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O RACISMO TEMA EMBLEMÁTICO: UM TABU SOCIAL – A REALIDADE DIVERGE DA VISÃO ESTATAL ANGOLANA

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Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354 Vol. 4 | Nº. 1 | Ano 2018

Dagoberto José Fonseca Simone de L. Ferreira

Fonseca

O RACISMO TEMA EMBLEMÁTICO: UM

TABU SOCIAL – A REALIDADE DIVERGE

DA VISÃO ESTATAL ANGOLANA

_____________________________________

RESUMO

Esse artigo faz parte de um conjunto de reflexões novas e antigas, mas também de pesquisas teóricas e de diálogos epistêmicos e metodológicos com diversos africanos pertencentes aos países de língua oficial portuguesa sobre a pertinência de abordarmos o fenômeno histórico-cultural que é o racismo em países africanos. Consideramos pertinente essa reflexão, pois o fim do império português sustentado entre outros fatores pelo racismo não o extinguiu com a vitória dos nacionalistas e independentistas africanos. Aqui nos debruçaremos para pensar esse fenômeno a partir da realidade angolana, muito embora estivemos fazendo nossas observações no campo empírico nas províncias que estivemos desenvolvendo atividades desde 2004 até 2012, a saber: Luanda, Cabinda, Cunene e Namibe, mas vamos concentrar o nosso olhar e elaboração teórica em especial no que estava e está presente na cidade de Luanda.

Palavras-chave: racismo; Luanda; cultura.

____________________________________

RESUMÉ

Cet article fait partie d'un ensemble de réflexions nouvelles et anciennes, mais aussi de recherches théoriques et de dialogues épistémiques et méthodologiques avec plusieurs Africains appartenant aux pays lusophones sur la pertinence de traiter le phénomène historico-culturel que constitue le racisme dans ces pays africains. Nous considérons cette réflexion pertinente, car la fin de l’empire portugais, entretenu entre autres facteurs par le racisme, n’ a pas été éteint avec la victoire des nationalistes et des indépendantistes africains. Nous examinerons ce phénomène dans la réalité angolaise, bien que nous ayons fait nos observations empiriques dans des provinces où nous menions des activités de recherche de 2004 à 2012, à savoir: Luanda, Cabinda, Cunene et Namibe, mais nous concentrerons notre regard et élaboration théorique surtout dans ce qui était et est présent dans la ville de Luanda.

Mots-clés: racisme; Luanda; culture.

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br capoeira.revista@gmail.com

Editores

Marcos Carvalho Lopes marcosclopes@unilab.edu.br Pedro Acosta-Leyva leyva@unilab.edu.br

Editores do Dossiê

Prof. Dr. Bas’Ilele Malomalo, UNILAB Prof. Dr. DagobertoJosé Fonseca, UNESP

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O RACISMO TEMA EMBLEMÁTICO: UM TABU

SOCIAL – A REALIDADE DIVERGE DA VISÃO

ESTATAL ANGOLANA

Dagoberto José Fonseca1 Simone de Loiola Ferreira Fonseca2

O artigo que ora elaboramos faz parte de um conjunto de reflexões novas e antigas, mas também de pesquisas teóricas e de diálogos epistêmicos e metodológicos com diversos africanos pertencentes aos países de língua oficial portuguesa (PALOP) sobre a pertinência de abordarmos o fenômeno histórico-cultural que é o racismo em países africanos. Consideramos pertinente es-sa reflexão, pois o fim do império português sustentado entre outros fatores pelo racismo não o extinguiu com a vitória dos nacionalistas e independentistas africanos.3 Aqui nos debruçaremos para pensar esse fenômeno a partir da realidade angolana, muito embora estivemos fazendo nos-sas observações no campo empírico nas províncias que estivemos desenvolvendo atividades des-de 2004 até 2012, a saber: Luanda, Cabinda, Cunene e Namibe, mas vamos concentrar o nosso olhar e elaboração teórica em especial no que estava e está presente na cidade de Luanda, a mai-or cidade de Angola e a mais populosa cidade dos PALOP, com mais de 2 milhões de habitantes conforme os dados fornecidos em 2018 pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). A província de Luanda é a mais populosa com 27% da população do país e tendo por base os Resultados De-finitivos do Recenseamento Geral da População e da Habitação de 2014.

1 Dagoberto José Fonseca, Professor e Livre Docente da Faculdade de Ciências e Letras – Campus de

Araraquara/UNESP, coordenador do Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN) e do Laboratório de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e da Diversidade (LEAD) da mesma faculdade da UNESP.

2 Simone de Loiola Ferreira Fonseca, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade

de Ciências e Letras – Campus de Araraquara/UNESP, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas “Violência, direitos humanos e etnias” (VIDHE) vinculado ao Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN) e do Laboratório de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e da Diversidade (LEAD) da mesma faculdade da UNESP.

3 Ver as obras abaixo sobre o tema:

GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de. Os filhos da África em Portugal: antropologia, multiculturalidade e educação. Belo Horizonte, Autêntica, 2005.

KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África? Rio de Janeiro: Pallas, 2006.

MATTA, Inocência. A literatura africana e a crítica pós-colonial: reconversões. Luanda: Nzila, 2007.

MAXWELL, Kenneth. O império derrotado: revolução e democracia em Portugal. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

NGUNGA, Armindo. Papel da língua na manutenção da paz. In: MAZULA, Brasão (Org.). Moçambique: 10 anos de paz. Maputo. Imprensa Universitária, 2002, p. 3-15.

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Dossiê – Angola: anotações e reflexões

Com esses dados demográficos, a cidade de Luanda se posiciona como a capital mais po-pulosa dos países de língua oficial portuguesa, superando Brasília, Lisboa e Maputo, por exem-plo, e se colocando como a terceira mais populosa das cidades dessa língua, atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro. Mas, sem dúvida a que tem a maior densidade demográfica de todas as cidades e capitais de língua portuguesa.

Vale salientar que a composição populacional de Luanda não é simplesmente dividida a partir das cores sociais como se faz, por exemplo, no Brasil, em Angola a identidade também se faz a partir de outro marcador importante que é o das etnias nativas do continente africano. Deste modo se considera que o contingente demográfico de Luanda tem uma maioria Ambundu, sendo também lugar de moradia e de trabalho de parcela significativa das etnias Ovimbundu e Bakongo, bem como de outras etnias menores percentualmente falando como os Côkwe.

Entretanto, para além desses habitantes nativos de Angola e de origem Bantu, há os que são os estrangeiros, entre os quais os originários de Portugal, Brasil, China e de Cuba, bem como de outras nacionalidades africanas que lá fincaram raízes como os senegaleses, congoleses e namibianos. O que faz com que tenhamos uma gama diversa de cores sociais e de etnias africanas se encontrando no mesmo território geopolítico, cultural, econômico, linguístico, filosófico e religioso, ou seja, se miscigenando biologicamente e se mestiçando culturalmente, formando um excelente campo de observação e estudo 4para apreendermos o fenômeno dinâmico das identidades étnicas5, suas fricções6 e contrastes7 e do racismo à angolana para além dos tradicionais estudos realizados no Brasil, nos Estados Unidos, na África do Sul, em Portugal, na Inglaterra ou na França, sobretudo porque há uma prevalência da população negra sobre a branca ou a amarela nesse caso.

Mas, também não se pode descartar o fato de que o racismo tem vigência e estrutura, segundo diversos estudos, a partir do sistema econômico mercantilista, se aprofundando com o colonialismo semântico-prático e se consolidando como peça motriz do sistema capitalista de produção material e simbólica, ambos resultantes da expansão das visões de mundo erigidas na

4 Ver o artigo de Fonseca, Dagoberto José. As fronteiras móveis do continente africano: construções étnicas e

estra-nhas à África. In: Diversidade, espaço e relações étnico-raciais: o negro na Geografia do Brasil. Renato Emerson dos Santos (Org.). Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2007.

5 Ver MUNANGA, Kabengele. Cultura, identidade e estado nacional no contexto dos países africanos. In: A

dimen-são atlântica da África. São Paulo/Brasília: II Reunião Internacional de História de África. CEA/USP/SDG/Marinha/CAPES, 1997.

6 Ver o estudo de Oliveira, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Livraria Pioneira

Editora, 1976.

7 Ver os estudos de Carneiro, Manuela C. da. Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São

Paulo: Editora Brasiliense, 1987;

___________________________________. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Editora Cosac-Naify, 2009.

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Europa ocidental a partir das filosofias políticas e teologias judaico-cristã, greco-romana e anglo-latina, tendo a frente desse processo reis, papas, cientistas, ideólogos e financistas.

Assim, como é possível verificarmos ao longo desse nosso artigo como os discursos, análises e interpretações sobre o racismo em Angola, realizado por angolanos, também apontam para o fato de que é nesse momento pós-guerra civil e na ratificada instauração da paz, mas com uma pífia distribuição econômica e aumento avassalador da população em Luanda é que se inicia o processo de formação de classes sociais, mas também das desigualdades econômicas de modo marcante.

Em pesquisa anterior realizada em 2008 (Fonseca, 2009), verificávamos que em Luanda havia cidadãos endinheirados e cidadãos sem dinheiro aparente, a partir dos seus automóveis, casas e roupas, enquanto marcadores sociais, mas isso não significava naquela época uma divisão de classes sociais definidas como se faz tendo em vista as sociedades capitalistas, o que nos apontava que somente o poder de consumir e o que se consumia não marcavam uma classe ou outra, pois essa era uma questão que teria que ser analisada e interpretada também a partir do recorte de pertencimento étnico e de cor social para além do domínio ou não da língua portuguesa em sua forma escrita mais do que falada (Fonseca, 2008; Balsalobre, 2015; Algarve, 2016).

