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O mutualismo entre os trabalhadores livres na Corte das últimas décadas da Monarquia escravista

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

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O mutualismo entre os trabalhadores livres na Corte das últimas

décadas da Monarquia escravista

David P. Lacerda∗

O mutualismo na historiografia brasileira recente

O material sobre as “sociedades” criadas no Império do Brasil, armazenado no acervo do Fundo Conselho de Estado – Seção Império evidencia a manifestação de uma cultura associativa bastante complexa e diversificada. Ao longo da pesquisa, iniciada ainda na graduação, encontramos compromissos de irmandades, sociedades religiosas, clubes literários, grêmios recreativos, sociedades científicas, entidades filantrópicas, montepios, seguradoras e companhias de emancipação1. Entre estas, as sociedades mutualistas, se comparadas com as demais, destacam-se em número e pelas variadas formas de organização, evidenciando arranjos por categorias profissionais (ofício e classe), etnia (imigrantes e libertos), região, datas comemorativas, bem como se constituíam entre empresários, comerciantes e industriais2. Num nível mais amplo, essa diversidade revela uma vida associativa intensa, pois demonstra como vários setores sociais da cidade do Rio de Janeiro organizaram-se em torno de seus interesses

Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). O texto desta comunicação é uma pequena síntese da pesquisa: “Na encruzilhada das solidariedades: a experiência mutualista entre os trabalhadores livres

na Corte (1860-1882)”, orientada pelo Prof. Dr. Claudio Henrique de Moraes Batalha, e financiada pelo Conselho

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A pesquisa está vinculada ao projeto temático: “Trabalhadores no Brasil: identidades, direitos e política (séculos XVII a XX)”, coordenado pela Profª. Drª. Silvia Hunold Lara, cujas atividades são desenvolvidas no âmbito do CECULT – Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (IFCH/UNICAMP).

1

Exemplos: Arquivo Nacional, Conselho de Estado (Doravante: AN, CE): Compromisso de Irmandade dos Mártires Santos Crispim e Crispiano (1866); Associação Católica Fluminense (1873); Grêmio Literário Português (1861); Club Tauromáquico (1877); Sociedade de Ciências Médicas (1866); Imperial Associação Filantrópica Fluminense (1880); Montepio Geral de Economia dos Servidores do Estado (1873); Companhia de Serviço Mútuo contra fogo (1877); Companhia Garantia de Emancipação (1877). As datas que acompanham cada entidade listada correspondem ao ano em que as mesmas foram criadas.

2

AN, CE: Sociedade Beneficente União Familiar Perfeita Amizade (1873); União Beneficente Protetora dos Cocheiros (1882); Liga Operária (1872); Sociedade Francesa de Socorros Mútuos (1862); Associação Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de Cor (1874); Sociedade Beneficente Maranhense (1875); Sociedade Comemorativa da Independência do Império (1874); Sociedade Industrial de Beneficência (1865); Sociedade Beneficente Comércio (1873); Sociedade União dos Fabricantes de Bebidas Alcoólicas (1889).

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

2 próprios. Ao mesmo tempo, esse material evidencia o alto grau de organização da sociedade civil na segunda metade do século XIX3.

Essa expressividade, contudo, vai muito além do comumente supunha uma rica tradição de estudos no campo das ciências sociais que se dedicou ao estudo da gênese e da trajetória de organização do operariado no Brasil. No caso das associações de ajuda mútua criadas pelos trabalhadores livres ao longo da segunda metade do século XIX, sua manifestação foi entendida como “precoce”, “insipiente” e “pré-política”, pois a eles não era tributado a condição de sujeitos de sua própria história4.

O trabalho de Tânia Regina De Luca, O Sonho do Futuro Assegurado, representa uma mudança de paradigma na abordagem do mutualismo, sobretudo, por questionar a tese segundo a qual as associações mutuais ocupariam a fase “imatura” da consciência da classe trabalhadora. De Luca afirma que as formas associativas mutual e sindical “são fenômenos contemporâneos e não excludentes”, que conviveram lado a lado entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX, sendo o mutualismo, bastante disseminado entre os trabalhadores das cidades de Santos e São Paulo5.

