Reprodução e sexualidade: transformações
e permanências de valores relativos ao
desejo de filhos entre casais de camadas
médias no Rio de Janeiro, Brasil.
6ta CONFERENCIA INTERNACIONAL IASSCS - PLACERES DES/ORGANIZADOS: Cuerpos, Derechos y Culturas en
Transformación, Lima-Peru, 2007.
Autor: Eliane Portes Vargas.
Instituição: Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde/IOC/Fiocruz.
O tema da pesquisa
Este trabalho integra uma pesquisa sobre ‘casais inférteis’ em
camadas médias no Rio de Janeiro, Brasil*. Ele tematiza os usos e valores do desejo de filhos em um grupo definido
culturalmente por uma configuração moderna de valores cuja principal característica recai no indivíduo como valor.
*Tese de doutorado orientada por Jane Araujo Russo
O foco do estudo
O estudo focaliza a não-reprodução involuntária entre casais
heterossexuais em um universo cultural que valoriza a
‘escolha’ pessoal e a ‘liberdade’ individual nas questões de trato íntimo. O objetivo foi analisar a construção da decisão reprodutiva no que concerne às relações conjugais e
Pressupostos
Tanto a experiência reprodutiva quanto a sexual
contemporânea enfatizam a primazia da representação de uma suposta liberdade de escolha com significativas diferenças de gênero. O denominado ‘casal infértil’ pela biomedicina foi analisado com relação às diferentes narrativas da infertilidade e aos modos de interpretação predominantes na produção de discursos e práticas sobre o tema que, em última instância, se associam com a racionalidade médica.
Propósito
Buscou-se relativizar uma compreensão corrente da
‘infertilidade conjugal’ enquanto categoria biomédica
analisando as injunções históricas determinantes das relações entre corpo e medicina e das estreitas relações entre
sexualidade e reprodução considerando sua dissociação como uma possibilidade contemporânea.
O grupo da pesquisa
Compõem o grupo da pesquisa casais de camadas médias
residentes em bairros das zonas norte e sul do Rio de Janeiro. O grupo é constituído por indivíduos com posições sociais semelhantes: unidos por união civil ou estável; inseridos no mercado de trabalho (ao menos um dos cônjuges);
universitários (ao menos um dos cônjuges); com ou sem filhos e com condições materiais que permitem o acesso a bens de consumo.
Corpus etnográfico
São 16 entrevistados cujas trajetórias indicaram algum
impedimento para terem filhos: 5 homens e 5 mulheres, casados entre si; 4 mulheres unidas; 1 mulher separada e 1 solteira. Entre os unidos, 8 têm filhos, 5 não têm e 1 estava grávida no momento da pesquisa. O corpus etnográfico reúne entrevistas semi-estruturadas, matérias jornalísticas e análises (portais de saúde, chats e listas de discussões) sobre
Universo do estudo
Compõem o universo do estudo indivíduos que compartilham de uma ‘visão de mundo’ em sentido amplo (Geertz, 1989) e agregam traços de um ethos privado não-confessional no que concerne às áreas da sexualidade, da família e da reprodução.
No universo em questão a promoção da autonomia, da
interiorização e da ‘psicologização’ são modos de expressões predominantes da ideologia individualista, embora esta
difusão de valores não possa ser generalizada (Russo 1981; Figueira, 1985; Ropa, D. & Duarte, L. F. D., 1985; Heilborn, M L. 2004 Dauster, 2006).
O objetivo da apresentação
Este trabalho levanta especificamente os aspectos
constitutivos da dinâmica sexual conjugal moderna referida pelos casais a partir dos investimentos médicos feitos na concepção. Destacam-se as idéias de ‘privacidade’ e
‘espontaneidade’ como expressões obrigatórias do exercício da sexualidade contemporânea.
Neste sentido ‘transar para engravidar’ se opõem a
‘espontâneo’ e ‘natural’ como uma exigência da experiência da sexualidade contemporânea.
