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A IDEIA DE NOBREZA NO IMPÉRIO PORTUGUÊS EM FINS DO SÉCULO XVIII E INÍCIO DO XIX

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A IDEIA DE NOBREZA NO IMPÉRIO PORTUGUÊS EM

FINS DO SECULO XVIII E INÍCIO DO XIX*

Karla Maria Silva**

Denis Carlos Moser Leni***

Resumo: este artigo discute a concepção de nobreza no Império português na passagem

do século XVIII para o XIX. Para tanto, utiliza como objeto de análise a obra Privilé-gios da Nobreza, e Fidalguia de Portugal, de Luiz da Silva Pereira Oliveira, publicada originalmente em 1806. Trata-se, na verdade, de uma espécie de compilação de dados recolhidos por seu autor, a partir da qual se pode visualizar a estrutura nobiliárquica lusa e seus mecanismos de concessão de privilégios e honrarias. Entre outros pontos, o escrito revela como a nobreza, enquanto instituição, era entendida no quadro das mudanças conjunturais que se apresentavam em fins do XVII e início do XIX, e como ela foi se adaptando.

Palavras-chave: Nobreza. Privilégios. Império Português. Revoluções. Novas Ideias.

THE IDEA OF NOBILITY IN THE PORTUGUESE EMPIRE AT THE END OF THE 18th CENTURY AND EARLY XIX

Abstract: this article discusses the concept of nobility in the Portuguese Empire in the turn

of the 18th to 19th Century. As such, it takes as the object of analysis the work Privilégios da Nobreza, e Fidalguia de Portugal by Luiz da Silva Pereira Oliveira, originally publi-shed in 1806. It stands, in fact, as a form of compilation of data collected by the author, from which one can visualize the Portuguese nobiliarchic structure and its privilege and honor-granting mechanisms. Among other points, the writing reveals how nobility, as an institution, was perceived in the conjunctural changes layout that was being presented in late 18th and early 19th Century, and how it adapted from there.

Keywords: Nobility. Privileges. Portuguese Empire. Revolutions. New Ideas.

* Recebido em: 02-09-2019. Aprovado em: 20.07.2020.

** Doutora. Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá. Membro do Laboratório de estudos do Império Português – LEIP. E-mail: silva.karlamaria@gmail.com.

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expansão marítima no século XV, juntamente com a conquista do Novo Mundo pelos ibéricos a partir do século XVI, alterou definitivamente as estruturas do mundo ocidental, promovendo transformações em todas as esferas da vida, nos dois lados do Atlântico. Em fins do século XVIII, portanto quase três séculos após o descobrimento da América, Adam Smith ainda entendia esses acontecimentos como um dos mais importantes da história, afirmando em A riqueza das nações que a descoberta da América e a de uma passagem para as Índias Orientais pelo cabo da Boa Esperança eram “os dois maiores e mais importantes eventos registrados na história da humanidade” e que “suas consequências já têm sido muito grandes” (SMITH, 1996, p. 116).

Essa expansão por mares e terras dilatou os domínios de diversas nações europeias para além de seus limites terrestres, principalmente de Portugal, que fincou raízes na América, África e Ásia, e veio a constituir o que Boxer (2002) convencionou chamar de “império marítimo português”.

Além de alargar o campo de ação política, econômica e religiosa da coroa portuguesa, os acontecimentos dos séculos XV e XVI acabaram por alterar a própria estrutura social lusa e, como lembrou Bicalho, proporcionou a capacidade de

dispor de novas terras, ofícios e cargos; outorgando-lhe direitos e privilégios a indivíduos e grupos; auferindo rendimentos com base nos quais concedia tenças e mercês; além de criar nova simbologia do poder, remetendo ao domínio ultramarino da monarquia portuguesa (BICALHO, 1996, p. 22).

Ressalte-se que a distribuição de mercês era, assim como apontou Raminelli (2013), tanto um potente mecanismo que estruturava a sociedade, como condição para ampliar as alianças capazes de sustentar o poder régio.

Assim, conforme a expansão ia se efetivando, a coroa ia promovendo novos quadros militares, políticos e administrativos, e desenvolvendo novas formas de organizá-los e remunerá-los, o que con-feriu à nobreza e à fidalguia lusa, assim como aos seus candidatos, um leque de novas possibilidades. Desse modo, principalmente a partir do século XV, ser nobre ou fidalgo no vasto império por-tuguês trazia consigo inúmeras vantagens, o que certamente despertava nos indivíduos um grande desejo de pertencer aos seus quadros, pois estar inserido na arquitetura nobiliárquica lusa significava ascensão social, política e econômica.

A nobreza lusa, assim como o restante da nobreza europeia, tinha muitas ramificações; seus integrantes poderiam ser nobres por linhagem ou ter nobreza adquirida, e suas ocupações variavam, podendo ser de natureza científica, militar ou eclesiástica. Nas monarquias do Velho Mundo de modo geral, a nobreza adquirida por plebeus era viabilizada a partir da prestação de “bons serviços às casas reais”, os quais eram recompensados, como colocou Gomes (2002, p. 553), “com títulos vitalícios e hereditários”.