Na mesma perspectiva, o volume 6 do Cadernos AEL6 dedicado ao estudo das

Sociedades operárias e mutualismo, ampliou as possibilidades teóricas e empíricas na abordagem das associações de auxílio mútuo. Os textos da coletânea destacam, entre outros problemas, as funções mutualistas como elementos formadores de identidade; a relação entre a escravidão e a organização coletiva dos trabalhadores tipógrafos; as sociedades dos caixeiros e sua importância no protesto de “fechamento das portas”; a atuação e o perfil dos sócios da

3

Tânia Regina De Luca afirma que o capitalismo industrial foi responsável pela proliferação das sociedades de socorros mútuos em Santos e São Paulo na Primeira República. Esse argumento parece não dar conta da dimensão que o fenômeno associativo - incluindo o mutualismo - alcançou na cidade do Rio de Janeiro ao longo da segunda metade do século XIX. Ao que parece, tal expressividade deve-se muito mais às transformações estruturais características da crise da sociedade monárquica escravista, do que exclusivamente ao desenvolvimento do capitalismo e seus efeitos na formação de um mercado de trabalho livre e assalariado. O Sonho do Futuro

Assegurado (O mutualismo em São Paulo). São Paulo: Editora Contexto, 1990.

4

Em termos de ênfase analítica essa tradição elaborou modelos cujos parâmetros correspondiam a critérios essencialmente cronológicos, como é o caso da abolição da escravidão e da proclamação da República, que demarcam o desenvolvimento do capitalismo industrial, da formação de um mercado de trabalho livre e assalariado e do surgimento do Estado liberal. Cf., entre outros, Evaristo de Moraes Filho, O Problema do Sindicato Único no

Brasil; seus fundamentos sociológicos. São Paulo: Alfa Omega, 1952; Azis Simão, Sindicato e Estado: suas relações na formação do proletariado. São Paulo: Dominus, 1966; José Albertino Rodrigues, Sindicato e Desenvolvimento no Brasil. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968; Luiz Werneck Vianna, Liberalismo e Sindicato no Brasil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978; Edgar Carone, O Movimento Operário no Brasil (1877-1944). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1978. Para uma crítica detalhada dessa perspectiva, ver,

Claudio H. M. Batalha, “Identidade da classe operária no Brasil (1880-1920): atipicidade ou legitimidade?”, Revista

Brasileira de História, “Política & Cultura”, v. 12, n. 23/24, set. 1991-ago. 1992, pp. 111-124.

5

Tânia Regina De Luca, op. cit., 1990, p. 173.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

3 Sociedade União Operária do Rio Grande; e, por fim, o mutualismo entendido como estratégia de “solidariedade e assistência” entre os operários de Porto Alegre.

O artigo de Claudio Batalha7 sobre as sociedades de trabalhadores no Rio Janeiro do século XIX, em especial, ressalta a necessidade de se entender a formação da classe operária a partir de uma questão central, qual seja problematizar as continuidades e descontinuidades das formas de organização operária. Batalha enfatiza que no âmbito das práticas sociais e culturais, o assistencialismo mutual e as ações de resistência dos sindicatos se confundiram ao longo da segunda metade do século XIX. Destaca, contudo, que as corporações de ofício da primeira metade do oitocentos também se fizeram presentes no universo das sociedades de auxílio mútuo. E, por fim, afirma que as mutuais do século XIX eram as únicas formas legais de associação entre os trabalhadores, cujo objetivo último era a defesa do ofício.

O estudo de Adhermar Lourenço da Silva Jr.8 amplia ainda mais o conhecimento do mutualismo, tanto no Brasil como em países como Argentina, Estados Unidos, Espanha, França, Itália, principalmente, embora tenha como objeto de investigação o Rio Grande do Sul, da segunda metade do século XIX aos anos 1940. Propõe um modelo analítico que diferencie os “elementos” e os “níveis” individuais e coletivos da ação social, a partir do qual as sociedades de socorros mútuos são entendidas como formas de implementação de estratégias privadas, que, em determinadas condições sociais, políticas e econômicas favorecem a implementação de estratégias públicas na luta contra o descenso social.

Há, no entanto, uma série de questões trazidas pelo material recolhido no acervo do Conselho de Estado que não foram contempladas pela historiografia.

O objetivo deste texto consiste em apresentar as questões mais gerais que norteiam a pesquisa que vem sendo desenvolvida sobre o estudo das formas de organização e da experiência associativa dos trabalhadores livres na cidade do Rio de Janeiro, entre 1860 e 1882, tomando como objeto específico de análise as sociedades profissionais de auxílio mútuo9. Trata-se de problematizar, em linhas gerais, um modo de abordar essas sociedades a partir da relação institucional construída pelos trabalhadores livres que as compunham e pelo Estado imperial, cujos termos específicos envolvem tanto o universo característico do mutualismo, como o do mundo do trabalho no contexto de crise da sociedade monárquica escravista.

