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CADERNOS DO CINECLUBE COMUM SABOTADORES DA INDÚSTRIA

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Academic year: 2021

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SABOTADORES

DA INDÚSTRIA

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CADERNOS DO

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CADERNOS DO

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SABOTADORES DA INDÚSTRIA

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CADERNOS DO

CINECLUBE

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Editorial

O sensível excede as palavras e a palavra excede a experiência sensível. Se o dito e o visto se excedem mutuamente, é que existe entre eles uma relação de incomensurabilidade que funda o livre jogo de suas misturas sem adequação. Marie-José Mondzain

Belo Horizonte, fins de 2012. O Cineclube Comum surgia de algumas inquietações: como experimentar o cinema como um lugar de partilha, em que o ver juntos, o pensar entre muitos e o viver na cidade pudessem coabitar um espaço-tempo e proliferar sem destino certo? Como conjugar a experiência singular das imagens-movimento à aventura do pensamento comum e aos possíveis da vida em comunidade?

Para continuar a inquietude e transformá-la em práxis, nascia um gesto: numa noite qualquer de um dia de semana, ver um filme, ouvir uma palavra crítica, e conversar livremente na sala ou na rua. Inicialmente, as sessões públicas seguidas de debate aconteciam no quintal da Associação Imagem Comunitária, instituição parceira no primeiro momento. Em meados de 2013, o projeto passava a ocupar a Sala José Tavares de Barros do SESC Palladium, onde realizaríamos quatro mostras – Políticas do Cinema Moderno (2013), Políticas do Cinema

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Contemporâneo (2014), Sabotadores da Indústria (2014) e Sabotadores da Indústria II: A Missão (2015) –, com 29 sessões marcadas pela colaboração entre programadores, produtores, comentadores e espectadores.

Num tempo em que a multiplicação das telas e a superinflação das imagens atingiam em cheio a experi-ência individual e as oportunidades de ver cinema de forma coletiva e gratuita escasseavam, apostar num cineclube era devolver os filmes à vivência múltipla, ao cotidiano e ao centro da cidade, ao ingresso possível de qualquer um. Era também acompanhar o cinema de intervenções críticas que prolongavam a sessão e provocavam o debate entre os espectadores, no qual havia a chance de que uma palavra singular pudesse surgir para instaurar o dissenso. Tratava-se de enfrentar, ao mesmo tempo, o enclausu-ramento da experiência do cinema nos dispositivos de visionamento privado e a sua captura pela máquina capitalista ou pela burocracia estatal.

Com Marie-José Mondzain, buscávamos “propor a frágil aparência do visível como lugar fundador das práticas responsáveis do sentido”. Com Hannah Arendt, partilhávamos da crença de que “sempre que os homens se juntam, move-se o mundo entre eles, e nesse interes-paço ocorrem e fazem-se todos os assuntos humanos”. Reconhecíamos a potência inscrita nas imagens de instaurar uma centelha de crise e a necessidade de acompanhar a experiência do cinema de um exercício do pensamento livre e do debate comum.

Agora, em 2016, os Cadernos do Cineclube Comum, com o patrocínio do Edital Filme em Minas (7ª Edição), inspiram-se no lastro das sessões e das conversas e

propõem a publicação das três primeiras coletâneas de ensaios em torno dos filmes vistos, escritos pelos pesquisadores responsáveis por comentá-los à época e, em alguns casos, por outros convidados. Irrigados pela experiência das sessões, os textos foram produzidos em diálogo com o recorte curatorial de cada mostra e fazem proliferar o conhecimento comum, sempre a partir do olhar de cada ensaísta.

O desejo é de que os cadernos possam constituir, ao mesmo tempo, uma memória da iniciativa, um repositório de pensamento singular sobre as obras e uma inspiração para futuros projetos. A distribuição dos volumes é inteiramente gratuita e os cadernos serão oferecidos a bibliotecas públicas, universidades, escolas e outros grupos e instituições. Esperamos que a experiência da leitura seja tão múltipla e inspiradora quanto foram os encontros do cineclube ao longo dos últimos anos.

Mariana Souto e Victor Guimarães Programadores do Cineclube Comum

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Sabotadores da Indústria: formas da implosão Victor Guimarães

FILMES ENSAIOS

Confissões de um sabotador

Olá, mamãe!, de Brian De Palma

Carla Italiano

Bem-vindo ao deserto do real

THX 1138, de George Lucas

Raul Arthuso

Eles vivem, nós dormimos

Eles vivem, de John Carpenter

Calac Nogueira

Violência na carne e no espírito

Tropas estrelares, de Paul Verhoeven

Marcelo Miranda Pornografia dos dissensos

Batalha real, de Kinji Fukasaku

Luís Fernando Moura

Navegar nas vísceras do espetáculo

Spring breakers, de Harmony Korine

Victor Guimarães SOBRE OS AUTORES CRÉDITOS 97 101 35

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Sabotadores da Indústria:

formas da implosão

Victor Guimarães

É como o sequestro de um avião: desconstruir a indústria, sequestrá-la e fazer filmes críticos extraordinários. Nicole Brenez

“O cinema é um país ocupado” – o aforismo de Jean-Luc Godard para definir a máquina de guerra de Hollywood não poderia ser mais justo. Mas, como em toda guerra, além dos exércitos em disputa (e por mais díspares que sejam as forças), há sempre as ações rebeldes, a peça estranha que faz travar a engrenagem dos tanques, a arma secreta tantas vezes crucial nas batalhas entre Davi e Golias: a sabotagem. Esse gesto insidioso é também o de um conjunto de cineastas que, trabalhando no epicentro da indústria cinematográfica, utilizam-se dos procedimentos do sistema para questioná-lo, criticá-lo e subvertê-lo por dentro. A imagem bélica diz de uma batalha subterrânea, da saga silenciosa de realizadores que decidem operar criticamente onde a crítica parece menos possível: no interior da fábrica de espetáculos, o território por exce-lência das imagens cristalizadas, sedutoras e alienantes. A mostra Sabotadores da Indústria, realizada no SESC Palladium, em Belo Horizonte, entre setembro e

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dezembro de 2014, cartografou algumas das emergên-cias desse gesto na história do cinema, e este terceiro volume dos Cadernos do Cineclube Comum abriga as reflexões suscitadas por essa cartografia. Nosso desejo é revelar as maneiras pelas quais realizadores tão diferentes como Brian De Palma, George Lucas, John Carpenter, Paul Verhoeven, Kinji Fukasaku e Harmony Korine têm se utilizado dos códigos do cinema de gênero – do thriller de ação ao filme de horror, da comédia romântica ao filme de guerra – para produzir obras subversivas, que colocam em xeque um regime hegemônico de produção de imagens. Olá, mamãe (Brian De Palma, 1970), THX 1138 (George Lucas, 1971), Eles vivem (John Carpenter, 1984), Tropas estelares (Paul Verhoeven, 1997), Batalha real (Kinji Fukasaku, 2000) e Spring breakers (Harmony Korine, 2012), cada um a seu modo, são filmes que operam por implosão: utilizam imagens belas e atraentes, escalam estrelas reconhecidas pelo público, servem-se de procedimentos formais consolidados, trabalham com a sedução do espectador típica do cinema hegemônico, mas desarmam a lógica operacional dominante a partir de uma combustão interna.

Embora o ímpeto seja comum, as formas da implosão podem ser múltiplas. As operações de sabotagem podem ser encontradas na “visada cômica, caótica, reveladora e igualmente crítica acerca da sociedade americana dos anos 1960” – como destaca a leitura de Carla Italiano – presente em um Brian De Palma que ironiza o cinema de Hollywood ainda antes de se tornar um diretor-chave da indústria; na desconstrução melancólica do “totalitarismo dos símbolos,

das formas, dos discursos padronizados”, como escreve Raul Arthuso acerca de THX 1138; na “desmistificação do espetáculo do capital” efetuada pelo herói de Eles vivem e pelos pastiches autoconscientes de John Carpenter analisados por Calac Nogueira; no contrabando de Paul Verhoeven, “no qual a forma e o conteúdo se disfarçam de uma coisa para dizerem outra”, como aponta Marcelo Miranda; na “pornografia dos dissensos” engendrada por Kinji Fukasaku, essa “que nos implica porque nos encanta, nos faz ver porque ao mesmo tempo nos oferta o deleite e nos desconcerta”, nas palavras de Luís Fernando Moura; ou na operação misteriosa de Harmony Korine, que navega na carne do espetáculo ao mesmo tempo em que expõe a densidade de suas contradições.

