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A raça e o gênero enquanto fatores determinantes da violência doméstica contra a mulher negra / Race and gender as determining factors of domestic violence against black women

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Academic year: 2020

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p. 49225-49234, jul. 2020. ISSN 2525-8761

A raça e o gênero enquanto fatores determinantes da violência doméstica

contra a mulher negra

Race and gender as determining factors of domestic violence against black

women

DOI:10.34117/bjdv6n7-535

Recebimento dos originais: 03/06/2020 Aceitação para publicação: 21/07/2020

Liliane Matias da Silva

Estudante de Graduação, curso de bacharelado em Direito em andamento, Universidade Regional do Cariri

Rua São Salvador, nº 48, Bairro São Miguel, Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil lili_matias_07@hotmail.com

Felipe Silva Duarte

Estudante de Graduação, curso de bacharelado em Direito em andamento, Universidade Regional do Cariri

Avenida José Horácio Pequeno, nº 1312, Bairro Novo Lameiro, Crato, Ceará, Brasil felipeduarte.direito@gmail.com

Joseane de Queiroz Vieira

Bacharel em Direito e em Psicologia, Mestre em Direito com área de concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela UNISC, docente do Centro Universitário Doutor Leão Sampaio –

UNILEÃO

Rua Adalto Vieira Lopes, nº 143, Bairro Novo Juazeiro, Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil joseanedqv@hotmail.com

RESUMO

Esta pesquisa tem como temática a raça e o gênero enquanto fatores determinantes da violência doméstica contra a mulher negra. Assim, o objetivo central deste estudo é analisar esse duplo aspecto de vulnerabilidade enquanto causas substanciais da violência contra a negritude feminina em seu âmbito privado. Para tanto, iniciou-se estudando brevemente acerca da raça, bem como sobre as origens e os impactos do racismo, para em seguida analisar a gênese do fenômeno de dominação/submissão em razão do gênero. Com base nesse estudo, foi estabelecida uma interrelação entre o gênero e a raça enquanto fatores da violência contra a mulher negra no seio familiar, e refletido acerca do papel da Lei Maria da Penha na qualidade de mecanismo legislativo no combate à violência doméstica. O trabalho ora apresentado é resultado de uma pesquisa de metodologia dedutiva, com uma abordagem qualitativa e com caráter descritivo e explicativo, onde se utilizou de procedimento essencialmente bibliográfico. Com isso, concluiu-se que “ser mulher” e “ser negra” é fazer parte de um perfil de pessoas que historicamente sofreram obstáculos para seu desenvolvimento social e que, por essa razão, continuam sendo submetidas à violência doméstica.

Palavras-chave: Raça. Gênero. Mulher. Negritude. Violência doméstica. ABSTRACT

This research focuses on race and gender as determinants of domestic violence against black women. Thus, the central objective of this study is to analyze this double aspect of vulnerability as substantial

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p. 49225-49234, jul. 2020. ISSN 2525-8761 causes of violence against female blackness in its private sphere. To this end, it began by briefly studying race, as well as the origins and impacts of racism, and then analyzing the genesis of the phenomenon of domination / submission based on gender. Based on this study, an interrelation between gender and race was established as factors of violence against black women in the family, and reflected on the role of the Maria da Penha Law as a legislative mechanism in the fight against domestic violence. The work presented here is the result of a research of deductive methodology, with a qualitative approach and with a descriptive and explanatory character, where an essentially bibliographic procedure was used. As a result, it was concluded that “being a woman” and “being black” is part of a profile of people who have historically suffered obstacles to their social development and who, for this reason, continue to be subjected to domestic violence.

Keywords: Race. Genre. Woman. Blackness. Domestic violence.

1 INTRODUÇÃO

Enquanto sujeito social, a mulher negra tem figurado nas páginas da história brasileira como alvo do vultoso panorama de violência em desfavor de sua integridade física, moral e psíquica. Em se tratando do contexto atual, esse cenário de agressão persiste ao passo em que as estatísticas nacionais revelam que a feminidade afrodescendente continua sendo aquela que mais sofre com a violência, principalmente no âmbito doméstico.