Racismo à angolana: um olhar do universo cultural bantu e kalwanda

O racismo em Angola é um tabu social e que envolve uma leitura política, cultural, psíquica e semântica dos seus analistas e interpretes. Este assunto tem tido diversas contradições por parte de estudiosos locais e estrangeiros, sobretudo porque a noção de raça em Angola é praticamente ausente nas análises sociais do país, ficando bem demarcada a conceituação de etnia, sobretudo para definir as identidades locais fundamentadas também nas regionalidades estabelecidas pelos antigos reinos de Angola (Delgado, 1953; Malomalo et all., 2004) (Cacongo8, Cassange9, Kongo10, Lunda11, Matamba12, Ndongo13, Quibanda14 e Quicuma15) e pelas atuais autoridades locais e tradicionais como os sobas.

8 Reino Cacongo foi um pequeno reino situado na costa atlântica da região central de África, nos territórios das

actuais República do Congo e Cabinda. Fazendo limite geográfico ao sul, Ngoyo e a norte com Loango, foi um importante centro político e comercial entre os séculos XVII e XIX. A sua população fala a língua que é uma variante do kikongo, podendo ser considerada uma parte da etnia bakongo.

9 Reino de Cassange também conhecido como reino de Jaga, foi um estado pré-colonial situado no alto do rio

Cuango, no norte de Angola.

10 Reino do Kongo ou Império do Kongo foi uma região situada geograficamente no noroeste de Angola, incluindo a

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Dossiê – Angola: anotações e reflexões

Desde os estudos de Mario Pinto de Andrade (1971; 1997) fica nítido que a dimensão racial está presente no contexto social de Angola, no entanto ela está presa ao contexto do antigo colonialismo português em que se mencionava nos documentos e nos discursos lusos e angolanos a presença de brancos e negros. Isto fica evidente no poema de Agostinho Neto “Adeus à hora da largada” abaixo descrito na integra presente na obra “Sagrada esperança” do meu autor.

Adeus à hora da largada16 Minha Mãe

(todas as mães negras cujos filhos partiram) tu me ensinaste a esperar como esperaste nas horas difíceis

Mas a vida

matou em mim essa mística esperança

Eu já não espero

sou aquele por quem se espera

Sou eu minha Mãe a esperança somos nós os teus filhos

partidos para uma fé que alimenta a vida

Hoje

somos as crianças nuas das sanzalas do mato os garotos sem escola a jogar a bola de trapos nos areais ao meio-dia

somos nós mesmos

os contratados a queimar vidas nos cafezais os homens negros ignorantes

do Gabão. A sua dimensão máxima ia do oceano Atlântico ao rio Cuango, a leste e do rio Ogoué, no atual Gabão a norte, até o rio Kwanza, a sul. O reino do Kongo foi fundado por Ntinu Wene no século XIII.

11Reino Lunda, estima-se ter existido entre 1665-1887, também conhecido como Império Lunda, foi uma

confederação africana pré-colonial de estados, onde são atualmente a República Democrática do Congo, o nordeste de Angola e o noroeste da Zâmbia. O seu estado central ficava nas atuais províncias congolesas de Tanganyika, Haut-Lomami, Lualaba e Haut-Katanga.

12 Reino da Matamba foi um estado pré-colonial africano, localizado no que é atualmente a baixa de Kassange, na

província de Malanje. Era um reino poderoso que resistiu muito às tentativas de colonização portuguesa, vindo apenas a ser integrado em Angola no final do século XIX.

13 Reino Ndongo ou Reino do Ngola é o nome de um estado pré-colonial africano que existiu na atual Angola, criado

por subgrupos dos Ambundu. As informações mais antigas falam que sua criação deu-se no século XVI. Tanto Ndongo como Matamba eram estados subsidiários do Reino do Kongo que existiam em áreas habitadas por Ambundu. Ele foi liderado por um rei intitulado Ngola, o que veio a originar a palavra e posteriormente o país Angola.

14 Reino Quibanda é um antigo reino no território Ovimbundo, situava-se do ponto de vista geográfico entre Quipeio,

Galanga e Bailundo, sendo tributário deste último. Era cortado por números rios que ali nascem e se dirigem para o norte, formando o rio Cuvo.

15 Reino Quicuma é um antigo reino no território Ovimbundo. Localizava-se entre a Hanha e a Quipete, ao norte do

caminho para Cacundo.

16 AGOSTINHO NETO, António. Adeus à hora da largada. In: Agostinho Neto, Sagrada esperança, São Paulo:

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que devem respeitar o homem branco e temer o rico

somos os teus filhos dos bairros de pretos

além aonde não chega a luz elétrica os homens bêbedos a cair

abandonados ao ritmo dum batuque de morte teus filhos

com fome com sede

com vergonha de te chamarmos Mãe com medo de atravessar as ruas com medo dos homens

nós mesmos

Amanhã

entoaremos hinos à liberdade quando comemorarmos

a data da abolição desta escravatura

Nós vamos em busca de luz os teus filhos Mãe

(todas as mães negras cujos filhos partiram) Vão em busca de vida.

