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As consequências de esquecer Austin: concepções de contexto e variedades de contextualismo

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AS CONSEQUÊNCIAS DE ESQUECER AUSTIN

(CONCEPÇÕES DE CONTEXTO E VARIEDADES DE

CONTEXTUALISMO)

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Sofia Miguens Universidade do Porto (Portugal) RESUMO: J.L. Austin afirmou: “Quando examinamos o que devemos dizer quando, que palavras devemos usar em que situações, estamos a olhar não meramente para as palavras (ou “significados”, o que quer que estes sejam) mas também para as realidades de que falamos com essas palavras que usamos”. Neste artigo analiso a forma como Michael Williams (Williams, 2018, 2019) segue a sugestão de Austin em discussões recentes com outro epistemólogo, Duncan Pritchard (Pritchard, 2016). O resultado é a explicitação de algumas (más) consequências de nos esquecermos de Austin quando professamos ser ‘contextualistas’. Um objectivo central do artigo é identificar diferentes concepções de contexto pressupostas por diferentes variantes de contextualismo epistemológico.

PALAVRAS-CHAVE: Contextualismo. Hinge epistemology. Pritchard. Williams.

ABSTRACT: J.L. Austin claimed: “When we examine what we should say when, what words we should use in what situations, we are looking again not merely at words (or “meanings”, whatever they may be) but also at the realities we use words to talk about”. In this article I will examine the way Michael Williams (Williams, 2018, 2019) follows Austin’s lead in recent exchanges with another epistemologist, Duncan Pritchard (Pritchard, 2016), in order to spell out some (bad) consequences of forgetting Austin when one is a contextualist. One main goal of the article is to identify different conceptions of context underlying varieties of epistemic contextualism.

KEYWORDS: Contextualism. Hinge epistemology. Pritchard. Williams.

1 O trabalho aqui apresentado foi desenvolvido no âmbito do Projecto The epistemology of religious belief: Wittgenstein, grammar and the contemporary world (PTDC/FER-FIL/32203/2017), financiado

pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia – Portugal). As traduções dos originais citados no corpo do texto são minhas. Os originais aparecem em nota de pé de página.

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1. Contextualismo em epistemologia

Quando se pensa em contextualismo em epistemologia pensa-se normalmente em autores como Keith De Rose, Stuart Cohen ou David Lewis (RYSIEW, 2016). Neste artigo, no entanto, terei como referência um clássico da história da filosofia analítica que não é normalmente evocado nas discussões mais recentes: J. L. Austin2. Vou argumentar que esquecer Austin tem consequências perniciosas para a forma como concebemos hoje o contextualismo. A relevância deste ponto estende-se para além da filosofia da linguagem, a área com a qual Austin é mais imediatamente associado: nomeadamente, estende-se à epistemologia. Na verdade, o meu pretexto próximo para este artigo é precisamente o trabalho recente de dois epistemólogos, Duncan Pritchard (PRITCHARD, 2016) e Michael Williams (WILLIAMS, 2004, 2018, 2019). Podemos chamar-lhes contextualistas (pelo menos Michael Williams é hoje considerado um dos nomes cimeiros do contextualismo epistemológico). No entanto, talvez, seja mais apropriado pensar em ambos no contexto da chamada hinge epistemology (epistemologia das proposições-dobradiça). A hinge epistemology é assim chamada em referência a formulações usadas por Ludwig Wittgenstein em Da Certeza (WITTGENSTEIN, 1972); Wittgenstein usa aí os termos hinges, framework e riverbed (i.e. dobradiças, enquadramento, leito do rio) para nomear aspectos particularmente fixos e não explicitados, aspectos não sujeitos a dúvida da nossa vida mental e que permanecem ‘imóveis’ e intocados durante o processo normal de ajuste e revisão de crenças que caracteriza o inquérito racional. Um exemplo seria a convicção de que o mundo não começou a existir há cinco minutos atrás3.

2. Uma controvérsia reconstituída

Aquilo que me interessa aqui é um ponto particular do diferendo entre os dois epistemólogos, Duncan Pritchard e Michael Williams, um ponto que pode até parecer

2 Para uma introdução ao pensamento de J.L. Austin publicada no Brasil, cf. Miguens (2016). Ver

também Miguens (2019).

3 Duncan Pritchard e Michael Williams têm sido importantes para nós no projecto Epistemology of Religious Belief para compreender o reflexo na epistemologia das crenças religiosas das diferentes formas

de o contextualista enfrentar o céptico. O tópico é trabalhado no projecto quer por pessoas que têm convicções religiosas pessoais quer por pessoas que não as têm. Esta é no entanto uma questão que aqui deixarei totalmente de parte.

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relativamente menor. Interessa-me a forma como o apelo que Michael Williams (WILLIAMS, 2018, 2019) faz à dependência da circunstâncias austiniana (Austinian

circumstance-dependence) funciona não apenas na sua oposição ao contextualismo do

atribuidor (o attributor contextualism de Stuart Cohen ou Keith DeRose), mas também à particular versão da hinge epistemology defendida por Duncan Pritchard em Epistemic

Angst (PRITCHARD, 2016). Sublinho que o próprio Williams prefere neste momento

utilizar a expressão Austinian circumstance-dependence em vez de contextualismo para nomear a sua própria posição (COUTO & CORTI, no prelo). A razão é que o termo ‘contextualismo’ se ligou, na maioria das discussões em curso, precisamente às posições que Williams critica.

