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RESERVA DE VAGAS PARA ALUNOS NEGROS EM UNIVERSIDADES PÚBLICAS E O PROCESSO DE EXCLUSÃO

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FACULDADES INTEGRADAS

“ANTÔNIO EUFRÁSIO DE TOLEDO”

FACULDADE DE DIREITO DE PRESIDENTE PRUDENTE

RESERVA DE VAGAS PARA ALUNOS NEGROS EM UNIVERSIDADES PÚBLICAS E O PROCESSO DE EXCLUSÃO

Marcelo Goulart Correia

Presidente Prudente/SP 2003

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FACULDADES INTEGRADAS

“ANTÔNIO EUFRÁSIO DE TOLEDO”

FACULDADE DE DIREITO DE PRESIDENTE PRUDENTE

RESERVA DE VAGAS PARA ALUNOS NEGROS EM UNIVERSIDADES PÚBLICAS E O PROCESSO DE EXCLUSÃO

Marcelo Goulart Correia

Monografia apresentada como requisito parcial de Conclusão de Curso para obtenção do Grau de Bacharel em Direito, sob a orientação do Prof. Paulo Eduardo D’Arce Pinheiro.

Presidente Prudente/SP 2003

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RESERVA DE VAGAS PARA ALUNOS NEGROS EM UNIVERSIDADES PÚBLICAS E O PROCESSO DE EXCLUSÃO

Trabalho de Conclusão de Curso aprovado como requisito parcial para obtenção do Grau de Bacharel em Direito.

Paulo Eduardo D’Arce Pinheiro orientador

Márcio Ricardo da Silva Zago 1º examinador

José Maria Zanuto 2º examinador

Presidente Prudente, 02 de dezembro de 2003.

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Faz-nos tanto bem, quando sofremos, ter corações amigos cujo eco responde nossa dor.

Santa Terezinha do Menino Jesus

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Agradecimentos

Ao meu pai, Aniba Pereira Correia; minha mãe, Cleuza dos Santos Goulart;

e minha irmã, Marisa Goulart Correia, que souberam suportar e compreender minha ausência, e que são a minha primeira vocação.

À minha falecida avó: Irene de Jesus Pereira Correia. Saudades.

Aos meus grandes irmãos do Projeto Universidades Renovadas da Secretaria Lucas – R. C. C. de minha diocese: Mauro, Michelle, Maila, Fernanda, Irani, “Ritinha”, “Tathi” do Paraná, e tantos outros não menos especiais e amados, o meu coração em agradecimento à todas orações que fizeram intercedendo à Deus por este trabalho. Vocês são anjos em minha vida!

Aos meus companheiros guerreiros do Ministério de Música Universitário:

Elidiane, “Celsinho”, Fernando, “Tetéia”, Élder, “Marcinho”, e à gigante “Gi”, obrigado pela oração e por compreenderem a minha distância... Deus sabe o quanto quis estar junto de vocês.

Aos meus queridos irmãos do G.O.U. (Grupo de Oração Universitário):

“Vaninha” (coordenadora!), Denise, Guilherme, Camila, “Line”, Maíra, continuem levando Cristo Ressuscitado para a Universidade! Que o Espírito Santo os conduza. Deise, “Mary”, sucesso como Profissionais do Reino!

Ao meu irmão: Jair, que o coração chagado do Senhor seja tua força!

Ao meu orientador e amigo: Prof. Paulo Eduardo D’Arce Pinheiro, por toda compreensão e paciência. Mais que um orientador, pude ter um amigo. Que Deus sempre conserve o profissional exemplar que és!

Ao meu amigo: Prof. José Maria Zanuto, que me deu minha primeira oportunidade de estágio, e logo no primeiro ano da faculdade. Muito obrigado!

Que Deus, pela intercessão de São Judas Tadeu, lhe conceda sempre graças!

Ao meu jurisconsulto e amigo: Prof. Márcio Ricardo da Silva Zago, obrigado pelos preciosos momentos de partilha jurídica e profissional que tivemos. Que Deus o abençoe!

E a todos os outros amigos que aqui não couberam. Deus os abençoe!

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RESUMO

O presente estudo analisa a questão da reserva de vagas para alunos negros nas universidades públicas, bem como o processo de exclusão do negro na sociedade brasileira.

Durante este, foi verificada grande discussão sobre a existência ou não de raças biológicas, e ainda, uma relação de identidade entre raça negra e pobreza.

Sob o aspecto do princípio constitucional da igualdade, foi verificado que o termo raça pode vir a ser utilizado como fator de discriminação legítimo, desde que tenha uma correlação lógica com a discriminação procedida, e não havendo desrespeito a um interesse constitucionalmente protegido.

Além disso, entrou no campo do Direito norte-americano, examinando a experiência por vivenciada este no que concerne à Ação Afirmativa, a qual encontra nele a sua origem, bem como o seu maior desenvolvimento.

Deste modo, foi esmiuçado desde o seu nascimento, fundamentação e desenvolvimento, até suas atuais perspectivas, a fim de que, assim, fosse possível analisar a experiência brasileira.

Caminhando pelo Direito brasileiro, o presente trabalho verificou a constitucionalidade da Ação Afirmativa, bem como alcançou o debate sobre a justificativa e adequação jurídico-social do sistema de cotas, implantado em universidades brasileiras, favorecendo o acesso ao ensino superior às pessoas negras.

Ao seu final, o estudo pode contribuir para a questão das Ações Afirmativas no Brasil, posto que confrontou as diversas e divergentes opiniões a respeito, inspirando, assim, novas ópticas sobre o assunto.

PALAVRAS-CHAVE: Raça – racismo – pobreza; Constituição – isonomia – raça – discriminação; Ação Afirmativa – Direito norte-americano – Direito brasileiro;

Sistema de cotas – negro – acesso ao ensino superior brasileiro.

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ABSTRACT

The present study it analyzes the question of the vacant reserve for black pupils in the public universities, as well as the process of exclusion of the black in the Brazilian society.

During this, great quarrel on the existence or not of biological races was verified, and still, a relation of identity between black race and poverty.

Under the aspect of the constitutional principle of the equality, it was verified that the term race can come to be used as discrimination factor lawful, since that has a logical bond with the proceeded discrimination, and not having disrespect to an interest constitutionally protected.

Moreover, it entered in the field of the North American Right, examining the experience for lived deeply this in that it concerns to the Affirmative Action, which finds in it its origin, as well as its bigger development.

In this way, it was investigate since its birth, recital and development, until its current perspectives, so that, thus, it was possible to analyze the Brazilian experience.

Walking for the Brazilian Right, the present work verified the constitutionality of the Affirmative Action, as well as reached the debate on the justification and legal-social adequacy of the system of quotas, implanted in Brazilian universities, favoring the access to superior education to the black people.

To its end, the study it can contribute for the question of the Affirmative Actions in Brazil, rank that collated the diverse and divergent opinions the respect, inhaling, thus, new optics on the subject.

