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Ser revelado: Nota etnográfica sobre os interstícios de uma específica situação de campo

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específica situação de campo

Resumo

Este ensaio problematiza uma específica situação de encontro na qual a presença do pesquisador foi identificada por um interlocutor, um pastor pentecostal, como tendo sido “revelado” pelo Espírito Santo. Tendo como eixo essa situação de campo, pergunta-se, por exemplo, até que ponto a teoria etnográfica está disposta a levar epistemologicamente a sério os construtos nativos. Busca-se, pois, articular os problemas epistemológicos relacionados à experiência de campo (observação) e sua redação posterior (análise), argumentando-se que a prática etnográfica – apesar de seu esforço de objetivação – é um ato criativo que imprime à subjetividade do pesquisador.

Palavras-chave

Etnografia; alteridade; teoria antropológica.

José Edilson Teles

Granduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP)

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Abstract

This essay discusses a specific meeting act, which is the presence of the researcher was “revealed” by the Holy Spirit to a pentecostal minister. Considering this act, one can wonder, for example, how the ethnographic theory could consider native constructs epistemologically. His aimed, therefore, to articulate epistemological situations related to experience act (observation) and its posterior essay (analysis), arguing that ethnographic theory – despite its objectification – is related to researcher’s subjectivity.

Palavras-chave

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Prólogo: explicitar (os procedimentos)

como um modo de revelar (a etnografia)

Esse ensaio tem como objetivo refletir sobre a dinâmica da pesquisa de campo e a escrita etnográfica, principal instrumento do saber antropológico. Para isso, volto-me aos dados etnográficos de minha pesquisa de Iniciação Científica desenvolvida nos primeiros anos de minha graduação, entre os anos de 2009 e 20101. Trata-se, precisamente, de uma tarde

de domingo, 26 de abril de 2009, contexto de uma específica situação de encontro na qual minha presença como pesquisador foi enunciada por um de meus interlocutores – conforme cosmologia pentecostal – como tendo sido revelado pelo Espírito Santo. Refletir num momento posterior sobre essa situação de campo significa dar-se conta de um conjunto de experiências tidas no primeiro momento como contingentes, uma espécie de lacuna da subjetividade do pesquisador.

Desse modo, pretendo problematizar os interstícios dessa situação e explicitar o processo de construção de minha estratégia narrativa. Como referencial teórico utilizo a noção de “momento etnográfico” de Marilyn Strathern (2014) a fim de articular as relações entre a pesquisa de campo e a atividade etnográfica, oferecendo perspectivas e deslocamentos entre ambas as práticas antropológicas. Para Strathern, cuja pesquisa de campo (nas terras altas da Nova Guiné) ainda suscita-lhe deslumbramentos, a relação entre observação (dinâmica da experiência de campo) e análise (dinâmica da etnografia), apesar 1 Os dados que disponho provêm do relatório “Mangedora de Cristo: hierofania numa favela nordestina em Santana de Parnaíba – uma per-spectiva antropológica”, fragmentos de minha pesquisa de Iniciação Científica financiada pelo Programa de Bolsa de Iniciação Científica da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (PIBIC-FESP-SP), sob orientação do prof. Gabriel Pugliese, a quem agradeço. O pre-sente ensaio é uma versão modificada de um paper apresentado na “XV Semana de Ciências Sociais: encruzilhadas e passagens no sagrado”, na PUC-SP.

das particularidades dos procedimentos – ou de girar em “órbitas próprias” –, é mediada por uma atividade ficcional desafiadora: a escrita. Esse “momento etnográfico”, espaço onde se junta o que é entendido e a necessidade de entender, como afirma Strathern, “só funciona se ela for uma recriação imaginativa de alguns efeitos da própria pesquisa de campo”, visto que a etnografia “cria um segundo campo” (2014, p. 346).