Seguindo Williams, vou procurar pôr em relevo duas consequências de esquecer Austin; isso envolverá alguma história da filosofia analítica4. A primeira consequência tem a ver com a própria noção de contexto: em causa está o facto de se conceber, ou não, o ‘contexto’ como sendo basicamente conversacional ou dialéctico. A segunda consequência tem a ver com a forma como se concebe as fronteiras entre a epistemologia e a filosofia da linguagem.

3. Austin: a dependência das circunstâncias da verdade e das provas (evidence)

Na passagem que cito em seguida (retirada das conferências sobre percepção dadas por Austin em Oxford5 e noutros lugares) e que foram publicadas sob o título

Sense and Sensibila6, Austin articula duas teses sobre dependência das circunstâncias. Estas são teses austinianas que Williams subscreve totalmente. Diz Austin:

A questão da verdade e da falsidade não está dependente apenas daquilo que uma frase é, ou daquilo que ela significa, mas falando muito latamente, das circunstâncias nas quais ela é enunciada. Frases como tais não são verdadeiras ou falsas7(AUSTIN, 1962, p. 111).

E continua:

4 Para este contexto de história da filosofia contemporânea, ver Miguens (2019). 5 E noutros lugares, nomeadamente nos Estados Unidos.

6 Austin (1962). Na edição brasileira foi escolhido o título Sentido e Percepção (São Paulo, Martins

Fontes, 2004).

7 « (…) the question of truth or falsity does not turn only on what a sentence is, nor yet on what it means,

but on, speaking very broadly, the circumstances in which it is uttered. Sentences are not as such either true or false».

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Mas é igualmente claro, quando pensamos nisso, que, pelas mesmas razões, não pode haver questão de separarmos, no nosso monte de frases, aquelas que constituem prova para outras frases, aquelas que são ‘testáveis’ ou aquelas que são ‘incorrigíveis’. Que tipo de frase é pronunciada como oferecendo provas depende, de novo, das particulares circunstâncias de particulares casos; não há um tipo único de frase que como tal forneça evidência ou prova, assim como não há um tipo único de frase que seja surpreendente, ou duvidosa, ou certa, ou incorrigível, ou verdadeira8(AUSTIN, 1962, p. 111).

Do ponto de vista da história da filosofia (especificamente da história da filosofia analítica) é importante sublinhar o seguinte. Esta passagem de Sense and

Sensibilia é escrita em oposição à teoria do estatuto epistémico do conteúdo, atribuída a

A. J. Ayer, o conhecido positivista lógico britânico (a expressão content theory of

epistemic status, que estou a traduzir por teoria do estatuto epistémico do conteúdo, é do

próprio Williams). Noutras palavras, Austin formula a sua posição contra o estatuto especial que teriam as frases que exprimem um conteúdo específico (concretamente

sense data), de acordo com o positivista lógico. A ideia do positivista lógico seria que

as únicas frases que podem oferecer provas (evidence providing sentences) são precisamente frases de sense data; elas seriam, por assim dizer, em si e por si fornecedoras de prova e só elas poderiam sê-lo.

Note-se que, na passagem citada, uma observação semântica acerca de verdade (diz-se que as frases como tais não são verdadeiras ou falsas: apenas enunciações particulares em circunstâncias particulares poderão ser verdadeiras ou falsas) é seguida por uma observação epistemológica sobre conhecimento e provas (afirma-se que nenhum tipo de frase é como tal, por si só, fornecedor de provas). Da mesma forma que não poderíamos, diz Austin,

(…) pegar num feixe de frases (ou proposições como Ayer prefere dizer) impecavelmente formuladas numa linguagem ou outra e as dividimos naquelas que são verdadeiras e naquelas que são falsas, também não poderia ser questão de pegar do nosso feixe de frases naquelas que são prova para outras, naquelas que são ‘testáveis’, ou naquelas que são ‘incorrigíveis’9 (AUSTIN, 1962, p. 110-11).

8 « But it is really equally clear, when one comes to think of it, that for much the same reasons there could

be no question of picking out from one’s bunch of sentences those that are evidence for others, those that are ‘testable’, or those that are ‘incorrigible’. What kind of sentences uttered as providing evidence for what depends, again, on the particular circumstances of particular cases; there is no kind of sentence which as such is evidence-providing, just as there is no kind of sentence which as such is surprising, or doubtful, or certain, or incorrigible, or true”.

9 « (…) take a bunch of sentences (or propositions as Ayer prefers) impeccably formulated in some

language or other and sort them out in those that are true and those that are false», there could be no question of picking out from one’s bunch of sentences those that are evidence for others, those that are ‘testable’, or those that are ‘incorrigible’.»

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O que Austin quer sublinhar é que o faz prova de quê depende das circunstâncias particulares de casos particulares. O ponto acerca de linguagem é que nenhum tipo de frase é por si, por ser uma frase desse tipo, fornecedor de prova ou evidência. Quando Austin liga as duas observações (a observação semântica e a observação epistemológica) com a expressão ‘pelas mesmas razões’ o que ele está a fazer é sublinhar a dependência das circunstâncias, quer da verdade (o ser verdadeira ou falsa de uma frase – ou melhor, de uma enunciação, utterance), quer do facto de algo constituir evidência ou prova de alguma coisa.