(Sagrada esperança)

Todavia, após a independência em 1975, muitos são aqueles que nos informam que esta realidade social desaparece pelo esforço político e sociocultural empreendido pelo Estado Angolano, particularmente após a adoção de políticas associadas ao socialismo estalinista-leninista empreendida pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA)17 e a suposta conquista da igualdade social para todos os angolanos a despeito da cor da pele destes. Esse aspecto ideológico é demonstrado através da música e da literatura, como nos informa Ruy Mingas, um dos autores do hino da Angola independente, em seu poema “Mama Terra”.18

Mama Terra

Nas feridas do seu parto A raiz do nosso umbigo Beberam a seiva

E do ventre a Mama terra Germinarão as sementes Das nossas certezas E nos embriagaremos Da carne dos seus frutos

As crianças nasceram, sem meta nos olhos E as suas mãos surjaciam

17 Ver HODGES, Tony. Angola: do afro-estalinismo ao capitalismo selvagem. Cascais. Principia, 2002.

18 Mingas, Ruy. Letra e música de “Mama Terra”. Disponível <https://www.letras.mus.br/ruy-mingas/mama-terra/>.

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Dossiê – Angola: anotações e reflexões

Com o mel do nosso olhar

As crianças serão crianças negras loiras ou brancas Serão pétalas da mesma flor

As crianças nasceram, sem meta nos olhos E as suas mãos surjaciam

Com o mel do nosso olhar

As crianças serão crianças negras loiras ou brancas Serão pétalas da mesma flor

Gerald Bender (2004) também constata que esta dimensão racista estava na base do discurso português no período da conquista colonial lusa, independente da suposta integração racial propalado pelos teóricos defensores do luso-tropicalismo19 de Gilberto Freyre (2010; 2010a), especialmente porque a noção de raça já estava expressa na constituição do Estatuto do indigenato (Ferreira e Veiga, 1957; Cruz, 2005) e dos processos de assimilação elaborados pelo Estado Luso. Entretanto, é importante frisar que a condição do antigo indígena, morador distante de Luanda e não portador da cultura identitária kalwanda, mesmo que com muito esforço busque ser um assimilado dessa cultura nativa da ilha de Luanda e da portuguesa, ambas hegemônicas, que se apresentam em especial na língua, no vestuário e na arte de cozer, ainda hoje nas relações cotidianas de Luanda demonstram que a Angola independente convive com estes fatores distintivos de cor e de sinais diacríticos que mantém as hierarquias do poder e no poder (Pereira, 2015).

O racismo em Angola se expressa fundamentalmente antes da independência pela ausência de angolanos nos escalões mais altos da estrutura administrativa do país. Os negros estavam situados em postos distantes do poder de mando na sociedade angolana de então. No entanto, se constata que enquanto mais claro se era mais perto do poder se situava no cenário urbano de Luanda (Miguel, 2015).

No entanto, após a independência em 1975, quando se constata no interior da alta estrutura militar e política do MPLA que havia mais mestiços, mulatos e cabritos, do que pretos e, ainda, uma porção significativa de brancos que também ocuparam o poder do Estado após a independência em 1975. Essa distribuição do poder em que as etnias e as cores sociais marcaram a estrutura do Estado Angolano é referida pelos pretos que são alijados do poder apontando essa situação também como um racismo que permaneceu em Angola mesmo após a independência, posto que os mestiços e os brancos se apoderaram do poder tendo apenas Agostinho Neto, enquanto um dos poucos representantes da cor preta no governo (Miguel, 2015; Pinto, 2007).

19 Ver THOMAZ, Omar Ribeiro. Tigres de papel: Gilberto Freyre, Portugal e os países africanos de língua oficial

portuguesa. In: Trânsitos coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros. Org. Cristina Bastos etti alli, Campinas: Unicamp, 2007, pp. 45-70.

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Segundo os estudos (Namone, 2014; Cassama, 2014) que também ocorrem acerca da realidade social da Guiné-Bissau pós-independência demonstram que os mestiços e os brancos na sua maioria oriundos de Cabo Verde se tornaram a elite dirigente dos dois Estados libertados de Portugal pela força e determinação do Partido Africano para a Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC) liderados por Amílcar Cabral. Essa situação da não representação negra e nativa dos guineenses, além do fator étnico, levou dentro de outro conjunto de fatores ao golpe de Estado de 1980, comandado por João Bernardo Vieira (Nino Vieira) e a separação do PAIGC em duas partes a de Guiné-Bissau e a Cabo Verde.

