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A dialética como método investigativo em Aristóteles?

Fernando Martins Mendonça1

Resumo: Nas últimas décadas, intérpretes de Aristóteles tem aceitado que a dialética cumpre papel fundamental na filosofia aristotélica ou (i) como o método investigativo mais apropriado às ciências cuja exigência de rigor não deve ir além de uma abordagem aproximativa e geral do objeto de estudo (cuja instância mais destacada é a ética), ou (ii) como o único método, não apenas apropriado, mas habilitado para descobrir os princípios primeiros e indemonstráveis de cada uma das ciências particulares, ou (iii) uma concepção que pretende adequar consistentemente as duas alternativas anteriores. A justificação de (i) é feita por meio de textos em que Aristóteles recorre à opinião, seja ela popular ou de filósofos, para iniciar seu próprio caminho argumentativo, e/ou textos em que Aristóteles diz que a abordagem que fará é de caráter geral e aproximativo. A justificação de (ii) se encontra nos Tópicos I.2, em que Aristóteles concede à dialética o caminho aos princípios das ciências. Defenderei que (a) nenhuma dessas interpretações se sustenta, (b) que elas criam uma concepção prévia da filosofia aristotélica que prejudica a leitura de Aristóteles e que (c) instrumentos de investigação considerados dialéticos não são mais do que instrumentos amplamente difundidos entre diversos domínios argumentativos.

I

Não é nova, nas inúmeras tentativas de interpretação da filosofia aristotélica, a investigação em busca de um ou mais métodos que, descobertos ou sistematizados por Aristóteles, seriam o modelo que Aristóteles não só prescrevera aos diversos domínios do conhecimento, como também cumprira ele mesmo os requisitos metodológicos prescritos por esses métodos. Notadamente, pensou-se durante algum tempo que, por exemplo, os Segundos Analíticos, exerceriam tal função prescritiva em relação à ciência, o que levou um número grande de intérpretes a tentar adequar o procedimento aristotélico dos tratados científicos às regras demonstrativas desse tratado.

Semelhantemente, um método investigativo adequado aos domínios do conhecimento cujo rigor demonstrativo demandado é menor do que o rigor demandado na geometria, por exemplo (Ethica

Nicamochea I 3 1094b 22-272), dando conta de objetos cujo conhecimento possível não é mais do que

aproximativo, tem sido, ao longo das últimas três décadas, tema e importante debate entre os estudiosos de Aristóteles. Particularmente marcante nesse debate foi o artigo Tithenai ta Phainomena de Owen (1986), publicado originalmente em 1961, que mostrou ser ambíguo o uso do termo

phainomenon3

1 Doutorando no PPG Filosofia da Unicamp. Email: mendoncaphilosophos@gmail.com

feito por Aristóteles, denotando não apenas fatos, como comumente aceito até então, como também opiniões aceca do que está sob investigação.

2 Nas próximas ocorrências dessa obra, usarei a abreviatura ‘EN’. Também para outras obras usarei as seguintes abreviaturas: para o Tópicos, ‘Top’ e para a Ethica Eudemia, ‘EE’.

3 Também os termos ‘epagoge’ e ‘aporia’ teriam uma denotação ambígua na medida em que poderiam se referir tanto a fatos empíricos como a um domínio linguísticos (Owen, 1986).

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A melhor evidência disponível nas obras aristotélicas mostrando um domínio linguístico denotado por phainomena em um contexto investigativo se encontraria em EN VII 1 1145b2-7, em que a referência dos phainomena que se deve estabelecer é dada pelo substantivo endoxa, que significa ‘opiniões reputadas’.

Como em outros casos, nós (i) devemos estabelecer as aparências [tithentas ta

phainomena], e antes de mais nada (ii) seguir através de perplexidades

[diaporēsantas]. Desse modo, (iii) nós devemos provar as opiniões comuns [endoxa] sobre esse modo de ser afetado – idealmente, todas as opiniões comuns, mas se não todas, a maioria delas e as mais importantes [ta pleista kai kuriōtata]. Pois se as objeções são resolvidas, e as opiniões comuns permanecem, isso será uma prova [dedeigmenon] adequada [hikanōs]. (EN VII 1, 1145b 2-7)