‘Transar para engravidar’ X ‘espontâneo’ e
‘natural’
Na contemporaneidade a sexualidade ocupa ‘lugar central na
vida conjugal’ (Heilbon, 2004) e consiste em um domínio relativamente autônomo da família. Apesar de central a atividade sexual dos casais heterossexuais tem sido pouco
estudada nas pesquisas sobre sexualidade. Heilborn considera que a sexualidade heterossexual foi silenciada pela explosão de estudos sobre a chamada diversidade sexual.
A importância conceitual e simbólica do sexo e do intercurso
sexual na união conjugal se expressa nas repercussões de solicitações de mulheres não unidas por tratamentos para conceber (Strathern, 1995).
‘Infertilidade conjugal’: uma categoria
biomédica
O discurso sobre a ‘infertilidade’ descreve ‘a atividade sexual
regular’como um parâmetro importante na avaliação médica da ‘infertilidade conjugal’. Tida como um dado a priori da relação conjugal parece pertinente considerar neste tipo de avaliação a tendência à diminuição da atividade sexual em casais estabilizados (Bozon, 2001), como os da pesquisa.
O decréscimo da atividade sexual expõe a importância do
intercurso sexual como exigência da relação conjugal, o que em última instância promove uma diminuição das chances de engravidar.
O tema da sexualidade na narrativa dos
casais
O tema da sexualidade na pesquisa e em tela não foi central
na narrativa dos entrevistados.
Cabe considerar, no entanto, a relação entre este pendor e o
próprio tema da pesquisa que enfocava a decisão reprodutiva conjugal e estimulava a colocação em discurso do desejo de reprodução e as iniciativas envolvendo sua concretização. Mas o surgimento na narrativa da dinâmica sexual conjugal revelou aspectos importantes sobre as concepções vigentes que imbricam sexualidade e reprodução.
Sexualidade e reprodução
A menção à atividade sexual dos casais esteve sempre
referida à reprodução ou submetida a ela evidenciando as interferências das prescrições médicas na sexualidade
conjugal subordinada neste contexto à concepção.
A idéia de ‘invasão’ na atividade sexual qualifica os
procedimentos médicos bem como as ingerências da relações familiares na decisão reprodutiva a partir de uma
compreensão de ser a atividade sexual primordialmente ‘espontânea’.
A idéia de ‘invasão’
Subsumidas a esta idéia de espontaneidade encontram-se as
diferenças de gênero no que concerne ao desempenho sexual do casal. Trata-se da mulher que ‘transa pouco’ e, portanto passa a ser ‘responsável’ pela não concepção.
Patrícia (39 anos, nível superior) relata como a tensão para
conceber tomou conta do casal. A relação ‘rolava por
obrigação’ e certamente não chegavam a bons resultados, nem do ponto de vista da satisfação sexual nem da
reprodução. O casal ‘tentou de tudo’ a ponto de transar durante um mês consecutivo sem interrupções.
Em meio a esta tensão, gerada pela atividade sexual
compulsória havia uma culpabilização da mulher, por compreender que ela não engravidava porque o casal ‘transava pouco’.
Sexualidade: processo ‘natural’ e
‘espontâneo’
A percepção da atividade sexual, considerada invadida pelos
casais no decorrer das tentativas de conceber, tem por base uma compreensão de uma sexualidade livre e como um processo natural regido apenas pela exigência do prazer (Heilborn, 2004).
Bozon (2004) considera uma singularidade da sociedade
contemporânea a obrigatoriedade de fazer sexo sem interrupções .Tal exigência produz, em um contexto de individualização de condutas, inúmeras ‘injunções
contraditórias’ que opõem a exigência da espontaneidade e a busca de permanência, o prazer individual e a reciprocidade, a atração simultânea por mais de um parceiro e a
exclusividade do vínculo afetivo-sexual, a renovação das experiências e o ideal de um parceiro único.
Permanências
Os autores postulam: ainda que tenha ocorrido certa
heterogeneidade normativa e nas inúmeras esferas da vida social a idéia da igualdade entre os sexos, não houve
modificação radical nas posições de homens e mulheres nas questões da sexualidade, da parentalidade e da família.
A antítese: relação sexual com ‘data
marcada’
A necessidade de relação sexual com ‘data marcada’ com o
objetivo de reprodução foi apontada na pesquisa como uma inversão dos termos: “Você faz sexo para ‘reprodução’ e não ‘por prazer’” Fernanda (32 anos, casada, nível superior).