KEYWORDS: Race – racism – poverty; Constitution – isonomy – race – discrimination; Affirmative action – North American right – Brazilian right; System of quotas – black – access to Brazilian superior education.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...09

PARTE 1 – RAÇA E POBREZA NO BRASIL...11

1.1 – Considerações vestibulares ...11

1.2 – O conceito de classes sociais e a desigualdade racial ...12

1.3 – Brasil e discriminação racial...14

1.3.1 – Raça: um conceito em (re)discussão ...16

1.3.2 – Movimento negro: uma breve análise ...21

1.4 – Pobreza negra no Brasil: em busca das causas ...23

PARTE 2 – O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE...29

2.1 – Primeiras considerações ...29

2.1.1 – Fatores diferenciais e isonomia...31

2.2 – Critérios de validade da norma discriminatória ...33

2.2.1 – Fator de discriminação ...34

2.2.2 – Coerência lógica entre fator de discriminação e desequiparação realizada ...39

2.2.3 – Harmonia da discriminação procedida com os interesses abrigados na Constituição...40

2.3 – Isonomia e cuidado na interpretação das normas...41

2.4 – Considerações finais ...42

PARTE 3 – AÇÃO AFIRMATIVA E O ACESSO AO ENSINO...43

3.1 – Ação Afirmativa e a experiência norte-americana...43

3.1.1 – Justificativa do tópico ...43

3.1.2 – A Interpretação e aplicação da equal protection clause ...44

3.1.2.1 – O delineamento histórico das doutrinas acerca da equal protection clause ...48

3.1.2.2 – A doutrina separados mas iguais ...53

3.1.2.3 – O declínio e revisão da doutrina separados mas iguais ...55

3.1.3 – Gênese da Ação Afirmativa...59

3.1.3.1 – Precedentes e políticas iniciais de Ação afirmativa...59

3.1.3.2 – Os primeiros casos envolvendo Ação Afirmativa na Suprema Corte norte-americana...63

3.1.4 – Conceito e objetivos da Ação Afirmativa ...67

3.1.4.1 – Conceituação ...68

3.1.4.2 – Objetivos ...70

3.1.5 – Fundamentos da Ação Afirmativa ...71

3.1.5.1 – Fundamento filosófico ...72

3.1.5.1.1 – Justiça Compensatória...72

3.1.5.1.2 – Justiça Distributiva ...73

3.1.5.2 – Fundamento constitucional ...75

3.1.6 – A discriminação no acesso ao ensino ...79

3.1.6.1 – O contencioso concernente ao acesso ao ensino...80

3.1.6.2 – Ação Afirmativa no campo da educação: o caso Regents of the University of California v. Bakke ...84

3.1.6.3 – O confronto entre as teorias da discriminação intencional e do impacto desproporcional ...88

(9)

3.1.6.4 – O confronto entre o Congresso e a Suprema Corte ...89

3.1.7 – As tendências e perspectivas da Ação Afirmativa...89

3.2 – Desenvolvimento do tema no Brasil ...94

3.2.1 – Possibilidade constitucional ...95

3.2.2 – Do controle da constitucionalidade ...98

3.2.3 – Da implementação da Ação Afirmativa para o povo negro ... 101

3.2.3.1 – Histórico ... 101

3.2.3.2 – O acesso ao ensino superior... 106

3.2.3.3 – Principais críticas e legitimidade política ... 112

3.2.3.4 – O racialismo negro ... 118

3.2.3.5 – O sistema de cotas ... 121

3.3 – Atualidades ... 127

4 – UMA ÚLTIMA ANÁLISE... 134

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 147

ANEXOS Anexo I – Raças Biológicas ... 150

Anexo II – A Constituição dos Estados Unidos da América ... 155

Anexo III – Cronologia de eventos históricos ... 160

Anexo IV – Mandado de Segurança ... 165

Anexo V – Ação Direta de Inconstitucionalidade... 180

(10)

INTRODUÇÃO

A garantia de uma igual oportunidade entre os cidadãos de acesso ao ensino superior no Brasil, é algo que ainda está longe de se realizar em sua totalidade.

O que vemos são setores da sociedade, os mais deficientes sócio- economicamente falando, completamente privados de tal garantia.

Dentre os integrantes destas classes mais carentes, temos, conforme tem sido veiculado pela mídia, e comprovado em diversas pesquisas, que a grande maioria são de raça negra.

A exclusão da classe negra do processo educativo é um dos fatores reveladores da evolução da sociedade brasileira.

Notamos neste processo histórico, a luta negra, tendo em vista a sua capacidade, por uma igualdade nos campos político, cultural e sócio-econômico.

Contudo, pouco de significativo foi feito, restando muito a fazer.

Temos que, hoje, no Brasil, uma das razões apontadas deste cerceamento ao ensino superior, deve-se à desumana situação sócio-econômica em que se encontra a grande parte da população. Com isso, se indaga se o racismo não seria um fator de exclusão educacional superior.

Movimentos há, que visam reservar cotas de vagas para alunos negros nas universidades públicas pátrias. Sua ideologia baseia-se numa das expressões do modelo norte-americano chamado affirmative action, ou Ação Afirmativa.

O histórico jurídico norte-americano é muito rico neste estudo, e será por certo aprofundado.

O desenvolvimento do tema proposto é significativamente importante para a maior compreensão do Princípio Constitucional da Igualdade, em especial quanto à nuance do acesso ao ensino superior no Brasil.

Desse modo, surgem discussões no sentido de avaliar a constitucionalidade das Ações Afirmativas em suas diversas formas de

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implementação, bem como, se são justificáveis, ou adequadas, frente à realidade brasileira.

Ao adentrar-se em tal discussão, aprofundar-se-á a matéria no campo jurídico, gerando debates quanto àquilo que, relacionado com o problema, já foi pensado e efetivado não apenas no plano teórico puro, mas, também, no plano legislativo e social.

Não se objetiva aqui, pôr fim à problemática do tema, mas sim, compreender, criticar e aquilatar os pontos centrais do mesmo, a fim de que se possa abrir novas fronteiras de busca por soluções, ampliando e fornecendo novo foco observativo.

No decorrer do trabalho será empregado o Método de Abordagem Dedutivo, pois, ao ponto em que se procurará compreender o problema maior da dificuldade de acesso ao ensino superior, bem como da relação deste com uma violação ao Princípio da Igualdade, visar-se-á analisar a justificação da reserva de vagas no ensino de tal nível.

No que diz respeito aos Métodos de Pesquisa ou Procedimento que se haverá de manejar, temos:

a) Histórico: analisar-se-á o histórico da sociedade brasileira com enfoque sobre a questão racial, educacional acadêmica, bem como a sócio-econômica, a fim de se compreender o atual cerceamento do acesso às universidades;

b) Comparativo: estudar-se-á o modelo norte-americano de combate à exclusão do negro no acesso ao ensino acadêmico, comparando as causas que lá justificam tal modelo, com as que no Brasil se revelam;

c) Estatístico: buscar-se-á dados estatísticos quanto ao problema do acesso ao ensino superior no Brasil, com um foco especial nos estudantes de raça negra.

Já quanto à Técnica de Pesquisa, a qual será utilizada para uma adequada coleta de dados, a fim de posterior análise e interpretação, valer-se-á da Documentação Indireta feita a partir de artigos de revistas, jornais, internet, e livros relacionados ao tema.

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PARTE 1 – RAÇA E POBREZA NO BRASIL

1.1 – Considerações vestibulares

No estudo desta primeira parte, necessário se faz, antes de adentrar-se no cerne desta, proceder-se à compreensão da relação existente entre os termos classes e “raças”, bem como, do real significado de democracia racial, sem o quê, aquele restaria prejudicado.

Isto posto, cumpre desde logo informar, no que concerne à análise preliminar proposta, a existência de duas correntes sociológicas no Brasil, cujas idéias se contrapõem.

A primeira, tradicional, afirma, que a discriminação e o preconceito de que padecem os negros no Brasil, bem como as desigualdades sociais existentes entre negros e brancos, têm um fundamento de classe.

Contrariamente, a segunda corrente, sustenta que, tal situação de discriminação e desigualdade social, têm, na verdade um caráter racial.

De igual maneira, enquanto a primeira corrente defende que a democracia racial é uma doutrina satisfatória, que levará a um futuro de relações não-racistas entre os diferentes grupos de cor, a segunda denuncia o “mito da democracia racial”.

Os próprios defensores do segundo posicionamento admitem que, atualmente, ainda prevalecem as concepções dos sociólogos da primeira linha de pensamento.