A sequência do texto discrimina quais são então os endoxa estabelecidos como phainomena, sendo seguido pela afirmação de que a tese socrática que nega a possibilidade da acrasia claramente contradiz os phainomena (EN VII 2 1145b28). Tal afirmação comprova que ‘phainomena’ não pode se referir a fatos no mundo nesse contexto, pois nada no texto oferece essa possibilidade. Assim, a única referência possível para esse termo é a noção de endoxa. As proposições expressadas por tais endoxa seriam, segundo o texto da EN, objeto de um procedimento diaporético cuja função é examinar a consistência dessas proposições em um corpo de conhecimento. Se, eventualmente, alguma dessas proposições se mostrar inconsistente com o corpo de conhecimento a que pertence, ela deve ser descartada, ou enunciada mais precisamente. O resultado esperado é um conjunto de proposições maximamente consistente em que aquelas mais importantes resistem ao teste e são, por isso, consideradas provadas suficientemente.

Mas o que são endoxa? Nos Top, Aristóteles diz que endoxa é “o que parece a todos ou à maioria ou aos sábios, e para esses, ou a todos, à maioria, ou aos mais conhecidos e reputados (endoxois)” (I 1 100b21). Linhas antes, logo na abertura dos Top, Aristóteles diz que “O objetivo desse estudo é encontrar um método com o qual seremos capazes de fazer deduções a partir de premissas aceitáveis (ex endoxon) acerca de qualquer problema proposto e, submetidos nós mesmos ao argumento, não dizer nada inconsistente.” (I 1 100a 18-21). O método buscado nos Top é a dialética, e diante a esses dois trechos, diversos intérpretes julgam que endoxa é o domínio da dialética e que a definição de endoxa é o fato de ser algo que seja aparente para todas as pessoas, ou a maioria delas, ou aos sábios, e dentre desse, todos, ou a maior parte ou os mais conhecidos e reputados.

Mais do que um método que busca proceder por meio de raciocínios dedutivos a partir de endoxa, a dialética é apresentada nos Top como possuindo três utilidades. Ela é útil para os exercícios (gymnasia), já que é um método que mais facilmente permite o ataque dialético. Ela é útil para os encontros, porque nos permite tratar de opiniões próprias a quem nos dirigimos e não daquelas estranhas a ele, permitindo-nos mudar sua mente acerca do que nos falou de modo incorreto. Ela é útil, enfim, para as ciências filosóficas, pois permite-nos mais facilmente fazer uma diaporia para cada um dos lados, discernindo o verdadeiro e o falso. Também é útil em relação ao primeiro dos princípios de

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cada ciência, pois a ciência em questão parte de princípios apropriados e lhe é impossível dizer algo sobre eles, pois os princípios são primeiros de tudo. É por meio das opiniões reputadas sobre cada um deles que é necessário os discutir e isso é próprio ou mais apropriado à dialética, pois sendo examinadora, ela tem um caminho para examinar os princípios de todos os estudos.

Assim, a passagem metodológica apresentada em EN seria o exemplo mais claro do modo de operação do método dialético. Primeiramente, os endoxa relevantes seriam estabelecidos e analisados em relação à sua consistência como um corpo de conhecimento e clareza em seu enunciado. Havendo problemas de consistência ou clareza, um exame diaporético deve ser realizado e, assim, determinar quais das proposições são verdadeiras e quais falsas. O resultado, um corpo de conhecimento maximamente consistente, deve ser, então, assumido como prova.

Esse quadro rapidamente aqui apresentado configura-se como o principal ponto de apoio da defesa do papel heurístico da dialética. O artigo citado de Owen marca apenas o início de uma corrente interpretativa da filosofia aristotélica que toma a dialética como um método profícuo de descoberta dos princípios dos quais partem as ciências. Esse trabalho, dada suas dimensões e intuito, não visa mostrar nem todas e nem as principais teses levantadas por intérpretes ao longo das últimas décadas. Cumpre salientar que tais teses ou defendem, por um lado, um modelo dialético difuso por toda a filosofia aristotélica e operando em cada contexto em que Aristóteles apela à opiniões populares ou de filósofos, ou quando ele apela às explicações chamadas logikõs, buscando sempre conhecer algum princípio comum ou específico das ciências. Ou, por outro lado, defendem a dialética como um método investigativo que operaria com um escopo mais limitado, quando, por exemplo, diz buscar conhecer o objeto de investigação de modo apenas aproximado, sem dele exigir a acuidade presente nas demonstrações geométricas. Em comum, todas essas interpretações tomam a dialética como o método usado por Aristóteles para fazer análise linguística ou semântica. Desse modo, intérpretes, como Evans (1977) e Nussbaum (2001) tem defendido que Aristóteles usa o método dialético como fio condutor para reabilitar a importância das opiniões e das aparências, propondo uma filosofia intermediária entre o relativismo sofista e o realismo platônico, em que o modo em que o mundo aparece para nós, os phainomena, é tudo aquilo a que temos acesso epistêmico e, por isso, a partir dele chegamos apenas a conclusões aproximativas, cujo valor de verdade revela a aceitabilidade das proposições que as expressam.