É aqui que encontramos o ponto que me interessa no diferendo entre Williams e Pritchard. É que, embora Williams admita que ele e Pritchard partilham muita coisa nas sua leitura de Da Certeza (WITTGENSTEIN 1972), ele pensa que Pritchard é cego à dependência das circunstâncias austiniana, que está, por sua vez, muito próxima daquilo que Wittgenstein quer defender em Da Certeza. Na leitura de Pritchard, o grande propósito de Wittgenstein em Da Certeza é mostrar que a justificação epistémica é

local, i.e. que o inquérito racional não coloca em questão a totalidade das crenças. Isto

é muito diferente de pensar que a significação, a verdade e a prova são dependentes das

circunstâncias, que é o que pensa Williams. Essa diferença é o meu interesse

fundamental no presente artigo.

4. Variedades do contextualismo epistemológico

O contextualismo epistemológico, tal como os contextualismos de outros tipos, tem uma variedade de versões. Em geral, fala-se de contextualismo epistemológico quando alguém defende que certas características do contexto afectam os standards que um sujeito S tem de satisfazer para que as crenças de S contem como conhecimento (ou, em alternativa, para que uma frase atribuindo conhecimento a S seja verdadeira). As atribuições de conhecimento são sensíveis ao contexto. Esta posição tornou-se uma opção particularmente discutida como resposta ao problema do cepticismo. O mesmo se passa com a epistemologia das proposições-dobradiça; a disputa entre Pritchard e Williams tem lugar nesse quadro. Embora os seus propósitos não sejam hermenêuticos, a epistemologia das proposições-dobradiça começa como uma interpretação de Da

Certeza. Os parágrafos seguintes são os parágrafos de Da Certeza mais frequentemente

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§ 341. As questões que levantamos e as nossas dúvidas dependem do facto de algumas proposições serem isentas de dúvida, como se fossem dobradiças nas quais estas giram10.

§ 342. Quer dizer, faz parte da lógica das nossas investigações científicas não duvidar de fato de certas proposições11.

§ 343. Mas não é que a situação seja a seguinte: nós simplesmente não podemos investigar tudo, e por essa razão devemos contentar-nos com a suposição. Se queremos que a porta abra, as dobradiças têm de manter-se no lugar12.

Quer Williams quer Pritchard aceitam a ideia wittgensteiniana geral segundo a qual a avaliação racional das nossas crenças acontece sobre um pano de fundo de certezas, de compromissos-dobradiça (hinge commitments), no sentido em que o conhecimento e a justificação dependem de certezas básicas que fornecem um enquadramento das nossas práticas epistémicas de inquérito e justificação (o leito do rio e as dobradiças são as imagens do próprio Wittgenstein). Exemplos de proposições-dobradiça poderiam ser por exemplo eu sei que tenho duas mãos, que tenho pais, que tenho um cérebro, que estou a falar português, que vivo no Porto. Estas proposições-dobradiça têm um carácter epistémico muito sui generis – elas não respondem directamente à consideração racional, não estão abertas à questão ‘Como é que sabes?’ da mesma forma que outras proposições. Imaginemos que um amigo alemão me diz que o primeiro ministro de Portugal é Pedro Passos Coelho. Eu digo-lhe: ‘Mas Pedro Passos Coelho já não é primeiro ministro de Portugal, deixou de o ser em 2015! O actual primeiro ministro é António Costa’. O meu amigo alemão prontamente reformularia a sua crença, sem mais problemas, passando a acreditar que o primeiro ministro português é António Costa. O mesmo não se passa, no entanto, com a convicção de que o mundo não começou a existir há cinco minutos atrás. O que seria alguém dizer-me que eu estou enganada e que, na verdade, o mundo começou a existir há cinco minutos atrás, mesmo tendo nós todas as memórias e convicções que temos acerca do passado distante? O que é que eu faço se acreditar nessa pessoa? Como altero as minhas crenças em função dessa descoberta? São estas hinges – proposições-dobradiça – que nós não pomos em geral em causa, que marcam a groundlessness (o sem fundo) das nossas crenças

10 «The questions we raise and our doubts depend on the fact that some propositions are exempt from

doubt, are as it were like hinges on which those turn.»

11 «That is to say, it belongs to the logic of our scientific investigations that certain propositions are in

deed not doubted»

12 «But it isn’t that the situation is like this: We just can’t investigate everything, and for that reason we

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(WITTGENSTEIN, 1972, §166). É porque há proposições-dobradiça como estas ‘a trabalhar’ na avaliação de crenças e no inquérito racional que a própria ideia de uma avaliação racional geral das crenças parece incoerente; Pritchard e Williams concordam quanto a isso.

No núcleo da disputa entre Pritchard e Williams está algo diferente. Desde logo está a questão de saber se estas certezas básicas, estas crenças-dobradiça, constituem conhecimento. De acordo com Pritchard, a resposta é negativa. As proposições-dobradiça não são knowledge-apt, não são aptas para o conhecimento, não são crenças propriamente ditas. Para Williams, pelo contrário, elas são certamente conhecimento – elas são, aliás, o protótipo daquilo que é saber alguma coisa. Se há certeza nas nossas vidas mentais, é em crenças como estas. Para mostrar que o próprio Wittgenstein via as

hinge-propositions como conhecimento, Williams costuma citar o seguinte parágrafo de Da Certeza (WITTGENSTEIN, 1972, § 340):

Nós sabemos com a mesma certeza com que acreditamos numa qualquer proposição matemática como se pronuncia as letras A e B, como se chama a cor do sangue humano, que outros seres humanos têm sangue e lhe chamam ‘sangue’13.