Em verdade, é na vigência das idéias formuladas pelo primeiro posicionamento que surgem, em atitude de oposição, os pensadores do segundo.

Estes, em última análise, definem tais idéias como ilusões concebidas no seio da sociedade, e que constituem empecilho ao desenvolvimento da luta contra o racismo no Brasil.

O estudo desta primeira parte, será procedido através da transcrição e embate dos principais ensinamentos destes dois posicionamentos.

(13)

Longe de querer-se fazer cessar tal divergência, o que se visa aqui é tão somente expô-la, a fim de aclarar o caminho deste trabalho, dando subsídios ao leitor, para que este compreenda o que há ou não de relação entre raça e pobreza no Brasil.

1.2 – O conceito de classes sociais e a desigualdade racial

O início da utilização termo “classe” nos estudos da sociedade (pela filosofia moral, principalmente), se deu associando-o aos privilégios e ao sentimento de honra social, característicos do domínio aristocrático e do ancien regime.

Foi Karl Marx quem veio a formular a teoria de classes, a qual surgiu como teoria das lutas de classes e da mudança histórica.

Referente a isso, bem anota Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p.

9):

[...] Para demonstrar que a sociedade capitalista moderna, a sociedade burguesa, devia sua dinâmica e seu desenvolvimento à exploração dos trabalhadores, Marx (1967), subtraiu de sua análise da relação social de trabalho no capitalismo todas as formas de coerção não econômicas que pudessem conspurcar essa relação (o gênero, a etnia, a idade, a raça, a religião, a nacionalidade, etc.). Sua intenção era encontrar e analisar a relação de exploração entre capital e trabalho que fosse tipicamente capitalista.

Com isso, Marx retirou do termo “classe” aquele sentido subjetivo e valorativo, passando a referi-lo a posições objetivas na estrutura social, às quais corresponderiam interesses, bem como orientações de ação similares.

Em outras palavras, Marx deu um sentido sociológico ao termo em tela, pelo que o conceito de “classe” ganhou universalidade e difusão, sendo deste modo adotado pelas ciências sociais modernas.

No entanto, para alguns sociólogos, os daquela segunda linha de pensamento, da análise feita por Marx, derivou-se incorretamente um argumento político, pelo que as classes sociais capitalistas se constituem independentemente de qualquer uma daquelas formas de coerção não- econômicas (ou formas de sociabilidade), mencionadas na citação acima, as

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quais passam a ser tratadas como formas obsoletas que serão superadas pelo próprio capitalismo.

Sobre isso, discorre Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 10):

[...] Ora, o conceito de classes sociais capitalistas nada mais é que um recurso analítico para referir-se a esse tipo de exploração, que, na prática social e no mundo real, aparece sempre misturado a hierarquias de gênero, de raça, etnia ou outra forma qualquer de construção de outsiders (Elias e Scotson, 1994). O problema teórico deve ser colocado como de exploração ou apropriação diferencial de recursos. Assim, tautologicamente e por definição, não se pode escapar do fato de que as desigualdades raciais no capitalismo sejam também desigualdades de classe (afinal trata-se de apropriação diferencial). Do mesmo modo, os preconceitos de cor ou de raça só têm sentido se resultarem de posições de classe, distinguindo brancos e negros, no caso específico de que estamos tratando. O fato de que tais preconceitos e desigualdades persistam no interior de uma mesma classe é o modo lógico mais claro de demonstrar a atuação de componente tipicamente “racial” na geração dessas desigualdades. Ou seja, a constante recriação de raças, gêneros e etnias continua sendo um dos meios mais eficientes de gerar exploração econômica e tal “tecnologia” longe de ser suplantada no capitalismo tardio, tem sido constantemente reatualizada.

Portanto, aqui já se começa a verificar a mencionada divergência entre os estudiosos do tema, pelo que, para uns, a desigualdade social, a discriminação e preconceito sofridos pela população negra, decorrem de um caráter de classe, enquanto que, para outros, como Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, a discriminação dos negros tem na verdade um embasamento racial.

Os desta última corrente, constatam que, no Brasil, as discriminações raciais (que se determinam pelas noções de cor, raça), são largamente consideradas pelo senso comum, como sendo, na verdade, discriminações de classe.

Verifica-se a adoção, destarte, do sentido pré-sociológico do termo

“classe”. Nos dizeres de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 43):

[...] Este sentido ancien do termo “classe” pode ser compreendido como pertencendo à ordem das desigualdades de direitos, da distribuição da honra e do prestígio sociais, em sociedades capitalistas e modernas, onde permaneceu razoavelmente intacta uma ordem hierárquica de privilégios, e onde as classes médias não foram capazes de desfazer os privilégios sociais, e de estabelecer os ideários da igualdade e da cidadania.

Não obstante a derivação errônea da análise feita por Marx, bem como o caso brasileiro, decorrente desta incorreção, predomina no pensamento sociológico a associação de “classes sociais” a ordens competitivas, a relações sociais abertas, ao capitalismo e à modernidade.

(15)

De não deixar de constar, que:

[...] o termo classe, mesmo quando empregado em seu sentido sociológico, que explicitamente o relaciona a uma ordem de igualdade de direitos, pressupõe, de fato, os privilégios e, portanto, a desigualdade de direitos que o termo vulgar e pré-sociológico sugere. (GUIMARÃES, 2002, p. 44)

Em última análise, para Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 10), a concepção de “classes” deve servir não apenas para utilizá-la como uma categoria analítica, mas também como grupo de alocação de indivíduos, para que daí se possa sugerir que no Brasil, os indivíduos negros formam uma “classe”.

1.3 – Brasil e discriminação racial

Partindo, da digressão feita no item anterior a respeito do Brasil, a segunda fileira de pensamento conclui que existe no Brasil uma invisibilidade da discriminação racial, justamente pelo fato de os brasileiros, em sua grande maioria, atribuírem à discriminação de classe, a situação de destituição material em que vivem os negros.

Em outras palavras, seria dizer: “eles são menos favorecidos materialmente simplesmente porque o próprio regime capitalista os relegou a classes mais pobres, não porque são negros”. Ou ainda, “eles são marginalizados materialmente como qualquer outra pessoa pobre seria, nada importando o fato de serem negros”.

O termo “classe”, assim utilizado, passa a ser utilizado a um só tempo como: condição social, grupo de status atribuído, grupo de interesses e forma de identidade social.

Inclusive, este é justamente o pensamento da primeira corrente.

E ainda, para muitos estudiosos, falar em discriminação racial seria incorrer num grave engano teórico, posto que, para estes, não existiriam raças humanas.

Diante disso, Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 47), alerta para o perigo de duas armadilhas sociológicas que se formam no Brasil contemporâneo:

[...] Ficamos, portanto, presos em duas armadilhas sociológicas, quando pensamos o Brasil contemporâneo. Primeiro, o conceito de classes não

(16)

é concebido como podendo referir-se a uma certa identidade social ou a um grupo relativamente estável, cujas fronteiras sejam marcadas por formas diversas de discriminação, baseada em atributos como a cor – afinal é esse o sentido do dito popular, de senso comum, de que a discriminação é de classe e não de cor. Segundo, o conceito de “raças” é descartado como imprestável, não podendo ser analiticamente recuperado para pensar as normas que orientam a ação concreta, ainda que as discriminações a que estejam sujeitos os negros sejam, de fato, orientadas por crenças raciais.

O referido autor em sua obra, utiliza o termo “raça” como conceito analítico, do que discorre ele sobre as principais críticas que lhe são formuladas por outros autores, críticas essas que se fazem fundamentais de compreender, a fim de que se avance neste estudo. Senão veja-se.