Esse sistema era bastante complexo e teve muitas variações no tempo e no espaço. No império português, embora se registrem as características mencionadas acima, observam-se adaptações em diferentes períodos.

Talvez o momento que mais tenha exigido flexibilidade da nobreza seja a passagem do século XVIII para o XIX. Nos quadros da civilização ocidental, esse período desponta como sendo de efer-vescência, em que se acelerou demasiadamente o tempo histórico. Lembremos que na segunda metade do século XVIII, observou-se a eclosão de eventos simbólicos e irreversíveis (Revolução Francesa, Independência dos EUA, Iluminismo, Liberalismo, etc.), e que o mundo ocidental sofreu profundas transformações tanto no plano das ideias quanto no plano material, abalando profundamente as antigas estruturas políticas, econômicas e sociais, e dando início a uma nova fase na história da hu-manidade (SILVA, 2016).

Na Introdução de Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), Fernando Novais descreveu com maestria as principais revoluções que brotaram no século XVIII, e avançaram pelo século XIX.

[...] Anunciado, sob certos aspectos, pelas revoluções inglesas do século XVII, o grande ciclo das revoluções liberais se abre com a independência das colônias britânicas e constituição dos Estados

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Unidos da América (1776), manifesta-se com a maior ou menor intensidade na Grã – Bretanha e Irlanda (1780), nos Cantões Suíços (1782), nas Províncias Unidas (1783), nos Países Baixos Austríacos (1787), para atingir a Revolução Francesa (1789) a sua mais completa configuração. Todos esses dramáticos acontecimentos se prendem ao mesmo processo estrutural de ruptura do absolutismo, como penetrantemente acentuaram Palmer e Godechot, em trabalhos recentes; mas foi indiscutivelmente a França revolucionária que se transformou no centro de expansão do movimento, por ali se ter o conflito social radicalizado mais fundo, levando-se a luta às últimas consequências. Da França, o vendaval se expande para toda a Europa e para o Novo Mundo, com os avanços e recuos típicos das mudanças verdadeiramente decisivas, e se prolonga até os meados do século XIX. O processo varia grandemente no tempo e no espaço, mas no conjunto todo o arcabouço do velho regime político e social é revolvido, e a pouco a pouco se transfigura a paisagem do mundo ocidental: é efetivamente uma nova fase da história que se inaugura. [grifos nossos] (NOVAIS, 1979, p. 3).

Na sequência do trecho acima continuou Novais (1979, p. 3): “o movimento revolucionário promove a demolição progressiva do Antigo Regime e a construção das novas instituições do Estado da época contemporânea”. Assim, vinculada às antigas formas de organização política e social, parte integrante e indissolúvel do Antigo Regime, a nobreza não poderia escapar a esta subversão gene-ralizada que tudo transformava, e não permaneceu intacta nesse novo horizonte que se delineava.

Nesse contexto, a nobreza também foi objeto de ponderação e reflexão de muitos pensadores à época. Por uns foi compreendida como uma instituição arcaica, incompatível com os novos tempos que se inauguravam; por outros, como elemento indispensável à sociedade, responsável por manter o equilíbrio entre os devaneios do monarca e a impetuosidade das massas.

Este trabalho analisa a concepção de nobreza no império português na passagem do século XVIII para o XIX, e aponta seus mecanismos para a concessão de títulos, privilégios e honrarias, a partir de um escrito contemporâneo ao período, de modo a verificar se essa concepção ou esses mecanismos estavam em sintonia com as novas ideias que emergiam, principalmente da Revolução Francesa, ou se eram alheias a elas.

A DIFÍCIL TAREFA DE CARACTERIZAR A NOBREZA LUSA

Ao lançarmos um olhar panorâmico sobre a produção historiográfica que tratou da temática, observamos uma grande variação nas abordagens, assim como nos enfoques. Registram-se estudos teóricos e análises de casos; análises genéricas e abrangentes, e outras dedicadas às peculiaridades; comparações entre a organização no reino e em suas porções coloniais; e ainda aquelas focadas em determinados seguimentos ou períodos.

Quanto aos aspectos mais teóricos encontramos importantes reflexões, principalmente, nos tra-balhos de Nuno Gonçalo Monteiro (1998), que entre outras questões, tratou do sentimento de pertença e da consciência da nobreza portuguesa, identificando um ‘ethos’ ou ‘habitus’, definido por ele como “um sistema de disposições incorporadas”, caracterizado pela assimilação de certos valores, hábitos e costumes inerentes à condição de nobre. Ou seja, trata-se da defesa da ideia de que os membros da nobreza se reconheciam enquanto classe e adotavam comportamentos próprios dela, formando uma espécie de cadeia ininterrupta que se auto-alimentava.

Algumas pesquisas, como as de Atienza Hernandez, têm se dedicado à investigação do papel desempenhado pela nobreza no Antigo Regime e à reflexão acerca do poder econômico, político e social por ela exercido, reforçando a ideia de que “la classe nobiliária ocupó um papel de preeminência em el Antiguo Régimen” e que constituíam “el grupo hegemónico” (1987, p. 9). Esse tipo de aborda-gem, que considera as relações e instituições da Idade Moderna como próprias do Antigo Regime, tem ganhado cada vez mais espaço e apresentado novas possibilidades de compreensão do período.