Admitindo-se, pois, a prática etnográfica como principal instrumento do conhecimento antropológico, argumento que a redação posterior à experiência de campo resulta, no mínimo, de “relações dinâmicas” que, para efeito de suas estratégias de análise, deve levar em conta seu papel no drama. Para Strathern, “os etnógrafos se colocam a tarefa de não só compreender o efeito de certas práticas e artefatos na vida das pessoas, mas também recriar alguns desses efeitos no contexto da escrita sobre eles [...] o momento etnográfico é uma relação” (2014, p. 350). Tentarei explicitar os retoques etnográficos que constitui minha estratégia narrativa.

Ser revelado: interstícios de uma recepção

cosmológica

A fim de contextualizar, faço algumas considerações preliminares sobre a pesquisa. No primeiro semestre de 2009, após leituras rudimentares acerca da pesquisa de campo – antes mesmo de cursar, a rigor, disciplinas metodológicas – também ganhava forma um rudimentar projeto de Iniciação Científica. Apesar de considerá-lo incipiente, não me faltavam às típicas aspirações ambiciosas, quase universais, de um neófito convertido à antropologia. Em tais circunstâncias, ao menos uma lição extraída

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do diálogo “socrático” fictício entre um professor e seu aluno, construído por Bruno Latour, evidenciava os problemas de minha pretensão: “descreva, simplesmente, o estado dos fatos que estão à mão”, dizia o professor ao ingênuo pupilo. Por fim, pergunta: “você pensa que descrever é fácil?”; em seguida alerta o aprendiz a não confundir “descrição”, uma tarefa “incrivelmente exigente”, com o “encadeamento de clichês” (2006, p. 341).

No plano etnográfico, portanto, descrever é apreender, conectar atores e práticas discursivas. Nesse sentido, insiro a seguinte questão: explicitar o processo de descrição é realmente uma tarefa fácil? Uma das lições que esse processo nos fornece, ao menos como recurso metodológico, é o fato de que tratar os dados etnográficos e apresentá-los ao leitor como se já estivessem “prontos”, além de consistir numa retórica textual, reduz a etnografia a um clichê cujo trabalho de ir a campo satisfaria apenas um protocolo acadêmico. Permito-me, aqui, os “retoques” de um trabalho que se pretende uma escultura inacabada2.

Agindo como convertido à disciplina que Claude Lévi-Strauss definiu como “a ciência social do observado” (1987), interessava-me descrever a configuração de um fenômeno social que a literatura antropológica denominou como “trânsito religioso3”,

tomando como recorte empírico (no sentido cartesiano 2 A noção de escultura em Gaston Bachelard (1986) é utilizada como metáfora e se refere ao processo criativo do trabalho artístico do escul-tor, uma tarefa manual e corporal. Bacherlard critica o “vício da ocu-laridade”, um tipo de supremacia da hegemonia da visão expressa em termos como “observar”, “analisar”, “perceber”, etc. Por outro lado, investe numa “imaginação material” como o modo apreender a con-cretude das relações, das quais a sensibilidade constitui uma das vias do saber. Assim, a etnografia é também um ato criador, um ato manual, extensão da sensibilidade do pesquisador.

3 Ronaldo Almeida e Paula Montero definem a dinâmica do campo religioso brasileiro marcado pelo fluxo de pessoas e práticas religiosas como um “macroprocesso de contínua síntese e diferenciação” (2001, p. 93). Para Almeida o trânsito religioso, “não se limita ao trânsito de pessoas, ideias e práticas religiosas”, mas se estende também a “modelos de gestão” regidos por uma “competição de fiéis” e “cópia dos procedi-mentos dos concorrentes” (2004, p. 25).

em que somos treinados) a trajetória de leigos que se tornaram pastores pentecostais e fundadores de suas próprias igrejas (TELES, 2015). Minha (modesta) ambição era estabelecer (mínimas) conexões entre trajetórias pastorais e cissiparidades institucionais, fenômenos que marcam a dinâmica desses grupos. Como antecipei: não me faltava aspirações, mas fôlego para dar conta da proposta ambiciosa.