As armas do sabotador também são diversas: da sátira iconoclasta (Olá, mamãe!) à paródia dos blockbusters (Tropas estelares); da construção fragmentária que encena a fuga de um mundo em ruínas (THX 1138) ao embate entre imagens que desconstrói a alienação (Eles vivem); da superestilização que injeta perturbações no interior de um território de imagens cristalizadas (Batalha real) à imersão vertiginosa nos clichês que desautoriza uma leitura estável (Spring breakers). Distanciamento crítico, ironia, desconstrução; batalha campal, tiro certeiro nas imagens dominantes; mas também mergulhos densos e contraditórios, que impossibilitam qualquer lugar seguro para o espectador.

Colocar em discussão esses gestos é trazer para o primeiro plano um conjunto de filmes frequentemente ignorado nos debates sobre as potências políticas do

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cinema. Muitas vezes, essas obras são consideradas meras peças de entretenimento – exatamente como outros produtos industriais quaisquer – e sua recepção crítica mais corriqueira tende a não atentar para o caráter subversivo de suas táticas. Diante do que aconteceu com um filme como Tropas estelares, cujas operações críticas foram inteiramente incompreendidas à época de seu lançamento, é fundamental olhar com mais atenção, rever e reler uma e outra vez, oferecer uma segunda chance de descoberta ao espectador – e, agora, ao leitor.

Os filmes visados aqui se dispõem a um jogo duplo: são espetaculares e, ao mesmo tempo, subversivos; visam o sucesso comercial e, no mesmo movimento, o questio-namento das estruturas dominantes; afirmam-se como filmes de gênero muito eficientes e, simultaneamente, implodem os procedimentos tradicionais; seduzem o espectador e, na mesma medida, solicitam o pensa-mento. Nicole Brenez pergunta, após tecer uma análise sobre Batalha real: “Quando um filme é crítico, engraçado, bem estruturado e eficiente, o que mais se pode esperar?”1

Ao propor a mostra Sabotadores da Indústria e, agora, ao publicar este terceiro volume dos Cadernos do Cineclube Comum, procuramos investir em uma premissa que está presente desde o nascimento do cineclube: exibir filmes fortes, atraentes e que, no mesmo gesto, colocam em questão nossos modos de ver e produzir imagens

1. A entrevista da teórica e historiadora francesa à revista Cinética foi o pontapé inicial para a construção desta mostra. Disponível em: http://revistacinetica.com.br/home/entrevista-com-nicole-brenez/

em comunidade. Atentar para as táticas ardilosas em terreno inimigo, dar a ver os gestos de sabotagem dentro do esquema industrial é buscar perceber como o cinema é capaz de imaginar outros possíveis e de reconfigurar o comum, reinventando a potência crítica no interior das máquinas de poder.

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Olá, mamãe!

Hi, mom!

Brian De Palma EUA | 1970 | cor | 90’

Jon Rubin (Robert De Niro) é um veterano da guerra do Vietnã que resolve ganhar a vida vendendo filmes pornográficos de mulheres que ele espia da janela de seu apartamento. Em sua deriva pelas ruas de Nova Iorque, encontra uma trupe de atores negros e se envolve com a militância do grupo. Imersa na con-tracultura novaiorquina, essa sátira de humor negro é um dos filmes menos conhecidos de Brian De Palma, mestre na arte de implodir as imagens espetaculares.

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THX 1138 George Lucas EUA | 1971 | cor | 90’

Em uma sociedade distópica de algum lugar do futuro, onde toda forma de emoção foi abolida, a população é vigiada por androides e controlada através do consumo de drogas. Dois cidadãos (Robert Duvall e Maggie McOmie) encontram uma brecha no sistema e decidem se rebelar. Com uma construção visual e sonora extraordinária, o primeiro longa-metragem es-crito e dirigido por George Lucas adere aos códigos da ficção científica, mas engendra uma forma irreverente e radical muito distante da saga Star Wars, franquia que daria fama ao diretor.

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Eles vivem

They live

John Carpenter EUA | 1984 | cor | 94’

John Nada (Roddy Piper) é um trabalhador braçal que chega a Los Angeles e encontra trabalho num edifício em construção. Testemunha de estranhas movimentações na vizinhança, o protagonista encontra casualmente um par de óculos escuros aparentemente comuns, porém ao usá-los consegue enxergar criaturas alienígenas disfarçadas de seres humanos, bem como as mensagens subliminares que elas transmitem através da mídia. Juntamente com seu companheiro de trabalho Frank (Keith David), ele decide se engajar no movimento de resistên-cia. Entre o didatismo e a ironia, o mestre do cinema de horror John Carpenter constrói um panfleto revolucionário voltado diretamente contra a indústria midiática.

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Tropas estelares

Starship troopers

Paul Verhoeven EUA | 1997 | cor | 129’

Num futuro distante, a Terra se torna uma federação imperialista que coloniza outros planetas. Um jovem soldado de uma unidade militar é designado para combater em uma guerra interestelar que contrapõe humanos e extraterrestres chamados de “arac-nídeos”. Recheado de cenas de ação e efeitos especiais, o filme foi recebido com assombro e incompreensão por espectadores e críticos à época de seu lançamento. Abusando da ironia, o diretor Paul Verhoeven satiriza um imenso território de imagens da sociedade norte-americana, baseadas no fascismo cotidiano e na glorificação da guerra.

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Batalha real

Batoru rowaiaru

Kinji Fukasaku

Japão | 2000 | cor | 120’

No Japão da virada do milênio, estudantes do ensino médio decidem boicotar as aulas em protesto contra a situação de desemprego em massa no país. Em represália, o governo cria uma lei que obriga os adolescentes a participar do Battle Royale, um jogo mortal em que apenas um deles sobreviverá. Ação, ultraviolência e humor negro compõem um filme controverso e brutal, que se tornou objeto de culto e influenciou dezenas de obras na última década.

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Spring breakers

Harmony Korine

EUA | 2012 | cor | 92’

Quatro adolescentes (Selena Gomez, Vanessa Hudgens, Ashley Benson e Rachel Korine) decidem viajar nas férias de primavera e acabam se envolvendo com um traficante (James Franco) em uma praia na Flórida. Entre a festa e a violência, o sexo e as armas de fogo, as meninas viverão um ritual decisivo de passagem para a vida adulta. Com um misto de ironia e adesão, um estilo excessivo, uma trilha sonora contagiante e uma montagem inventiva, Harmony Korine constrói uma das mais potentes fábulas sobre a juventude contemporânea.

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Confissões de um sabotador

Olá, mamãe!, de Brian De Palma

Carla Italiano

The successful acts of sabotage will be carried out by single individuals.

The urban guerrilla

Martin Oppenheimer

A gênese de Olá, mamãe! (1970) deriva da necessidade (ou da inquietação que antecede o ato) de responder às mudanças de sua época. O que resulta é uma visada cômica, caótica, reveladora e igualmente crítica acerca da sociedade americana dos anos 1960 – os tipos, as morais conflitantes e os regimes de imagem por ela conformados.1

O filme é uma derivação direta de seu antecessor, Saudações (1968). A dupla pode ser considerada dissonante na filmografia de De Palma, se o termo de comparação for sua produção realizada sob a égide hollywoodiana, em uma prolífica carreira que inclui vários sucessos (e fracassos)

1. Este texto é devedor das contribuições dos participantes na exibição de Olá, mamãe! na Mostra Sabotadores da Indústria (setembro de 2014, Sesc Palladium-BH) e dos comentários fundamentais de Victor Guimarães e Leonardo Amaral.

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comerciais, a começar com Carrie, a estranha (1976). Sua obra estabelece um diálogo fértil com gêneros clássicos: mantendo a comédia como horizonte dos trabalhos iniciais, ela transitará pelo thriller (Irmãs diabólicas, 1973), horror (Carrie) e ação (Missão impossível, 1996), entre tantos outros. Olá, mamãe! e Saudações prenunciam tropos e procedimentos caros aos longas posteriores, operando como espaço embrionário para sua investigação estética de vida inteira acerca das imagens que correspondem a nossa era, nascida das demandas do capital. São imagens over, como bem aponta Filipe Furtado;2 já desgastadas,

ardilosas e permeadas por duplos e falsos, figuras que tanto pautarão o cinema de De Palma.

Olá, mamãe! atualiza, e aperfeiçoa, a proposta de Saudações ao elencar um dos protagonistas do longa ante-rior, Jon Rubin, como foco (interpretado em ambos por Robert De Niro).3 Começamos a empreitada já lançados

às aventuras de um aspirante a cineasta do ramo da peep art, espécie de cinema erótico de pretensão artística que olha pelo “buraco da fechadura” (como enfatiza o título do filme em processo: Confessions of a Peeping Jon). De um apartamento estrategicamente localizado, Jon tem visão privilegiada do edifício em frente, permitindo-lhe filmar sem ser notado. O voyeurismo, além de menção à Janela indiscreta

2. FURTADO, Filipe. “Contos pornográficos de um cineasta

under-ground”, p. 56.