Outros estudos, ainda, têm mergulhado na comparação entre as nobrezas do Velho Mundo, apontando para as diferenças entre as monarquias da Europa do Antigo Regime.

Quanto à produção historiográfica relativa especificamente à nobreza e aos mecanismos de nobilitação no império português, também se verificam abordagens variadas, tanto no que diz respeito ao enfoque quanto ao recorte temporal.

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Citemos como exemplo os estudos de Ronald Raminelli (2013), em um interessante trabalho sobre a nobreza no antigo regime ibérico setecentista discute, entre outras questões, os métodos de distinção social e a manutenção do status de nobre, traçando uma estreita relação entre nobreza e riqueza. Observemos.

Aliás, os privilégios da nobreza geravam rendimentos, tenças, rendas indispensáveis para exercer seu papel na sociedade, ou melhor, para a manutenção da linhagem e da sua posição social. O sucesso econômico não era a condição de ingresso no segundo estado, mas o passado de glória não sustentava por si as casas nobres. As famílias sabiam que a falência econômica tornava impossível a sua sobrevivência enquanto grupo privilegiado. Assim, as mercês régias e o patrimônio deveriam gerar rendas capazes de financiar o cotidiano de luxo: festas, casamentos e funerais (RAMINELLI, 2013, p. 92)

As formas de nobilitação das elites coloniais na América portuguesa ao longo dos setecentos também foram objeto de investigação de Stumpf (2011). A historiadora observou que apesar da riqueza ser a fonte de reputação social e o primeiro degrau nas carreiras ascensionais, existiam ainda diferentes formas de nobilitação prestigiadas no Ultramar que não estavam vinculadas estritamente à riqueza dos indivíduos, e harmonizavam-se aos paradigmas hierárquicos próprios do modelo europeu, “ao menos àqueles tidos como ideais, nos quais o mérito do dinheiro não equivalia em importância, nas trajetórias ascendentes, à honra herdada ou adquirida” (STUMPF, 2011, p. 121).

Neste sentido, o estudo de Stumpf aponta para o fato de que a riqueza era importante para a conquista da notoriedade, mas não era o critério principal, identificando assim uma pluralidade no interior da nobreza na América.

Em Monarquias Ibéricas em Perspectiva Comparada (sécs. XVI-XVIII), obra publicada em 2019 e organizada pela mesma Stumpf, em parceria com Ângela Barreto Xavier e Federico Palomo, encon-tramos um estudo de fôlego sobre a temática. O material reforça a perspectiva contemplada atualmente pela historiografia dedicada ao império português, que parte do pressuposto de que as relações entre o centro político e os domínios ultramarinos pautaram-se, também, pela negociação. O fio condutor é a ideia de interação e interdependência entre as instituições metropolitanas e as estabelecidas na América, e a circulação de agentes entre umas e outras. Tal constatação torna ainda mais complexo o tema em tela neste trabalho.

Outra produção historiográfica que trata do tema e que merece destaque é a obra Ser Nobre na

Colônia (2005), de Maria Beatriz Nizza da Silva. Neste trabalho a autora percorre os quase três séculos

de nobreza na América portuguesa, identificando três fases distintas: do início da colonização até 1750; de Pombal à chegada da Corte; e de 1808 ao movimento constitucionalista. Na obra temos um retrato da complexidade da nobreza nas terras tropicais, e de seus esforços para manter um estilo de vida próprio.

Assim, como podemos observar, a nobreza portuguesa sofreu mutações no decorrer do tempo e apresentou variações tanto no reino quanto em sua extensão na América. Desse modo, fica evidente que compreender a nobreza no império português não é tarefa simples.

Na tentativa de lançar alguma luz sobre a questão, analisamos aqui a obra Privilégios da Nobreza,

e Fidalguia de Portugal, de autoria de Luiz da Silva Pereira Oliveira, publicada em Lisboa no ano de

1806. A obra é na verdade uma espécie de compilação de dados recolhidos por seu autor, a partir da qual se pode visualizar a estrutura nobiliárquica lusa e seus mecanismos de concessão. Utilizamos nessa análise a edição original, de 1806.

Mesmo que muitos elementos contidos no escrito tenham sido modificados ou suprimidos pela Carta Constitucional Para o Reino de Portugal, Algarves e Seus Domínios (1826), como a maior parte de antigos privilégios, por exemplo, ele possui seus méritos. Entre outros pontos revela como a nobreza, enquanto instituição, era entendida naquele quadro de mudanças conjunturais, e como ela foi se adaptando.

Dessa forma, esmiuçar os escritos de Luiz da Silva Pereira Oliveira pode trazer à tona muitos elementos importantes não apenas para a reconstituição da história da nobreza no império português, mas também, e principalmente, para compreendermos como se apresentava o pensamento luso diante das novas concepções, sejam as mais conservadoras ou mais liberais, que emergiram no período.

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Além disso, trata-se de um documento, e ainda que seja uma montagem da realidade de sua época, como apontou Le Goff (1990, p. 545), “o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder”. Assim, o documento não é apenas uma forma de intervir na realidade, é também um in-dicativo da realidade a partir da qual ele foi produzido, ou seja, expressa de uma maneira ou outra essa realidade.