Dispus-me a estabelecer os primeiros contatos para a pesquisa e pude realizar um mapeamento prévio das disposições espaciais dos templos pelo bairro, tendo catalogado aproximadamente trinta pequenos templos pentecostais, quatorze dos quais haviam sido fundadas por moradores de um bairro periférico do Município de Santana de Parnaíba, a 35 km da capital paulista. Na ocasião do referido domingo, semanas depois do mapeamento, encontrei-me com o principal interlocutor e protagonista da referida situação, José Ribamar, um leigo católico piauiense nascido em 1957 e que se tornou pastor e fundador de sua própria igreja, uma pequena instituição chamada Igreja Pentecostal Manjedoura de Cristo: Ministério Santana de Parnaíba. Procurei estabelecer vínculos de confiança e apresentar meu projeto, tal como se recomenda – minimamente – um protocolo ético.

Durante minha exposição do projeto fui interpelado por José Ribamar como quem buscasse recordar de algo ou de uma explicação plausível para meus interesses. Para minha surpresa, embora não tenha me dado conta dos desdobramentos da situação, Ribamar passou a narrar à experiência de um sonho que afirmara ter tido semanas antes de minha chegada a campo. Em seus termos, não se tratava de um sonho qualquer, mas de uma “revelação” divina, uma modalidade de saber acessado por indivíduos distintos e excepcionais que reivindicam certo grau de intimidade com a divindade.

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Conforme os esforços da descrição de Ribamar, o personagem onírico portava um “caderno” (ou objeto similar) e procurava-o para conversar. Afirmava não haver compreendido o significado do sonho até minha chegada a campo, como se minha presença se transformasse num referente significante para a estrutura mítica da revelação. Além de uma câmera fotográfica, eu portava um pequeno bloco de notas na mão – o famoso “caderno de campo” –, fato pelo qual minha presença, naquela circunstância, foi imediatamente relacionada ao personagem onírico e interpretada em seus termos como tendo sido “revelado” pelo Espírito Santo. Embora inusitado, para mim, o fato de haver sido identificado com o personagem do sonho, certamente facilitou minha inserção.

Após a descrição do sonho divinatório, como sinal de minha aprovação, fui convidado por José Ribamar a sentar-me no estreito pilar da porta de acesso do pequeno templo da Manjedoura de Cristo, em cujo interior havia um pequeno grupo de mulheres, um “conjunto de senhoras”, como dizem, que ensaiavam cânticos para o culto à noite, entre elas, sua esposa, líder do grupo feminino e atual vice-presidente da igreja. Sob o pano de fundo musical, passamos a conversar sobre possíveis agendamentos de entrevista e minha participação nos cultos, o que se sucedeu ao longo da pesquisa. Com o passar do tempo, em diferentes situações, eu não era mais visto como pesquisador, mas como um convertido em potencial, saudado sempre com “a paz do Senhor”, cortesia dirigida aos pares4. Assim posto, como relacionar essa

situação de campo a uma epistemologia etnográfica?

Epistemologia da etnografia: um problema

O problema epistemológico em torno da pesquisa de campo e da escrita etnográfica, desde as abordagens de Clifford Geertz (1989) e James Clifford (2011) às abordagens de Roy Wagner (2010) e Marilyn Strathern (2014), tornou-se uma questão a ser repensada. A proposta da antropologia hermenêutica de Geertz objetivava buscar um modo de “situar-se” no contexto 4 Num dos cultos em que participei, por exemplo, José Ribamar dirigiu-se a mim com a revelação de que eu tinha uma “chamada divina” para ser “pastor” e “pregador”, afirmando ser uma “grande obra”, mas, que para isso, eu deveria tirar a “dúvida do coração”. Afirmava ao final, que não se importava se eu acreditasse ou não, simplesmente fazia-lhe con-forme lhe foi “mandado” por Deus. De pesquisador, passei a ser visto como um convertido em potencial e em varias ocasiões fui chamado à frente para receber oração, ler algum “versículo da Bíblia” ou contar algum “testemunho”. De fato, fui considerado como tendo me conver-tido ao aparecer num dos cultos com o cabelo cortado (tendo me aprox-imado de seu ethos). Após sucessivas insistências, apesar da timidez e constrangimento, resolvi ir à frente uma vez e agradecer pela recepção que tive, o que a seus olhos não deixava de ser um “testemunho”.