3. Saudações acompanha três jovens às voltas com a efervescência cultural e sexual de Nova Iorque e a convocação iminente para o serviço militar, o que, naquele contexto, significava lutar no Vietnã. Ele é pautado pela espontaneidade de uma criação em certa medida coletiva, compondo uma dupla com o longa seguinte.

de Hitchcock (mais uma entre as incontáveis leituras do cineasta na obra de De Palma), é incorporado aqui como uma das artimanhas desse charmoso trapaceiro que faria de tudo para ser bem-sucedido – inclusive tornar-se cineasta. Do mesmo modo que a peep art parece uma farsa gourmetizada do velho conhecido cinema pornô, a insistência em uma narrativa mestra em torno de Jon prova-se um artifício, outra pista falsa nessa (anti)trama entrecortada por situações e figuras disparatadas. O caráter camaleônico de Jon o faz transitar de diretor underground a policial, vendedor de apólices de seguro e veterano da Guerra do Vietnã (resquício de Saudações incorporado livremente). Tal persona, que se modula ao sabor de ondas anárquicas, revela que não se trata de um personagem apenas e sim de vários, destilando sátiras em seu caminho – não só às figuras alinhadas ao conformismo do american way of life, mas, sobretudo, às subversivas: o artista visionário, os revolucionários extremistas, os Panteras Negras etc.4

O filme ainda mobiliza outras frentes, cada qual com seu regime de enunciação: a National Intellectual Television (N.I.T.), paródia de um canal televisivo politi-camente engajado que interpela pessoas “comuns” nas ruas;5 ou a sequência Be black baby, dedicada a uma peça

4. Os estereótipos e caricaturas se estendem a todos os personagens: o estudante branco deslumbrado com a causa negra; o merca-dológico produtor de cinema de arte; o vendedor de contraceptivos; o casal branco (espectador da peça Be black baby) que personifica a moral conservadora de uma sociedade em ebulição.

5. Essa frente surge após a primeira menção à Be black baby, quando as imagens televisivas dominam a enunciação de Olá, mamãe! e

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de teatro que propõe conduzir pessoas brancas através da experiência de ser negro. Ambas são filmadas aos moldes do cinema verdade, em película 16mm preto e branco e tipos distintos de “sobreenquadramento” (os recortes internos ao plano que reforçam a moldura de janela). Com isso elas fazem irromper uma forte sensação de “real” em meio a uma proposta assumidamente ficcional

que ultrapassa a linha do absurdo.

Olá, mamãe! constrói, para logo em seguida solapar, as formas da narrativa clássica. Blocos relativamente autô-nomos se concatenam a partir de uma lógica sorrateira de causalidade, sob a forte influência do sketch cômico (termo cujo significado de “esboço” reforça seu inacabamento). O ritmo preciso da comédia, na qual um segundo a mais determina se a piada foi bem sucedida, imprime certa cadência a diálogos em que o timing importa mais do que a condução narrativa. Mas o gênero da comédia não é o único do qual De Palma bebe: o romance (na união de Jon e a vizinha solitária Judy Bishop) e os vários tipos de exploitation (em especial a black) constituem fontes de inspiração das quais se pode tomar alguns elementos emprestados para melhor empreender a sabotagem pretendida.

Olá, mamãe! é vivo, pulsante, ao mesmo tempo parceiro e crítico da juventude de sua época ao respirar a atmosfera de improviso tão cara à geração beat – evidente

sugerem que esta linha narrativa estaria presente desde o início. Um dos indícios está na primeira inserção da N.I.T., introduzida pela cartela The Black Revolution – Part 2, subentendendo que a primeira parte desse diário da Revolução Negra (nunca enunciada em cartela) compreende também a história de Jon-cineasta.

no jazz que pontua sua sequência inicial, entre jump-cuts e mudanças radicais de ritmo e de rumo. Tal qual Saudações, ele flerta com certa tradição do cinema experimental nos EUA, em termos da ambiência mambembe e um tanto explosiva.6 Olá, mamãe! tampouco reivindica uma

pers-pectiva única; o ponto de vista em primeira pessoa muda de “dono” a cada nova cartela pretensamente explicativa, ora personificando a visão de Jon das janelas vizinhas, ora o nosso olhar enquanto espectadores conduzidos pela black experience.

A sequência Be black baby se apodera da enunciação a partir de meados do filme. Sua longa extensão (de quase vinte minutos) condiz com a radicalidade do jogo ali ence-nado. Nela, espectadores brancos atravessam situações em que são colocados no lugar de negros, tornando-se alvo da humilhação e da violência sofridas diariamente pela comunidade negra. Os participantes da peça (e nós, do outro lado da tela) somos conduzidos por um ritual de retaliação ao estilo de um Teatro do Oprimido. O modo de filmagem convoca toda sorte de “efeitos de real”, com imagens em primeira pessoa que parodiam a inserção participativa do cinema verdade. Nós vivenciamos na duração o desconcerto de estar na pele dos excluídos, ao mesmo tempo em que reconhecemos a crítica operada

6. A influência vanguardista de Saudações e Olá, mamãe! remete à imprevisibilidade beatnik de Pull my daisy (Robert Frank, Alfred Leslie, 1959). É importante ressaltar, no entanto, que esses filmes estão longe das experimentações com a materialidade da imagem (e suas abstrações) que caracterizam outras vertentes do cinema

underground nos EUA – como, por exemplo, nas obras de Marie

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pelo filme em relação à expectativa de verdade sobre a imagem documental. Ao final, a peça é encapsulada pelo estado habitual de conformismo (“foi um ótimo teatro!”, diz o senhor que há pouco havia apanhado). Não reco-nhecer o potencial de mudança dessa experiência limítrofe figura como mais um dentre os vários fracassos em Olá, mamãe!: a tentativa frustrada de Jon ser cineasta, ou do ataque armado dos negros contra o projeto de habitação de classe média. Isso culmina na constatação – manifesta na trama de Olá, mamãe!, mas também reveladora da proposta de De Palma com seu filme – de que a prática subversiva efetiva não se dará pelo ataque de fora para dentro, e sim por um infiltrado individual.

Não por acaso, na última parte do filme Jon personi-fica o símbolo do que até então combatia: um vendedor de apólices de seguro e pai de família que vive o “sonho americano”. Trata-se de mais uma de suas estratégias, um caminho para inserir-se naquele universo de classe média e completar sua empreitada revolucionária ao explodir o edifício onde vive, com esposa e tudo. Ele é guiado por um manual de guerrilha urbana, tática que reflete a postura do próprio filme frente às imagens facilmente vendáveis e consumíveis que figuram nas telas de TV, e transitam livremente pela Hollywood que De Palma integraria pouco tempo depois (sempre pela chave de certo inconformismo outsider). O investimento de Olá, mamãe! em diferentes figuras, modos de enunciação e ideologias funciona como meio de se infiltrar a fim de melhor sabotá-los, lançando seu olhar crítico inclusive sobre seus espectadores, a todo momento convocados. De gêneros cinematográficos

a movimentos revolucionários, nada parece a salvo da desconstrução cômica de Olá, mamãe!.

Abordar os assuntos de uma sociedade em constante mudança demanda uma forma inventiva de proceder. Nesse sentido, a comédia, com suas mentiras descon-certantes e sua lida enviesada com questões sociais, pode ser tão politicamente mobilizadora quanto um cinema que reivindique uma militância combativa. Olá, mamãe! é costurado por um humor anárquico que efetivamente consegue (tal qual Jon) desmantelar as bases morais que pretensamente o sustentam. Influência do cinema farsesco de Godard – em especial A chinesa (lançado dois anos antes) e seu grupo de jovens revolucionários fran-ceses. E também da efervescência política do momento histórico: Victor Guimarães aponta uma relação entre Saudações e Olá, mamãe! e o espírito de maio de 1968, em que De Palma, influenciado por essas reverberações, propõe uma “outra poética subversiva”, desenvolvendo, assim, um “vocabulário político próprio”.7

Escreve Jonas Mekas em sua coluna sobre cinema: “Soprem, ventos anárquicos, confusos, precisamos deses-peradamente de vocês!”8 Para um público “desavisado”,

Olá, mamãe! pode parecer desconjuntado, demasiado difuso. Talvez se assemelhe ao surgimento do jazz entre os estilos musicais eruditos, que pareceu para Adorno, negativamente, um “típico fenômeno de ‘regressão da

7. GUIMARÃES, Victor. “Um falsário subversivo: Saudações, Olá,

mamãe! e a energia de 68”, p. 43.

