• Nenhum resultado encontrado

A EDUCAÇÃO NAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS POPULARES RELIGIOSAS: BENZEDORES E A TRANSMISSÃO DE SABERES E “SEGREDOS”*

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A EDUCAÇÃO NAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS POPULARES RELIGIOSAS: BENZEDORES E A TRANSMISSÃO DE SABERES E “SEGREDOS”*"

Copied!
13
0
0

Texto

(1)

José Maria Baldino**, Patrícia Marcelina Loures***, Maria Zeneide Carneiro Magalhães de Almeida

Resumo: este inventário de manifestações culturais populares de feição religiosa,

descri-ção densa (GEERTZ, 1989) abrange quatro benzedores de Nova Veneza- Goiás, apreendidas nos seus espaços de ritualização. Com o propósito de problemati-zar como a educação pode se realiproblemati-zar nestes espaços sociais, as manifestações foram crivadas por indicadores analíticos, visando interpretar seus processos formativos e transmissão cultural.

Palavras-chave: Memória. Cultura. Educação. Religiosidade. Manifestações Culturais. ROCESSOS EDUCATIVOS E O UNIVERSO SIMBÓLICO

DAS BENZEÇÕES

As religiões possuem seus lugares sagrados. Se consultarmos os dicionários usuais, observa-se que o sagrado é “relativo a Deus, a uma divindade, à religião, ao culto ou aos ritos; sacro, santo”. [...] Os cálices, objetos, imagens que inspiram ou devem inspirar o respeito religioso A EDUCAÇÃO NAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS

POPULARES RELIGIOSAS: BENZEDORES E A TRANSMISSÃO DE SABERES E “SEGREDOS”*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 10.06.2015. Aprovado em: 21.06.2014.

** Doutor em Educação UNESP, Marília/SP. Professor PUC Goiás. Programa de Mestrado e Doutorado em Educação. Vice-líder DP CNPq Educação, História, Memória e Culturas em diferentes espaços sociais. E- mail: baldino@pucgoias.edu.br.

*** Mestre em Educação PUC Goiás. Professora da PUC Goiás. Pesquisadora integrante do DP CNPq Educação, História, Memória e Culturas em diferentes espaços sociais. E- mail: patrícia.lourespucgo@gmail.com.

**** Doutora em História Cultural UnB. Professora da PUC Goiás. Programa de Mestrado e Doutorado em Educação. Líder DP CNPq Educação, História, Memória e Culturas em diferentes espaços sociais. E- mail: zeneide.cma@gmail.com.

(2)

de profunda veneração são distribuídos pelo mundo todo como algo sagrado [...] (SCZIMINSKI et al., 2013, p. 385).

O

s universos educativos das práticas de benzeção como expressão simbólica de religiosidade, na presente reflexão, as de origem cristã no município de Nova Veneza-Goiás, caracterizam-se pela cultualização de rituais aportados num sis-tema de crenças cujos líderes, agentes educativos, se dispõem a exercê-los como uma função sagrada (benzer e curar), um dom, uma graça divina. Os ensinamen-tos são transmitidos culturalmente a agentes escolhidos segundo critérios nem sempre publicamente revelados, recaindo, quase sempre, como herança espiritu-al do grupo familiar e/ou amigos muito próximos já que se exige, em termos de legitimidade, uma atitude de doação e solidariedade para atender a quem precisa. São rituais abertos ainda que localizados em esferas domésticas como os lares, sob a

direção do benzedor/a e o(s) benzido/a(s) e/ou o aprendiz, quase sempre acom-panhados por outras pessoas, adultas ou crianças. Para o presente artigo foram selecionados quatro (04) “casos” de benzeções, parte dos rituais das manifes-tações populares presentes no corpus empírico da investigação que orientou a dissertação de mestrado em educação de Loures (2012), sob orientação de José Baldino J. M, ambos atualmente integrados como pesquisadores no Diretório de Pesquisa do CNPq Educação, História, Memória e Culturas em diferentes espaços sociais. Sob a liderança de ALMEIDA, Maria Zeneide C. M.

As benzeções e seus rituais serão apresentados seguindo uma ordem de anunciação discursiva através das falas entrecruzadas ou sequenciadas entre o pesquisador e o/a benzedor/a. No corpus do texto, são apresentadas quatro manifestações culturais da religiosidade popular, as quais foram retratadas por observações e entrevistas.