Olhemos para um exemplo muito simples. Digamos que Austin, ele próprio,diz: Eu vivo em Oxford (ou que eu digo: Eu vivo no Porto). Ele tem a certeza disso. A pessoa ao seu lado não tem a certeza disso, não tem de ter. A pessoa ao lado de Austin pode perfeitamente duvidar do que Austin diz (ou um amigo brasileiro pode duvidar do que eu digo quando digo que vivo no Porto). Mas Austin, ele próprio, não pode duvidar que vive em Oxford e eu própria não estou em posição de duvidar do que digo e penso quando digo ‘Eu vivo no Porto’. Que forma poderia ter a dúvida de Austin sobre viver em Oxford? Ele tem a certeza. Que forma teria a minha dúvida acerca de viver no Porto? Eu tenho a certeza. Mas uma tal certeza não pode ser provada. O que poderia constituir prova? Será que, no caso de Austin, o facto de receber correspondência em seu nome, com um endereço de Oxford, constitui prova de que vive em Oxford? Será que saber que vive em Oxford é algo que ele conclui a partir daí? Por exemplo, ele recebe a correspondência endereçada a si e pensa: bem, eu devo viver em Oxford, já que esta correspondência está endereçada a um Mr. J. L. Austin, e tanto quanto sei J. L.

13 «We know with the same certainty we believe any mathematical proposition, how the letters A and B

are pronounced, what the colour of human blood is called, that other human beings have blood and call it ‘blood’».

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Austin sou eu. Isto significa que eu devo viver em Oxford14. Seria muito estranho pensar assim. Mas, claramente, também não se trata de uma verdade auto-evidente. Como pode algo assim ser conhecimento?

Lembremo-nos da tese de Austin na passagem com que comecei: não existem frases que sejam em si e por si duvidáveis ou indubitáveis – como se houvesse a pilha das frases que seriam verdadeiras e a pilha das frases que seriam falsas, a pilha das frases que fornecem evidência e a pilha das frases que precisam de provas (que em si,

an sich, precisam de provas). Se mesmo assim há certezas, proposições-dobradiça das

quais estamos tão certos quanto podemos estar certos de alguma coisa, então (e este é o ponto de Austin e o ponto de Williams) isso significa que existem certezas objectivas que não estão ligadas nem a razões conclusivas nem à auto-evidência. A ideia que entra aqui então é a ideia de que uma certeza objectiva pode estar simplesmente ligada à

ausência de dúvidas razoáveis. Perguntamos: faz sentido duvidar disto? Por exemplo:

eu sei que vivo no Porto. Faz sentido eu duvidar disso? Não, que não faz sentido. Williams preocupa-se evidentemente por explicitar o que significa aqui ‘fazer sentido’ (veja-se WILLIAMS, 2019, p. 73, acerca de ‘making sense’). Parece colocar-se uma alternativa: será que não faz sentido duvidar porque duvidar disto seria ininteligível? Ou será que não faz sentido duvidar porque duvidar disto seria totalmente irrazoável? Williams escolhe as duas, ambas estão em causa no fazer ou não fazer sentido de uma dada forma de pensar; retomarei este ponto mais à frente. A grande insistência de Williams (presente no título do seu livro de 1991, Unnatural Doubts) é que dúvidas também precisam de fundamento, não são apenas as crenças que precisam de fundamento. O que Williams quer dizer com isto é que é preciso ter razões especificas para duvidar de algo, da mesma forma que é em geral preciso ter razões específicas para ter uma dada crença. Ora, pode simplesmente acontecer que numa dada circunstância tudo fale a favor de p (por exemplo que eu tenho duas mãos, que o mundo não começou a existir há 5 minutos atrás, que eu vivo no Porto) e nada fale contra. Então, nessa circunstância eu não tenho razão para duvidar.

Frequentemente, os cenários para dúvida são trazidos à discussão nos termos das chamadas ‘alternativas pertinentes’ (relevant alternatives). Vale a pena recordar que a ideia de alternativas pertinentes que fez tanto trabalho na epistemologia das ultimas décadas tem a sua origem em Austin, e precisamente no mesmo contexto que comecei

14 Claro que conseguimos imaginar circunstâncias excepcionais – por exemplo em que alguém ficou

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por evocar, i.e. em Sense and Sensibilia, as lectures de Oxford sobre percepção. A ideia surge quando Austin está a considerar a percepção e a insdiscriminabilidade subjectiva de percepções verídicas e ilusões e quer saber o que poderia aliviar as dúvidas que aí surjam.

Consideremos um exemplo muito conhecido de Sense and Sensibilia: digamos que p é a proposição ‘está um pintassilgo no jardim’. Eu sei que está um pintassilgo no jardim. Dizer que eu sei que p, que eu sei que está um pintassilgo no jardim é dizer que, para os presentes propósitos e na presente situação, não existe uma alterativa pertinente. Não significa que seja suficiente para estabelecer definitivamente que não se trata, por exemplo, de um pintassilgo empalhado. Saber que p é o que é e não é muitas outras coisas, diz Austin. Austin está, portanto, a sugerir que eu conte como sabendo que está um pintassilgo no jardim mesmo se não sei que não é um pintassilgo empalhado, e se for um pintassilgo empalhado, então evidentemente não é um pintassilgo.