8. MEKAS, Jonas. “Em defesa da 42nd Street”, publicado na coluna Movie Journal em novembro de 1962. In: MOURÃO, Patrícia (Org.).

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capacidade auditiva’ associado à indústria cultural”.9 O

jazz, tal qual Olá, mamãe e Saudações (permeados por sua espontaneidade), embora incompreensíveis num primeiro momento, constituem estratégias fundamentais de ação frente às mudanças contextuais e históricas de seu tempo. A frase that’s part of the show (“isso faz parte do espetáculo”) é repetida no decorrer de Be black baby como um indicativo dos limites daquele jogo. Mas até onde vai, afinal, esse espetáculo? Vai além daquilo que conhecemos e aceitamos, parece-nos dizer Olá, mamãe!, sendo a capacidade do filme de implodir as formas domi-nantes (de modo de vida ou de fazer cinema) o seu maior trunfo de sabotagem.

Referências

FURTADO, Filipe. “Contos pornográficos de um cineasta underground”. TOLEDO, João (Org.). Brian De Palma: 24 Mentiras por Segundo. Curitiba: CAIXA Cultural Curitiba, 2014.

GARDNIER, Ruy. “As aberrações de Brian De Palma: desa-fios e aportes”. TOLEDO, João (Org.). Brian De Palma: 24 Mentiras por Segundo. Curitiba: CAIXA Cultural Curitiba, 2014.

GUIMARÃES, Victor. “Um falsário subversivo: Saudações, Olá, mamãe! e a energia de 68”. TOLEDO, João (Org.).

9. MIRANDA, Carlos Eduardo Ortolan. “Acordes contra a barbárie”.

Brian De Palma: 24 Mentiras por Segundo. Curitiba: CAIXA Cultural Curitiba, 2014.

MEKAS, Jonas. Movie Journal: The Rise of a New American Cinema. 1959–1971. Nova York: Macmillian, 1972. MEKAS, Jonas. “Primeira declaração do Novo Cinema Americano”. MOURÃO, Patrícia (Org.). Jonas Mekas. São Paulo: CCBB; Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária – USP, 2013, p. 31-35.

MIRANDA, Carlos Eduardo Ortolan. “Acordes contra a barbárie”. Revista Cult, 2014. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/ acordes-contra-a-barbarie/

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Bem-vindo ao deserto do real

THX 1138, de George Lucas

Raul Arthuso

Na atual era pós-utópica, não há nada mais démodé que o impulso criativo do artista se impondo aos ditames do mercado e aos padrões da indústria. À nossa geração foi ensinada a precaução quanto à rebeldia e os valores do trabalho para ascensão dentro dos limites estabelecidos pelo neoliberalismo yuppie dos anos 1980 e 1990, nos quais qualquer coisa pode ser mercadoria (inclusive a arte). Mas, principalmente, que o mercado não é só um mal necessário, mas “o” mal inescapável e, por mais cruel que possa parecer, é nele, para ele e a partir dele que nosso cotidiano deve se organizar. O herói contemporâneo é o arrivista, conspirando secretamente nas entranhas dos sistemas de acumulação de capital para “subir na vida”, bolando ideias capazes de captar a atmosfera do momento para ganhos próprios, criando um sintoma vivo de que nossa vida vazia e sem sentido não tem solução: basta aceitá-la, a vida como ela é. O mercado venceu.

O cinema contemporâneo se sobrevaloriza em vernissages ao redor de figuras capazes de arrancar uns tostões aqui e ali de fundos europeus ou dos “braços independentes” dos grandes estúdios para reproduzir

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certas fórmulas de sucesso no mercado de arte. No cinema americano, isso se tornou especialmente sensível: Hollywood foi muito eficiente em cooptar figuras de talento (outras nem tanto) e dar tamanho vulto a seus feitos como se representassem aquilo que muita gente gosta de chamar de “o grande cinema”, quando, no fundo, são funcionários-padrão da nova configuração da indús-tria. A força do pragmatismo turva os limites da arte e do negócio, uma fronteira que a indústria insiste – com sucesso – em dizer que não faz mais sentido.

Fazer essa reflexão para falar de THX 1138, de George Lucas, pode parecer um descalabro para os cinéfilos mais novos: Lucas é hoje o exemplo do pragmatismo, o mercador de filmes que reergueu a indústria hollywoo-diana com sua fábula espacial vivaz recheada de lasers, espaçonaves, guerreiros místicos, robôs engraçados e bichos peludos, até hoje rendendo fruto$ para os bons mercadores de Venice, Califórnia. Mais que isso, Guerra nas estrelas iniciou a infantilização do público de cinema, marcando a derrocada do sonho da Nova Hollywood de uma indústria gerida por artistas tão geniosos quanto criativos e estrelas com estilo mais liberal, subversivo, representantes de uma sociedade em ebulição.

É no auge desse contexto de efervescência política, social e artística nos Estados Unidos que THX 1138 é realizado, momento em que o movimento da contracul-tura rediscutia a herança moderna. No caso específico do cinema, jovens cineastas começam a realizar filmes que retomam a tradição do cinema de estúdio sob a influência do neorrealismo italiano e da nouvelle vague

francesa, tirando o cinema americano dos grandes cená-rios com seu pesado aparato técnico e jogando-o nas ruas, retratando a juventude, seus gostos e anseios. Bonnie e Clyde – uma rajada de balas (Bonnie and Clyde, 1967) e Sem destino (Easy Rider, 1969) são marcos não apenas pela nova roupagem despojada e informal, mas também por suas experimentações formais de ruptura com a tradição de estúdio do cinema americano: a crueza dos cortes, a narrativa fluida e mais aberta, a violência da câmera na frontalidade de seu realismo. Mais que isso, o ambiente cinematográfico no qual o primeiro longa-metragem de Lucas se insere é o do sonho dos artistas em cooptar o sistema em seu favor e não o contrário, um desejo de transformação hoje, aparentemente, distante e muitas vezes considerado utópico enquanto processo coletivo de atuação dos cineastas.

Nesse sentido, é importante salientar o papel de Francis Ford Coppola para a existência de THX 1138. Coppola talvez tenha sido a ponta de lança da ideia de usar o sistema para fazer os filmes de jovens artistas, e diversas de suas investidas como produtor vão nesse sentido. É com isso em mente que Coppola aglomera em torno de si, na virada das décadas de 1960 e 70, um conjunto de novos técnicos, roteiristas e diretores com o intuito de realizar filmes ousados e criativos utilizando-se do dinheiro e da máquina de distribuição dos grandes estúdios. O jovem George Lucas compartilhava com seu colega o desejo de liberdade criativa e a insubordinação às regras dos velhos executivos do sistema. Se o sonho de Coppola era um “estúdio de artistas”, Lucas tinha como ideal desenvolver

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seus projetos sem qualquer interferência externa, ter a liberdade para experimentar suas ideias e referências à revelia do mundo exterior, a fim de fazer “sua obra”, um sonho de liberdade artística amplificado pelo momento favorável no final da década de 1960.

Em THX 1138 sente-se esse sopro de liberdade como matriz poética tanto quanto como ponto de fuga no hori-zonte sensível. Se Sem Destino é o manifesto libertário de uma geração de realizadores ávidos por transformar a indústria do cinema em seu quintal, THX 1138 é o seu ponto de colapso, uma espécie de repouso em movimento, onde a pesquisa formal põe em tensão a narrativa linear ao mesmo tempo em que o tema tão claro e explícito – a liberdade do indivíduo – é atormentado por uma dinâmica fluida, bastante porosa, de fragmentos e gestos pontuados com tonalidades que se estendem pela tela. Essa dinâmica entre o todo, o completo, o inteiro e o fragmento, a ruptura, um querendo se desvencilhar do outro, é a essência da mise en scène do filme.

Logo após os créditos iniciais, uma série de frag-mentos introduz o filme. Um traço eletrônico se transforma em um movimento de ondas, o plano de um policial violentando uma pessoa dividido em várias pequenas telas simula um grande painel de dispositivos de observação, um número em tipografia tecnológica é recortado pelas bordas do quadro, o rosto de THX se esvai pelos pontos de luz que formam a tela do monitor de TV azulado e distor-cido. THX 1138 apresenta ao longo de sua duração diversos desses elementos tecnológicos que não apenas criam o tom futurista como o carregam no gesto expressivo de

uma imagem que parece não se conter, tensionando os limites do quadro e a própria plasticidade da imagem.