A CONCEPÇÃO DE NOBREZA NA NOVA CONJUNTURA

Pouco se sabe acerca da vida e da carreira de Luiz da Silva Pereira Oliveira, o autor do escrito que nos serve de objeto de investigação. As informações conhecidas são as oferecidas pelo próprio autor na contracapa da obra. Consta que era cavaleiro da Ordem de Cristo, formado em Leis pela Universidade de Coimbra, Corregedor da Comarca de Miranda Douro (Portugal), e membro da Real Academia de Ciências de Lisboa. Mesmo escassas, essas informações indicam que Oliveira circulava entre a elite intelectual e nos altos níveis da estrutura administrativa lusa, que era homem culto e conhecedor da matéria de que tratou e que aqui analisamos.

No preâmbulo da obra, Oliveira afirma que a motivação para escrevê-la foi o fato de não exis-tir à época nenhuma compilação, compêndio ou instrução acerca do assunto, tendo ele encontrado apenas dispersas referências na legislação. Afirmou que os dados encontrados estavam deslocados,

como fugitivos, e lançando mão deles, de hum e hum, fiz dos mesmos huma breve Colleção, pela ordem com que me foram sahindo ao encontro. Passado algum tempo nasceo em mim o desejo de arranjallos, e de imprimillos em benefício do Público (OLIVEIRA, 1806, p. 7).

Muitos elementos interessantes e fundamentais para a compreensão da temática são abordados no escrito. Mesmo um rápido olhar sobre a obra revela aspectos importantes da nobreza portuguesa, como o capítulo X, que trata Da Nobreza Civil proveniente do Commercio, e sua útil profissão, e o capítulo XI, intitulado Da Nobreza Civil proveniente da Navegação, por exemplo. A existência de ca-pítulos específicos para a discussão dessas duas origens de nobreza indica uma valorização tanto da classe dos comerciantes quanto dos navegadores, o que sugere uma estreita ligação com o pensamento desenvolvido ao longo dos séculos dos descobrimentos, e que caracterizou Idade Moderna, qual seja a valorização das relações e do modo de vida burguês.

Logo no primeiro capítulo da obra buscou apresentar a origem, etimologia, definição e an-tiguidade da Nobreza portuguesa. Na ótica do autor, aqueles homens que se sobressaíram diante de calamidades, guerras, pleitos, etc., manifestando superioridade e sacrificando-se a serviço da amada pátria, eram merecedores de reconhecimento, e por tais feitos “foram-lhes tributados ho-menagens, e respeitos, denominando-os de insignes, ínclitos, magníficos e, por excelência, nobres” (OLIVEIRA, 1806, p. 3).

Desse modo, instituiu-se entre os homens o epíteto de nobreza, e a mecânica para a distinção de uns e outros para: servir de recompensa às ações brilhantes, ilustres e virtuosas; distinguir os beneméritos; estimular os homens a obrarem sempre o bem. Embora Oliveira não tenha se dedicado a discutir profundamente a origem da nobreza, buscou explorar a etimologia da palavra, afirmando que derivava do vocábulo latino noscibilis, e tinha como significado o adjetivo “conhecido”.

Nobreza e honra implicariam, ainda segundo o autor, em compromissos e sacrifícios em nome da lealdade ao monarca. Ser nobre demandava martírios, como abrir mão não apenas de seus bens, vontades e segurança, mas também de sua própria vida, em função das obrigações correspondentes à qualidade de nobreza, pois “não he por tanto sem razão o dizer-se que quanto quizermos ter de nobres, e de honrados tanto teremos de martyrizados” (OLIVEIRA, 1806, p. 8).

Oliveira dissertou longamente sobre a nobreza natural oriunda da hereditariedade, mas não deixou de enfatizar a nobreza política e seus serviços nobilitantes. Notadamente alinhado aos novos tempos que se iniciavam naquele quartel histórico, criticou o determinismo do sangue como único mecanismo nobilitante, uma vez que para ele a nobreza não estava realmente incorporada no sangue, e que “os homens conseguintemente não vem ao mundo nobres, assim como não vem sábios,

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pruden-tes, virtuosos, e bons por serem qualidades accidentaes, que cada hum adquire depois” (OLIVEIRA, 1806, p. 19). Assim, se evidencia a ideia de que a nobreza que já não se resumia mais a uma categoria proveniente do sangue, e que também esta instituição estava sujeita aos olhares críticos daquele novo paradigma oitocentista.

Por meio do escrito de Oliveira percebe-se que a nobreza portuguesa se tornara uma categoria elástica, estendendo-se a novos campos nobilitantes. Ele registrou inúmeras vias de nobilitação, e ain-da várias formas de adquiri-la sem o respaldo dos antepassados, destacando a crescente importância dos méritos individuais para o ingresso na baixa e média nobreza. Em Nobrezas do Novo Mundo, Raminelli (2015, p. 105) desenvolveu um raciocínio nessa mesma direção, e destacou que “se antes os serviços prestados à monarquia somavam-se à limpeza de sangue e de ofício, a ideia de nobre no Portugal Setecentista passou a valorizar cada vez mais os méritos”.

