma incidência deve necessariamente intercalar-se entre duas permanências, para que elas possam ser tom.adas como distintas. O tempo articula-se na manifestação com um aspecto, que é a maneira como um observador percebe a temporalidade. Para ele, a permanência é durativa, enquanto a incidência é pon-tual. O encadeamento de /permanência/ e de /incidência/ só se transforma em processo se a /pontualidade/ é marcada como o fim (terminatividade) ou o começo (incoatividade) do processo de /duratividade/. As temporalidades podem ser denominadas e "' investidas de um conjunto de determinações semânticas. O pe·

riodo

é uma "permanência denominada" e o

acontecimento

é uma "incidência denominada" (Greimas, 1976, 71-72).

Dentro do processo democrático de transferência de poder, a eleição é um acontecimento, enquanto o tempo de governo e a legislatura são um período, A incidência, articulando-se com o va-lor aspectual /pontualidade/,

é

início de um período Uini::oativi· dade/) e fim de outro (/terminatividade/). O que caracteriza o processo democrático é que o período é re~ar, ou seja, tem um tempo de duração delimitado

a priori.

Não se pode, sem que se resvale na tirania, aumentar a duração do período, enquanto ele transcorre, sem consulta à população. Da mesma forma, não

(27)

2. A eleição de Jânio e de Jango

O discurso "revolucionário" não faz referência ao fato de que Goulart recebeu o poder do povo dentro de um processo formal-mente democrático e que sua posse na presidência se deu de acordo com os mecanismos previstos na Constituição de 1946 para os casos de vacância do cargo de presidente.

O discurso "revolucionário" escamoteia esse enunciado, por-que pretende mostrar por-que Jango é por-que rompeu a legalidade de-mocrática. Entretanto, como os elementos constituintes da gramá-tica sêmio-narrativa se pressupõem logicamente, pode o analista,

por meio de catálises1, estudar os enunciados implícitos. Como

apa-rece na estrutura de superfície a ruptura do contrato, que será

analisada mais adiante, deve-s~ pressupor seu estabelecimento.

As eleições brasileiras eram, teoricamente, uma disputa entre partidos ou coligações de. partidos. Concorreram, em 1960, três candidatos: Jânio da Silva Quadros, candidato do PDC e apoiado por outros quatro partidos, inclusive a UDN, o maior partido de oposição na época; o marechal . Henrique Teixeira Lott, candidato da coligação situacionista formada pelo PSD-PTB e que tinha tam-bém o apoio dos comunistas, nacionalistas e grupos de direita; Ademar de Barros, que concorreu como candidato independente, sustentado pelo PSP. Jânio foi eleito presidente, em 3 de outubro de 1960, .com 48% do total de votos. A legislação eleitoral bra-sileira da época determinava que- a votação para presidente e vice-presidente fosse separada. João Goulart, candidato a vice-pre-sidente pela coligação PSD-PTB, foi reeleito, derrotando os com-""" panheiros de chapa de Quadros, Milton Campos (UDN) e Fernan-. doFernan-. Ferrari (PDC)Fernan-. Pelo resultado das eleições, percebe-se que a

disputa entre partidos _era apenas teórica.

Não se pode dizer que houve uma sanção negativa à coligação

PSD-PTB, porque seu candidatÕ à vice-presidência se reelegeu

com 309.000 votos· à mais do que os companheiros de chapa de

Jânio. Houve uma sanção positiva à atuação de Goulart e uma atribuição de poder a Jânio, que realizou urna campanha perso-nalista e não vinculada a qualquer partido, baseada, principal-mente, no tema da "erradicação da corrupção". 2 Os partidos e os

candidatos são os atores do fazer persuasivo que precede o con-. trato, embora, no Brasil, possa-se dizer que os verdadeiros atores

do prélio eleitoral sejam os candidatos. 3

3. A posse de Jango

No dia 25 de agosto de 1961, Jânio renuncia ao cargo de pre-sidente da República. A renúncia é uma disjunção reflexiva. Jânio.,

Referências

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