George Lucas articula uma encenação feita de quadros tensionados, com geometria de formas simples – às vezes uma linha cortando o quadro, por outras uma parede curva incrustada perto das bordas –, deslocada do que considera-se um “bom enquadramento” segundo as regras das belas artes, realçando o ponto de ruptura retratado no argumento da história. Além disso, há um uso recorrente de planos fechados, nos quais o espaço não se define muito bem, com cortes que não se escondem ou elipses chamando a atenção para si: Lucas reforça um certo estado maquinalmente atemporal e “a-espa-cial”, mas colocando em cheque esse caráter artificial do mundo de THX 1138 pela própria colisão de planos e cortes secos, bruscos, agressivos contra a indumentária do filme. Esta, por sua vez, é feita de padrões: o branco perene dos cenários e das roupas das pessoas-operárias ou o preto das autoridades repressoras; a ausência de cabelos homogeneizando os gêneros; a música tenebrosa de Lalo Schifrin, de timbres graves e notas alongadas; as vozes pré-gravadas das entidades invisíveis que falam com as personagens, com prosódias e dicção eletrônicas; os aparelhos tecnológicos reproduzidos à exaustão; os agrupamentos de pessoas organizados quase à maneira militar. O universo ao redor das personagens do filme é uma trama de repetições distendidas pela padronização dos elementos, como o branco sobre o branco das roupas e cenários, ou a voz quase sem entonação, deixando evidente sua inumanidade.

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É nesse choque entre o padrão e o pontual, o extenso e o gestual, o completo e o fragmentário que se dá a construção fundamental da crise enfrentada por THX. Por diversas vezes, o personagem de Robert Duvall entra numa cabine, espécie de capela-confessionário desse mundo distópico, para se consultar com uma entidade divina. Sem saber que sua companheira LUH (Maggie McOmie) está mexendo na dosagem de seus remédios, obrigatórios para todas as pessoas com o objetivo de mantê-las no estado passivo de aceitação de sua reali-dade, THX procura entender o que está acontecendo com ele: se sente estranho, inquieto, começa a questionar-se sobre a vida. Na cabine, por sua vez, tudo é artificial: a imagem canônica do Cristo loiro de olhos claros reprodu-zida à exaustão pela igreja católica, a voz pré-gravada, as palavras saídas de algum livro religioso que reproduzem os principais ensinamentos de conforto e passividade da religião cristã, bizarramente misturados a bravatas consumistas da sociedade capitalista. Os planos fechados no rosto de Duvall e a montagem agressiva de uma cena quase sem movimento interno reforçam a angústia do ouvinte e a situação surreal do indivíduo em ebulição contra o estado das coisas.

Este trajeto de THX ao longo do filme é uma metáfora da ruptura desses indivíduos inquietos com o funcio-namento social e seu discurso simbólico de consumo, modo de vida e interação entre as pessoas. Claro que enxergar THX 1138 apenas como crítica social do presente ambientado num futuro distópico (um modo recorrente de contestação pelo cinema vindo da indústria) bastaria.

Contudo, um detalhe coloca mais tempero no caldo: o filme se inicia com um pequeno trailer de uma aventura de Buck Rodgers, chamada Tragedy in Saturn. Nele encontramos todos os elementos da ficção científica convencional: um herói intergaláctico, um vilão déspota que escraviza um planeta distante, o tom aventuresco de esperança na mudança messiânica, a luta do bem contra o mal. O filme depois do trailer não poderia ser mais oposto: a melancolia, a estranheza, a escravização violenta por uma entidade coletiva sem nome e sem rosto, e a luta do indivíduo de dentro dessa sociedade, não a solução de fora que salvará a todos. THX 1138 é, nesse sentido, uma crítica à socie-dade americana e sua cultura de aparências: enquanto a representação hegemônica da época reforçava a luta pela liberdade contra a tirania personalista do ditador sanguinário, numa clara analogia ao estado soviético, a radicalidade do discurso de Lucas está em formular a necessidade da liberdade do homem comum no seio de uma sociedade de consumo cuja promessa de esplendor não se cumpriu, um totalitarismo dos símbolos, das formas, dos discursos padronizados.

THX 1138 catalisa todo o ambiente de insatisfação contracultural americano da virada dos anos 1960 para os 1970 numa chave melancólica, colocando em cena o doloroso peso da crise dos valores sociais e culturais cristalizados ao longo dos anos 1950 e que a juventude da época já não entendia como natural (crise esta que a pop art vai rapidamente absorver). O mito da caverna de Platão cai como uma luva na trajetória de THX em sua fuga dos subterrâneos de sombras brancas padronizadas e

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alta tecnologia para disfarçar o despropósito: ao conseguir escapar e chegar à superfície, livrando-se dos grilhões, THX sofre um misto de alívio e peso que se expressa em

seu corpo silhuetado pelas cores quentes nunca antes presentes no filme. A liberdade cobra um preço alto: ser um sabotador na indústria cultural é contemplar a luz na imensidão de um deserto do real.

Eles vivem, nós dormimos

Eles vivem, de John Carpenter

Calac Nogueira

É pelo princípio do fetichismo da mercadoria, a sociedade sendo dominada por ‘coisas suprassensíveis embora sensíveis’, que o espetáculo se realiza absolutamente. O mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens que existem acima dele, ao mesmo tempo em que se faz reconhecer como sensível por excelência.

A sociedade do espetáculo (Guy Debord)

“Este é seu Deus.” Essa é a frase que estampa as notas de dinheiro depois que Nada (Roddy Piper), com a ajuda de óculos especiais, passa a enxergar o mundo cru por baixo do espetáculo minucioso através do qual os extraterres-tres controlam a Terra em Eles vivem. A frase é cristalina, para que não reste dúvida sobre o alvo do filme: o capital. Carpenter, que respirava o ar de seu tempo, nunca escondeu que o filme era uma resposta direta ao contexto econômico dos anos Reagan, com suas políticas liberais centradas no empreendedorismo yuppie e no consumo. Mas essa crítica circunstancial, embora clara e sempre reforçada pela crítica americana, não deve se sobrepor ao

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sentido cosmológico que move cada obra carpenteriana. Todo filme de Carpenter nos oferece uma anatomia total

e profunda do mundo. Em Eles vivem (1988), ele parte da mitologia da sociedade de controle estabelecida por Body Snatchers (Don Siegel, 1956), mas para analisar as formas deste controle por meio do capital: para realizar um filme de ação contra o capital.

1.

Eles vivem fala sobre o fetichismo da mercadoria. É o feti-chismo que nos leva a atribuir socialmente às coisas um valor que elas não possuem do ponto de vista estritamente material. É o que alimenta a fantasmagoria do capital, seus encantamentos que se multiplicam na publicidade, na TV, no design, na moda, no teatro cotidiano. Em 1988, nestes tempos de ficção científica, o aspecto “suprassen-sível” há muito já superou o sensível, a ilusão já encobriu e se desligou da realidade. O filme de Carpenter opera a desmistificação deste espetáculo do capital. E o que haveria de mais eficaz enquanto desmistificação do que a substituição, em pleno cinema, das imagens por suas mensagens subliminares, por seu texto?

2.

“Trabalhar”, “dormir oito horas”, “casar e reproduzir”: o controle do capital se exerce em todas as esferas da vida cotidiana — no trabalho, em casa, no sexo, na família. Não se escapa dele. O capital possui uma narrativa pronta, com papeis sociais pré-moldados a que aderimos sem pensar. Essa narrativa do controle escreve as linhas de

sua ficção sobre cada reportagem, cada manchete, cada outdoor, cada sinalização de trânsito. Ela opera como um poder disciplinar.

3.

Todos os extraterrestres ocupam posições privilegiadas — política, social e economicamente. Mas o controle é exercido de forma sutil. Eles desfilam entre nós como os exemplos bem-sucedidos que perseguimos (o colega promovido), como senhores ou senhoras cosmetizados, como apresentadores de TV ou formadores de opinião donos da verdade. Eles alimentam nossa ilusão.

4.

O capital possui seu aparato repressor implacável: a polícia. 5.

O filme de Carpenter realiza uma dupla crítica: a primeira, ao consumismo; a segunda, às próprias imagens. É por meio da TV que os extraterrestres exercem o controle. Logo no início, imagens de diversas televisões pairam pelo filme. Numa delas, uma moça diz: “Quando vejo TV, deixo de ser eu mesma. Tenho meu talk show, ou estou nos jornais saindo de uma limusine. Tudo o que tenho que fazer é ser famosa. As pessoas me assistem e gostam de mim.” O que Carpenter está descrevendo é que o controle se exerce por meio do prazer, por meio do gozo. E a fonte desse prazer é precisamente o fetiche, que se realiza plenamente na imagem. Quando o prazer do espetáculo é interrompido, os espectadores sentem dores de cabeça.