Dessa forma, quando se nasce mulher e negra, além da herança genérica, a pessoa carrega, desde a sua natividade, a herança cultural que as colocam num perfil de seres mais subjugados e mais violentados no convívio social, principalmente na relação familiar.

Assim, considerando a pertinência de resgatar as raízes desse problema e de conhecer as suas principais causas, esta pesquisa desponta e apresenta como tema a raça e o gênero enquanto fatores determinantes da violência doméstica contra a mulher negra.

Para tanto, a indagação germinadora da problemática consiste em saber como essas duas características inatas (ser mulher e ser negra) se tornaram determinantes na violação de direitos das mulheres negras no contexto familiar.

Assim, o objetivo geral deste estudo é analisar esse duplo aspecto de vulnerabilidade enquanto causas substanciais da violência contra a negritude feminina em seu âmbito privado. Para tanto, os objetivos específicos foram: i) estudar brevemente acerca da raça, bem como sobre as origens e os impactos do racismo; ii) analisar a gênese do fenômeno de dominação/submissão em razão do gênero; iii) inter-relacionar o gênero e a raça enquanto fatores da violência contra a mulher negra no seio familiar; e iv) verificar o papel da Lei Maria da Penha na qualidade de mecanismo legislativo no combate à violência doméstica.

Para a elaboração deste estudo, a metodologia aplicada foi a indutiva, pois chega a uma conclusão a partir da generalização da observação de alguns fenômenos (MEZZAROBA; MONTEIRO, 2009; p. 64). Ademais, trata-se de uma pesquisa qualitativa, com caráter descritivo e

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p. 49225-49234, jul. 2020. ISSN 2525-8761 explicativo, utilizando-se de procedimento essencialmente bibliográfico em livros, dissertações, teses e artigos de periódicos científicos, disponíveis em bibliotecas físicas e banco de dados virtuais.

Assim, a relevância da presente pesquisa parte da responsabilidade que todos temos em apurar as causas dessa violência que atinge milhares de mulheres diariamente. Por oportuno, investigar as raízes desse fenômeno ajuda a compreender melhor o presente, oferecendo parâmetros para criação de estratégias mais eficientes no combate ao problema enfrentado.

2 GÊNERO E RAÇA/COR ENQUANTO FENÔMENOS DE SUBORDINAÇÃO E DE VIOLÊNCIA

Como já mencionado, o presente trabalho visa analisar o fenômeno da violência contra a mulher preta e parda no seio doméstico e familiar. Desse modo, é indispensável compreender, primeiramente, toda a historicidade por trás da noção da raça negra e do gênero feminino, para, assim, mostrar como ser uma mulher e ser negra é carregar um estereótipo pré-determinado constituído historicamente na sociedade, proporcionando-lhe extrema vulnerabilidade, inclusive no meio doméstico.

2.1 ASPECTO HISTÓRICO DO “SER NEGRA”

É interessante observar que um país como o Brasil, o qual possui a maior parte de sua população como parda e preta, tendo seu povo sido fruto da miscigenação de diferentes raças, ainda possui elevados níveis de preconceito e de discriminação racial. Assim, é mister expor inicialmente, mesmo que de forma breve, o desenvolvimento do racismo no mundo para, a posteriori, se ater à nação em estudo. Focando na discriminação racial baseada na cor da pele, observa-se que

Em todos os tempos esta cor sempre esteve revestida de valores negativos nas línguas indo-europeias. É desta maneira que em sânscrito, o branco simboliza a classe dos brâmanes, a mais elevada da sociedade. Em grego, o negro sugere uma macula, tanto moral quanto física; ele trai, igualmente, os homens de intenções sinistras. Os romanos não somaram a este vocábulo nenhum significa novo: para eles, o negro é signo de morte e de corrupção enquanto o branco representa a vida e a pureza. Os homens da igreja, à procura de chaves e de símbolos que revelassem os sentidos ocultos da natureza, fizeram do negro a representação do pecado e da maldição divina (COHEN, 1980, p. 39 apud SANTOS, 2005, p. 45).