Deste modo, essa situação de falta de representatividade das cores sociais e da sinalização da “morte das etnias” no poder tanto na estrutura do Estado e na liderança do partido que também se fez presente em Angola acarretou em 1977 na cisão interna e sangrenta no MPLA. No livro “Nuvem negra – o drama do 27 de maio de 1977” escrito por Miguel Francisco “Michel” é relatado as suas memórias do cárcere que viveu após este momento da história obscura de Angola. Estas memórias de “Michel” estão sustentadas pela reivindicação de que o regime angolano independentista, capitaneado pelo Presidente Agostinho Neto deveria por fim a uma das heranças do colonialismo luso, isto é, o racismo. Segundo “Michel” a reivindicação de Nito Alves eram as seguintes e consta em suas célebres palavras:

No dia em que, por um trabalho igual, os homens em Angola, os pretos, os mestiços e os brancos, receberem um salário igual, o racismo desaparecerá;

No dia em que a justiça e a igualdade sociais forem realmente conquistadas e praticadas, o racismo, neste dia luminoso, deixará de existir para sempre;

No dia, enfim, em que a democracia social e política for garantida na prática, o racismo então estará enterrado e todos nós, num cortejo da história, iremos sepulta-lo definitivamente;

No dia em que Angola, os camaradas, os cidadãos varredores das ruas, dignificados pela nova moral e consciência revolucionária, forem não só negros, mas mestiços e brancos também, o racismo desaparecerá;

Se a morte, venha ela de todos os lados possíveis e imaginários, nos acolher de surpresa, seja ela bem acolhida “e que outros camaradas continuem com a mesma audácia, com a mesma determinação, com a mesma energia, sem hesitação nem sentimentalismo, continuem esta marcha irreversível, porque ninguém mais deterá o POVO que avança impetuosamente pelos seu destino. “Estamos juntos no combate político para os direitos do Angolano como nos legaram os nossos Predecessores” (Michel, 2007, p. 16).

Vale ressaltar que nas célebres palavras de Nito Alves havia uma dura denúncia da realidade sociorracial angolana, sobretudo porque muitos foram os pretos que estiveram à frente da guerra para independência do país e que não obtiveram o reconhecimento necessário e adequado do novo governo e do novo Estado Angolano. O que Nito Alves e outros combatentes do MPLA reivindicavam era a necessidade de isonomia e equidade entre pretos, brancos e mestiços (mulatos e cabritos) na estrutura governamental e em toda a sociedade angolana.

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Dossiê – Angola: anotações e reflexões

Diante desta denúncia, Nito Alves e outros camaradas do MPLA dissidentes encontraram a morte conduzida com determinação do Presidente Agostinho Neto e com a truculência das tropas cubanas. É Neto quem elabora a sentença desses dissidentes ao dizer no dia 28 de maio de 1977: “Não haverá perdão, nem tolerância contra todos aqueles que quiseram destruir o MPLA (...) Não vamos perder tempo com julgamentos” (Michel, 2007, p. 28).

Desta maneira, tanto o racismo como a “intentona fraccionista” de 27 de maio de 1977, se constituíram como verdadeiros tabus social, cultural e militar na sociedade angolana. Estela20 ao tecer um breve comentário sobre o movimento do dia 27 de maio diz de suas consequências na população de Angola, em particular aquela residente em Luanda:

o 27 de maio, que foi o que eu vivi. Foi um movimento que calou muitas vozes de intelectuais em Angola e, de certa, forma forçou as pessoas a serem discretas e a fazerem autocensura sempre e a terem cuidado com aquilo que dizem. Houve uma geração muito quieta que foi levando as coisas na diplomacia.21

João22 ao analisar o período e os tabus socioculturais angolanos trata do tema do racismo, mas sem mencionar o 27 de maio de 1977:

Os movimentos de libertação ao combater o colonialismo o objetivo era combater o racismo. De-pois de alcançar o poder tornou-se mais difícil; até porque se diz que uma das causas do nosso pro-cesso histórico recente é pela questão do racismo. Angola não discute as questões com profundida-de porque ainda tem alguns recalcamentos, ainda tem algumas feridas, tem algumas mágoas. E eu peço aos nossos amigos que se entendam porque não é fácil. E eu tenho tido muita cautela na abordagem em torno dessa problemática. E acho mesmo que é um dever do intelectual procurar compreender as debilidades do seu povo. Ainda não discutimos o nosso problema de forma desa-paixonada. Agora, esse bilhete de identidade vir com a raça é um ato inconstitucional. O conceito de mestiço é um conceito político e polissêmico, porque a mestiçagem é cultural ou é biológica? O individuo despido da etnia referente. O governo tem que ter muita cautela em torno dessas ques-tões. Mas são coisas que vão sendo ultrapassadas à medida que o Estado vai adquirindo mais matu-ridade.23

Neste sentido, muitos foram os nossos entrevistados que deram informações em que o racismo continua presente em Angola, em especial em Luanda, mas se está de modo latente, visível a toda gente, não significa que todos o discutam, pois o atenuam ou “simplesmente” fazem silêncio em torno dele no momento atual.

Segundo o Prof. Dr. Chim24, há racismo em Angola, e em Luanda especialmente. Ele ainda informa:

20 Nome fictício de entrevistada em maio de 2008.

21 Fragmento de entrevista concedida em maio de 2008 para a pesquisa de Fonseca, Dagoberto José. Nas marolas do

Atlântico: interpretações de Angola, da África, do Brasil e de Portugal. Relatório Científico (Pós-doutorado), Campi-nas: Faculdade de Educação, UNICAMP, 2009.