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6.

No mundo dominado pelo espetáculo, é preciso ser cego para se ver com clareza, como o pregador de rua. 7.

É preciso não superinterpretar o filme. Carpenter, nós sabemos, é acima de tudo um anarquista, um niilista: seu modelo de herói e alter ego é Snake Plissken (Fuga de Nova York, 1981). Em pelo menos dois momentos de Eles vivem, ele faz questão de deixar clara sua desconfiança também em relação às instituições de esquerda. Primeiro quando Nada procura emprego numa construção civil e o chefe responde que aquele “É um emprego do sindicato”, depois quando um dos líderes da resistência comenta a perseguição que eles sofrem da polícia: “Disseram a eles que somos comunistas.” Acima de tudo, Carpenter desconfia da coletividade, do meio social: ele pode acre-ditar no homem, mas certamente não na humanidade. Em Starman (1984), como em Eles vivem, o contato com um extraterrestre era também a oportunidade de falar sobre nós mesmos: falar de uma humanidade corrompida, que faz da inocência alvo de uma caçada.

8.

A revolução, portanto, parte do indivíduo. Cabe a ele se insubordinar, voltar-se contra as instituições e destruí- las. Ao perceber a conspiração de extraterrestres, Roddy Piper, um simples operário, não vacila um minuto sequer. Armado, ele entra direto num banco (escolha nada casual)

e tenta eliminar todos os extraterrestres que vê pela frente

com os óculos, como numa sessão de tiro-ao-alvo. Um homem contra todos.

9.

Mas em Eles vivem será preciso matar as imagens. Só assim é possível destruir o espetáculo. É por isso que Carpenter deixa o clímax final para uma estação de televisão. Piper e seu parceiro (Keith David) se teletransportam e assim conseguem chegar ao outro lado da tela, aos subterrâneos onde as imagens são fabricadas. No fim, Piper alcança o transmissor: “Fuck it”, ele diz antes de atirar contra a máquina. O herói acabará baleado na sequência, mas sua última ação no filme, antes de morrer, será erguer o dedo num gesto obsceno para a câmera. Qual o significado deste dedo? Um último gesto de rejeição e insubordinação niilista frente ao mundo? Uma interpelação direta do espectador, rompendo o ilusionismo imagético? Ou é o dedo de Carpenter apontado para todos — para nós, para os críticos, para a indústria, para o capital?

10.

Carpenter despontara como o mais novo golden boy da indústria com Assalto à 13ª DP (1977), Halloween (1978) e Fuga de Nova York (1981). Mas o fracasso de público e crítica de O enigma do outro mundo (1982), projeto de orçamento considerável e que mobilizara altas expecta-tivas, o levaria a atravessar os anos 1980 numa relação de altos e baixos com a indústria. Após a má recepção de Os aventureiros do bairro proibido (1986), Carpenter assina com a pequena produtora Alive Films para realizar

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seus dois próximos projetos: Príncipe das sombras (1987) e Eles vivem. Longe das pressões dos grandes estúdios, ele realiza dois de seus filmes mais livres e imaginativamente desinibidos. Príncipe das sombras não tem medo de abraçar definitivamente os materiais pouco nobres do cinema B. Já Eles vivem é um filme explosivo. Um filme típico de alguém que já experimentara tanto o sucesso quanto o fracasso. Um filme de alguém que não dá mais a mínima. 11.

Eles vivem mobiliza um certo número de clichês do cinema de ação oitentista: o homem ordinário alçado à condição de herói (Piper como um pastiche bem-humorado de Van Damme e Stallone); a dupla inter-racial de heróis, que tomaria forma sobretudo em filmes policiais, nos chamados buddy cop movies como 48 horas (1982) e Máquina mortífera (1987), filmes que Eles vivem não deixa de pastichar ao substituir os policiais por dois operários. Carpenter descobrira Piper como lutador de wrestling: sua desproporção física em relação àquela realidade na qual ele é um mero operário reforça essa condição de pastiche autoconsciente. O humor do filme participa de seu aspecto destrutivo: “Eu vim aqui mascar chicletes e chutar uns traseiros. E estou sem chicletes.” Notar ainda a presença, neste universo, de uma femme fatale: Holly (Meg Foster), com sua frieza, seus movimentos estudados, os olhos azuis hipnóticos e vazios, combinando uma falsa doçura e uma sensualidade desencarnada: como uma imagem (ela trabalha no Channel 54). Piper cairá nesta ilusão por duas vezes. Em ambas, a queda será alta.

12.

Autossabotagem. A maior sabotagem de Eles vivem enquanto gesto cinematográfico não está em nenhum outdoor, televisão ou vitrine, mas na cena em que Nada e Frank lutam por um motivo irrisório. Nada quer obrigar Frank a experimentar os óculos que permitem enxergar a realidade. Frank se recusa, e os dois iniciam uma briga. A luta entre amigos, como expressão de camaradagem masculina, já era uma marca de Hawks e reaparecera recentemente no 48 horas de Walter Hill. Mas o que faz da cena de Carpenter especial é o tempo: a duração da cena é completamente desproporcional ao andamento do filme. E ela se torna tanto mais prazerosa quanto mais nos damos conta de seu motivo insignificante. Como se Carpenter se servisse de Piper para incorporar ao filme a gratuidade do espetáculo de luta-livre: tão-somente duas massas corpóreas deslizando uma sobre a outra, realizando golpes, truques, trapaças, acrobacias pelo puro prazer da luta. Carpenter desperdiça o nosso tempo e o tempo do filme nesta cena: ele interrompe a economia sagrada da ficção. Em Hollywood, onde o cinema é um produto e existe enquanto formato (o filme de longa-metragem, definido por sua duração), onde portanto “tempo é dinheiro”, talvez não haja gesto mais subversivo do que este.

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Violência na carne e no espírito

Tropas estrelares, de Paul Verhoeven

Marcelo Miranda

“Se eu dissesse ao mundo que um fascismo de extrema-direita não funciona, ninguém me ouviria. Então eu vou criar um perfeito mundo fascista: todas as pessoas são bonitas, todas as coisas brilham e para todo lado tem armas bem grandes e naves elegantes, mas tudo isso só serve para matar os malditos ‘bugs’.” As palavras de Paul Verhoeven, ditas ao ator Michael Ironside e regis-tradas num programa de TV em 2014, refletem o modus operandi do diretor holandês ao longo de toda a sua obra. O comentário se referia especificamente a Tropas este-lares, superprodução de US$ 100 milhões que chegou aos cinemas em novembro de 1997.

Fazia apenas dois anos desde Showgirls, o maior fracasso de crítica e público na trajetória de Verhoeven nos EUA (não à toa, é também seu filme mais subver-sivo e anárquico dentro da indústria de Hollywood). Ele não era mais o mesmo queridinho que obtivera lucros enormes com filmes como Robocop (1987), O vingador do futuro (1990) e Instinto selvagem (1992). Mesmo assim, conseguiu fazer o que bem quis numa releitura em ficção científica espacial dos filmes de propaganda nazista

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dos anos 1930 e 40 – e não o fez através de denúncias diretas ou discursos humanistas relativos à moralidade dessas propagandas, mas inserindo, na tessitura da obra, os principais procedimentos estéticos desse tipo de peça ideológica.

Tropas estelares é, ao seu modo, um filme perverso, e justamente de sua perversidade exala o gênio de Verhoeven. O cineasta se apropria de clichês das produ-ções de guerra mais típicas do cinema norte-americano e faz um mix de referências aos cinejornais de convocação à guerra, aos símbolos do Reich alemão, à indumentária da Gestapo e à filosofia militarista e eugenista que carac-terizou um dos grandes horrores do século XX. O diretor se arrisca no processo e tem consciência da delicadeza destes temas e de suas abordagens. A experiência de viver a infância sob ocupação dos alemães, na Holanda dos anos 1940, deu-lhe inspiração para filmes que tratam diretamente do período, casos de Soldado de laranja (1977) e A espiã (2007), e para outros em que o sentimento de mal-estar advindo de algum tipo de “invasão” é represen-tado por distúrbios e violências das mais variadas, como acontece tanto em títulos de sua fase holandesa (sendo O 4º Homem, de 1983, o grande ápice) quanto em todos da fase estadunidense, iniciada em 1985 no arrebatador Conquista sangrenta.