O quadro apresentado é sem dúvida sedutor, pois introduz uma filosofia metodologicamente unitária, cujos expedientes usados por Aristóteles não só respondem ao problema do conhecimento dos princípios, como também reabilitam o domínio da opinião comum e da aparência outrora desqualificados por Platão. No entanto, uma leitura cuidadosa dos Top pode mostrar que Aristóteles atribui à dialética um papel mais limitado e específico. E é importante justificar por que os Top devem ser tomados como texto base para a tentativa de compreender o papel da dialética em Aristóteles. A razão principal parece óbvia e trivial, porém, a despeito dessas características, não tem sido levada a sério por muitos intérpretes, qual seja, Top é obra em que Aristóteles tem por objeto de

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estudo a dialética, por isso, o que quer que seja apontado como procedimento dialético alhures, deve ser justificado pela teoria dos Top, e não o contrário4. O descumprimento dessa regra pode criar um conjunto de interpretações arbitrárias da dialética aristotélica na medida em que são assumidos certos procedimentos como sendo dialéticos e cuja justificação, pelos textos dos Top, é ulterior a tal assunção. Seria algo semelhante a se tomar certos procedimentos como sendo científicos e, após assumi-los como tais, tentar mostrar que certos textos do Segundos Analíticos se adequam a eles. Ou ainda, usar referências genéricas sobre a virtude espalhadas em diversas obras, assumindo-as como uma teoria acurada, tomando a doutrina da virtude presente nas Éticas apenas como um corolário. Por essa razão, proponho o caminho inverso a esse apontado, assumindo os Top como o texto fundamental em que Aristóteles trata da dialética. Para tanto, uso duas estratégias. A primeira é comentar esses mesmos textos dos dois primeiros capítulos dos Top usados pelos comentadores que assumem a dialética como um poderoso método heurístico. A segunda é mostrar que certos procedimentos usados pela dialética não podem ser entendidos como dialéticos, no sentido de serem instrumentos próprios da dialética, mas devem ser considerados como instrumentos de análise linguística ou argumentativa dominadas por um falante competente.

II

Que a dialética é um tipo de debate argumentativo, é claro. A questão que importa é decidir se a dialética é algo mais que tal debate e, caso seja, como ela opera. Independentemente de como se compreende a operação dialética, a noção de endoxa indubitavelmente exerce nela um papel importante. Afinal, é a partir de endoxa que parte o raciocínio dialético, como diz Aristóteles logo na primeira frase dos Top.

O objetivo desse estudo é encontrar um método com o qual nós sejamos capazes de construir deduções a partir de premissas aceitáveis [endoxa] a respeito de qualquer problema proposto e – quando estivermos nós mesmos submetidos a argumento – não dizermos nada inconsistente. (I 1, 100a 18-21)

Embora o nome ‘dialética’ não apareça nesse trecho, é certo que Aristóteles está atribuindo-lhe a propriedade de ser um método que lida com deduções a partir de endoxa sobre qualquer domínio e que permita a defesa consistente de um argumento. Não é claro, contudo se esse predicado é um enunciado definiens, ou não5

4 Como faz, por exemplo, Evans (1977), que parte de referências genéricas à dialética na Metafísica, para dizer em que a dialética consiste.