7

Claudio H. M. Batalha, op. cit., 1999, pp. 41-69.

8

Adhemar Lourenço da Silva Jr., As sociedades de socorros mútuos: estratégias privadas e públicas (estudo

centrado no Rio Grande do Sul – Brasil, 1854-1940). Tese de Doutorado, Porto Alegre: PUC-RS, 2004.

9

O recorte na série documental que selecionou as associações de ofício e ofícios vários como objeto de análise, tomou como critério a forma como essas sociedades se nomeavam. Foram arrolados 68 códices contendo material sobre sociedades de ajuda mútua que se identificavam em torno de um ou mais ofícios. O número de associações deste tipo, criadas ou reformadas a partir de 1860, bem como a diversidade de ofícios organizados, foi o critério adotado para deixar de lado, num primeiro momento, os compromissos de irmandades.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

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Possibilidades de reconstrução histórica:

questões para uma abordagem da experiência associativa entre os trabalhadores livres

A natureza dos registros de sociedades deve ser colocada em questão, pois em princípio, eles correspondem ao conjunto de leis que se destinava a organizar as atividades de todo tipo de sociedade. No ano de 1860 observa-se a promulgação da lei 1.08310, posteriormente modificada pelos decretos 2.686 e 2.71111, cujas disposições normativas evidenciam a tentativa do Governo imperial, via Conselho de Estado, em estabelecer procedimentos através dos quais seriam organizadas quaisquer associações no Império, fossem científicas, beneficentes, profissionais, recreativas ou religiosas, compostas de súditos ou cidadãos de qualquer segmento social, obviamente com exceção dos escravos. Após solicitar a autorização junto ao chefe de polícia local para realizar as reuniões, os interessados em criar as associações deveriam promover os encontros necessários para confeccionar os estatutos e fundar sociedades, grêmios, clubes ou irmandades, conforme o caso.

As atas das sessões fundadoras e os estatutos deveriam ser enviados logo em seguida à Seção dos Negócios do Império do Conselho de Estado, a fim de serem submetidas à avaliação em processo que orientava a criação e o funcionamento das chamadas “sociedades”, inclusive as que foram criadas anteriormente ao estatuto da lei. Entretanto, o procedimento burocrático iniciado em 1860 teve fim com a promulgação da lei 3.15012 de novembro de 1882. Tal período é fundamental para a pesquisa, pois é durante esses anos que a relação entre as sociedades mutuais de ofício e o Estado imperial torna-se mais próxima e intensa. Não obstante há registros no referido fundo de entidades fundadas, ou que tiveram seus estatutos modificados, até o ano 1887, embora num primeiro momento, não tenhamos localizado nenhum registro de associação de ajuda mútua organizada em torno de categorias profissionais.

O material que compõe os códices sobre as associações caracteriza-se pela reunião de diferentes tipos de documentos que foram produzidos na relação entre as sociedades mutuais e o Estado. As atas de reunião, os estatutos, os pedidos de consulta, o aviso Imperial, a consulta e o parecer do Conselho de Estado, indicando aprovação, reformulação ou indeferimento do pedido, formam o que denominamos de registro. Faz-se necessário, porém, estabelecer outro corte

10

Coleção das Leis do Império do Brasil de 1860, Tomo XXI, Parte I - pp. 28-36. www.camara.gov.br. Acessado em 05/03/07.

11

Idem, Tomo XXIII, Parte II, respectivamente, pp. 1.061-1.063 e 1125-1140. www.camara.gov.br. Acessado em 05/03/07.

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Coleção das Leis do Império do Brasil de 1882, Volume I, Tomo XLV, Parte II, pp. 139-149.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

5 dentro do próprio registro, visando redimensionar sua potencialidade e o que documenta, uma vez que cada tipo possui natureza e objetivos variados.

De tal maneira, teríamos primeiramente, documentos escritos pela sociedade em questão e documentos escritos pelo Estado. No primeiro caso, encontram-se as atas de reunião13, a partir das quais se observa o modo como os trabalhadores livres se relacionavam e estabeleciam seus interesses no espaço institucional. Além de fornecer elementos sobre o cotidiano das sociedades, a dimensão identitária e o funcionamento das assembléias gerais e extraordinárias, as atas trazem discussões sobre a implementação de reformas internas, como por exemplo, a necessidade do aumento do número de associados14 visando elevar as finanças e as beneficências concedidas, e a criação de procedimentos burocráticos para eleger os membros da diretoria da associação. Discussões que, traduzidas em demandas pelos trabalhadores em questão, precisavam ser escritas e discutidas de acordo com os parâmetros legais estabelecidos pelo Estado imperial, pois no texto das atas, geralmente, encontramos menções aos dispositivos da lei aos quais determinadas reformas deveriam se adequar.