Pertencer à nobreza em Portugal era o desejo de muitos, no entanto, algo que poucos alcançavam. Havia somente duas portas, “huma para os sábios, outra para os guerreiros, e conseguintemente era forçoso seguir Armas, ou Letras para ser admitido áquella respeitavel sociedade” (OLIVEIRA, 1806, p. 9). Privilégios da Nobreza, e Fidalguia em Portugal também buscou apresentar as profissões nobres, ou seja, aquelas responsáveis por proporcionar a ascensão social de plebeus e nobilitá-los - ainda que os integrassem somente à nobreza política.

Envolvido por ideias inerentes ao século das luzes, Oliveira apontou e enalteceu uma série de ocupações e ofícios que, em sua concepção, seriam também dignos de nobilitação. O tratadista escre-veu também sobre a nobreza proveniente das dignidades eclesiásticas; a nobreza civil proveniente dos postos de milícia; a nobreza civil proveniente dos empregos da casa real; a nobreza civil proveniente dos ofícios da República; a nobreza civil proveniente das ciências, e dos grãos acadêmicos; a nobreza civil proveniente da agricultura; a nobreza civil proveniente do comércio; a nobreza civil proveniente da navegação; e por fim, a nobreza civil proveniente da riqueza.

Assim, com o advento das inúmeras revoluções ocorridas no Ocidente ao longo do século XVIII, pode-se admitir que a nobreza portuguesa foi se adequando às novas possibilidades e acabou alargando seus campos de nobilitação.

No que diz respeito às atividades ligadas às Ciências, Oliveira considerava-as fundamentais, pois em seu escrito a ciência era constantemente representada como uma tocha que iluminava o mundo; uma luz que governava as cidades e polia os costumes, transmitindo à posteridade as memórias das facções ilustres, e ainda instruía os homens a cumprir com seus deveres. Segundo ele, aqueles que cultivavam as letras, distinguindo-se em algum ramo da ciência, foram considerados em algumas passagens da Sagrada Escritura como

estrellas do Firmamento, cuja luz espalhada sobre a face da terra dissipa as densas trévas da ignorancia, e faz desapparecer por toda a parte os vergonhosos prejuizos, que abatem os vôos da razão (OLIVEIRA, 1806, p. 67).

Como se observa, a ciência passava a ser considerada como um grande motor de transformação daquela sociedade; por seu intermédio os indivíduos deixariam de ser humildes e alcançariam a classe de poderosos; de pobres se tornariam ricos; de plebeus poderiam adquirir a nobreza; e de simples vassalos passariam a ser membros prestativos ao Estado. No entanto, ainda de acordo com Oliveira, nem toda ciência seria digna de nobilitação, somente aquelas consideradas mais úteis e necessárias para a conservação e o desenvolvimento da nação, como

a Theologia, o Direito Canonico, e Civil, a Medicina, a Philosofia, e a Mathematica são unica-mente as seis Faculdades, que nobilitão neste Reino os Alumnos que proficuaunica-mente as cultivão (OLIVEIRA, 1806, p. 69-70).

Ainda tratando das atividades consideradas de inestimável importância ao reino de Portugal, apontou também a agricultura. Sendo a fonte mais inextinguível da abundância da população e do poder das nações, seria imprescindível que o Governo reconhecesse a importância desta útil profissão, e com isso concedesse título de nobreza “aos que adquirissem, e praticassem os verdadeiros

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princí-pios de bem cultivar a terra, e de tirar della todo o lucro possível” (OLIVEIRA, 1806, p. 82). Em seu entendimento, isso despertaria o interesse por parte de muitos outros indivíduos a ingressar-se nesse ramo, uma vez que

se o Ministerio pois tivesse por acertado propôr premios desta natureza, sem duvida excitaria a emulação honrada entre todos, e isto aproveitaria mais que todas as Leis Agrarias (OLIVEIRA, 1806, p. 86).

Depreende-se das linhas acima que o ofício de agricultor não era uma via de nobilitação, o que Oliveira critica com veemência. Questiona ele:

[...] se Armas, e as Letras dão Nobreza, porque não a Agricultura? Esta, e aquellas são necessarias para a conservação, e florescimento das Monarquias, logo esta, e aquellas devem ser ennobrecidas, e honradas. Com razão pois diz hum Moderno que hum arado na terra não é menos util que huma peça na Campanha; nem huma enxada na paz de menos proveito que huma espada na Guerra; que não fazem mais os Ministros quando julgão a cada hum o que lhe pertence, que o lavrador quando tira da terra o de que precisão os homens; que as Armas, as Letras, o Commercio, a Navegação, e a Lavoura são as cinco columnas do Estado, e que se todos os que se abalisão naquellas Artes tem honra, e proveito porque há de faltar o mesmo ao melhor Agricultor? (OLIVEIRA, 1806, p. 84). Segundo Oliveira (1808, p. 85), além da agricultura não conferir título de nobreza, em alguns casos esse tipo de atividade eliminava tanto o título quanto todos os privilégios já outorgados pelo rei, como, por exemplo, quando um nobre trabalhasse em terras alheias.