. No entanto, individualmente consideradas, as propriedades atribuídas à

5

É bastante difícil decidir-se sobre esse problema. Pode-se dizer que não se trata de um enunciado definiens, pois a dialética não opera apenas com dedução, mas também usa indução (Top I 12), e também não é apenas de

endoxa que parte o silogismo dialético, como se verá abaixo. A intenção de Aristóteles nesse trecho seria

simplesmente apresentar de modo vago aquilo cujo exame que se seguirá. No entanto, a indução talvez seja apenas um tipo de argumento secundário no contexto dialético usado para a formação de premissas e, por isso, não faz parte da definição da dialética.

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dialética nesse trecho não são próprias da dialética. A justificação completa dessa afirmação ultrapassa o âmbito desse trabalho, mas me deterei na análise dos endoxa, pois essa noção, julgo, tem sido mal entendia e é um dos elementos mais importante para definir o papel investigativo da dialética.

O termo ‘endoxa’ não é objeto de análise nos Top. Aristóteles parece assumir que sua audiência tem domínio sobre o sentido e a referência dessa noção6, o que faz crer que não se trata de um uso técnico afastado do uso que dele se faz na linguagem ordinária. Assim, Aristóteles não cria um domínio discursivo em que certas doxas teriam propriedades especiais que as fariam portadoras de verdade de um certo tipo ou de probabilidade. Endoxa são opiniões aceitas por certas pessoas ou grupo de pessoas e, por isso, dotadas de alguma estima ou valor. É a isso que Aristóteles se refere quando diz que endoxa é “o que parece a todas as pessoas, ou à maioria delas, ou aos sábios – a todos eles, ou à maioria, ou aos mais famosos e estimados [endoxois]” (Top I 1 100b 21-23)7

Outra passagem, estranhamente ignorada por muitos intérpretes, ajuda-nos a entender melhor o quadro que envolve a função de endoxa. Diz Aristóteles:

. ‘Endoxa’, em contexto dialético, é usada para se referir a certa doxa dotada de valor ou estima derivado de sua aceitação por alguém. E sua importância dialética, que a faz ser aquilo do que parte o silogismo dialético, decorre justamente do fato de que ela deverá ser aceita pelo interlocutor em um debate. Ora, o debate, que supõe um perguntador e um respondedor, se inicia com um problema que é uma pergunta da forma “É o caso de x, ou não?”. O respondedor se compromete com uma das alternativas e tentará defender, por meio de respostas afirmativas ou negativas, se ele aceita ou não algo perguntado pelo perguntador. O perguntador, necessariamente, tem que formular suas questões em proposições aceitas, por isso endoxicais, pois depende da aceitação do respondedor para poder vencer o debate mostrando que o respondedor aceita uma proposição qualquer que é inconsistente com as outras proposições que também foram aceitas.

6 Barnes (1980) questiona o que significa o adjetivo endoxos e oferece uma interessante consideração filológica sobre a noção de endoxa: “And the first question here is a simple one: what does the adjective ‘ἔνδοξος' mean? There are two traditional answers, both inspired by Boethius' Latin translation, in which he regularly turns ‘ενδοξος’ by 'probabilis'. Some transliterate 'probabilis' and get 'probable'; others translate it to get 'plausible' or 'credible': τά ἔ νδοξα , then, are either objective probabilities or subjective plausibilities. But neither 'probable' nor 'plausible' is either probable or plausible as a translation of 'ἔνδοξος': nothing in Aristotle indicates that ' ἔ νδοξος ' has either of those senses in his philosophical idiolect (he possesses the word 'εἰ κός' and 'πιστός'): nor does Greek usage or etymology offer support. Recognizing those facts, modern scholars prefer a different rendition: for 'τά ἔ νδοξα' they give 'received opinion', 'accepted opinion', or the like. Τά νδοξα may be probable, and they may be plausible; but if so, they have those properties by accident: essentialy, and ex vi

termini, they are accepted opinion. […] But it has two interrelated disadvantages: first, it does not offer a

translation of the adjective ' ἔνδοξος ', but only of the phrase 'τά ἔ νδοξα ': and secondly, it pays no attention to the linguistic context from which the phrase 'τά ἔ νδοξα' is drawn. Perhaps, τά νδοξα are received opinions; but if they are, that does not tell us what the phrase 'τά ἔ νδοξα' means.”. Mostrando que a noção de endoxa é enraizada no uso da língua grega, Barnes conclui: “The meaning of ' ἔνδοξος' in all those passages is unproblematical: ' ἔνδοξος ' translates as 'reputable', 'of good repute'; and it is closely connected with that use of 'δόξα' in which it means 'reputation'. […]' ἔ νδοξος' has a uncontroversial ordinary meaning. Aristotle nowhere indicates that the adjective takes on a special sense in his phrase 'τἀ ἔ νδοξα '. There is, then, no reason to suspect him of semantic innovation: 'τά ἔ δνοξα' means 'the reputable things': to collect τένδοξα is to collect the reputable views. (BARNES 1980 p.498-500)

7 Não deixa de ser curioso que Aristóteles use o adjetivo ‘endoxos’ para se referir ao conjunto de sábios mais estimados.