[...] três críticas têm sido formuladas à minha utilização do termo “raça”

como conceito analítico. Costa e Werle (1997), Yvonne Maggie (1999) e Mônica Grin (2001) consideram “raça” uma noção estranha à realidade social brasileira; Peter Fry (2000) argumentou que minha posição se afastaria da nossa tradição intelectual, estando de certo modo contaminada, seja pelas posições ideológicas do movimento negro, seja pelas categorias nativas norte-americanas. Sérgio Costa (2001), embora, reconheça que faça algum sentido referir-se à “raça” em estudos específicos sobre desigualdades ou discriminações raciais, considerou abusivo o uso do conceito em estudos sobre a identidade nacional ou sobre os regionalismos brasileiros. Essas críticas viram-se reforçadas pela posição de Paul Gilroy (1998, 2000), um intelectual negro de expressivo ativismo na luta anti-racista, que passou a defender insistentemente a tese de que a categoria “raça” já não tem nenhuma utilidade prática ou teórica no mundo globalizado.” (GUIMARÃES, 2002, p. 47-48)

Para facilitar a inteligência deste tópico, o qual é de suma importância para a compreensão desta parte do estudo, faz-se por bem sintetizar o até aqui expositado.

O autor (GUIMARÃES, 2002, p. 47-48) identifica dois problemas que, segundo ele, são causadores da invisibilidade da discriminação racial no Brasil:

a) a discriminação, para o senso comum nacional, é de classe e não de cor;

b) a alegação de que não existem raças humanas (em termos biológicos), leva a um total descarte do conceito “raças”, pelo que, não poder-se-ia orientar a ação social concreta, baseando-se o pensamento em “raças”, ainda que a crença na existência destas seja o fator desencadeador da discriminação.

Feito isso, expõe ele o seu conceito de “classes” como identidade social de um indivíduo, ou grupo relativamente estável, no qual os indivíduos são reunidos por formas de discriminação sofrida.

(17)

Propõe, ainda, a utilização do termo “raça” como conceito de análise, ou seja, para se pensar a ação social concreta a fim de se corrigir a situação discriminatória.

Por fim, apresenta três críticas feitas à utilização dada por ele ao termo

“raça”, quais sejam:

a) “raça” é uma noção estranha à realidade brasileira;

b) tal utilização revela um afastamento da tradição intelectual brasileira, aproximando-se das proposições ideológicas do movimento negro, e das categorias nativas norte-americanas (onde a desigualdade de classes baseia-se na raça – concepção natural – e não em critério de privilégios);

c) apesar de admitir a utilização do termo “raça” para estudos específicos sobres desigualdades ou discriminações raciais, nega tal recurso naqueles referentes à identidade brasileira ou a seus regionalismos.

Na linha desta terceira crítica, de acrescentar-se o pensamento de Paul Gilroy, para o qual a categoria “raça” já não tem mais nenhuma utilidade prática ou teórica no mundo globalizado, devendo o termo ser extirpado de nosso léxico.

As razões deste posicionamento de Gilroy, bem como do de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, serão dissecadas no item seguinte, o qual tem por escopo, com base no até aqui discorrido, rediscutir o conceito de “raça”.

1.3.1 – Raça: um conceito em (re)discussão

No ano de 1998, em sua obra intitulada “Race ends here”, Paul Gilroy, um dos mais brilhantes intelectuais negros contemporâneos, declarou-se totalmente contrário à permanência do termo “raça” em nosso vocabulário.

Tal pensamento já vinha sendo desenvolvido anteriormente a Gilroy. Por isso, algumas de suas razões para a adoção deste posicionamento, em nada diferem das apresentadas por seus precedentes. São elas:

[...] 1) no tocante à espécie humana, não existem raças biológicas, ou seja, não há no mundo físico e material nada que possa ser corretamente classificado como “raça”; 2) o conceito de “raça” é parte de um discurso científico errôneo e de um discurso político racista,

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autoritário, antiigualitário e antidemocrático; 3) o uso do termo “raça”

apenas reifica uma política abusiva. (GUIMARÃES, 2002, p. 48-49)

Com o propósito de aclarar o que os biólogos modernos pensam a respeito de “raças biológicas”, traz-se no final deste trabalho monográfico, um breve estudo sobre o tema1.

Prosseguindo, é certo que Gilroy reconhece a categoria “raça” como necessária para a auto-identificação e reunião dos anti-racistas, os quais constroem suas reivindicações legais sobre esta categoria, tendo em vista ela ter- lhes sido infligida por seus opressores. Nesse sentido, Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 49):

[...] Paul Gilroy certamente reconhece os argumentos dos anti-racistas que defendem o uso da categoria “raça”. O principal deles é, sem dúvida, o fato de que “raça” é a única categoria possível de auto-identificação para pessoas “cujos pleitos legais, oposicionistas e mesmo democráticos têm necessariamente de ser construídos sobre identidades e solidariedades forjadas a grande custo, a partir de categorias que lhes foram impostas pelos seus opressores” (Gilroy, 1998: 842, tradução minha). Tal reconhecimento levaria, como levou, a um compromisso liberal e democrático de empregar-se “raças” entre aspas, para denotar o seu caráter de construção social.

Contudo, sustenta Gilroy que esta justificativa hodiernamente não tem mais razão de ser, uma vez que, devido à globalização do mundo, a crescente busca pelas empresas de novos mercados pode até valorizar a identidade negra, de modo que o “ser negro” passa a constituir um privilégio, e não mais numa degradação:

[...] No entanto, para Gilroy, tal argumento já não é mais válido, e aí reside sua novidade. Todo discurso que recria “raças” seria hoje anacrônico, já que, em suas palavras: “A negritude pode hoje significar prestígio vital, em vez de abjeção, para um telesetor de info-trenimento, em que os resíduos das sociedades escravistas e os vestígios paroquiais do conflito racial americano precisam ser substituídos por outros imperativos, derivados da planetarização do lucro e da abertura de novos mercados bastante afastados da memória da escravidão” (Gilroy, 1998:

842, tradução minha). (GUIMARÃES, 2002, p. 49)

Ademais, sustenta que o anti-racismo sempre se fez como uma política de negação do racismo, jamais uma política afirmativa. Sempre se disse não ao racismo, sem contudo dizer-se a favor do quê, ou seja, quais os pleitos políticos e legais, a fim de que o racismo seja jubilado de nosso meio.

Portanto, aclarando a posição de Gilroy, expõe Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 49):

1 Vide Anexo I.

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[...] A posição que Gilroy apenas insinua deve ficar muito clara: 1) os anti-racistas estão comprometidos com a superação das desigualdades e das diferenças construídas a partir da idéia de raça; 2) segundo ele, já não precisamos historicamente da identidade racial para avançar nossos pontos de vista; 3) como conseqüência, já não precisamos da idéia de raça, seja biológica, seja social.

No entanto, em que pesem os argumentos trazidos à discussão por Gilroy:

[...] a idéia causou muita polêmica e talvez não se aplique à realidade brasileira, em que a cor da pele ainda gera preconceito. Muitos acham que, enquanto o racismo não acabar, não é possível abandonar a idéia de raça. (NET ALMANAQUE, 2003)

Contrariamente aos argumentos de Gilroy, se coloca a posição de Guimarães, o qual apesar de até admitir compartilhar de alguns dos pressupostos daquele, contudo, mostra-se divergente, sobretudo no que tange à total repúdia em relação ao uso do termo “raça”, com o que não concorda.

Transcrevem-se agora, as considerações que Guimarães tece, a respeito da posição por ele defendida. Veja-se:

[...] Repito aqui a posição que tenho adotado: “raça” é não apenas uma categoria política necessária para organizar a resistência ao racismo no Brasil, mas é também categoria analítica indispensável: a única que revela que as discriminações e desigualdades que a noção brasileira de

“cor” enseja são efetivamente raciais e não apenas de “classe”

(Guimarães, 1999).