Assim, é incontestável o apreço do tratadista pela atividade agrícola, considerada por ele não apenas como um ofício nobilitante, mas remédio para muitas dificuldades enfrentadas por Portugal à época. Chegou ele a sugerir a criação de escolas agrícolas,

aonde se aprenda esta Sciencia” e a instituição de “huma Academia, ou Sociedade de Agricultura, [...], então (e só então) teremos a gostosa satisfação de a ver levantada, e remida da prostação, e lethargia em que se acha (OLIVEIRA, 1806, p. 89-90).

Também o comércio, como já apontamos, foi elevado por Oliveira à categoria de profissões nobres. A grande afeição de Portugal pelas atividades mercantis foi registrada na sua obra, como vemos abaixo.

[José I.] depois de crear huma Junta para o promover, instituio huma Aula aonde qualquer Ne-gociante pudesse aprender as regras, e principios necessarios para manejar com acerto esta util profissão; estabeleceo huma Companhia de Seguradores, e lhe deo Regimento para sua direção: (o qual se acha confirmado por Alvará de 11 de Agosto de 1791) degradou do Commercio toda idéa de abatimento, e o fez compatível com a mais alta Nobreza. Declarou com igual motivo que o Commercio era huma profissão Nobre, necessaria, e proveitosa; que os Ministros, e Officiaes de Justiça, Fazenda, ou Guerra podião sem quebra da sua qualidade negociar por meio das Compa-nhias Geraes, ou sociedades Mercantiz por elle confirmadas; que o Comercio feito nas mesmas Companhias não derrogava a Nobreza hereditaria, antes era mui proprio para se adquirir de novo (...) (OLIVEIRA, 1806, p. 93-4).

A passagem selecionada indica um grande estímulo às atividades ligadas ao comércio, e a va-lorização daqueles que as praticavam, sem que os mesmos perdessem a qualidade de nobres. Além disso, visando o desenvolvimento da nação portuguesa, outras providências teriam sido tomadas para despertar ainda mais nobres para a prática do comércio, como a concessão de títulos, por exemplo. Vejamos.

O mesmo Augusto Rei para dar a conhecer a estimação, que se deve fazer de hum bom Nego-ciante, doou o Senhorio do Sobral a Joaquim Ignacio da Cruz, e o provêo (como já havia feito a seu Irmão José Francisco da Cruz) em hum lugar ordinario do Conselho da Real Fazenda: exemplo memoravel que S. Magestade adoptou a favor do honrado Negociante Anselmo José da

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Cruz, nomeando-o Conselheiro Honorario do dito Tribunal; e aos distinctos Negociantes Jacinto Fernandes Bandeira, e Joaquim Pedro Quintella concedeo a mesma Soberana Fóros de Fidalgos Cavalleiros, e fez a este ultimo Conselheiro Honorario de sua Real Fazenda. O Principe Regente Nosso Senhor levado dos mesmos sentimentos fez a mercê de Conselheiro da Fazenda com exercicio a outro Negociante Sebastião Antonio da Cruz Sobral: e deo aos sobreditos, Joaquim Pedro Quintella o Titulo de Barão de Quintella, a Jacinto Fernandes Bandeira o Titulo de Barão de Porto Covo de Bandeira, e igualmente a este fez a mercê de Conselheiro Honorario da Real Fazenda, e de Alcaide Mór de Villa Nova de Mil Fontes (OLIVEIRA, 1806, p. 96).

Todavia, em certos casos o comércio não conduzia ao caminho da nobilitação, o que fez com que o autor lançasse algumas sugestões aos negociantes.

Aquelle, por exemplo, em cuja Familia estivesse naturalizado o trafico do Commercio, continuado com integridade de pais a filhos por espaço de cem annos, deveria gozar dos privilegios de nobre. O outro, que introduzisse alguns Navios de viveres em huma Praça sitiada, ou os mettesse no Reino em tempo de carestia, e com isto conseguisse exular a fome, e transtornar o preço excessivo, não deveria ser julgado menos Nobre, que o fero Capitão, que na Batalha destruísse huma tropa de inimigos: aquell’outro que manejando centenas de mil cruzados fizesse exportar as precisões sobejas do Paiz, e importar muitas das que nelle fossem precisas, que por este caminho enrique-cesse a si, e a massa commua do Estado (OLIVEIRA, 1806, p. 104-5).

Não obstante, o autor aponta outros casos de atividades comerciais que, além de não habilitar os indivíduos a se tornarem nobres, podiam ainda abolir títulos de nobreza já existentes, como os “Negociantes, que vendem ao retalho, e pelo miúdo em lojas, tendas ou botequins”; isto porque en-trar “no Commercio por huma porta tão baixa, e tão estreita, longe de ganharem Nobreza perdem, e derrogão a que tiverem” (OLIVEIRA, 1806, p. 106).

Como já anunciado, as atividades relativas à navegação também foram enquadradas como no-bilitantes por Oliveira. Considerava ele a navegação “huma Arte, e profissão igualmente Nobre”, e que a Nobreza desta Arte anda de companhia a utilidade do Estado. A não ser a Navegação, não terião os homens comodidade de permutarem as producções, e manufacturas de um Paiz com as de outro (OLIVEIRA, 1806, p. 108)

No entanto, lamentava que nem todos aqueles dedicados à navegação fossem considerados dignos de tal honraria, pois a legislação então em vigor

só favorece com privilégios, e distinções aos donos, e Capitães, Mestres, e Pilotos dos navios, e que todas as mais pessoas da tripulação, e serviço Marítimo geralmente são tidas, e havidas por mecânicas (OLIVEIRA, 1806, p. 113).