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Uma premissa dialética é o perguntar algo aceitável [endoxon] para todas as pessoas, ou para a maioria delas, ou para o sábio (isto é, para todos, a maioria, ou os mais famosos), desde que não seja contrário à opinião [paradoxos](pois qualquer pessoa concederia o que o sábio pensa, desde que não seja contrário à opinião de muitos). Premissas dialéticas também incluem: coisas que são similares ao que é aceitável; os contrários de coisas que parecem ser aceitáveis, antecedidas por negação; e opiniões que sejam derivadas de qualquer arte estabelecida. (Top I 10 104a 8-15)

Essa passagem notoriamente mostra ‘endoxa’ como um atributo de proposições que formarão premissas dialéticas. E tal atributo não é importante por criar um reino de proposições adequadas à dialética e tão somente à dialética. Sua importância se deve pela necessidade que o perguntador tem de ter sua proposição aceita. Assim, diz Aristóteles:

Nem toda premissa ou todo problema deve ser contado como dialético: ninguém em perfeito juízo toma como premissa o que ninguém pensa, ou faz um problema do que é evidente para todas as pessoas ou para a maioria delas, já que a última não contém dificuldade, enquanto ninguém concederia a primeira. (Top 104a 4-8)

Essas considerações nos permitem tratar da contraposição que Aristóteles faz entre premissas dialéticas e premissas científicas logo em Top I 1. Premissas científicas são verdadeiras e primeiras, não tento sua convicção devida a nada outro, mas por si mesmas, ao passo que premissas dialéticas são endoxa, ou seja, sua convicção é devida à aceitação de sua proposição pelo respondedor (100b18-23).

Apesar de cumprir papel capital no exercício dialético, não há nada que implique ser os endoxa domínio exclusivo da dialética. Aristóteles apenas afirma que a dialética opera com endoxa. Entender que ser endoxal é uma característica das proposições de um domínio exclusivo da dialética, seria análogo a entender que a somente a ciência opera com a verdade, pois as premissas científicas tem que ser verdadeiras.

Se eu estou certo, as ocorrências de ‘endoxa’ necessitam de uma leitura mais cuidadosa que considere também o contexto em que o termo ocorre, ou corre-se o risco de interpretar dialeticamente, empregando toda uma bagagem conceitual e uma concepção prévia do intuito do argumento aristotélico, algo que não é dialético nem em natureza, nem em procedimento8

Tendo isso em mente, podemos agora nos deter no exame de certas ferramentas que a dialética deve fazer uso. Tentarei mostrar que, assim como no caso dos endoxa, noções frequentemente usadas por intérpretes para afirmar que certos argumentos são dialéticos, não podem ser assim entendidos.

.

8 Detive-me na análise da noção de endoxa por ela estar presente logo na primeira caraterização da dialética nos Top. Julgo que os resultados que apresentei sobre essa noção também ocorrem semelhantemente se analisarmos outras noções consideradas dialéticas por muitos intérpretes, como a de argumento logikõs, diaporia, mais conhecido para nós, dentre outras. Obviamente, esse trabalho não comporta uma análise de cada uma dessas noções.