Reconheço, todavia, que a minha argumentação repousa sobre dois pressupostos às vezes difíceis de serem percebidos. Primeiro, não há raças biológicas, ou seja, na espécie humana nada que possa ser classificado a partir de critérios científicos e corresponda ao que comumente chamamos de “raça”, tem existência real; segundo, o que chamamos de “raça” tem existência nominal, efetiva e eficaz apenas no mundo social e, portanto, somente no mundo social pode ter realidade plena. (GUIMARÃES, 2002, p. 50)

Após declinar suas considerações, o referido autor coloca como sendo o centro da questão, o seguinte problema: “quando, no mundo social, podemos, também, dispensar o conceito de raça?” (GUIMARÃES, 2002, p. 50)

A solução deste é dada pelo próprio sociólogo:

[...] A resposta teórica parece ser bastante clara: primeiro, quando já não houver identidades raciais, ou seja, quando já não existirem grupos sociais que se identifiquem a partir de marcadores direta ou indiretamente derivados da idéia de raça; segundo, quando as desigualdades, as discriminações e as hierarquias sociais efetivamente não corresponderem a esses marcadores; terceiro, quando tais identidades e discriminações forem prescindíveis em termos tecnológicos, sociais e políticos, para a afirmação social dos grupos oprimidos. (GUIMARÃES, 2002, p. 50)

(20)

No caso brasileiro, parece se ter percorrido o caminho contrário, tendo em vista que, no período compreendido entre 1930 e 1970, a idéia de “raça” foi completamente afastada do discurso social brasileiro, conquanto, as discriminações e desigualdades tenham crescido no mesmo período.

Somente após a tal período, é que houve a retomada da categoria “raça”

pelos negros, com o que foram postas às claras as desigualdades e discriminações lhes impostas, reiniciando de vez por todas o combate ao racismo.

Atualmente o movimento anti-racista pode tomar quatro possíveis formas.

A primeira delas é apegar-se a crenças racialistas (ou seja, crenças na determinação biológica de qualidades morais, psicológicas e intelectuais, ao longo da transmissão de caracteres fenotípicos que definem “raças”), aceitando diferenças de qualidades e propriedades raciais, determinadas biologicamente.

Contudo, não admite o estabelecimento de hierarquias entres tais diferenças.

Grande parte da negritude brasileira adere a tal posicionamento, em decorrência da cultura de massa.

A segunda é aquela que, sem crer em raças biológicas, aceita as raças sociais, ou seja, continua a classificar os indivíduos em raças, independentemente daquilo que diga a genética. É um posicionamento pragmático. As pessoas que adotam tal posicionamento anti-racista, apesar de não acreditarem em raças biológicas, aceitam que raças sociais são construções sociais permanentes, nas quais se embasa e organiza a luta anti-racista.

As duas primeiras formas apresentadas, nos dizeres de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 52), visam apenas civilizar as relações raciais, sem contudo superar a divisão da humanidade em raças.

Diferentemente, as duas últimas formas, ou posturas anti-racistas, implicam na superação da idéia de “raças”.

A terceira forma propõe que se trate “raças”, como epifenômenos, categorias nativas, construções que necessitam ser superadas, a fim de que se acabe com o racismo. Os desta corrente pregam que não tem como ser racialista

(21)

e anti-racista ao mesmo tempo, tendo em vista que a idéia de “raça” leva, por si só, ao racismo.

Tal posição acredita que, esclarecendo-se os indivíduos sobre a não existência de raças biológicas, estes chegarão à conclusão de que não motivo para diferenciações entre si.

A quarta forma, inclusive à qual se filia Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, versa que, para superar as classificações raciais, deve-se reconhecer a inexistência de raças biológicas, bem como denunciar as constantes mascarações da idéia de “raça”. Na concepção do autor (2002, p. 52):

[...] Ou seja, o não-racialismo não é garantia para o anti-racismo, podendo mesmo cultivá-lo se, para tanto, utilizar um bom tropo para

“raça”. Uma vez atingido o estágio do não-racialismo, e não-racismo científicos, ou seja, uma vez estabelecidas pelas ciências a inexistência de raças humanas e a inexistência de hierarquias inatas entre grupos humanos, durante um bom tempo, precisaremos ainda usar a palavra

“raça” de um modo analítico, para compreender o significado de certas classificações sociais e de certas orientações de ação informadas pela idéia de raça.

Prosseguindo no pensamento exposto, reafirma o autor:

[...] Mas minha postura, volto a repetir, é também delicada, pois pressupõe uma comunidade de leitores e ouvintes que partilhem a crença científica na inexistência de raças humanas e nas bases sociais do racismo. “Raça”, neste contexto, é uma ferramenta analítica que permite ao sociólogo inferir a permanência da idéia de “raça” disfarçada em algum tropo. (GUIMARÃES, 2002, p. 54)

E fechando tal raciocínio, disserta Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 55-56):

[...] O respaldo científico de que precisam os militantes anti-racistas brasileiros, portanto, não está em ressuscitar a idéia de “raça” biológica ou uma raciologia ultrapassada, invertendo os termos do racismo científico do século passado. O respaldo de que precisam resultará da reelaboração sociológica do conceito de raça. Conceito este que deverá, ao mesmo tempo: 1) reconhecer o peso real e efetivo que tem a idéia de raça na sociedade brasileira, em termos de legitimar desigualdades de tratamento e de oportunidades; 2) reafirmar o caráter fictício de tal construção em termos físicos e biológicos; e 3) identificar o conteúdo racial das “classes sociais” brasileiras.

O anti-racismo erudito e a ciência social politicamente engajada precisam mais que negar a existência de raças biológicas, referindo-se a tal idéia entre aspas. Precisam nomear as construções que tal idéia suscita, referindo-as pelo nome que devem ter, ainda que não sejam polidos ou estejam interditos por tabus: “raciais” e “raça”, esses são os nomes que descrevem a sua verdadeira natureza social. Afinal, a linguagem da ciência deve justamente ser capaz de desvendar e revelar o que o senso comum escondeu. (grifei)

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Destarte, atesta o autor pela necessidade de formulação de um novo conceito de raça, reconhecendo como tormentosa esta missão visto o amplo debate aberto em derredor do assunto.

Contudo, reconhece o autor o cuidado com que se deve proceder nesta busca, tendo em vista a resistência que a luta contra a discriminação e desigualdades raciais tem enfrentado, no lidar com a opinião pública, uma vez que aquela caminha de encontro com esta.

1.3.2 – Movimento negro: uma breve análise

Como se vinha dizendo, a busca por um novo conceito de raça deve ser procedida com cautela, postas as resistências encontradas pela luta anti-racista.

Tais resistências se devem, sobretudo, porque o Movimento Negro Unificado, e as demais organizações negras, voltaram sua força de combate, para duas frentes.

Na primeira, atacam a tese da democracia racial (tese “Freyre-Tannebaum- Elkins”), desenvolvida, no Brasil, por Gilberto Freyre na década de 1930, para a qual a sociedade brasileira oferece oportunidades iguais para todos, independentemente de sua raça ou cor. A escravidão vivida no Brasil teria sido muito mais branda e humanizada que a do sul Norte-americano.

As críticas dirigidas a esta tese, que ainda hoje quer persistir no meio nacional, se referem basicamente à acusação de que ela se aproxima do elogio à escravidão, como tendo sido benéfica aos escravos, bem como ao regime escravista-patriarcal, como sendo uma boa forma de organização da sociedade.

Nega, desse modo, o caráter cordial das relações raciais e afirma que, no Brasil, o racismo se encontra entranhado nas relações sociais.