Apesar de restrições a algumas atividades ligadas ao comércio e à navegação, claro está que era uma prática comum a outorga de títulos e mercês em reposta aos serviços e socorros prestados à Coroa e ao Reino. Por esses serviços eram concedidos aos nobres inúmeras honrarias, isenções, infi-nitas prerrogativas e importantíssimos postos e ofícios, que sem sombra de dúvidas, eram almejados por uma boa parte dos súditos portugueses. Em Privilégios, Oliveira também discorreu acerca desses benefícios inerentes à qualidade de nobre. Façamos alguns apontamentos.

Primeiramente, é importante lembrar que as vantagens dispensadas à nobreza portuguesa não se resumiam à concessão de títulos, honrarias, ofícios e funções, mas também de privilégios. Como apontou Nuno Gonçalo Monteiro (2005, p. 5), “a nobreza não era apenas uma dignidade, mas uma dignidade à qual correspondiam privilégios”, as quais, ainda de acordo com o autor, “foram sendo progressivamente institucionalizados, ou seja, consagrados e inscritos no direito, na ordem jurídica”.

De acordo com Oliveira, um dos privilégios do nobre estava em estender o título à esposa. A mulher, por serviço das leis civis, fazia-se semelhante em qualidade ao seu marido, ou seja, se ele era nobre, a ela também competia a nobreza; ela usufruía das mesmas prerrogativas de seu

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cônjuge, mesmo que antes fosse plebeia. Todavia, isso não se aplicava ao marido, o homem não compartilhava da nobreza de sua esposa. Ao se casar ela retirava-se do seio da família e sujeitava-se ao poder do marido, seguindo em tudo a condição do mesmo, inclusive se ele pertencesse à plebe. Somente na circunstância de viúva retornaria à sua condição original.

Outro privilégio consistia na preferência ao nobre em qualquer concurso com plebeus, fosse por terras, postos, ofícios ou acentos; caso o certame fosse apenas entre nobres, devia-se então “preferir o mais Nobre d’entre elles, assim como entre os Sabios costuma preferir o mais sabio; e sendo todos de igual Nobreza, precederá o que nella for mais antigo” (OLIVEIRA, 1806, p. 130-131).

Também existiam privilégios no que diz respeito à prisão. O nobre só poderia ser condenado ou aprisionado se existisse contra ele exuberante prova do delito cometido; devia a prova persuadir, concluir, e convencer eminentemente. A prisão “especial” para aqueles que gozavam da nobreza também era um privilégio; caso aprisionados, deveriam receber tratamento diferenciado dos plebeus: eram recebidos atenciosamente e civilizadamente; “a eles competiam os melhores quartos; a eles era permitido todo o alívio e, uma total comodidade” (OLIVEIRA, 1806, p. 133).

Distinção também era uma regalia. Consistia na estima e conceito que os homens e as leis dispensavam dos nobres, considerando-os e presumindo-os diferentes dos homens comuns: eram tidos como prudentes, verdadeiros, fieis, vergonhosos, castos, liberais, pacíficos, virtuosos, etc. Esses atributos eram, de acordo com Oliveira (1806, p. 135), “puramente reflexos das suas ilustres ações, sempre atuando com dignidade para com suas obrigações”.

No entanto, ressalte-se que isenções, distinções, prerrogativas, regalias e privilégios concernentes ao ser nobre poderiam ser anulados se não fossem conservados pois

a verdadeira nobreza é um tributo perpétuo, devido à virtude em que os descendentes de um nobre são obrigados a pagar enquanto vivem, portanto, na prática a nobreza não se alcança nascendo, mas sim vivendo (OLIVEIRA, 1806, p. 162).

Além de todas essas vantagens e distinções de que gozavam aqueles que pertenciam aos quadros da nobreza portuguesa, Oliveira (1806, p. 164) apontou ainda outra prerrogativa, considerando-a “a mais estimada e a mais referida entre os nobres de Portugal”: sua insígnia. Esta tinha como uma das funções usuais distinguir o nobre do plebeu, possibilitando-o ser reconhecido por onde passasse.

Como se observa, as colocações de Oliveira são bastante instigantes e, ao mesmo tempo, reve-ladoras de uma época e de uma realidade.

De modo geral, via de regra o autor em questão entendia as atividades relacionadas à Ciência, à agricultura, ao comércio e à navegação como fundamentais para o desenvolvimento da sociedade portuguesa. Esse tipo de entendimento revela um alinhamento muito próximo do pensamento em-pirista, racional e pragmático que emerge naquele período.