A partir do texto das atas é possível, ainda, encontrar a relação dos associados que participaram da reunião, a data em que o encontro foi realizado, o logradouro da associação (Rua, Bairro, Freguesia, número da sede: informações que geralmente compõem os parágrafos iniciais). Essas informações fornecem, no seu conjunto, elementos para mapear em qual local a incidência das sociedades mutuais foi mais freqüente e, por conseguinte, como influenciaram na dinâmica e na configuração do espaço urbano da Corte.

Os estatutos, por sua vez, documentam outros aspectos da experiência de associação entre os trabalhadores livres que se entrecruzam na dinâmica interna das mutuais de ofício. Em outras palavras, esses aspectos estão registrados nas formas de implementação de cargos, bem como na definição “tipo” de sócio apto a exercê-lo; nos procedimentos formais de decisão

13

Pode haver atas de reformulação dos estatutos toda vez que a sociedade em questão modificar qualquer item de sua estrutura administrativa, seja pelos associados ou pelos Conselheiros de Estado.

14

Na monografia acompanhei pelas atas, pelos pedidos de consulta e pelos pareceres do Conselho de Estado, relativos à Imperial Sociedade Auxiliadora das Artes Mecânicas e Liberais e Beneficente, que o critério de admissão profissional foi “alargado” de modo a agregar todos aqueles que “exercessem um ofício digno”, capaz de sustentar o associado. Fundada em 1835, a associação era composta inicialmente por trabalhadores manuais de ofícios vários, e nos anos 1860 e 1870, passou a reunir em suas fileiras, negociantes, farmacêuticos, comerciantes, que se tornaram majoritários nos quadros da sociedade. O discurso em torno da valorização do trabalho tornou-se secundário, por assim dizer, na estrutura organizacional da associação, embora a denominação de artes mecânicas e liberais tivesse permanecido como tal, desde sua fundação. Há que verificar se esse “alargamento” acompanha a trajetória das demais sociedades mutuais de ofício. Tal questão pode ser uma porta de entrada para se entender as mudanças ocorridas em torno da linguagem do trabalho no contexto de crise da escravidão. A história desta associação demonstra, ainda, as contradições do mutualismo e das estratégias de ascensão dos trabalhadores pobres. Ela começa com uma proposta de dignificação do trabalho, com o tempo perde o vigor financeiro e, depois de uma malsucedida manobra elitista para excluir os mais pobres e incluir indivíduos estabelecidos de outras profissões, parece ter desaparecido na falência. AN, CE: Caixa 526, Pacotilha 2, Envelope 1, Documento 21.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

6 através de assembléias gerais e extraordinárias; nos litígios entre os sócios e entre estes e o governo imperial, por meio da legislação que controlava as atividades das associações; nos significados em torno da proteção do imperador, bem como nas expectativas em obtê-la; nas relações de ajuda mútua, como por exemplo, na prestação de auxílio à família do sócio falecido, enfermo e/ou inabilitado para qualquer atividade manual; no discurso de valorização do trabalho contido nos critérios de admissão como, por exemplo, “ser livre”, “bem morigerado” e exercer um determinado ofício, cujo cumprimento é de fundamental importância para que o interessado fosse admitido ao “código social” da sociedade em questão; nos direitos sociais (no caso de beneficências como auxílio funeral e pensões) e políticos (o voto e o exercício de cargos administrativos, por exemplo).

Não obstante, observa-se, por um lado, que os estatutos se colocam em acordo com as exigências da burocracia, cujos procedimentos formais escritos em lei, definem em grande medida o modo como são redigidos e dispostos capítulos, artigos e parágrafos. Submeter os estatutos objetivando legalizar-se perante os limites estabelecidos pelo Estado, talvez seja o primeiro caminho para que aquelas sociedades fizessem valer seus interesses. Aquilo que informa a admissão, direitos e deveres no universo mais amplo da dinâmica administrativa das mutuais revela, portanto, um conjunto de significados, expectativas e valores compartilhados, específicos da categoria profissional15 que representam e do modo como os trabalhadores livres entendiam a si próprios, o Estado e a sociedade na qual estavam inseridos.