Transar com ‘data marcada’ é assim descrito: o homem faz
certa abstinência sexual, o que significa não ter relações
sexuais entre 2 a 5 dias e a mulher faz ultra-som ou exame de urina para verificar a data da ovulação. A partir de
determinada data a mulher pode ovular nas próximas 36
horas. Então, a participante exclama: “Tenta fazer as contas e depois me diz se é fácil fazer ‘coito-programado’”:
Concepção medicalizada: a potencial
dissociação entre reprodução e sexualidade
Uma referência foi feita ao compartilhamento de tarefas entreespecialistas (incumbido da reprodução) e casais (incumbidos da sexualidade.
O compartilhamento de tarefas assinalado indica uma
compreensão das relações entre reprodução e sexualidade como dimensões dissociáveis. O tema é controverso e não adentrarei no extenso debate sobre o mesmo, mas destaco na análise de Strathern (1995) sobre a concepção por meio das novas tecnologias reprodutivas, o argumento de que tais
práticas separam sexo de procriação, mas não a procriação do sexo.
Controvérsias
Portanto, uma partilha de tarefas entre medicina reprodutiva e
casais na reprodução não escapa às tensões inerentes à prática conceptiva contemporânea e se delimita pelas mediações
culturais que configuram os eventos reprodutivos.
Se a opção dos casais pela reprodução assistida tem sido
balizada pela ingerência dos procedimentos médicos na
atividade sexual dos casais tal fato não pode ser afirmado no contexto das entrevistas.
A reação dos casais ao desconforto gerado pelas intervenções
expressa uma sexualidade concebida como privada e livre de controle cuja interferência médica é concebida pelos casais como ‘invasão’. A realização de exames nas mulheres e nos homens para controle da concepção, são exemplos do que se quer dizer:
A submissão aos exames
O mais invasivo foi fazer teste pós-coito. (...) Você tem que
transar e ir direto para o consultório. (...) É muito invasivo porque, por mais que seja uma coisa comum, você queira transar, mas é... transa exatamente para isso, não é? É muito esquisito. (...) É uma invasão total, completa da sua
privacidade. A impressão que você tem é que você é virada pelo avesso. (Rosângela, 37 anos, nível superior)
E aí ele [o marido] falou que foi muito esquisito o homem, o
médico, ficar passando [a mão] lá no pênis, examinando. (Rosângela, 37 anos, nível superior)
Perspectiva de gênero
A realização de exames nos homens envolve grandes
constrangimentos – diferente do que ocorre com as mulheres que os considera dolorosos - e pouco se sabe sobre os
significados de tal percepção. Cabe considerar que a ‘posição ginecológica’, como mencionado pela entrevistada é prática corrente entre as mulheres largamente submetidas a este tipo de procedimento. Sugiro, ainda que o exame ginecológico envolva constrangimentos, tratar-se de prática ‘naturalizada’.
Finalizando...
A interpretação sobre a ausência de filhos pelos casais de
camadas médias, dentre outras possíveis, aponta um desejo de ter filhos delineado não só como uma decisão racional, mas como um evento natural de constituição das famílias. Neste sentido também conceber um filho tem que ser fruto da
decisão do casal – e ao mesmo tempo ‘natural’ - no sentido de uma experiência ‘espontânea’ – como a do exercício da
Finalizando...
Os casais concebem o exercício da sexualidade como
espontâneo e livre de controle de modo que o auxílio médico para fins reprodutivos é concebido como uma ‘invasão’ de privacidade e de liberdade. Estes são elementos fundamentais para o delineamento dos valores que permeiam a decisão
reprodutiva no âmbito conjugal, bem como para o entendimento do exercício da sexualidade na família contemporânea.
Por fim
Os resultados apontam a articulação entre diversas mediações
culturais – familiar, educacional, ethos religioso – e
racionalidade médica. Por um lado, as transformações sociais que dissociaram sexualidade e reprodução favoreceram, em especial às mulheres, maior liberdade reprodutiva, por outro, ingerências médicas na concepção exprimem os limites da liberdade de escolha e de opção nos modos ocidentais
Referências bibliográfica
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Referências bibliográficas
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