Vale lembrar que por todo o mundo ocidental espalhavam-se os ideais iluministas e os pres-supostos do liberalismo, tanto em sua vertente econômica, como na social e política. Consolidava-se o pensamento de que os homens nascem iguais, com direito à vida, à propriedade e à liberdade, esta última, condição essencial para o progresso da humanidade. Diante de tal ebulição, vivia-se um período de mudança de conceitos e de paradigmas. Propagava-se um conjunto de novas ideias que ficaram conhecidas como ideologia burguesa, espalhava-se a cientificidade, valorizavam-se o conhe-cimento utilitarista e a crença na ideia de progresso e do homem como portador da razão. Tomavam corpo o ideário que condenava abertamente a escravidão, o mercantilismo, o absolutismo e a forma aristocrática de organizar a sociedade.

Embora no plano político e intelectual o período em questão tenha se caracterizado, entre outras coisas, pela luta da burguesia contra o clero e a nobreza, em Portugal tal luta teve aspectos singulares. Como escreveu Alves (2001, p. 22), Portugal não estava na vanguarda do desenvolvimen-to em fins do XVIII, logo sua burguesia era fraca, e a fragilidade “desenvolvimen-tornou-a conciliadora”. Assim, o chamado pensamento burguês, próprio daquela quadra histórica, apresentou-se moderado e ambíguo no universo mental luso.

Mesmo diante de tal realidade, observa-se, ainda que de maneira tímida, a penetração dessas ideias em Portugal, inclusive no seio de uma das instituições que mais foi golpeada: a nobreza. Nesse

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caso, isso pode ser constatado na flexibilidade dos mecanismos de nobilitação discutidos no escrito de Oliveira e em sua própria concepção de nobreza, que sempre remete à valorização e à premiação das ações individuais. Pode ser constatado, também, no seu apreço pelas atividades próprias da bur-guesia, como as relacionadas ao comércio e à navegação. Mesmo seu entendimento acerca da ciência permite-nos assim inferir.

Pode-se, contudo, como fez Novais (1979, p. 214) atribuir essa “adesão da inteligentsia portuguesa aos esquemas mentais do iluminismo” face à nova realidade que se impunha, e diante das alternativas de reforma ou revolução. Nesse caso, a ideia seria reformar para não perecer.

Independente dos motivadores, claro está que Privilégios apresenta elementos que permite-nos afirmar que mesmo a nobreza, instituição que se configurou como um dos alvos do período, embora tenha resistido não passou incólume, e também ela foi tocada pelos novos ventos que sopravam na-quela virada de século.

Considerações Finais

Como podemos observar tanto a partir da produção historiográfica pertinente ao tema, quanto dos escritos de Luiz da Silva Pereira Oliveira, a nobreza portuguesa era compreendida como uma peça importante do cenário luso durante a Idade Moderna. Ela teria se configurado como elemento constitutivo das estruturas administrativa, social, política e econômica da sociedade portuguesa, inclusive em seu império ultramarino.

Vista como um instrumento que classificava e diferenciava os homens, transformava a condição dos indivíduos e concedia-lhes significativa posição e inúmeros privilégios, a nobreza atraia o interesse de muitos, pois pertencer aos seus quadros era sinônimo de ascensão.

Ameaçada pelos princípios de liberdade e igualdade que nortearam as revoluções ocorridas ao longo do século XVIII - como a Revolução francesa, por exemplo - a nobreza lusa revelou-se bastante plástica e atenta à onda de renovação que varria o mundo ocidental. Embora as “luzes” e as “liberdades” apontassem como arcaica e inerte a ordem estamental setecentista, e ao mesmo tempo saudassem a nova ordem burguesa que se instalava, a nobreza lusa não sucumbiu aos clamores revolucionários que modificava os quadros social e político, de modo geral. Pelo contrário, submeteu-se e adaptou-se às várias mudanças que se apresentavam, flexionando-se e dilatando seu campo de nobilitação e seus mecanismos de concessão.

Isso é facilmente observado na obra de Oliveira aqui analisada. Influenciado pelos novos ventos, ele apontou inúmeras críticas acerca do determinismo de sangue como única fonte de enobrecimento. Para o tratadista, a nobreza não estaria exclusivamente vinculada ao sangue, pois em seu entendi-mento os homens não vinham ao mundo nobres e também não nasciam sábios, virtuosos, prudentes, e naturalmente bons; essas qualidades poderiam ser adquiridas.

Assim, nos escritos de Oliveira a nobreza não é apresentada como um segmento em declínio. Ao contrário, era postulada a partir de novas possibilidades, novas formas, diante dos novos tempos que se inauguravam. Passou a ser entendida como digna não apenas de valorosos guerreiros, ou ainda, de homens vinculados às linhagens ou tradições mais antigas; passou a considerar também dignos os indivíduos ligados a ofícios e atividades que ganhavam cada vez mais espaço naquele contexto histó-rico. As ciências, o comércio e a navegação eram indispensáveis ao Estado, e as ocupações vinculadas a esses ramos foram se configurando como profissões nobres.

Desse modo, considerando o contido nos escritos de Oliveira, constatamos que mesmo diante da efervescência política e das transformações ocorridas naquela quadra histórica, a nobreza não era concebida em Portugal como uma instituição antiquada e descartável diante dos novos tempos que se iniciavam.

Assim, a obra de Luiz da Silva Pereira Oliveira, publicada em 1806, não somente apresentou a arquitetura nobiliárquica portuguesa e os privilégios e as honrarias, mas lançou luz sobre questões fundamentais para a compreensão do período.

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Referências

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