22 Nome fictício de entrevistada em maio de 2008.

23 Fragmento de entrevista concedida em junho para a pesquisa mencionada (Fonseca, 2009). 24 Nome fictício de entrevistada em junho de 2008.

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O angolano supera esta realidade porque o Angolano é um povo pacífico. Através da passividade das pessoas, elas tratam de evitar o choque, mas que existe, existe o racismo.

O governo não o elimina porque não tem políticas para isso. E a população também não tem. Mas, existe aquele que diz mulato de tal, aquele que diz preto de tal. Existe isso! Não numa grande porção, mas existe ainda, existe uma diferença. O racismo não vem só pela cor, vem também pela qualidade de vida. Há pessoas que estão bem, que tem, e que escurecem aqueles que não tem; e aquele também se sente afetado. Então aquela pessoa que é negro e que tem, para ele, ele é branco. Ele se considera branco; se ele tem, e se com o dinheiro se pode tudo, então é valido, ele escurece aquele que não tem.25

No entanto, há outros que dizem não haver racismo em Angola e, em particular em Luanda, como Felipe. Ele afirma haver uma ausência de racismo em Angola, mas há racistas no país. Veja o que ele diz:

Eu não diria que há um racismo em Angola, mas posso admitir que haja gente racista dos dois lados, tanto de branco para negro, mulato e tal, como também na escala inversa, vindo do negro para branco e para o mulato, existe. Agora, que o Estado por si só, tem isso bem definido pelas questões do bilhete de identidade. Para mim estas questões estão colocadas e são anticonstitucionais, porque pela própria constituição isso não deveria de ser.

Sia26 faz uma leitura da realidade racial de Angola e afirma:

a manifestação rácica em Angola pode haver como em qualquer parte do mundo há, a partir do momento em que o mundo ficou exposto as realidades de todos os povos, isso é muito normal, e resulta de vários elementos, dentro os mais notórios, o econômico. As desigualdades socioeconômicas trazem manifestações no homem de revolta, e isso está na base da má distribuição da renda pelas elites que detêm a possibilidade da distribuição desta mesma renda, e que não constitui já um elemento de discriminação rácico.

As duas mulheres entrevistadas se manifestaram a respeito do racismo de modo a demonstrar a evidência da realidade racial angolana, ao dizerem que:

Há angolanos que saem daqui e vão viver fora do país, vou citar o caso de Portugal, e eles são discriminados passam por certas situações e quando chegam aqui pronto: o branco que é o “rei”! Essas são coisas que não cabem na minha cabeça. Acho que é a consciência das pessoas que é preconceituosa. E como mudar? Eu acho que dá oportunidades às pessoas por igual e não por cor, não por raça. Por que nós vemos por aí, em vários setores da nossa vida, aqui em Angola, em que se tratam as pessoas assim.

Os bancos aqui em Angola, você vai e encontra quase todo mundo mestiço. Mas por que? Será que os negros não têm capacidade? É falta de abertura!

A forma de se combater isso é com certeza promover cada vez mais a raça negra, os negros estudarem para que a gente possa mostrar nosso potencial, por que é a única forma de nós mostrarmos nosso potencial e nos integrarmos. E acabar com esse racismo do negro contra o próprio negro, que é o pior!27

25 Fragmento de Entrevista concedida para a pesquisa (Fonseca, 2009). 26 Nome fictício de entrevistada em junho de 2008.

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Dossiê – Angola: anotações e reflexões Estela28 afirma:

Há racismo em Angola, não se quer aceitar, mas há racismo. Ele se expressa um bocado no dia a dia. Tanto na distribuição dos poderes, quando eu olho para alguém e digo que quero um funcionário desse gênero, dessa raça, pra ocupar esse lugar. Existe especificações assim. Porque eu quero imagem, portanto eu quero uma mulata. Há muito disso em Angola. Nos bancos, por exemplo, as balconistas são quase todas mulatas, portanto não é uma coisa expressa, mas uma coisa velada. Isso é racismo.

No atendimento público, também se nota muito isso em Angola. Você vai para o aerporto a maioria é negra, entra um branco e não fica na bicha29. Ele vai logo, é atendido e as pessoas nem se

quer tem coragem de dizer, são poucas, se tem uma fila o senhor vá para a fila. E ele, por ser branco, tem também o seu preconceito de superioridade e não fica na fila; prefere ir para a casa que ter que ficar na fila. Dificilmente você encontra um branco numa fila, seja que fila for, seja ele Angolano ou estrangeiro, é difícil. Muito difícil, só se forem coisinhas rápidas. Caixa, fazer compras, coisas rápidas, mas filas longas você dificilmente encontra um branco a cumprir ou, por exemplo, um branco apanhar um candongueiro.30

Este é um país multiétnico e em princípio onde vivem as diferentes raças você não vai encontrar um único taxista branco, um candongueiro branco. Vai encontrar um ou outro mestiço. Todos negros, empregados.