Dessa forma, antes mesmo que houvesse a ideia de separar grupos por meio de sua raça, a cor negra já simbolizava ideias negativas. Neste sentido, Santos (2005, p. 27) expõe que com os iluministas a ideia de raça era similar a linhagem, na própria história das raças, no entanto, já era possível perceber um tratamento diferenciado com relação ao negro. Assim, no Tratado de Metafísica do iluminista Jean Marie Arouet, Conde de Voltaire, este apresenta as noções que um viajante interplanetário teria ao encontra o primeiro ser humano.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p. 49225-49234, jul. 2020. ISSN 2525-8761 Segundo a narrativa, o viajante desembarca no oceano, no país da Cafraria e começa a procurar o homem. Assim, ele começa a descrever o que vê, citando: macacos, elefantes e negros, sendo estes últimos apresentados nos seguintes termos:

Um animal preto, que possui lã sobre a cabeça, caminha sobre duas patas, é quase tão destro quanto um símio, é menos forte que os outros animais de seu tamanho, provido de um pouco mais de idéias do que eles e dotado de maior facilidade de expressão. Ademais, está submetido às mesmas necessidades que os outros, nascendo, vivendo e morrendo exatamente como eles (VOLTAIRE, 1978b, p. 62 apud SANTOS, 2005, p. 27).

Deste modo, é no século XIX que a ideia de raça começa a mudar de sentido, passando a definir e separar grupos humanos. Destarte, é com o darwinismo que a questão de raça se tornou mais radical, pois com base nos princípios da evolução, haveria de ter uma raça superior, pura e, consequentemente, uma raça inferior e mais frágil. A raça negra foi eleita como a inferior, pois biologicamente seu crânio era menor além do pouco desenvolvimento de suas sociedades. Dessa forma, não demorou para que os darwinistas estimulassem o preconceito racial, representando, assim, a utilização da ciência como justificação para dominação entre raças (SANTOS, 2005, p. 51-52).

Reportando-se ao contexto brasileiro, tem-se que entre os séculos XVI e XIX o país escravizou homens e mulheres africanos. Essas pessoas eram tratadas como animais, vinham para o território brasileiro em embarcações com condições insalubres, ao chegar, continuavam vivendo em locais inadequados e seu cotidiano era marcado pela violência.

Consoante Abdias do Nascimento (1978, p. 48), com a descoberta do Brasil pelos portugueses em 1500, e sua consequente exploração, iniciou-se imediatamente o surgimento da raça negra “fertilizando o solo brasileiro com suas lágrimas, seu sangue, seu suor e seu martírio na escravidão”.

Já no século XIX, segundo Santos (2005, p. 80) com as grandes nações europeias se desenvolvendo com ideais liberalistas, muitos pensadores começaram a criticar o sistema escravista brasileiro tentando seguir o exemplo de nações independentes e promover o desenvolvimento da sua população. Este desenvolvimento não ocorreria em um país em que escravos e seus senhores se encontravam em patamares diferentes, sendo necessário, para tanto, a abolição da escravidão no Brasil. Além disso, havia o temor do surgimento de revoltas maiores dos negros, e que estes tomassem o poder. Destarte, a abolição foi mais uma forma de afirmar a supremacia dos brancos, já que com ela o negro passou a ser visto como o “cidadão indesejado, cidadão por acaso, por força e vontade branca [...]” (SANTOS, 2005, p. 132).

Após a abolição surgiram ainda mais ideias racistas em relação aos afrodescendentes. Ao passo em que o processo abolicionista ocorria, o Brasil começou a atrair mão de obra imigrante

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p. 49225-49234, jul. 2020. ISSN 2525-8761 europeia, que, apesar desta ser mais cara do que a negra, trazia algo almejado pela civilização da época: o “embranquecimento” da população. Assim, nessa realidade os imigrantes começaram a se desenvolver no país, o que, devido ao racismo, não acontecia com os negros, proporcionando ideias em relação a estes como preguiçosos e ignorantes. “Somando-se um mito após o outro, inferioridade, vagabundagem, incompetência, foi-se esboçando o perfil do homem negro, como anticidadão, como marginal.”. (SANTOS, 2005, p. 119). Assim, a rejeição aos negros só aumentava após a abolição da escravidão.