Os pedidos de consulta seguem os mesmos procedimentos dos estatutos e das atas, no sentido de que eles são redigidos de modo a atender as exigências impostas pela legislação para fazer valer a demanda nele escrita. As petições alegavam uma série de motivos que acusavam o objetivo de criação de uma sociedade ou o cumprimento de reformas estatutárias, deixando claro que procuravam se ajustar aos parâmetros legais e aos interesses mais gerais do Estado, a fim de adquirir personalidade jurídica16.

Os aspectos formais da petição incluem a data em que ela foi encaminhada, os sócios que assinaram e emitiram o pedido, o nome dos respectivos conselheiros que o receberam17 e, posteriormente o avaliaram, seguido de um pequeno resumo que registra o modo como as associações estabeleceram, em termos formais, o motivo que levou determinado grupo de

15

Claudio H. M. Batalha, “Vida associativa: por uma nova abordagem da história institucional nos estudos do movimento operário”, Anos 90, Porto Alegre, n. 8, dezembro de 1997, p. 96

16

Tânia Regina De Luca, op. cit., 1990, p. 13-14.

17

Exclusivamente no caso dos pedidos não se tem acesso aos originais, somente às cópias. Isso porque todo o pedido vem acompanhado da rubrica dos conselheiros da seção do Império, o que nos leva a pressupor que o mesmo passou pelo crivo da burocracia estatal. Pode-se perceber, no entanto, que o conteúdo da petição não foi comprometido pelo fato de ter passado pelas mãos da burocracia.

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7 trabalhadores manuais livres organizados numa sociedade de ajuda mútua, a se dirigir ao Imperador solicitando que fossem aprovados ou reformados os seus estatutos18.

O aviso Imperial, a consulta e o parecer do Conselho de Estado, formam o conjunto de fontes de caráter administrativo, escritas e emitidas pelo Estado. Ambas documentam, sob diferentes ângulos, a relação entre aquele e as associações mutualistas. O aviso expedido pelo Imperador indica a data em que o pedido foi liberado para avaliação do Conselho de Estado. Em seguida, a consulta informa, inicialmente, o nome dos conselheiros e a data em que o pedido aprovado pelo aviso, foi avaliado. Em alguns casos há um grande espaço de tempo entre o aviso expedido e a consulta realizada19. O parecer, momento final da avaliação, documenta as razões do Conselho de Estado ao acusar a necessidade de reforma, reprovação ou aprovação dos estatutos. Os termos da relação entre o Estado e as sociedades são registrados de maneira mais rica pelos pareceres, através dos quais pode-se observar como o Estado, em meio às diferentes avaliações dos conselheiros, enxergava um grupo específico de trabalhadores manuais livres que procuravam se organizam em torno de um ou mais ofícios, de acordo com objetivos e interesses próprios20.

Ampliando-se o horizonte analítico perceberemos a partir da leitura das atas e dos pareceres, que as sociedades e o Conselho de Estado recorriam constantemente à legislação destinada a organizar e controlar as atividades de qualquer tipo de associação criada a partir de 1860. Isso coloca, de fato, a necessidade de entender as leis 1.083 e 3.150 e os decretos 2.686 e 2.711, como conjunto de normas onde se conforma as relações verticais entre o Estado imperial e as sociedades mutuais de ofício (s).

A partir daquela data, o Estado passou a controlar sistematicamente a criação e o funcionamento de qualquer tipo de associação fundada no Império do Brasil. Anteriormente, como aponta Tânia Regina de Luca, as associações de auxílio mútuo não eram objeto de norma alguma, “eram entidades de âmbito totalmente privado e tinham seus estatutos redigidos segundo a inspiração dos fundadores” e, após 1860, acrescenta De Luca, “Abandonava-se um regime de total liberdade em prol de um rígido controle do Estado”21. O Estado estabelecia os

18

Vários temas se entrecruzam novamente no texto dos pedidos de consulta: vide nota 21.

19

É o caso da Sociedade Auxiliadora dos Artistas Alfaiates, que encaminhou um pedido de consulta em 18 de julho de 1876 e só obteve o parecer definitivo em dezembro daquele ano. AN, CE: Caixa 554, Pacote 1, Envelope 3, Documento 11.