Nós temos uma clinica aqui bem perto de casa, quando ela abriu tinha uma menina, não sei se ela era cabrita ou se era branca, mas num tom muito claro o dela, era mais para o branco. Uma angolana vinda do Sul, analfabeta a menina, dos seus dezoito anos, vinha da Huíla. E ela veio grávida, teve um bebê e precisava trabalhar. Foi ter com o diretor da clínica e ele empregou-a. Ela é empregada de limpeza da clínica; ela entra, limpou o primeiro dia, entrou um casal, todo mundo olhava, uma branca está a limpar a clínica o que se passa? Mas todo mundo, brancos, negros, mestiços, se perguntavam o que se passava; pois bem aquela menina ficou três dias. Na segunda semana aquela menina saiu dali e foi para serviços gerais da Sonangol.31 A menina era analfabeta,

não sei que tipo de emprego ela consegui na Sonangol, mas, um homem de raça branca disse que era humilhante, aquela menina não poderia estar ali. Bom, se isso não é racismo eu não sei o que é.

Como podemos verificar e também interpretarmos esta realidade, constatamos com estes depoimentos e análises que há um profundo racismo em Angola e que ele se manifesta de modo intenso na sociedade luandense. No entanto, ele não é admitido por todos, até porque a intelectualidade angolana, residente em Luanda, também se mantém destas relações sociais, sobretudo porque tem proximidade política e cultural com mestiços (mulatos, cabritos), mas principalmente com brancos. Diante disto falar sobre o racismo não é algo politicamente correto também em Angola como no Brasil. Tanto que Felipe identifica que há racistas, mas que não se identificar facilmente o racismo em Angola, mesmo Érica e Estela informando as sutilezas, de um lado, mas de outro a violência simbólica deste racismo à moda angolana.

Ao interpretarmos este quadro social angolano, particularmente o existente em Luanda, inferimos que o racismo à moda angolana tem muitas semelhanças com o brasileiro, seja pela sua plasticidade, elasticidade, mas também pela sua permanência enquanto fenômeno social e cultural que está marcado pelo imaginário destas populações que continuam a idealizar ‘o

28 Fragmento de entrevista concedida em maio para a pesquisa (Fonseca, 2009). 29 Bicha referência à fila.

30 Candongueiro referência local de veículo de transporte de pessoas faz o atendimento público na ausência de uma

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mundo que o português criou’, como os luso-tropicalistas buscam forjar nas três margens do Atlântico.

O fato é que o racismo em Angola não pode ser apreendido da mesma maneira literalmente como ele se apresenta no Brasil ou em outros países, também pelo fato de que em Angola há uma complexidade de relações sociais, econômicas, políticas, culturais e psíquicas que estão pautadas não apenas pela cor da pele, mas, sobretudo pelo emaranhado e dinâmico edifício étnico e lingüístico angolano e, ainda, pela posição que cada grupo social ou indivíduo ocupa na estrutura do poder público ou privado a partir das suas relações de contato e de influência.

As relações raciais em Angola, em particular em Luanda, tem sua base cultural e simbólica na estrutura social e psíquica construída pelos portugueses ao longo de 500 anos, seja pelo grau de miscigenação e de assimilação que produziu, destruindo projetos culturais e identitários nativos para também transformar em outros. A ponto de que para Sia, a sua geração, nascida no período imediato à independência do país, considera que negros, brancos, mulatos e cabritos contribuíram com suas capacidades físicas, intelectuais e afetivas para por fim a conquista colonial portuguesa e hoje não dá para falar em racismo como se falava antigamente.

A minha geração, falo dela porque tenho destinado uma atenção muito especial aos comportamentos sociais, comportamentos físicos, dos elementos da minha geração, a partir dos meus círculos de influencia, e mesmo de fora. A minha geração não foi educada com preconceitos, nem éticos, nem tribais, nem raciais, nem políticos. A minha geração não tem uma educação preconceitual, esses preconceitos não tiveram na base da transmissão de valores da minha geração. A minha geração teve outros valores no processo de criação da personalidade, logo é difícil verificar isso. Do ponto de vista oficial, da administração do Estado, a prática de discriminação por etnia, raça, cor, é crime, então não sei onde haveria de ter lugar. Aliás, todo o processo de luta pela descolonização, até chegar pela independência, contou com a participação de todos os angolanos; todos os angolanos são resultados dum processo de colonização. Isso do ponto de vista de ter a cor da pele; Angola é brancos, mestiços, pretos e todos aqueles que se sentiam angolanos. Então não havia possibilidade nenhuma de evitar que 500 anos de relação, de escândalo histórico, a todos os níveis com os europeus, portugueses, não haver gente de pele mais clara; era impossível. E quando chegou o momento, quando chegou o período de dizer basta a ocupação colonial em Angola, todos os angolanos, sem distinção de cor de pele, que se sentiam explorados, manifestaram-se nas mesmas frentes. Então, se aquilo foi o embrião deste Estado, que é o Estado vigente atual, o Estado moderno, e que estabelece as premissas para a construção de uma cidadania à evolução de uma nação angolana, então eu não sei como é que pode haver lugar para uma discriminação dessas ordens.32

A interpretação de Sia é bastante instigante, pois tem uma compreensão diferente daqueles que foram assassinados no processo que culminou no dia 27 de maio de 1977, e o faz tendo uma visão oficial do Estado Angolano.