Note-se que Pritchard pensa que Austin está simplesmente a sublinhar quão diferentes são as nossas práticas comuns de avaliação epistémica e a avaliação radical que o céptico exige. Ele crê que isso é tudo o que Austin faz (veja-se PRITCHARD, 2016, p. 68). Creio que o que Austin diz não é tão pouco, ou tão fraco, como Pritchard pensa, mas não entrarei por aí.

De qualquer forma, certamente os leitores já reconheceram aqui a forma de argumentos cépticos radicais, tais como o Génio Maligno ou o Cérebro numa Cuba. Estes são formuláveis como um Argumento a partir da Ignorância (AI). CS é um cenário céptico, como o cenário do Génio Maligno, p uma proposição como, por exemplo, ‘Estas mãos são minhas’:

(AI-P1) Eu sei que p

(AI-P2) Eu não sei que não-CS

(AI-C) Se eu não sei que não-CS, então eu não sei que p.

Uma orientação fundamental do trabalho de Williams em epistemologia é a ideia segundo a qual razões para duvidar não são tão fáceis de encontrar como o céptico pensa. Muito especificamente, contos de fadas não chegam (“fairy tale imaginings do not do it” diz Williams, i.e. imaginações de conto de fadas não são suficientes). Ora, para Williams, cenários tais como o Cérebro numa Cuba não são hipóteses, são precisamente contos de fadas, meras histórias – algo que ele costuma ilustrar com a seguinte imagem:

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Wile E. Coyote a flutuar por cima do abismo não nos faz duvidar da lei da gravidade (WILLIAMS, 2019, p. 76)15.

Williams vê esta consideração como um ponto acerca de contexto. O problema do contextualismo do atribuidor é supor que se pode efectuar uma mudança de contexto meramente considerando em pensamento hipóteses de erro: a receita do contextualismo do atribuidor para considerar possibilidades de erro é a Possibilidade Metafísica mais fecho (Closure) num contexto dialético, i.e. linguisticamente formulado. Ora, Williams defende que a mera consideração dialética da possibilidade de erro não pode ser um obstáculo ao conhecimento, nomeadamente porque aquilo a que ele chama ‘cenários de contos de fadas’ falha o mundo actual, o mundo real.

Mas por que é que o mundo actual seria importante? Chegamos aqui a uma outra ideia essencial acerca de contexto. Recordemos que, de um ponto de vista austiniano, os objectos da avaliação epistémica são enunciações, i.e. pretensões avançadas, ou compromissos assumidos, por falantes específicos em circunstâncias particulares. Se uma enunciação constitui conhecimento depende daquilo que é a pretensão, de quem é a pretensão, a quem é dirigida, onde e quando. Noutras palavras, estar em posição de saber que p envolve todos os aspectos acima listados das circunstâncias epistémicas de uma pessoa, não apenas uma troca linguística com um interlocutor com quem se pactua, por exemplo, jogar o jogo do cenário céptico. Contexto não é apenas uma questão conversacional ou dialética, defende Williams. Todos os aspectos da situação do agente no mundo (real, actual) importam, não apenas a troca linguística.

Esta noção de contexto de Williams, um contexto multidimensional e dependente das circunstâncias, está por trás da leitura que ele faz de Da Certeza e das proposições-dobradiça (como já referi, ele prefere o termo framework, que Wittgenstein também utiliza). Ora uma tal leitura contrasta fortemente com o foco de atenção de Pritchard. Para Pritchard, o que Wittgenstein está a fazer em Da Certeza é mostrar que a avaliação racional é local. A crença, em geral, não apenas a crença religiosa, supõe compromissos de fé, no sentido de crenças básicas, compromissos-dobradiça (também por isso não constitui argumento contra a crença religiosa o facto de esta envolver

15 «Wile E. Coyote floating above off the cliff on the screen does not make us doubt the law of gravity».

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compromissos não racionais; na verdade, todas as crenças envolvem compromissos não racionais). Tais certezas básicas estão simplesmente aí, diz Pritchard, tal como as nossas vidas: eu tenho duas mãos, eu tenho pais, eu estou a escrever em português, eu vivo no Porto. Uma avaliação perfeitamente geral do meu corpo de crenças que tivesse resultados negativos é uma ideia incoerente. Pritchard dá aliás ainda um passo mais: ele propõe não apenas que tais crenças-dobradiça são arracionais como também que há uma überhinge, uma supra-dobradiça: a convicção de que a maioria das minhas crenças são verdadeiras, que nós não estamos radicalmente e fundamentalmente errrados nas nossas crenças. Isto leva-o a acentuar aquilo a que chama o carácter animal de tais crenças básicas (entre leitores do Da Certeza, que vão desde Crispin Wright a Annalisa Coliva, Pritchard está mais próximo das leituras não proposicionais das ‘dobradiças’ como a leitura de Danièle Moyal-Sharrock). Dado o seu carácter visceral, os compromissos-dobradiça não são opcionais, defende Pritchard. Eles não poderiam ser intelectualmente opcionais porque são viscerais, são compromissos animais (veja-se

Epistemic Angst). Por isso, eles não são nem adquiridos através de processos racionais

nem respondem a considerações racionais. Ninguém nos ensina que temos duas mãos; o que nos ensinam é a fazer coisas com elas. O inquérito racional não avalia tais convicções básicas e fundamentais – e não vamos encontrar um dia uma forma de as avaliarmos.