2.2 ASPECTOS HISTÓRICOS ACERCA DO GÊNERO FEMININO

Traçar uma linha histórica do papel feminino na sociedade desde o surgimento da humanidade é uma tarefa difícil, uma vez que a mulher, em que pese as variações históricas e culturais dos povos, de modo geral não tinha papel de destaque ou relevância na história escrita e transmitida ao longo do tempo, a mulher não era vista como importante, na realidade, nem era vista. Assim, pouco foi registrado sobre a função da mulher além da de gerar filhos e cuidar do lar.

Antes de adentrar em assunto tão delicado, é necessário afirmar que o presente estudo não visa questionar ou ofender nenhum tipo de crença. No entanto, como uma análise, se torna essencial expor determinados fatos relevantes para tal tema. Assim, no princípio, conforme a civilização judaico-cristã, a mulher haveria surgido a partir de um homem, enquanto este foi produto da vontade sagrada, sem nenhuma interferência feminina. Com isso, a mulher teria uma diferença em relação ao ser masculino, uma vez que não seria fruto exclusivamente do desejo divino, mas em sua composição carregava uma parte do homem (WALLER, 2008, p. 18).

Seguindo ainda o livro de Gênesis, Eliane Waller (2008, p. 19) explana a tão conhecida história sobre a culpa original em que a serpente engana a mulher afirmando que o fruto da árvore que o Senhor havia proibido Eva e Adão de comerem sob pena de morrerem, na realidade, os tornariam como deuses, conhecedores do bem e do mal. Eva, então, come e oferece a Adão. Como consequência, ambos são expulsos do paraíso, mas à mulher, Deus disse: “Multiplicareis os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impeliram para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio” (Gênesis 3:16 apud WALLER, 2008, p. 19).

A mitologia grega também traz contribuições para a história da mulher, abordando-se histórias que subjugam a figura feminina, como, por exemplo, a mitologia da Caixa de Pandora, que conforme Eliane Waller (2008, p. 20) atribui inevitavelmente, a carga pejorativa, a imagem feminina, culpando seu excesso de curiosidade

É a partir de crenças como essas acima narradas que ao longo da história é construída uma carga de personalidade equivocada e pré-estabelecida acerca da mulher. No entanto, há bem mais que

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p. 49225-49234, jul. 2020. ISSN 2525-8761 as apresentadas até agora. A autora Eliane Waller (2008, p. 21), ensina que a partir do século XII, a mulher passa a ser vista como um ser pecaminoso, o que designaria aos padres e aos maridos o dever de orientá-las, se necessário até pela força, para seguir o bem, ou mais claro, o caminho que eles determinassem para elas.

No século XVI, época em que ocorre o descobrimento do Brasil, historiadores também relatam a submissão da mulher à figura masculina. Conforme Mary Del Priore e Carla Bassanezi (2004, p.19), em terras desconhecidas, os índios andavam na frente de suas esposas para protegê-las, entretanto, nas terras seguras, as mulheres iam na frente para serem observadas por seus parceiros.

Ao passo em que se intensifica a vinda de europeus para o Brasil e a colônia começa a se desenvolver economicamente, a figura da mulher estagna no tempo, pois ainda é considerada um ser imperfeito que necessita sempre de estar vigiada. É dessa forma que somente em 1827 ocorre um significativo avanço, surge a primeira lei sobre os direitos das mulheres no Brasil, esta lei permitia que meninas frequentassem instituições de ensino elementar, e em 1879 as mulheres conseguem autorização para estudar em escolas de ensino superior (COIMBRA, 2011, p. 18). Assim, mesmo que com grandes obstáculos, a história dos direitos femininos começa a ser traçada no Brasil.