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III

Em Top I 13, Aristóteles elenca algumas ferramentas argumentativas úteis para a dialética. São quatro: capacidade de obter premissas, distinguir em quantos modos um termo é dito, encontrar diferenças e examinar semelhanças, sendo, em um modo, as três últimas também modos de formar premissas (105a21-26). Em Top I 18 108a 18-21, Aristóteles afirma que o exame dos modos em que um termo é dito é útil para a clareza do argumento, possibilitando que se fale da coisa e não do termo, bem como trazer à luz a relação entre aquilo de que se fala e o predicável e a categoria que lhe é atribuído. Em geral, é usando dessas ferramentas que Aristóteles estabelece o exame dos endoxa, seja nos Top, seja em outras obras. Não parece plausível admitir que distinguir diferentes sentidos de um termo e estabelecer semelhanças e diferenças seja uma habilidade dominada apenas pelo dialético. Aristóteles, mesmo, diz que conhecer múltiplos sentidos de um termo é útil para sofística ou erística (Top I 18 108a 33-34). No entanto, podemos assumir que tais habilidades são de domínio de qualquer falante competente de uma língua. Obviamente, um falante competente terá um domínio menor dessa habilidade do que um dialético, ou um filósofo. Por exemplo, saber os múltiplos sentidos de ‘ser’, ou de ‘bem’, demanda um domínio de conhecimento muito maior do que saber se o termo ‘macaco’ significa ‘animal’ ou ‘máquina’ (Top I 15 107a18-19). Ambos, no entanto, estão sob a mesma capacidade linguística. Em razão disso, parece-nos bastante apressado afirmar que há um procedimento dialético onde quer que exames linguísticos desse modo apareçam.

Um exemplo da Ética Eudemia pode ser aqui rapidamente descrito:

Depois disso, nós devemos primeiramente perguntar o que a virtude do caráter é, e – já que isso é equivalente a – quais partes ela tem e por quais meios ela é produzida. Como em outros casos, todos vão para a investigação com algo em mãos, nós devemos assim conduzir nossa investigação e tentar chegar ao que é dito verdadeiramente e claramente através de coisas ditas verdadeiramente mas não claramente. Até agora, é como se estivéssemos numa situação que em soubéssemos que a saúde é a melhor disposição do corpo e que Corisco é a pessoa mais negra no mercado. (EE II, 1 1220a 13-20)[Tradução de Michael Woods]

Nesse texto, Aristóteles introduz o procedimento que levará à definição de virtude de caráter, noção central para sua ética. Para tanto, ele usa a fórmula ‘dizer verdadeiramente e claramente o que não foi dito claramente e nem verdadeiramente’. Alguns intérpretes9

9 Woods (1992 p.58, p.97); Irwin (1988, p. 348)

veem nesse texto um procedimento dialético porque baseado numa análise linguística de esclarecimento de termos. Interpretar assim essa passagem aparentemente causa um prejuízo sério para o entendimento do argumento aristotélico, pois todo o procedimento seria baseado apenas em algo aproximado da verdade, de natureza ainda imprecisa, quando o que Aristóteles visa é criar condições para estabelecer um enunciado definitório que permita não só identificar casos corretos de virtude como também dizer

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a causa da virtude.

Prejuízo interpretativo ainda mais claro é compreender a passagem metodológica de EN VII, citada acima, como introdutória de uma análise dialética da acrasia que daria lugar a um argumento physikõs que mostraria a causa da acrasia. Tal interpretação, ao atribuir um caráter mais fraco aos argumentos que antecedem o argumento physikõs, não consegue compreender que a refutação da objeção socrática à acrasia se dá, em grande medida, nesses mesmos argumentos que antecedem o argumento physikõs o qual, por sua vez, apenas aponta de modo abreviado a causa da acrasia.

Assim, novamente temos uma situação que compromete o entendimento do argumento de Aristóteles se não se observa cuidadosamente o desenvolvimento do argumento aristotélico ao assumir que se trata de um procedimento dialético. A causa dessa confusão é, ao nosso ver, a má compreensão do que Aristóteles compreende como dialética. A prática dialética é um debate entre pessoas, que requer, de um lado, um perguntador e, de outro, um respondedor. A conclusão do argumento já é conhecida de antemão. Cabe ao respondedor se comprometer com essa conclusão, enquanto o perguntador deve tentar vencer o debate mostrando que o respondedor não tem um conjunto de proposições consistentes entre si acerca da conclusão. Para tanto, os debatedores que executam com sucesso essa função devem dominar uma gama incrivelmente extensa de habilidades que vão do uso competente da linguagem ordinária ao uso de noções lógicas bastante avançadas e até mesmo um domínio intuitivo de noções ontológicas. Mas tais habilidades são compartilhadas por outras atividades intelectuais, dentre elas a Filosofia.

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