No entanto, Williams pensa (segundo Pritchard) que as dobradiças podem ser (re)movidas, que elas são opcionais. Isto é um grave problema da posição de Williams para Pritchard. Williams defende-se dizendo que Pritchard não o entendeu: ele não está a afirmar que proposições-dobradiça tais como ‘eu tenho duas mãos’ ou ‘eu tenho pais’, ou ‘eu estou a falar português’, ou ‘eu vivo no Porto’, são opcionais para mim. O que ele está a fazer é defender uma tese sobre significação e pretensões de conhecimento (knowledge claims), mais especificamente uma tese sobre a enunciação de pretensões de conhecimento. Ele está a afirmar que qualquer enunciação é dependente do contexto, no sentido de contexto que foi explicitado acima (pense-se na enunciação de ‘eu tenho duas mãos’ ou ‘eu tenho pais’ no contexto de um videogame e na nossa vida normal). Quanto a proposições – dobradiça ou hinges, Wittgenstein afirma em Da Certeza (WITTGENSTEIN, 1972, §340) que nós sabemos com a mesma certeza com que acreditamos numa proposição matemática como são pronunciadas as letras A e B, como se chama a cor do sangue humano, que os outros seres humanos têm sangue e lhe chamam sangue. Para Williams, isto é conhecimento, isto é certeza, se alguma coisa

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pode alguma vez ser conhecimento e certeza. Ao contrário do que diz Pritchard, estas convicções não são arracionais ou inaptas para o conhecimento. Da forma como Williams vê as hinges, estas não são compromissos viscerais: elas permitem

wissenschftlichen Untersuchungen16, i.e. investigações científicas (no sentido em que ‘científico’ tem em alemão e que se aplica a todas as áreas académicas e não apenas às ciências naturais e formais). Pense-se no papel de acreditar que ‘o mundo não começou a existir há cinco minutos atrás’ quando se está a escrever um artigo de história do Brasil ou de Portugal. Tal crença não é um compromisso visceral e no entanto é uma

hinge, no sentido que está ser discutido.

5. A diferença entre Williams e Pritchard colocada em termos de cenários e contexto, crenças e significação

A chave para tudo isto é orientarmo-nos quando falamos de contexto, cenário, ser local e dependência da circunstâncias. Williams afirma (COUTO & CORTI, no prelo):

(…) não tenho simpatia pelo contextualismo do atribuidor porque a minha noção de contexto nunca foi a noção de contexto deles. Qual é a noção de contexto deles? É uma noção de “contexto conversacional” ou “contexto dialético” de acordo com a qual podemos mudar os standards de justificação e focarmo-nos nos standards de conhecimento que são mantidos pelas possibilidades de erro trazidas pela conversação. No final de contas “contexto” é uma questão do assunto sob discussão – acerca de que possibilidades de erro têm de ser excluídas pela nossa evidência ou o que seja, se queremos contar como conhecendo algo17.

Ora a noção de contexto de Williams foi sempre, afirma ele, multidimensional. Com isto ele quer dizer (veja-se o seu livro Problems of Knowledge) que um conjunto de factores constituem o contexto. Contexto não é apenas aquilo sobre que se está a falar; não é apenas uma questão das possibilidades de erro que foram postas em cima da mesa na conversa que estamos a ter neste momento (por exemplo, entre filósofos). Há

16 O termo é de Wittgenstein.

17 «I'm not sympathetic to it (attributor contextualism) because my notion of context was never that notion

of context. What is their notion of context? It is a notion of “conversational” or “dialectical context” according to which you can change the standards of justification and focus on the standards for knowledge that are enforced by what error possibilities are brought up in the conversation. In the end “context” is a matter of the question under discussion – about what error possibilities need to be excluded by one's evidence or whatever, if one is to be knowledgeable.»

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conhecimento de fundo (background knowledge), existem objecções correntes que podem estar disponíveis para certas concepções que são avançadas e existe a situação mundana real em que se está:

Estar em posição de saber alguma coisa é uma questão de como se está no mundo, não apenas de que possibilidades de erro nos passam pela mente18.

O ponto de Williams é um ponto sobre justificação: a justificação está sujeita a constrangimentos de inteligibilidade, ou constrangimentos semânticos, em situações reais no mundo. A justificação não é simplesmente questão de não se estar enganado em cenários dialeticamente formulados (como faz notar Williams em WILLIAMS, 1999, p. 160). Em algum momento, os erros passam (de forma esbatida) a ininteligibilidade; é isso mesmo, de resto, que Wittgenstein explora em muitos dos exemplos de Da Certeza.

Isto está em contraste com a abordagem de Pritchard. Consideremos a dialética global do seu livro Epistemic Angst. A proposta biscópica de Pritchard, que visa evitar a ‘angústia epistémica’ (epistemic angst), é uma defesa unificada contra o cepticismo radical. Ela inclui uma forma wittgesnteiniana de enfrentar o cepticismo radical baseado em closure (fecho) e também o disjuntivismo epistemológico. O resultado da primeira parte do projecto é que a justificação é local, mas que ainda assim se pode manter o conhecimento paradigmático (por exemplo: eu sei que estou sentado à minha secretária, a escrever no meu computador)19 e a prioridade epistémica20 em conjunto com as

hinges, proposições-dobradiça. Noutras palavras: se quer Pritchard quer Williams se

erguem contra a ideia de justificação global, envolvendo todas as crenças, há no entanto uma profunda divergência entre ambos quanto à prioridade epistémica. Isto acontece porque para um a discussão sobre hinges é uma discussão sobre o carácter sempre local da justificação, enquanto que para o outro a discussão é sobre o facto de a justificação ser dependente das circunstâncias. Ora estas duas coisas são muito diferentes.