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das interpretações do outro, isto é, produzir uma descrição densa dos significados culturais; em James Clifford, um dos representantes da antropologia pós-moderna, a prática etnográfica clássica seria despida de sua autoridade construída em campo e vista como uma narrativa performática do próprio etnógrafo. Em outro eixo, a antropologia reversa de Wagner apresenta a pesquisa de campo e o saber antropológico como um “ato de invenção” que deve estender o estatuto de criatividade ao outro; por fim, em Strathern, o debate dá um passo adiante no reconhecimento de que a escrita etnográfica é um desafio presente e que ela própria, a etnografia, deve ser objeto de investigação. Sigo aqui, mais de perto, as contribuições de Wagner e Strathern no que diz respeito ao entrelaçamento entre a pesquisa de campo e a escrita etnográfica.

Em primeiro lugar, reconheço que voltar-me aos dados primários de minha pesquisa implica, para usar os termos de Wagner e Strathern, numa “invenção” de um novo campo. Afinal, a que nos referimos ao acionar a noção de campo? Como todo conceito, há sempre um risco de essencialização que nos impede de observar os múltiplos planos em que a usamos. A própria ideia de “voltar” a campo ou aos dados primários, em contraste com a ideia de “ir” a campo, implica um novo problema, visto que a noção de “campo” se desloca da ideia de “um lugar” para um plano conceitual e vice-versa. Como aponta Bertrand Pulman (2006)5, a relação entre o signo e seu referente,

apesar de dimensões distintas, complementam-se. Um dos planos em que a noção de campo aparece, por exemplo, pode ser demonstrado no 5 Segundo Pulman, a Antropologia herdou as derivações da noção de campo, primeiro do vocabulário bélico, que relacionava essa ideia a lugar de confronto ou conflito; e depois da geologia, cujo termo campo se referia às camadas sedimentares onde se acumulava a história da Terra. O atual discurso da literatura antropológica faz uso da noção de cam-po para designar tanto “o objeto da pesquisa” quanto o “lugar” onde desenvolve a pesquisa (p. 226).

modo como agenciamos a experiência da pesquisa de campo e o estilo criativo de sua redação. Embora não seja novidade na literatura antropológica, convém destacar a subjetividade do pesquisador como uma das linhas desse tipo de agenciamento, uma espécie de continuum de seu corpo. Nos termos de Roy Wagner, por exemplo, essa dimensão da pesquisa de campo é vista como um ato de invenção, um ato de extensão do entendimento que não se restringe apenas às experiências do pesquisador, mas também do conjunto daqueles com quem estabelece relações, seus interlocutores. De acordo com Wagner, se “o pesquisador de campo produz uma espécie de conhecimento como resultado de suas experiências”, não menos “criativa” é a interpretação “nativa” sobre a atividade do antropólogo (2010, p.49). Ainda de acordo com Wagner, “quando um antropólogo estuda outra cultura, ele a ‘inventa’ generalizando suas impressões, experiências e evidências como se estas fossem produzidas por alguma ‘coisa’ externa. Desse modo, sua invenção é uma objetificação, ou reificação, daquela ‘coisa’” (p. 61). Entretanto, ao naturalizar noção de campo como um “lugar”, incorremos no equivoco de não considerar suas múltiplas dimensões, inclusive aquela que inventamos conceitualmente.