Já na segunda frente, aprofundam sua política de construção de identidade racial, ao passo que chamam de “negros” todos aqueles com alguma ascendência africana, e não apenas os “pretos”.

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Com este proceder, os anti-racistas conseguiram conquistar paulatinamente, o repúdio da academia intelectual brasileira, atraindo para si diversas críticas como por exemplo:

a) a de que a democracia racial é um mito (conjunto de ideais) fundador da sociedade brasileira, e enquanto ideal não pode ser atacada. Ademais, enquanto ideologia, “a democracia racial, longe de acobertar, ou ter se tornado, ela mesma, racista, se contrapõe à ideologia que permite a discriminação racial no Brasil”

(GUIMARÃES, 2002, p. 57);

b) que as acusações dirigidas a Gilberto Freyre, e que tentavam demonizá- lo sob a acusação de ter concebido uma imagem agradável das relações raciais brasileiras, eram completamente descabidas e ofensivas, tendo em vista a importância atribuída a Freyre enquanto estudioso do tema;

c) de que na busca pela identidade racial, teriam os anti-racistas incorrido em grave erro científico, quando definiram como sendo “negros” todos os indivíduos com ascendentes africanos, encontrando-os com a somatória das categorias censitárias “pardo” e “preto”. Senão veja-se:

[...] o movimento incorreu em duas heresias científicas: primeiro, adotou como critério de identidade, não a auto-identificação, como quer a moderna antropologia, mas a ascendência biológica; segundo, ignorou o fato de que, em grande parte do Brasil, a população que se autodefine

“parda” pode ter origem indígena e não africana. A pretensão de identificar alguém como “negro” pela sua ascendência, ignorando o modo como as pessoas se classificam ou traçam suas origens, deu margem também a outras críticas: a de que o movimento negro tenta impor categorias raciais americanas ao Brasil, e a de que professa a crença em raças biológicas (racialismo). (GUIMARÃES, 2002, p. 57)

Com o crescimento do movimento negro e o seu avanço para a defesa de políticas públicas favoráveis aos “negros”, e lesivas a interesses e privilégios consolidados, o desconforto com a elite acadêmica brasileira cresceu, de forma que das críticas ao movimento, de início bem fundamentadas, passou a outras completamente despropositadas.

Segundo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 58):

[...] Mesmo contando com aliados intelectuais de peso, a verdade é que, o movimento negro ainda precisa muito dos intelectuais “brancos” para vencer a resistência do establishment acadêmico, o qual continua pouco permeável à ascensão de negros.

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Prova disso, é resistência existente no seio das universidades publicas brasileiras, no que se refere à reserva de cotas para negros no vestibular, assunto esse que será abordado em momento propício.

Como conclusão, é de suma importância trazer à baila, a constatação feita por Guimarães (2002, p. 60), qual seja:

[...] é bastante provável que já não seja possível, no Brasil, construir um consenso nacional sobre as desigualdades raciais. É provável que, como nos estados unidos, a questão racial passe a ser objeto de dois discursos competitivos, ambos em sintonia com o reconhecimento pleno da cidadania negra. Por um lado, um discurso cuja ênfase é posta no caráter racial das desigualdades, ou seja, na discriminação sistêmica alimentada pelos preconceitos e pelas hierarquias socialmente aceitas (classe, gênero, etnia, raça, religião etc.); por outro lado, outro discurso, cuja ênfase é dada ao caráter econômico da desigualdade, ou seja à pobreza da população em geral. Qualquer política pública, no futuro, talvez tenha que ser negociada entre essas duas posições. O velho consenso sobre a democracia racial, ao qual aderiram, entre os anos 1930 e 1960, negros e brancos, direita e esquerda, liberais e socialistas, parece ter sido definitivamente rompido.

Com essa constatação, o citado autor traça duas pistas pelas quais, a meu ver, já se caminha no Brasil, na tentativa de direcionar a ação social concreta.

De um lado, dá-se como norte o critério econômico, o que implica dizer que o foco principal se concentrará na pobreza. Neste se olhará a pessoa pobre, sem se atentar para a “cor” de sua pele.

Diversamente, em se guiando pelo critério racial, ter-se-ia a “raça social” do indivíduo como foco de elaboração das ações, sendo a pobreza relegada a mera conseqüência da situação discriminatória experimentada pelo indivíduo.

E é nesse ponto, que se chega ao cerne da discussão proposta nesta primeira parte do estudo monográfico. Adiante.

1.4 – Pobreza negra no Brasil: em busca das causas

Conforme bem aponta Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 64), estatisticamente, o fato de que a pobreza no Brasil atinge sobremaneira a população negra em relação à branca, é algo já por demais constituído e comprovado. E ainda, de ver-se que na literatura sociológica, desde a década de 1950, encontra-se constatado que, no imaginário, na ideologia e no discurso

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brasileiros, existe uma ampla equivalência e associação entre ser negro e ser pobre. De igual forma, ser branco coopta-se com ser rico.

Destarte, conclui-se que:

[...] Há, portanto, no Brasil, seja na mentalidade popular, seja no pensamento erudito, seja na demografia ou na sociologia, na economia ou na antropologia, seja entre governantes e governados, um consenso de que os pobres são pretos e que os ricos são brancos. (GUIMARÃES, 2002, p. 64)

Corroborando com a exposição feita, temos a figura 1 abaixo, na qual nos é possível traçar uma relação entre os sistemas de castas raciais e o de classes.

Figura1

Contudo, mais que tão somente constatar tal fato, é necessário que se adentre em seu âmago, e se busque identificar qual é, afinal, a causa da pobreza negra no Brasil.

Uma explicação muito utilizada e aceita, tanto pelo senso comum popular, quanto pelos governantes, é a de que a referida pobreza negra se deve ao passado de escravidão sofrido, em outras palavras, seria uma espécie de herança refletida às gerações presentes, da situação escravista pela qual passaram seus ascendentes.

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No entanto, alguns grandes problemas decorrem desta explicação.

O primeiro deles, é o de que tal resposta, isenta as gerações presentes de qualquer responsabilidade pela desigualdade atualmente experimentada. A responsabilidade estaria toda sobre as gerações passadas.

O segundo, é o de que ofereceria uma desculpa fácil para a permanência das desigualdades. Afinal, seria algo que, pela antiguidade da situação, não se conseguiria reverter rapidamente.

O terceiro e último problema, consiste no fato de deixar-se sugerido que os vários governos brasileiros, têm se empenhado ao longo dos anos em corrigir, de maneira gradual, a recepção desta herança.

Contra tal explicação dada, têm se insurgido as lideranças negras (pelo menos desde 1930, de maneira organizada). Na concepção destas, as causas da pobreza negra são a falta de oportunidades, o preconceito e a discriminação raciais.

Na atualidade, de comentar-se, que governo e opinião pública têm reconhecido a discriminação racial. Inclusive, como informa Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 66):

[...] A administração Fernando Henrique Cardoso reconheceu publicamente, em diversas oportunidades, que existe racismo no Brasil.

No plano da opinião pública, a referida pesquisa do DataFolha, realizada em 1995, mostrou que 89% dos brasileiros também acreditam que os brancos têm preconceito contra os negros e 58% acham que o fato de a população negra viver em condições piores que a branca se deve ao preconceito e à discriminação dos brancos contra os negros. (DataFolha, 1995)

Entretanto, a discriminação de classe ainda é tomada por legítima, o que, trocando em miúdos, acaba por ter o mesmo significado para os negros.

O autor acima citado, alerta ainda, para que se atente à legitimidade que ganham no Brasil o preconceito e a discriminação contra os indivíduos pobres.

Tal legitimidade, se traduz na justificativa oferecida para os casos manifestos e reconhecidos, de discriminação dirigida a indivíduos negros. Em tais situações, é praxe explicar essa discriminação como sendo uma discriminação de classe e não de cor.