Para Williams, que Pritchard possa falar sobre E como uma proposição que exprime uma caso paradigmático de conhecimento quotidiano ou comum (paradigm

case of everyday knowledge) está longe de ser inocente e mostra que ele é cego às

18 «Being in a position to know is a matter of how you are fixed in the world, and not just what error

possibilities are fleeting through your mind» (Williams em Couto & Corti, no prelo).

19 Pritchard (2016, p. 12). Pritchard chama a esta proposição a proposição E.

20 A expressão, tal como é usada por Williams significa prioridade do conhecimento experiencial

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circunstâncias. Pritchard continua simplesmente a discutir conhecimento do mundo como tal. Mas, afirma Williams:

(…) a questão do fecho desvia a atenção do mais importante. Para Wittgenstein, como para mim, o erro mais importante é feito já na primeira premissa (de um argumento de ignorância como o dos cenários cépticos)

(AI-1) Eu sei que O

(AI-2) Eu não sei que não-CC

(AI-3) Se eu não sei que não CC, então eu não sei que O.

A premissa apoia-se sobre duas suposições. A primeira é que uma ‘proposição comum’, como candidata a ser conhecida, pode ser identificada simplesmente por algum traço geral do seu conteúdo. Ela é acerca de um objecto determinado ou situação que pode ser reconhecido sem conhecimento especializado. A segunda é que não há razão evidente para duvidar da verdade da proposição: tanto quanto sabemos, a situação parece conduzir a nós sabermos aquilo que pensamos saber. Ambas as suposições estão erradas. Os objectos apropriados da avaliação epistémica são o que Austin chama enunciações, ‘statements’: pretensões avançadas, ou compromissos assumidos, por falantes particulares em circunstâncias particulares. Se uma enunciação exprime conhecimento, ou se um compromisso redunda de facto em conhecimento, depende de que pretensão é avançada, por quem, onde e quando. Estar em posição de saber alguma coisa envolve todos estes aspectos, quatro aspectos, das cricunstâncias epistémicas de uma pessoa (WILLIAMS, 2019, p. 78-79)21.

A tese geral de Williams é assimque a abordagem de Pritchard está apoiada na suposição de independência quanto às circunstâncias. Sem tal suposição, Pritchard não poderia ter as relações de prioridade epistémica de que precisa para montar o seu caso. Mas foi precisamente a prioridade epistémica que Austin afastou, conjuntamente com a

21 «(…) the issue of closure is a red herring. For Wittgenstein as for me, the crucial mistake is taken in the

first premise [of the Argument from Ignorance above, dealt with the radical skeptical scenarios) (AI-1) I know that O

(AI-2) I do not know that not-SS

(AI-3) If I do not know that not-SS, I do not know that O.

The premise builds in two assumptions. The first is that an ‘everyday proposition’, as a candidate for being known, can be identified simply by some broad feature of its content: it about a determinate object or situation that can be recognized without specialist knowledge. The second is that there is no evident reason to doubt the proposition’s truth: as far as we can tell, the situation appears to be conducive to our knowing what we take ourselves to know. Both assumptions are wrong. The proper objects of epistemic evaluation are what Austin calls ‘statements’: claims made (or commitments undertaken) by particular speakers in particular circumstances. Whether a statement expresses knowledge, or a commitment amounts to knowledge, depends on what is claimed, by whom, where and when. Being in a position to know engages all four aspects of a person’s epistemic circumstances.»

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independência relativamente das circunstâncias. Sem tais suposições, simplesmente não existe o problema céptico baseado no fecho (closure), que Pritchard pensa que existe. Não vou entrar agora na complexa discussão de Pritchard ou na análise de toda a sua terminologia – creio que é realmente uma questão saber se Pritchard é vulnerável a esta crítica bem mais simples que acabo de enunciar.

6. Conclusão: Filosofia da linguagem e epistemologia

Até aqui considerei elementos de um debate acerca da natureza e da estrutura da justificação racional, e acerca da certeza em particular. O meu interesse por Williams provém do facto de ele pensar que, a um nível fundamental, a certeza está fundada em condições para a significação; a certeza não é directamente uma questão de evidência e provas. Assim sendo, o estatuto epistémico de uma qualquer pretensão (claim) é duplamente dependente das circunstâncias (quanto à verdade, quanto à evidência ou prova). Saber se faz sequer sentido pedir razões para uma crença numa particular situação depende não apenas do que é perguntado, mas de quem está a perguntar a quem, numa particular situação mundana.

É por isso que o conhecimento é dependente das circunstâncias (“knowledge is circumstance-dependent”, diz Williams, em WILLIAMS, 2019, p. 64). Dependência das circunstâncias não é apenas localidade da justificação epistémica: tem a ver com as condições requeridas para as coisas que dizemos fazerem sentido num contexto multidimensional. Um contexto multidimensional inclui a situação actual concreta do putativo conhecedor; os factores dialéticos são apenas uma parte desse contexto epistémico multidimensional. É por isso que contextos (por exemplo, contextos cépticos) não podem ser meramente criados conversacionalmente, como se fosse por

fiat.