Nada, porém, se assemelha aos procedimentos de Tropas estelares. É um caso referencial do “cinema de contrabando” (expressão do crítico francês Luc Moullet em referência a filmes que se apropriam de elementos típicos de uma forma tradicional e subvertem-nos), no

qual a forma e o conteúdo se disfarçam de uma coisa para dizerem outra. Os primeiros minutos contêm algumas chaves enigmáticas e perturbadoras, com um cinejornal cujo enfoque é uma convocatória e chamamento para a guerra contra os “bugs”. Todo o universo do filme está resumido neste primeiro noticiário: o protagonista, Johnny Rico, em campo de batalha; a cultura da arma e do tiro a permear a sociedade distópica retratada; a propaganda exacerbada convocando apoio à nação; a incitação ao ódio contra o “bug” (a palavra significa “inseto”, mas também é usada regularmente nos EUA para se referir aos imigrantes); a violência caricata e desenfreada, marcada por decepamentos, vísceras, gritos e corpos estraçalhados. Em seu primeiro terço, Tropas estelares se disfarça de “filme de high school” e acompanha o cotidiano de jovens estudantes prestes a se formar e a discutir o futuro de suas carreiras. É nas palavras de um professor e nos comportamentos de alguns jovens que está a essência destas cenas banais. Numa intervenção em aula, o ainda aluno Rico diferencia a moral dos “civis” e dos “cidadãos”: estes últimos disponibilizam o “corpo político” à pátria e, por isso, são superiores. A máxima é a de que o indivíduo nasce e vive na iminência da guerra, da resposta bruta a atos brutos, da represália. “Pensar por si próprio é a única liberdade que nos resta”, murmura o professor. Ambientado numa distopia e com um iconoclasta como Verhoeven na realização, o filme abandona eventuais contrapontos à visão unilateral e ortodoxa de um mundo ultraglobalizado, onde um dos centros mais importantes é chamado de Paraíso Latino. O mundo descortinado

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é o mundo tal como ele é apresentado na articulação. Ali, tudo que é simplesmente é. Dentro dessa estrutura, os “vilões” escolhidos são os insetos alienígenas, que surgem em cena absolutamente unilaterais e destituídos de quaisquer pontos de fuga da sua real natureza. Eles são, para o filme, o que representam para os personagens: monstros a serem controlados ou destruídos. Quaisquer semelhanças com a postura estadunidense nas políticas de guerra e invasão a territórios é parte assumida do ataque artístico de Verhoeven. A guerra se torna inevitável porque impossível é buscar no outro lado algum tipo de relação menos bélica.

Verhoeven, ainda assim, permite-se alguns comen-tários mais grosseiros e menos irônicos. Durante a aula de anatomia, o corpo de um “bug” é dissecado diante do olhar indiferente da turma, exceto o de uma estu-dante, a candidata a piloto Carmen Ibanez. Enojada pelas gosmas que se acumulam nas mãos dela, Ibanez vomita em primeiro plano, voltada para a câmera, como se fosse respingar no espectador do outro lado da tela. O momento é cristalino no “contrabando” do filme e configura o gesto mais genuíno e honesto de algum personagem: são as entranhas respondendo aos estímulos externos, expul-sando de dentro do estômago o veneno diário a empestear corações e mentes em um ambiente que deixou de lado a humanidade como corpo social e coletivo (logo, corpo político) para se impregnar pelo conceito de “liberdade” à força e de manutenção do status.

A realidade em Tropas estelares é a de um mundo totalitário, da incorporação e do pensamento uno e

inteiriço, no qual as diferenças tendem a ser eliminadas para que as atenções se fixem no ato violento contra os “bugs”. “Incorporar é propor a substância consumível de qualquer coisa de real e de verdadeiro aos convivas que se fundem e desaparecem no corpo com o que se identificam”, como escreveu a filósofa francesa Marie-José Mondzain.1 Aqueles lindos e perfeitos corpos

repre-sentados por Casper Van Dien, Denise Richards, Dina Meyer e Patrick Muldoon existem em função da nação (eventualmente podendo ser machucados e eviscerados durante a guerra) e não guardam mais substâncias que não a simetria de um direcionamento específico para o qual não lhes é dado qualquer tipo de instrumental para questionamento.

A grande arapuca de Paul Verhoeven é tratar toda esta complexidade de relações e de políticas como se estivesse apenas narrando a história ou permitindo que ela seja contada sem grandes intervenções. O estranha-mento em Tropas estelares se dá nos espaços entre um diálogo e um olhar, entre um ataque de monstro e um tronco humano sendo lançado ao ar, entre a perfuração de um tórax e uma gosma gigante em formato de vagina. A normalidade com que é tratada a sociedade em cena é colocada na mesma perspectiva do exagero e do carica-tural; a má interpretação do elenco assemelha os atores e atrizes a bonecos de computação gráfica tão expres-sivos quanto os “bugs” que emitem apenas guinchos e grunhidos. Na visão do filme, os humanos e os “bugs”

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têm a mesma relação de forma e presença. Tropas este-lares é destituído da inocência e do recalque de algumas ficções políticas mais tradicionais exatamente por deixar que aquele mundo, aquele construto artificial de grande firmeza, tenha forma particular e atinja diretamente a sensibilidade do espectador. Verhoeven, portanto, aposta na sensibilidade de seu público, acreditando que ele seja capaz de decodificar a provocação e de se divertir com ela ao mesmo tempo em que se horroriza com a profundidade das questões apresentadas.

O relativo fracasso financeiro do filme (a bilheteria de US$ 120 milhões por pouco conseguiu apenas cobrir o próprio orçamento da produção) e os ataques furiosos contra Verhoeven dão a entender que o “contrabando” não surtiu o efeito esperado numa plateia talvez domesticada demais pela grande indústria. No entanto, esse misto de sensações e percepções pode acontecer de imediato, já no primeiro contato com o filme, e também pode vir com o tempo, a depender da geração, do contexto histórico ou mesmo dos acontecimentos políticos de determinada época. As gradações da forma como Tropas estelares atinge a quem o assiste são confirmadas quanto mais o filme é revisto e redescoberto em mostras, festivais, canais on demand e sessões privadas. Ele é rico e possui caminhos vários o suficiente para permanecer constantemente de pé como peça estética, firme e misteriosa, a ser descamada de maneiras distintas quanto mais se fixa e se refixa em olhares variados. Num texto que entrou para o melhor do anedotário crítico brasileiro dos anos 1990, Eduardo Valente assim iniciava sua análise do filme para a revista

eletrônica Contracampo: “Existem duas leituras plena-mente possíveis de Tropas estelares: a primeira é a de que se trata de uma das mais corajosas e inflexíveis sátiras sobre o poder de um Estado militar e a implantação de uma cultura da violência e da sanitarização do mundo a partir de um modelo determinado de ‘beleza e ideais’; a segunda, está errada.” 2

O repertório imagético de Tropas estelares, assumida-mente copiado da estética audiovisual nazista, permitiria um estudo à parte. Habita-se um universo dominado por formas visuais manipuladoras (nem tão distante do nosso real século XXI). Diante das consequências apresentadas no filme, há de se fazer, aqui, a pergunta que movia Marie-José Mondzain: a imagem pode matar? Assim como a transmissão exaustiva pela televisão da queda do World Trade Center em 2001 foi a base para guerras no Oriente Médio, invasão a países na busca por armas de destruição em massa e represálias de outros governos contra o dito “terrorismo global”, a série de comerciais propagandísticos e os noticiários de violência explícita no filme de Paul Verhoeven funcionam como catalisadores e justificativas para a continuidade do estado de confronto. Culpa da imagem? “Quem recusaria hoje ver na imagem o instrumento de um poder sobre os corpos e os espíritos?”, pergunta-se Mondzain.3 Apesar de sua

força, capaz de mover nações inteiras, a imagem não age por si própria: ela precisa ser manuseada e articulada pelo indivíduo. “Mesmo se o seu estatuto de objeto é

2. VALENTE, Eduardo. “Tropas estelares”.

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fundamentalmente problemático, as imagens surgem como uma realidade sensível, oferecida simultaneamente ao olhar e ao conhecimento. Mas a violência, essa, não é um objeto.”4

Em Robocop, Verhoeven utilizara a televisão como elemento de linguagem poderoso, desde o telejornal que abria o filme (e reaparecia para recontextualizar o espectador) até a famosa chamada do apresentador que “compra isso por um dólar”. O broadcasting onipresente de Tropas estelares é ainda mais sofisticado, fazendo parte do cotidiano dos personagens (vários deles aparecem nas cenas transmitidas) e servindo de condutor às ações. Por mais que o enredo ensaie a história romântica de Rico e sua paixão malsucedida por Carmen, o desejo juvenil serve apenas de ponto de partida para a definição de um protagonista. Pois as peças de propaganda são as mais importantes personagens – sempre simpáticas e didáticas na sua covarde e cuidadosamente oportuna configuração. São autênticas peças de contrabando a potencializarem um filme, em todo o resto, também tão brilhante. Ao reconfigurar a linguagem massificada da televisão e fazer dela a maior chave de acesso de sua crítica, Tropas estelares regurgita puro delírio e deleite cinematográfico. É, selvagemente, uma obra deliciosa.