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Como importantes autores das ciências sociais, tomados como anti- racistas, em 1940, aceitaram e melhoraram tal argumentação, passou-se a tratar como natural e legítima a discriminação de classe, de modo que se esqueceu de que a possibilidade de uma pessoa destituída materialmente não ser portadora, em sua plenitude, dos direitos da cidadania, constitui fato repulsivo num regime democrático.

Somente a partir do momento em que as ciências sociais passaram a guiar-se normativamente pelo ideário da moderna cidadania, é que estudos sobre a violência, a criminalidade e de construção da cidadania vieram a revelar as discriminações diárias praticadas contra todos aqueles que, pela sua aparência física – principalmente a cor –, não parecem, para os poderes públicos, detentores de direitos subjetivos.

De indagar-se: o que torna legítimo o reconhecimento da falta de oportunidades dos pobres e o preconceito e a discriminação de que são vítimas?

O movimento negro, em sua grande parte atesta que essa referida legitimidade decorre justamente do fato de que os pobres são negros.

Concordando com tal reposta, passa Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 67) a analisá-la:

[...] Primeiro, há aquilo que Hasenbalg e Silva (1992) chamam de “ciclo cumulativo de desvantagens” dos negros. As estatísticas demonstram que não apenas o ponto de partida dos negros é desvantajoso (a herança do passado), mas que, em cada estágio da competição social, na educação e no mercado de trabalho, somam-se novas discriminações que aumentam tal desvantagem. Ou seja, as estatísticas demonstram que a desvantagem dos negros não é apenas decorrente do passado, mas é ampliada no tempo presente, através de discriminações.

Segundo, e talvez mais importante, é o caráter dessas discriminações.

Dificilmente se poderia afirmar, para o Brasil, como se fez, no passado, para os Estados Unidos ou para a África do Sul, que o fator racial seja um motivo de discriminação explícito ou diretamente detectável. Ao contrário, no Brasil, o fator racial está, geralmente, diluído numa série de características pessoais, todas de ordem atribuída (ascribed). Tome-se, como exemplo, o acesso ao trabalho, que 45% dos negros brasileiros, segundo o DataFolha (1955), consideram ser o principal problema que a população negra enfrenta, no Brasil.

O que acontece no exemplo dado, qual seja a dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, é a exigência de “boa-aparência”, baseada em valores puramente estéticos e de comportamento, o que acaba por discriminar negros e pobres.

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Outrossim, no caso de jovens universitários, outro fator que influi é o renome da universidade, sendo que as universidades públicas, em geral, gozam de um melhor conceito em relação às privadas.

Vale constar, que os indivíduos que têm acesso a essas universidades são em sua quase totalidade, advindos de colégios privados. Portanto, os negros (em sua grande maioria destituídos materialmente), e os pobres ficam mais uma vez marginalizados pois se vêem obrigados a estudar em escolas públicas (ou seja, gratuitas), e que têm um nível muito baixo de ensino, impedindo-os de competir em igualdade com aqueles que tiveram acesso ao ensino particular.

Daí que, ou eles pagam uma universidade particular, ou ficam à margem do ensino de nível superior.

Denota-se, pois, nos dizeres de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 68), que:

[...] o mercado e o governo discriminam duplamente o negro: primeiro, oferecem mais chances de qualificação para os estudantes oriundos de colégios privados; segundo, qualificam melhor os universitários da rede pública.

Para piorar a situação, verifica-se que, o mercado de trabalho para ocupações menos qualificadas, está situado nos grandes centros urbanos.

Contudo, devido à fragmentação destes centros por áreas residenciais, as distâncias aumentam, sendo necessário fazer uso de diversas conduções, o que acaba por circunscrever a área territorial para que essas pessoas busquem emprego.

Se ainda não bastasse isso, é nos bairros mais afluentes que se encontram oportunidades de trabalho em maior quantidade. Contudo, geralmente os pobres e negros acabam por morar em favelas ou bairros marcados pela violência, sujeita e desonestidade.

Diante de todo o exposto, é forçoso reconhecer que existe uma íntima ligação entre raça e pobreza. Dessa constatação surge a necessidade de que se proponha soluções. Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2002, p. 69) apresenta algumas proposições, dignas de se citar:

[...] O que sobressai das estatísticas e dos diagnósticos disponíveis é que houve um desleixo histórico dos governos brasileiros com relação à pobreza, que atingiu sobretudo a população negra.Políticas na área de educação, voltadas especialmente para os negros e carentes, políticas

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de saúde pública e saneamento, políticas habitacionais para as classes pobres, políticas de transporte urbano etc. são políticas que podem realmente reverter a situação de pobreza da população negra brasileira.

Mas, para que essas políticas pudessem reverter a situação de carência dos negros brasileiros, elas teriam que preencher duas condições:

primeiro, visar dois alvos – a população negra e os pobres; segundo, teriam que ter duração maior que uma ou duas administrações. (grifo nosso)

Destarte, encerra-se aqui, o estudo da relação de vinculação existente entre raça e pobreza no Brasil.

(30)

PARTE 2 – O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE

2.1 – Primeiras considerações

Estabelece o artigo 5º, caput, da Constituição Federal Brasileira de 1988, que todos são iguais perante a lei.

Eis estatuído, o princípio constitucional da igualdade, cuja abrangência, não se limita a aplainar os cidadãos perante as normas legais postas, mas que a própria norma não pode ser constituída em desarmonia com a isonomia.

De reconhecer-se dois destinatários de tal princípio. De um lado o legislador, que deve na edição das leis, caminhar através das balizas da igualdade aplicador da lei, e, de outro, o aplicador da norma, o qual terá como seu norte este princípio.

É o que leciona o douto doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello (2002, p. 9):

[...] O preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador.

Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas a própria edição dela assujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas.

Igualmente, lavra, com sabedoria, Francisco Campos (apud MELLO, 2002, p. 9-10):

[...] Assim, não poderá subsistir qualquer dúvida quanto ao destinatário da cláusula constitucional da igualdade perante a lei. O seu destinatário é, precisamente, o legislador e, em conseqüência, a legislação; por mais discricionários que possam ser os critérios da política legislativa, encontra no princípio da igualdade a primeira e mais fundamental de suas limitações.

Temos assim que, ao se aplicar uma lei a um caso concreto, todos aqueles que são abrangidos por esta devem receber tratamento paritário, e ainda, que a própria lei não pode disciplinar de modo desigual, situações que se equivalham.

Vale aventar aqui, a célebre sentença de Aristóteles, segundo a qual a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

Contudo, em que pese a validade de tal sentença como termo de partida a qualquer estudo sobre igualdade, impossível é cogitá-la como termo de chegada,

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pois, por mais valiosa que seja, deixa em suspensão o seguinte questionamento:

Quem são, afinal, os iguais e os desiguais?

A isto acrescenta Celso Antônio Bandeira de Mello (2002, p. 11), as seguintes indagações decorrentes:

[...] o que permite radicalizar alguns sob a rubrica de iguais e outros sob a rubrica de desiguais? Em suma: qual o critério legitimamente manipulável – sem agravos à isonomia – que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos? Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia?

Entre os indivíduos notam-se diferenças claras, fatores que possibilitam reunir-los em grupos de características, as quais podem vir a ser determinantes de desigualações erigidas pelas leis.

Ocorre que, um mesmo fator de discriminação, ou discrímen, pode ser juridicamente legítimo em um caso e ilegítimo em outro, para o fim de se estabelecer tratamentos díspares entre os indivíduos.

Veja-se o seguinte exemplo: poderia a lei estabelecer que pessoas altas poderiam circular dentro de shoppings centers, enquanto as baixas não o poderiam fazer? Emerge óbvia a resposta negativa.