A esta luz, a hinge epistemology de Pritchard aparece aos olhos de Williams como puramente epistemológica e apenas superficialmente contextual, já que ela é cega à dependência das circunstâncias. A dependência das circunstâncias é uma questão acerca de linguagem, de significação e de fazer sentido por um agente produzindo enunciações num mundo real e actual. Quando Williams acusa a hinge epistemology de Pritchard de ser puramente epistemological, o que ele quer dizer é que Pritchard passa por cima de quaisquer considerações acerca de sentido e verdade de asserções, passa por cima de quaisquer considerações de filosofia da linguagem. Para Williams, essas

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considerações de filosofia da linguagem estão no coração de Da Certeza, e são centrais nas preocupações de Austin. Não perceber a sua importância é uma consequência de esquecer Austin.

Em contraste, para Pritchard (Epistemic Angst), tais questões de verdade e significação são controversas, pertencem claramente à filosofia da linguagem e devem ser deixadas de lado quando fazemos epistemologia:

Embora pudesse ter sido o intento último de Wittgenstein [em On Certainty] motivar o seu anti-cepticismo fazendo apelo a uma teoria da significação altamente sensível ao contexto, devemos ter o cuidado de não nos sobrecarregarmos com esta bagagem filosófica se pudermos evitá-lo. Porque seguir esta linha de argumentação (…) é tornarmo-nos reféns de teses filosóficas mais amplas, que se estendem bem para além da epistemologia e que podem não ser elas próprias em última análise plausíveis (PRITCHARD, 2016, p. 86)22.

Porque mantém Austin em mente, Williams afirma, em contraste, e olhando para a sua carreira de décadas como epistemólogo:

Nunca pensei que pudéssemos tratar a epistemologia como uma espécie de subespecialidade autosuficiente, como algumas pessoas fazem hoje. Não acredito que existam linhas claras a separar a epistemologia, a filosofia da linguagem, a filosofia da mente e a metafísica23 (COUTO & CORTI, no prelo).

Gostaria por isso de acabar com uma citação de Austin, de A Plea For Excuses (Austin 1970):

Quando examinamos o que devemos dizer quando, que palavras devemos usar em que situações, nós não estamos a olhar meramente para palavras (ou para ‘significados’, sejam estes o que forem), mas para as coisas reais sobre que falamos: estamos a usar a consciência aguçada das palavras para aguçar – não para ser o árbitro final – a nossa consciência dos fenómenos (AUSTIN, 1970, p. 182)24.

22 «While it might ultimately have been Wittgenstein’s intent [in OC] to motivate his anti-skepticism by

appeal to a highly context-sensitivity account of meaning, we should be wary of saddling ourselves with this philosophical baggage if we can avoid it. For to take this kind of line (…) is to make oneself hostage to wider philosophical claims, extending well beyond epistemology that may not be themselves plausible in the final analysis.»

23 «I have never thought that one could treat epistemology as a kind of self-standing subspecialty, in the

way some people do today. I don't believe there are clear lines between epistemology, philosophy of language, philosophy of mind, and metaphysics».

24 «When we examine what we should say when, what words we should use in what situations, we are

looking again not merely at words (or “meanings”, whatever they may be) but also at the realities we use words to talk about: we are using a sharpened awareness of words to sharpen our awareness of, though not as the final arbiter of, the phenomena».

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Aquilo que Austin representa para os muitos filósofos que se declaram austinianos, como Williams, é a ideia segundo a qual em filosofia, pelo menos, não há uma coisa tal que seja ‘meramente olhar para palavras’, como não há uma coisa tal que seja meramente olhar para o conhecimento ou para a certeza sem querer saber de what we

say when (o que dizemos quando) e onde, e a quem e em que situação mundana, quando

dizemos que sabemos que p. Isto é algo que devemos manter em mente quando discutimos num contexto epistemológico exemplos tais como ‘eu sei que estou sentado à minha secretária, a escrever no meu computador’ ou ‘eu sei que estas mãos são minhas’.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUSTIN, J.L. Sense and sensibilia. Oxford: Oxford University Press, 1962.

_____. A Plea for Excuses. In: AUSTIN, J.L. Philosophical papers. Oxford: Oxford University Press, 1970.

COUTO, D. & CORTI, L. Contextualism in context – interview with Michael Williams. In: Avant – Trends in Interdisciplinary Studies (no prelo).

MIGUENS, S. J.L. Austin, o realismo de Oxford e a epistemologia: uma releitura de

“Other Minds”. Revista Aurora, v. 28, n. 44, p. 653-686, 2016.

_____. Uma leitura da filosofia contemporânea – figuras e movimentos. Lisboa: Edições 70, 2019.

PRITCHARD, D. Epistemic angst. Princeton NJ: Princeton University Press, 2016. RYSIEW, P. Epistemic Contextualism. In: Zalta, N. (Ed.) The Stanford encyclopedia of

philosophy (Winter 2016 Edition). Disponível em:

<https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/contextualism-epistemology/> WILLIAMS, M. Unnatural doubts. Princeton NJ: Princeton University Press, 1991. _____. Problems of knowledge. Oxford: Oxford University Press, 2001.

_____. Wittgenstein’s refutation of idealism. In: McMANUS, D. (Ed.). Wittgenstein

and scepticism. London: Routledge, 2004.

_____. Beyond unnatural doubts. In: MARCHESAN E. & ZAPERO, D. (Eds.).

Context, truth and objectivity. London: Routledge, 2019.

WITTGENSTEIN, L. On certainty. New York: Harper, 1972.

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