Por que, entre muitos fatores, fui incapaz de levar a sério um conjunto de práticas pertinentes ao saber antropológico que eu julgava cultivar? A imprevisibilidade com a qual fui recepcionado por José Ribamar trazia à superfície o que eu mesmo evitava, uma experiência passada. Como lembra-nos Strathern, os resultados “imprevisíveis” são sempre “do ponto de vista do observador ou de quem quer que se empenhe em descrever os processos sociais” (2014, p. 349). A princípio, essa modalidade de recepção não me parecia relevante (no sentido de

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levá-la epistemologicamente a sério), talvez pelo fato, suspeito eu, de minha pretensa objetividade evitar os “afetos” com meu passado religioso (pentecostal), vista até então como um problema6. Como disse,

“converti-me” à antropologia – para usar os termos de Roy Wagner (2010, p. 27) –, e não raro, uma experiência de conversão, tal como a etimologia do termo sugere, constitui-se (quase sempre) numa boa dose de rejeição ao passado. Apesar da praxe de alteridade com a qual eu procurava lidar com esse problema, o fato é que minha orientação teórica prévia e a nova posição de convertido à antropologia tendiam a colocar a cosmologia nativa em seu “devido lugar”, isto é, no campo das representações; não a levando suficientemente a sério em seus próprios termos, entendia ser suficiente “acessar” a cosmologia nativa por meio de minha experiência e “decifrá-la” pelos instrumentos teóricos7. É preciso, pois, suspeitar de

tais pressupostos epistemológicos e procedimentos. No plano teórico, com raras exceções, a cosmologia pentecostal, tal como o fragmento da experiência onírica de José Ribamar, tem sido lida como uma “cosmologia repulsiva” ou como uma espécie de “outro repugnante”, para usar o termo de Susan Harding (2000) ao caracterizar a postura acadêmica ante os grupos fundamentalistas. A provocação de Delcides Marques em relação a uma análise simétrica da teologia cristã por parte da antropologia soa aqui como eco: “se em relação à cosmologia indígena é 6 Delcides Marques (2009) ao descrever as práticas dos pregadores da Praça da Sé em São Paulo, entre os quais teve uma breve incursão na adolescência, investe numa etnografia que ficciona a confissão de uma experiência passada. Apesar dar limitações, por que não utilizar uma experiência passada a favor da etnografia?

7 Meu projeto inicial partia dos pressupostos fenomenológicos da ex-periência religiosa, na dicotomia sagrado e profano, tal como expressa o conceito eliadiano de hierofania. Evidente que Mircea Eliade é um teórico refinado, mas não me cabia partir de conceitos que definem o que é “religião” de antemão e aplicar ao campo. Mais tarde, inverti a questão e abandonei os pressupostos iniciais.

interessante discorrer sobre ‘pensamento’, ‘conceito’ ou ‘filosofia’, por que evitar um tratamento simétrico do cristianismo a partir da teologia?” (2013, p. 269). Ou seja, estaríamos dispostos a estender o mesmo tipo de procedimento antropológico dado ao xamanismo às práticas dos pentecostais, como no caso da revelação de Ribamar? E por que a naturalizamos essas práticas como uma “crença repulsiva”, reproduzindo-a como uma alteridade sempre em desvantagem?

Simetrizando posições discursivas

Uma das alternativas para superar esse dilema etnográfico consiste em colocar a questão em outros termos, tomando a etnografia como um recurso ficcional capaz de “transmitir a complexidade dos conceitos nativos com referência ao contexto particular em que são produzidos” (STRATHERN, 2006, p. 33). A ideia de uma ficção da etnografia como um recurso narrativo está presente também no trabalho de Vincent Crapanzano (1991). Nesse caso, a identificação de minha presença com o personagem onírico é pertinente para a reformulação de minha estratégia narrativa ficcional. Se por um lado, assim como o literato, o antropólogo “escreve” ou “inscreve” discursos sociais, como afirma Clifford Geertz (1989, p. 14), por outro, conforme Merilyn Strathern, “não há nada melhor do que olhar para a escrita antropológica” (2014, p. 165). Strathern sugere novas alternativas para os sentidos – ou ficções – que a etnografia adquire no momento da redação. Enquanto James Clifford argumenta que “se muito da escrita etnográfica é produzida em campo, a real elaboração da etnografia é feita em outro lugar” (2011, p. 39), Strathern coloca o seguinte desafio: “como fazer um arrazoado que tenha como ponto de partida um evento

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imprevisto, um resultado imprevisto, remontando às circunstancias de seu desenvolvimento?” (2014, p. 349).