2.3 SER MULHER E SER NEGRA COMO FATOR DE VULNERABILIDADE NO MEIO DOMÉSTICO

Com base no que foi até agora apresentado, uma breve análise da história permite afirmar que as pessoas de gênero feminino e as pertencentes à raça negra costumeiramente ocuparam posição de submissão frente ao homem branco. Logo, os indivíduos que carregam esses dois fatores – ser do sexo feminino e ser da raça negra – encontram-se ainda mais subordinados aos desejos da sociedade, resultando no fato de que a feminitude afrodescendente precisa superar mais dificuldades e preconceitos que a mulher branca. Sobre o racismo contra as mulheres negras nas sociedades coloniais convém destacar que:

[...] estudos comprovam que os gestos mais diretos e a linguagem mais chula eram reservados a negras escravas e forras ou mulatas; às brancas se direcionavam galanteios e palavras amorosas. Os convites diretos para fornicação eram feitos predominantemente às negras e pardas, fossem escravas ou forras. Afinal, a misoginia – ódio das mulheres – racista da sociedade colonial as classificava como fáceis, alvos naturais de investidas sexuais, com quem se podia ir direto ao assunto sem causar melindres. O ditado popular parecia se confirmar: “Branca para casar, mulata para foder e negra para trabalhar” (PRIORI, 2013, p. 24).

Assim, a hipererotização da mulher afrodescendente, desde a época colonial também contribuiu para a crescente violência, uma vez que elas continuam sendo tratadas e vistas como objetos. Sueli Carneiro (2003, p. 49), fundadora e coordenadora-executiva do Géledes – Instituto da

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p. 49225-49234, jul. 2020. ISSN 2525-8761 Mulher Negra com sede em São Paulo –, apresenta que sobre a mulher afrodescendente, recai a carga da herança colonial, época em que o regime patriarcal sustentou-se sobre a superioridade masculina branca em uma ordem de mais valia, que seria: “o poder político econômico, social e cultural é privilégio do homem branco; logo depois, numa degradação de valor da mulher branca, e abaixo desta, o homem negro”. Seguindo esta escala, a mulher negra se encontrava em último, como parte mais desvalorizada da população brasileira.

Dessa forma, além da mulher carregar consigo o estereótipo social de ser considerada o sexo frágil, imperfeito e que necessita do cuidado do homem, a realidade de mulher negra apresenta ainda outras características:

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estão falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação (CARNEIRO, 2003, p. 49).

Desta feita, a negritude feminina constitui a parcela da sociedade que sofre duplamente por ser o que é. Assim, é inegável que as mulheres brancas também sofrem violência de gênero, entretanto, as negras sofrem em proporções desiguais devido a discriminação racial a que também estão sujeitas.

Consoante o que já foi analisado, como herança histórica, econômica e social, a população afrodescendente precisa contornar obstáculos maiores que a branca. Em meados do século XIX, enquanto o europeu estava se desenvolvendo no Brasil, o negro estava estagnado. Assim, começar a se desenvolver em um país que há pouco tempo havia abolido a escravidão e que sua economia já estava se desenvolvendo, não era tarefa fácil para um negro.

Esse contexto reflete na atualidade, pois, em 2017, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas - IBGE (2018, p.60) ao detalhar a população com renda abaixo da linha de 5,5 dólares por dia, a pobreza monetária atinge mais homens e mulheres pretas ou pardas, sendo respectivamente 34,1% e 34,8%, contra cerca de 16,0% para homens e mulheres brancas.

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p. 49225-49234, jul. 2020. ISSN 2525-8761 3 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER NEGRA SOB O AMPARO DA LEI MARIA DA PENHA

Era de ser natural que o meio doméstico fosse um lugar seguro e acolhedor, ora, onde mais um indivíduo estaria protegido do que em seu próprio lar? Entretanto, para algumas mulheres tal sentimento é inexistente, pois para elas a segurança a qual acreditam possuir é violada por alguém com quem convivem. Situações como estas levam Heleieth Saffioti (2009, p. 27) a afirmar que o domicílio não é o local para a mulher exercer seu direito à privacidade, mas é na realidade o lugar da violência doméstica. Assim, o direito a um espaço da intimidade é assegurado apenas aos homens.