De outro lado, ainda exemplificando, poderia outra lei estabelecer que somente pessoas com altura corporal superior a um metro e oitenta centímetros podem exercer a função militar de Dragão da Independência, enquanto que pessoas com altura inferior não o poderiam?

Aqui me parece ser positiva a resposta. A norma não ofenderia a isonomia.

Nota-se que a altura, ora foi admitida, ora foi rejeitada como fator de desigualação juridicamente apto a desencadear tratamentos díspares aos indivíduos.

Mas o que faz com que um mesmo fator seja por vez repugnado, e por vez aceito como discrímen legítimo? Qual a razão disso?

É certo que o princípio da isonomia, interdita tratamento desuniforme aos indivíduos. Contudo, o que dizer diante do fato de que a própria lei discrimina as diversas situações, a fim de que possa regê-las? Como diz Celso Antônio

(32)

Bandeira de Mello (2002, p. 12) “o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamentos desiguais”.

Assim, nas diversas situações, erige a lei elementos diferenciais, aos quais confere proeminência para o fim de dispensar tratamento desigual, discriminando as situações, com conseqüentes efeitos jurídicos díspares, os quais recaem sobre os indivíduos compreendidos numas e outras, estabelecendo para cada qual um regime.

Daí de se indagar quais discriminações são juridicamente intoleráveis. Ou, conforme Celso Antônio Bandeira de Mello (2002, p. 13), quando é proibido à lei, instituir discriminações? Quais as fronteiras que impugnam este exercício normal, intrínseco à função legal de discriminar?

Para se chegar, pois, à compreensão e prática efetivas do princípio da isonomia, tem-se antes que passar, inexoravelmente, pelas respostas das indagações até aqui formuladas.

Antes, contudo, de buscar-se respostas a tais indagações, cumpre declinar algumas considerações acerca de idéias preconcebidas, reiteradas muitas vezes por análises perfunctórias, e que vêm a prejudicar o vislumbre daquilo que realmente importa na busca pelo deslinde daquelas.

2.1.1 – Fatores diferenciais e isonomia

Costumeiramente, tem-se suposto que a ofensa à igualdade ocorre na escolha pela norma, de certos fatores discriminatórios presentes nas pessoas, que, porém, não poderiam ter sido elegidos como radical da desigualdade estabelecida.

Como exemplos desses supostos fatores, temos a raça, o sexo, o credo religioso (artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988), e ainda outros tais como aparência física, cor dos olhos, trabalho, convicção política.

Pensa-se que alguns fatores de diferenciais são inidôneos para servirem como raiz de uma diferenciação, posto que, obrigatoriamente afrontariam, a isonomia.

(33)

Contudo, tal suposição não merece perdurar. “Descabe totalmente, buscar aí a barreira insuperável ditada pelo princípio da igualdade” (MELLO, 2002, p.15).

Para demonstrar a procedência de tal afirmação, basta que se aduza alguns exemplos, tirados da lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (2002, p.

16).

Imagine-se a realização de um concurso público, no qual se busca a seleção de candidatos a exercícios físicos, dirigidos por órgãos de pesquisa do governo, com o fim de estudar qual a modalidade de esporte mais adaptada às pessoas de raça negra. Não podendo as pessoas de raça branca, ou de qualquer outra raça, participarem (por motivos lógicos), não haverá por isto, nenhum agravo à isonomia. Tampouco, estaria o Poder público forçado a realizar outras pesquisas equivalentes, com as demais raças não inclusas neste.

Outrossim, em nada será ferido o princípio em estudo, no caso de concessão de autorização normativa que faculte aos funcionários que professam determinado credo religioso, o qual veda a participação em festas pomposas, a sua abstinência em participarem destas, apesar de pelo cargo que ocupam estarem obrigados, desde que lhes atribua atividades substitutas, que aproveitem a todos.

E finalmente, versando sobre desequiparação de sexos, não existe obstáculo à admissão apenas de mulheres, em concursos para admissão no cargo de policial feminina.

Com os exemplos excogitados, fica por demais demonstrado não são as diferenças entre as pessoas que pura e simplesmente determinam a legitimidade jurídica ou não, de um tratamento desigual. Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello (2002, p.17):

[...] qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou situações, pode ser escolhido pela lei como fator discriminatório, donde se segue que, de regra, não é no traço de diferenciação escolhido que se deve buscar algum desacato ao princípio isonômico. (sic)

E ainda, os exemplos elaborados se prestam a fornecer outra constatação, qual seja, a de que as desigualações tidas como condizentes com o princípio da igualdade, o serão sempre e tão-somente quando possuírem um vínculo de correlação lógica entre o fator discriminatório elegido, visto estar presente no

(34)

objeto, e o tratamento desigual dispensado, desde que esta correlação não seja incompatível com os interesses prestigiados pela lei magna.

Disto denota-se, que o que fez o legislador constitucional, ao redigir o artigo 5º, foi tão simplesmente elencar hipóteses que, por si mesmas são incapazes de gerar uma situação de desigualação. Em outras palavras, elegeu ele situações que, sozinhas, não são admissíveis de serem utilizadas como discrímen. “Vale dizer: recolheu na realidade social elementos que reputou serem possíveis fontes de desequiparações odiosas e explicitou a impossibilidade de virem a ser destarte utilizados”. (MELLO, 2002, p. 18)

Com efeito, o que pretende o ordenamento constitucional com a previsão em seu texto do princípio da isonomia, nada mais é senão, criar óbice a discriminações infundadas, injustificadas, sustentadas por uma raiz de fundo preconceituoso.

Por conta disso, averbou com precisão Pimenta Bueno (apud MELLO, 2002, p. 18) “A lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania”.

Realizadas estas considerações vestibulares, de adentrar-se, pois, no cerne do assunto ora tratado, qual seja, os critérios para que se consiga identificar situações de desrespeito ao princípio da igualdade.

2.2 – Critérios de validade da norma discriminatória

Traz-se agora uma formulação de critérios que, ao passo que buscam identificar situações que desrespeitam a isonomia, por outro lado, também servem de balizamento para a edição de uma norma discriminadora, a fim de que tenha ela validade.

Seguir-se-á a relação elencada pelo renomado jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, tendo em vista a precisão enunciativa com que procedeu na elaboração dos critérios identificadores.

(35)

Para Celso Antônio Bandeira de Mello (2002, p. 21), o reconhecimento das diferenciações se divide em três questões:

[...] a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação;

b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado;

c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.

Em primeira análise visualizamos que, de início, investiga-se aquilo que a lei adota como critério discriminatório.

Feito isso, verifica-se se existe uma coerência lógica entre o fator, elegido, e a atitude disigualadora tomada, ou seja, o tratamento jurídico conferido àquela situação de desigualdade aludida.

Por fim, analisa-se a concordância em concreto da coerência lógica encontrada, com os valores guardados pela carta magna. A correlação lógica concreta se exprime na congruência da correlação lógica abstrata com as finalidades prestigiadas no texto constitucional.

De dizer-se que somente a conjunção destes três critérios é que revela a validade da lei.

A retenção em qualquer desses critérios, demonstra que a norma desigualadora em análise, atenta contra a isonomia.

Tal é a conclusão trazida por Celso Antônio Bandeira de Mello (2002, p.

22):

[...] quer-se deixar bem explícita a necessidade de que a norma jurídica observe cumulativamente aos reclamos provenientes de todos os aspectos mencionados para ser inobjetável em face do princípio isonômico.

Passa-se ora em diante, ao dissecamento de cada um desses critérios, individualizadamente, a fim de que se chegue a total compreensão acerca da questão.

2.2.1 – Fator de discriminação

Referências

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