Outro aspecto que a etnografia pode adquirir foi tratado num trabalho perspicaz de Jeanne Fravet-Saad (2005) ao problematizar, a partir de sua pesquisa de campo sobre feitiçaria no Bocage francês, os pressupostos do clássico método conhecido como “observação participante”, manual com o qual fui a campo. Nessa atividade etnográfica afetada, antropólogo e interlocutor interagem nos limites onde se insistem fronteiras, ao menos metodológicas. Conforme Fravet-Saad:

Assim, alguns pensaram que eu era uma desenfeitiçadora e dirigiram-se até a mim para solicitar o ofício; outros pensaram que eu estava enfeitiçada e conversaram comigo para me ajudar a sair desse estado. Com exceção dos notáveis (que falavam voluntariamente de feitiçaria, mas para desqualificá-la), ninguém jamais teve a ideia de falar disso comigo simplesmente por eu ser etnógrafa. Eu mesma não sabia bem se ainda era etnógrafa (2005, p. 157).

Segundo Fravet-Saad, os camponeses do Bocage resistiam os pressupostos do método que visava uma divisão entre pesquisador e pesquisado, envolvendo-a em suas tramas. Ainda nesse contexto, Márcio Goldman (2003) sugere que a noção de experiência pode ser um caminho alternativo na superação do dualismo do tipo subjetivista que supõe uma crença nativa sem reflexão e a objetivista que supõe que o observador seja o único a interpretá-la. Conforme Eduardo Viveiros de Castro, “o que faz do nativo um nativo é a pressuposição, por parte do antropólogo de que a relação do primeiro com sua cultura é natural, isto é, intrínseca e espontânea, e, se

possível, não reflexiva; melhor ainda, inconsciente” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 114). Se para meu interlocutor fui revelado e emoldurado por um mito-práxis, como diria Sahlins, de minha parte, não menos, fui afetado no sentido dado por Fravet-Saad. Apesar dos problemas interpretativos em torno dessa abordagem etnográfica, prefiro colocar a questão nos termos em que este tipo de epistemologia etnográfica não negligencie ou subestime o conjunto de saberes e práticas valorizadas por meus interlocutores.

Repensar as dinâmicas do campo implica também repensar estratégias narrativas. De fato, apenas num momento posterior pude dar-me conta dos interstícios da situação de encontro e relacioná-la ao controverso caso do capitão James Cook descrito por Marshall Sahlins (1990). Segundo Sahlins, Cook e sua tripulação teriam sido relacionados à estrutura cosmológica dos nativos havainanos e recebidos como “estrangeiros divinos”. Cook ocupava diferentes posições no mito-práxis havaiano: no primeiro episódio, teria sido associado à expectativa de pacificidade da divindade Lono e recebido com celebrações; no segundo, após perde-se no mar e retornar à ilha, teria sido associado à função guerreira da divindade Ku e recebido com sacrifício. Havia, portanto, uma relação de continuidade entre a primeira e a segunda visita de Cook, culminando a celebração em “tragédia”.

Em meu caso, celebração e tragédia como variáveis da recepção também estavam relacionadas, ao menos na dimensão simbólica. Ser “revelado” ou anunciado pelo Espírito Santo implicava também nas variações do que poderia ser “interpretado” por meu interlocutor, sem que eu mesmo, como no caso do capitão Cook, tivesse algum tipo de controle. O personagem onírico de José Ribamar era tão “móvel”