31 Sonangol é uma empresa estatal do ramo petrolífero, responsável pela administração e exploração do petróleo e

gás natural em Angola.

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Dossiê – Angola: anotações e reflexões

Outro fator sintomático no contexto racista angolano e que todos os entrevistados mencionaram é a miscigenação ocorrida em Luanda e que causou diversos impactos sociais, culturais e psíquicos, inclusive produziu este racismo entre os próprios nativos, na medida em que havia contrastes entre as cores sociais e os status distintivos a partir delas. Onde o mestiço (mulato e cabrito) se destacava dos demais pela cor, mas também pela educação que recebiam de seu grupo parental. Além do que com a mulher branca, particularmente, a portuguesa era vista por um ângulo diametralmente oposto mulher preta nativa por pretos e mestiços, posto que a branca tornou-se pelas lideranças independentistas o grande objeto de desejo, tanto que Agostinho Neto causou-se com uma mulher branca e portuguesa, Maria Eugênia Neto.33 Esta relação de Agostinho Neto tem sido vista também pela ótica de demonstrar ideologicamente que negros e brancos são e devem ser iguais em Angola. Portanto, o casamento de Neto e Maria Eugênia serviu também para se comprovar que não havia mais as distâncias sociais, culturais entre pretos e brancos em Angola e que o colonialismo português de fato havia caído levando consigo o racismo que o estruturava. Neste sentido, o casamento interracial do Presidente, o Pai da Pátria com uma mulher branca e portuguesa, também fora utilizado politicamente.

No entanto, também há outros intervenientes neste debate, tais como o casamento de outros líderes independentistas com mulheres brancas em Angola, entre os quais ex-Presidente da República, José Eduardo dos Santos que foi casado com uma russa, e de sua filha que recentemente casou-se com um branco. Mas, além disso, há brancos, principalmente, portugueses que estão pedindo cidadania angolana em função de casamentos efêmeros com negras angolanas e depois as abandona com seus filhos.

O racismo à moda angolana deve ser visto como parte integrante da agenda governamental do Estado Angolano e pela sociedade civil, particularmente se tornando uma pauta de discussões de intelectuais, construtores e formadores de opinião pública, na medida em que ele se dá de maneira inequívoca na sociedade luandense. No entanto, é camuflado e invisibilizado como aporte ideológico de um regime socialista que não existe mais em Angola oficialmente, desde o ano de 1992, bem como estabeleceu também como cerne de sua realidade multiétnica e plurirracial as diferenças e as desigualdades enquanto fatores constituintes das relações sociais do país.

Em suma, o que significa que o fim do socialismo real em Angola não significou a emergência de uma liberdade e de uma autonomia dos indivíduos, nem mesmo dos intelectuais que não pautam este tabu social, instalado pelo socialismo e edificado pela força cubana e pela

33 Ressalte-se que Amílcar Cabral, o grande líder da independência de Guiné-Bissau e Cabo-Verde também era

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ideologia de igualdade social pregada hegemonicamente por Moscou, ainda, no contexto da guerra fria.

Além do que não podemos desconsiderar que o branco angolano também é uma construção social, pois se faz menção muito ao português, mas é notória também a presença branca a partir do legado holandês do século XVII e mesmo cubano do século XX, o que demonstra que o branco em Angola tem várias e múltiplas origens e procedências, além de ser criação interna a partir das miscigenações ocorridas, bem como se constata no cotidiano luandense que os filhos de chineses com negras angolanas também estão sendo tratados como brancos da terra (Martins, 2016).

O pretexto de se buscar matar as etnias tradicionais a fim de fazer uma nação fez com que diversos líderes independentistas e seus partidos de assimilados e de mestiços no poder (Mateus, 1999; Vidal & Andrade, 2007) conseguissem fortalecer o racismo e gerassem um branco a partir de suas conveniências, sobretudo porque copiaram o único modelo que conheciam de governar o Estado que se propõe moderno e globalizado – o do europeu – com isso introduziram entre outras ferramentas ideológicas de administrar a divisão étnica e a exclusão por meio da raça, isto é de uma cor social mais prestigiada do que as outras (Memmi, 1989; Fanon, 2008).

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Dossiê – Angola: anotações e reflexões

Dagoberto José Fonseca

Dagoberto José Fonseca, Professor e Livre Docente da Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara/UNESP, coordenador do Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN) e do Laboratório de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e da Diversidade (LEAD) da mesma faculdade da UNESP.

_____________________________________________ _____________________________________________ Simone de Loiola Ferreira Fonseca

Simone de Loiola Ferreira Fonseca, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara/UNESP, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas “Violência, direitos humanos e etnias” (VIDHE) vinculado ao Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN) e do Laboratório de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e da Diversidade (LEAD) da mesma faculdade da UNESP.

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