20

O Conselho de Estado colocou várias ressalvas para que a Imperial Sociedade Auxiliadora das Artes Mecânicas e Liberais e Beneficente não admitisse membros que não exercessem ofícios designados pela sua própria denominação. Entre outras razões, os conselheiros alegaram que os ofícios pertencentes às artes mecânicas e liberais, deveriam prosperar e ao Estado cabia incentivar a continuidade daquela associação, afinal, esta se encontrava sob a proteção de d. Pedro II, conforme sua designação de Imperial. Mas tal incentivo somente seria possível caso os objetivos contemplassem, exclusivamente, o universo daqueles ofícios. Vide, novamente, nota 21.

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8 limites da liberdade política e da “liberdade de trabalho”, na medida em que ditava um modelo de sociedade ao qual os interessados deveriam se adequar.

Neste sentido, é muito importante que a investigação das associações mutualistas seja articulada ao conhecimento das razões que produziram e eliminaram a legislação referente às sociedades, pois ela documenta a lógica do controle exercido pelo Estado. Em primeiro lugar, a legislação foi elaborada com base na legislação francesa para sociedades de socorros mútuos22. Essa não é uma questão menor e precisa ser encarada mais diretamente daqui em diante23, pois talvez ela possa oferecer uma escala de comparação entre a experiência mutualista na França e no Império do Brasil. Por outro lado, ao que tudo indica, a referida legislação remete a um debate bastante decisivo sobre a estruturação da sociedade e da economia imperiais da segunda metade do século XIX. Tratar-se-ia, por exemplo, de uma discussão liberal sobre a validade da interferência do Estado na regulação da economia? Seriam as leis descritas, pelo menos em parte, resultado da percepção de que a intervenção do Estado não apenas promoveria o desenvolvimento econômico (especialmente dos pequenos e médios negócios), como também impediria a ocorrência de fraudes e abusos no funcionamento das associações? Se o objetivo da lei de 1860 era controlar as associações, como explicar o fim da legislação em 1882, num contexto crítico caracterizado pelo avanço do abolicionismo e das idéias republicanas?

Apontamentos finais

Apesar dos avanços da historiografia recente, é necessário ampliar a visão do estudo das formas de organização e da vida associativa. Não basta, contudo, conceber o mutualismo como parte da cultura dos trabalhadores, e assim nos opor a uma separação radical entre mutuais e sindicatos, se não atentarmos para os problemas trazidos pelo conjunto de fontes arrolado para a pesquisa e pelo contexto específico no qual as formas de organização mutual foram criadas. Neste sentido, surgem dois problemas de investigação.

O primeiro consiste em encarar as sociedades mutualistas de ofício (s), a partir das relações institucionais construídas pelos trabalhadores livres que as organizaram e pelo Estado imperial, numa perspectiva dialógica, cujos valores e significados conformam uma arena de conflitos permanentes, de trocas materiais, de relações de dominação, de tradições herdadas e

22

O único estudo que apenas mencionou a existência desse referencial foi o de Tânia Regina De Luca.

23

A observação de Claudio Batalha sobre o fato de serem as mutuais as únicas formas legais de associação dos trabalhadores, mas não somente deles, a partir da proibição do funcionamento das corporações de ofício pela Constituição de 1824, reforça essa necessidade.

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9 compartilhadas24. O segundo problema relaciona-se aos interesses específicos das mutuais e do Estado que estruturam os termos dessa relação, qual sejam o mutualismo e o mundo do trabalho. Posto isso, é preciso investigar o modo como esses interesses foram produzidos/reproduzidos a partir da experiência entendida como “(...) resposta mental e emocional (...) a muitos acontecimentos inter-relacionados”25, construída pelos sujeitos históricos26 em questão. Talvez, o termo experiência possa ser um instrumento analítico pertinente para pensar a singularidade daqueles sujeitos27 em meio às expectativas, valores e significados, constitutivos e constituintes da realidade social28 do escravismo da segunda metade do século XIX.

24

E. P. Thompson, Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 18-19.

25

E. P. Thompson, A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 15.

26

Joan Wallach Scott, “The Evidence of Experience”, Critical Inquiry, Vol. 17, No 4, (Summer, 1991), p. 789.

27

William Hamilton Sewell Jr., “How Class are Made: Critical reflections on E. P. Thompson’s theory of working-class formation”, in Harvey J. Kaye and Keith McClelland (eds.), E. P. Thompson: critical perspectives. Philadelphia: Temple University Press, 1990, pp. 50-77.

28

Raymond Williams, Marxismo e Literatura, Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 91

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