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quanto minha posição de observador-observado. Desse modo, o personagem onírico e seus elementos míticos, o pesquisador e seus instrumentos, o sonho e seu referente, significado e significante, são relacionados criativamente num sistema de orientação de práticas e seus “lugares” são definidos pelos jogos interpretativos estabelecidos na interação entre pesquisador e interlocutor. Ou seja, fui identificado ao personagem da revelação não apenas criativamente, mas também positivamente, o que certamente facilitou minha inserção. É possível supor o desconforto que teria experimentado caso o personagem do sonho fosse relacionado ao “polo negativo”, ao “imaginário” cristão (pentecostal) dos demônios: minha presença teria sido enunciada de outro modo, no mínimo, como um potencial emissário digno da desconfiança de meu interlocutor, tal como no episódio trágico do capitão Cook. A interpretação negativa mudaria consideravelmente a identificação do personagem com minha presença; minha posição de observador-observado teria sido vista com cautela8.

Meu argumento, portanto, é que essa modalidade de encontro emoldurada por uma modalidade de saber, a revelação divina, pode ser lida como um modo de simetrizar os operadores das diferenças entre nós, tornando evidente um jogo de interesses recíprocos em campo: enquanto eu buscava explicitar os objetivos de minha pesquisa (pouco relevante para ele, imagino), Ribamar, certamente elaborava um modo de ajustar minha presença à sua expectativa e, desse modo, persuadir-me ou impressionar-me acerca do sonho divinatório. Ao justificar o sonho como uma “revelação” divina, Ribamar afirmava não sentir-se “surpreso” com 8 Basta lembrar, por exemplo, da recepção de Edward Evans-Pritchard (2008) entre os Nuer na década de 1930, visto - ao que tudo indica – como representante do sistema administrativo colonial, a ponto de lavá-lo a uma “nuerose” (conforme seu trocadilho). Clifford Geertz (1989) também narra uma situação em Bali em que procurou um modo de “situar-se” na expectativa nativa e conseguir a confiança dos balineses. Entretanto, a “invisibilidade” com a qual Geertz julgava ser tratado, já era um modo de “ser visto”.

minha presença, apesar do estado eufórico indicar o contrário.

A partir dessas considerações etnográficas, é possível colocar mais um elemento: a identificação do personagem do sonho com minha presença, por parte de José Ribamar, consistia não apenas numa espécie de “ajuste” das relações assimétricas (inevitavelmente) estabelecidas em campo, mas também numa inversão das posições discursivas. Digo isso porque em momentos posteriores, ao passo que me pedia para relevar sua pouca instrução, José Ribamar acionava com frequência essa modalidade de saber não dominado por mim, procurando persuadir-me de suas convicções e converter-me ao conjunto de seus seguidores.

Essa modalidade de saber mediada pelo Espírito Santo, como um capital simbólico, é desejável e disputada por meus interlocutores como um valor de distinção pessoal. Trata-se de um valor construído coletivamente equivalente às noções de “pessoa consagrada” ou “ungida” (MAFRA, 2009), “homem espiritual” e “homem de Deus” (MARQUES, 2009), “profeta” ou “pessoa pentecostal” (CAMPOS, 2011) e expresso pela categoria “vaso” (TELES, 2015), cujo status é altamente respeitável e desejável entre os pentecostais (sem que isso seja uma generalização desmedida). Com o tempo, o tratamento estendido a mim, simetrizava minha presença ao nível de seus pares. A diferença é ajustada e invertida: de pesquisador, passei a ser visto como um potencial novo convertido, um neófito, um iniciado, um discípulo, cujo domínio desse tipo de saber ainda não estava disponível. Como afirmou Ribamar em outra ocasião, eu teria que “tirar a pedra do coração”, isto é dissipar a dúvida e ascender à fé. Não obstante à minha incapacidade para “tirar a pedra”, ao menos como tarefa etnográfica, tento esculpi-la como um modo de saber antropológico.