Gláucia Fontes (2010, p. 02) leciona que a violência de gênero pode ser justificada como uma questão cultural, em que a sociedade incentiva os homens a realizarem sua força de dominação e potência sobre as mulheres. Nesse diapasão, a violência na modalidade ora estudada, ocorre como reação daquele que pensa ser possuidor da vítima, o que não se verifica apenas em razão do relacionamento sexual, mas também do fator econômico, uma vez que, geralmente, o homem é quem sustenta a mulher.

Esse contexto de violência de gênero frente à inércia estatal em combatê-la, levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com base no caso da Maria da Penha, a sugerir que o Brasil criasse políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher. Deste modo, o Brasil em 07 de agosto de 2006 insere em seu arcabouço jurídico a Lei 11.340 (também denominada de “Lei Maria da Penha”), a qual, segundo Piovesan e Pimentel (2011, p. 112), gera, de forma inédita, meios com a finalidade de frear a violência doméstica e familiar contra a mulher, definindo medidas para prevenção, assistência e proteção à feminitude que sofre violência.

Como todas as lutas para a obtenção de direitos e proteção às mulheres não foram simples, o surgimento da Lei Maria da Penha também não haveria de ter sido. A própria lei traz o nome de uma vítima da violência doméstica, Maria da Penha, a qual sofreu duas tentativas de homicídio, agressões estas que resultaram em deixá-la paraplégica aos 38 anos, foram cometidas por seu então companheiro, em seu próprio domicílio, na cidade de Fortaleza, em 1983, conforme Piovesan e Pimentel (2011, p. 109).

Por fim, com o fito de reforçar a necessidade de uma lei específica no combate a violência doméstica contra mulher negra, é pertinente abordarmos o balanço referente ao ano de 2018 apresentado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (2019, p. 15), que revelou que 46.728 mulheres pretas e pardas comunicaram, através do Ligue 180, algum tipo de violência doméstica, contra 33.684 mulheres que se identificaram com a cor branca. Há de se frisar que essa incidência pode ser maior, uma vez que 10.883 mulheres não informaram a cor da pele (MMFDH, 2019, p.15).

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Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 7, p. 49225-49234, jul. 2020. ISSN 2525-8761 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face ao que fora apresentado, viu-se que o presente trabalho se limitou em analisar o fenômeno da violência contra a mulher negra no seio doméstico e familiar, investigando o como essa forma de violência reflete toda a historicidade em que o racismo e patriarcalismo se sustentaram.

Com isso, foi possível constatar que a construção da ideia de racismo desde a valorização negativa que a cor preta representava aos povos indo-europeus e que foi se moldando com o tempo, e o desenvolvimento da ideia de que o ser feminino era inferior ao ser masculino desde as primeiras histórias da humanidade até o estágio em que se apresenta hoje, mostram como essa parcela da população ainda precisa resistir a uma carga pré-determinada constituída historicamente.

Ademais, ao passo em que a população afrodescendente é rejeitada devido a sua cor, surgem obstáculos em seu desenvolvimento, tanto intelectual quanto econômico. Juntando-se a cor negra e o gênero feminino, tal desenvolvimento diminui ainda mais, resultando em mulheres negras com baixa escolaridade e subordinadas aos seus companheiros.

É nessa realidade que a violência doméstica e familiar ganha seu espaço, uma vez que o homem sabe que à mulher afrodescendente existem poucas alternativas. Nesse diapasão, para o combate à violência doméstica e familiar, a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) surgiu, apresentando em sua redação medidas para prevenção, assistência e proteção à feminitude que sofre violência. Assim, se a mulher negra é quem tem mais dificuldade em ter autonomia e se libertar do ambiente doméstico violento, é esta que acaba por se beneficiar mais da supracitada lei, pois é ela quem mais sofre a espécie de violência ora estudada.

REFERÊNCIAS

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