4. MONDZAIN, Marie-José. A imagem pode matar?, p. 15.

Referências

MONDZAIN, Marie-José. A imagem pode matar? Lisboa: Nova Vega, 2009.

VALENTE, Eduardo. “Tropas estelares”. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/62/tropasestelares.htm

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Pornografia dos dissensos

Batalha real, de Kinji Fukasaku

Luís Fernando Moura

O problema político é colocado já nas primeiras imagens de Batalha real. No início do milênio, dizem as cartelas, o Japão entrou em colapso, o desemprego atingiu taxas recorde e os jovens passaram a boicotar as escolas e a se lançar na criminalidade. Em reação, o Estado acaba de adotar o Ato de Reforma Educacional do Milênio, ou o Ato da Batalha Real, um programa de restituição da ordem disciplinar mediante métodos extremistas: sorteia-se uma turma de secundaristas e se encaminham os alunos para uma ilha isolada onde devem assassinar uns aos outros. Este coliseu exemplar é desmontado somente quando sobrar apenas um estudante. Se, ao fim de três dias, restar mais de um sobrevivente, seus pescoços, devidamente encoleirados por bombas-relógio, explodem, e natural-mente ninguém volta para casa.

Batalha real – baseado no romance de Koushun Takami – ao mesmo tempo aproxima a alegoria ao presente histórico e a desenlaça dele. Por um lado, os acontecimentos sociais que antecedem a experiência em ato da batalha, em geral, ganham alusão não mais que passageira, sugerida ou subentendida, bem como o que

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se sucede fora da ilha durante ou após o confronto. Por outro, ainda que ancorem paisagens nipônicas, as imagens se inscrevem em imaginários ocidentais desterritoriali-zados, cruzando-os e fazendo com que se debatam: as visões filmadas evocam a militarização das sociedades, as éticas tiranas, as imagerias de high school (e seus clichês morais), os regimes de tortura, as tantas heterotopias e estados de exceção, edificando um espaço apartado que é espelho mais ou menos justo para muitas de nossas formas limítrofes de convivência, atuais ou do passado recente. Ao mesmo tempo, a informação primeira de que tudo ocorre na virada do milênio produz um vínculo estreito entre o presente e a sombra de uma iminência: isto aqui poderia acontecer a qualquer momento. Se é uma distopia, é uma distopia do amanhã imediato, para a qual se deve atentar com urgência. Como disse o realizador Kinji Fukasaku em entrevistas sobre o filme, Batalha real pergunta “aonde a política está nos levando”. Ou, como já observou William Friedkin sobre a obra do diretor, eis um filme que se arrisca a “refletir seu presente e, ao mesmo tempo, profetizar o futuro”.

Se Batalha real se apresenta desde já como um panfleto, é, como disse Nicole Brenez, um “panfleto maravilhoso” – afinal, como compactuar com medida disciplinar tão violenta? O suplício soa desproporcional e absurdo, e no entanto transfigura em fábula traços do que de fato levam a cabo tantas instituições coercitivas e normatizadoras reconhecíveis. A maravilha de Batalha real é a de seduzir, trair e desconcertar: no mais das vezes, o filme não incorpora em seu discurso expresso

uma pedagogia exterior ou anterior para ajustar um juízo sobre as implicações morais ou políticas das situações que narra. O imbróglio dos desentendimentos é lançado e, colocadas na mesa as cartas do espetáculo, é a super-fície da representação que vai por as forças opressoras e libertárias em evidência, mas não sem produzir variações de escala, atritos ou desvios, paroxismos ou paradoxos. Se a política nos leva para algum lugar, este lugar não é tão simples de decodificar. Pelo contrário, acumula códigos que matizam práticas políticas e espetaculares. Se assim o é, a própria representação vai doutrinar e, mediante profusão de figuras, se macular: em vez de desconfiar dos fechamentos da ficção, Batalha real elabora ao máximo os artifícios da superfície para promover uma experiência que, para o espectador, se desdobra na confusão entre crítica e cinismo, entre cumplicidade e desprezo, entre humor e dor, entre prazer e horror. Como se nos convidando para uma batalha ideológica que se dá, reflexivamente, no tecido do espetáculo, nos fios dele. Para tanto o filme lança um jogo de excessos que transforma statement em hipérbole: a palavra não traduz o dilema, a lacuna não produz vivência. O desafio então será melodramático, o desajuste será burlesco, o desentendimento será gore, como numa pornografia dos dissensos – que nos implica porque nos encanta, nos faz ver porque ao mesmo tempo nos oferta o deleite e nos desconcerta.

Trata-se de uma peça a mais na pesquisa pregressa de Fukasaku, que dedicou anos de cinema a explorar a falência da história japonesa mediante o imaginário anacrônico dos samurais e a emergência das máfias – como na série

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Battles Without Honor and Humanity, que, desenvolvida nos anos 1970, persegue o grafismo da violência como ponte para destrinchar impactos sociais do crime no país. No caso de Batalha real, o imperativo é complicar a colocação em perspectiva histórica da barbárie: ela se torna mais complexa quando por exemplo o filme se lança a explorar o personagem do professor, Kitano. Ele é vivido por Takeshi Kitano, em si uma estrela do cinema de ação japonês, que pode desde já se impor e amedrontar os encarcerados. Ao longo do filme, no entanto, o personagem vai adquirindo uma face solitária e melancólica, ganhando um retrato aos modos do que Aleksandr Sokurov sentenciou para o imperador Hirohito em O Sol (2005): o balanço histórico confiscou o glamour da tirania. Quando o exército final-mente deve entrar em ação para evitar que o sistema seja burlado, ou quando o professor, ao final, enfrenta alunos subversivos, tornam-se sujeitos atrapalhados, figuras deli-beradamente burlescas: os soldados só podem discutir comicamente entre si e, se Kitano finalmente atira em um aluno, em vez de uma bala dispara um jato d’água, como se os milicos fossem agora descendentes d’O grande ditador de Charles Chaplin (1940).

De fato, mais do que os patronos da instituição, aqueles que podem ser devidamente cruéis são os alunos, forças efetivamente catastróficas ou pacificadoras de Batalha real, com as quais o filme instaura, ao mesmo tempo, parlamento e show. Fukasaku os inscreve em um dispositivo ficcional cuja substância é a de um labora-tório dramatúrgico de onde vai tirar suas consequências dramáticas e políticas mais incisivas, tendo como primeira

delas a renúncia a encarnar e estancar agências diplomá-ticas em um ou outro sujeito. Diferentemente de Zero de comportamento, de Jean Vigo (1933), ou Se..., de Lindsay Anderson (1968), os alunos não configuram uma máquina transgressora coesa, como uma classe à qual a instituição disciplinadora se antagoniza. Seus desejos e destinos são entre si também bastante diversos, e muitas vezes entram em conflito uns com os outros, encarnando as forças embrutecedoras ou pondo-as sob tensão. Como se, numa instituição que é rizomática, os alunos fossem ao mesmo tempo vítimas e algozes – e há várias formas de ser alvo; há vários modos de ser tirano. Ao mesmo tempo, se assim o é, também não se delineia facilmente aquilo que constitui um mérito para que se desenhe, de antemão, um herói ou um merecedor de louros, como em O senhor das moscas, de Peter Brook (1963), ou Jogos vorazes, de Gary Ross (2012), e sua apologia liberal.

Estão aqui tipos colegiais, cumprindo papéis narra-tivos convencionais: os bons alunos da escola, que seguem cartilha fraterna; as patricinhas, que disputam a atenção dos garotos; o nerd deslocado e desastrado; as meninas ingênuas, provavelmente virgens. Mas, uma vez que se entregam armas a cada um deles, as conhecidas relações de disputa escolar se transcrevem em extrapolações – como se pequenos atos de bullying, por exemplo, fossem traduzidos por uma realização extrema que estava em potência nos mais simples gestos de violação ou atrito. Diante das imagens do horror, as distâncias e os juízos entre espectador e fábula permanentemente evocam tradi-ções do cinema de gênero que se alternam e se cruzam,

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