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Epílogo: retoques de escultura inacabada

Tomando como eixo uma específica situação de campo na qual fui identificado com um personagem onírico, procurei relacionar seus efeitos sobre a teoria etnográfica. Voltei-me aos dados primários de minha pesquisa de Iniciação Científica como uma espécie de escultura inacabada, aberta aos “retoques”. Penso agora se de fato “voltei” a campo (por meio dos dados etnográficos) ou se sempre “estive” nele, uma vez que os afetos de uma experiência passada faz-se presente na constituição da escrita. Esse processo de “inscrição” que submete o modo de vida do outro ao desvelamento de suas práticas e sentidos, apesar dos esforços de objetividade, pode deixar traços da subjetividade do pesquisador.

Estamos agora aptos a pensar essa modalidade de inserção nos termos de uma imersão, visto que minha presença em campo se constituía em “parte dessas relações” (STRATHERN, 2014, p. 354). De acordo com Strathern, “imersão” diz respeito ao momento etnográfico, na relação que junta o que é analisado no momento da observação e o que é observado no momento da análise, a relação entre o que é “entendido” e a “necessidade de entender” (p. 350). A ideia de imersão aponta para um movimento, uma dinâmica do conhecimento na qual o etnógrafo é colocado no contexto das relações e reconhece seu papel no drama, bem como suas implicações.

Considerando esse dinamismo das interações em campo, argumentei que o tratamento que estende o estatuto de criatividade ao outro – tal como propõe Roy Wagner – e que pretende levá-lo a sério em seus termos, apesar dos afetos assumidos, de modo algum pode ser evitado pela teoria etnográfica. Tomar a experiência onírica de José Ribamar nos termos de uma modalidade de saber, não se trata de uma

condescendência epistemológica, de simplesmente “dar voz ao nativo” ou “traduzi-lo”, supondo que ele seja “incapaz” de fazê-lo; trata-se de levá-lo a sério em seus construtos. Para além dos “encadeamentos de clichês”, como diria Latour, a descrição consiste na apreensão do que os atores fazem e não apenas na circunscrição dos lugares que ocupa: “se eles fazem algo, eles marcam uma diferença” (2006, p. 349). O enigma cosmológico da experiência onírica de José Ribamar com a qual fui identificado informa-nos a construção de posições discursivas (ocupadas por pesquisador e interlocutor) e uma modalidade de saber, um modo de atuar e fazer, de um ator que disputa um tipo de distinção. Ainda que se tenham objeções a esse argumento e se insista em tratar essa experiência onírica no plano do imaginário, o fato é que esse imaginário constitui relações reais e faz pessoas agirem e ascenderem a explicações sobre o que os cercam. Minha própria atividade de pesquisa não escapou do agenciamento das relações, ainda que eu as negligenciasse.

Por fim, a experiência onírica de Ribamar e minha recepção permite-me pensar minha posição de pesquisador. Tratava-se não apenas de um modo de ver, mas também ser visto no contexto das relações. Assim como o Quesalid descrito por Lévi-Strauss (1989) mantinha uma atitude ambígua de descrença em relação aos xamãs com os quais concorria e ao mesmo tempo via-se tornando feiticeiro, eu buscava “desnaturalizar” um conjunto de práticas com as quais eu mesmo havia sido socializado numa fase juvenil e tornar-me antropólogo.

Em suma, tendo em vista a natureza temporal e condicionada da etnografia, devemos estar abertos às compreensões posteriores e permitir-nos aos “retoques” de sua escultura. Conforme Clifford Geertz, uma das funções da etnografia, esse ato criador que esculpe marcas de diferentes discursos, é “proporcionar

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narrativas e enredos que nos tornem visíveis para nós mesmos” (2001, p. 82). Seja como for, no que diz respeito aos signos mobilizados em campo e em sua redação, podemos afirmar como Maurice Merleau-Ponty, que “jamais encontramos na fala dos outros senão o que nós mesmos pusemos” (2012, p. 35). Explicitar, como parte da atividade etnográfica, é realmente uma tarefa fácil? De nossa parte, explicitar os pressupostos de uma estratégia narrativa é também um modo de revelar; um desvelamento que supõe não apenas abrir cortinas, mas também “tirar a pedra” e esculpi-la.

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Referências

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