Procurou-se identificar os agentes sociais benzedores/as, suas idade, naturalidade, tem-po de “ofício”, seus processos de aprendizagem e suas formas de transmissão dos saberes e práticas. Torna-se importante ressaltar que estas manifestações guardam memórias e lembranças de tempos vividos e seus desdobramentos decorrentes das transformações da sociedade moderna, seus processos migra-tórios, suas desagregações re-agregações. É a este processo que Burke (2010) alude quando afirma que alguns rituais populares se modelaram segundo a literatura cristã. Assim, os símbolos religiosos, as festas, as rezas, demonstram ter um sentido de agregação das classes populares.

A BENZEDEIRA QUE VEIO DE ANGICO - BA (I)

Sra. F., 95 anos, do lar, mãe de nove filhos. Diz que veio da Bahia, com ilhós pequenos, mas não se recorda o ano. Aprendeu a benzer por volta dos quinze anos,

(3)

por-tanto há 80 anos. Seu marido foi o primeiro a vir trabalhar no garimpo em Cris-talina. As coisas estavam difíceis na Bahia e seu esposo veio procurar trabalho. Trabalhou em minas, em lavoura e, mais tarde, vieram para Nova Veneza. Sorridente, bem humorada e pronta a atender as pessoas que a procuram, inicia pedindo bênçãos a Deus e rezando o nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Após benzer, cita bênçãos que são recebidas por pessoas que a procuram e para as quais ela pede intercessão junto a Jesus, Maria, Anjos e Santos. Ao se referir ao seu altar, ela sempre diz: “meu Santo da Bahia”, o Sagrado Cora-ção de Jesus. Dª F. sempre nos recebeu, assim como a todos que buscam suas orações. Explica que sempre recebe visitas, crianças, jovens, adultos, velhos, e que as pessoas nunca se esquecem dela. As orações fazem bem às pessoas e a ela própria. Mostra seu altar, os santos diversos e diz que é tudo presente das pessoas que procuram suas benzeções. Logo vai explicando a forma com quem aprendeu suas rezas e benzeções – sua fé:

Aprendi essas reza com meu povo na Bahia. Todo ano rezava. Dentro da Bahia que eu era rezadeira. Minha sogra era companhera minha. Minha mãe. Também cuidava ajudava a cuidá da igreja. Tinha aprendido um pôco na escola quando ajudava a fazê a merenda. Aprendi um pôco a lê, meu tio era professor. Aprendi umas reza nos caticismo da igreja. Mas nunca ninguém me ensinou, fui apren-dendo de vê os outro rezá.

Observa-se que está presente no rito de sua benzeção o habitus (BOURDIEU, 2008) das disposições culturais incorporadas pelos agentes individualmente e, no grupo, como partícipes das mesmas crenças e atitudes frente à esta recorrência de resol-ver problemas. Para tanto, existem disciplina e normas técnicas individuais dos benzedores com seus rituais específicos, e também há aprendizados que garan-tem a existência de outros agentes. Observou-se que não há cobrança financeira, pois existe uma ordem moral de acordo com a qual não se pode cobrar sob pena de não valer o pedido ao sagrado, segundo explicação da benzedora.

A BENZEDORA QUE DIZ: BENZER É UM SEGREDO QUE SÓ PODE SER REVELADO PARA QUEM VAI PEGAR MINHA MISSÃO (II)

Sra. D., 75 anos, diz que veio para Nova Veneza por volta de 1960, de Candeias, Minas Gerais, numa leva de cerca de vinte pessoas porque a vida em Minas Gerais não estava fácil. Segundo afirma, vieram tentar uma vida melhor para a famí-lia. Tanto em Minas Gerais quanto em Goiás, ela viveu a maior parte de sua vida na zona rural. Hoje é residente na zona urbana, mas sente saudades da vida no campo.

(4)

Ao falar de seu aprendizado, diz foi com sua avó a qual antes de morrer, chamou-a, pedin-do-lhe que aprendesse todas as rezas para poder ajudar os outros: “benze de tudo que precisar: pessoas, casas, fazendas, contra cobra”, dentre outros. Atende pes-soas de todas as idades, benze de cobreiro, inveja, mau-olhado, quebranto, benze de cobra, vento virado. Diz que fica muito feliz de poder atender às pessoas que a ela recorrem. Quando alguém chega pedindo sua reza, ela logo se posiciona, fica atrás das pessoas com seus ramos ou, às vezes, com o rosário, proferindo suas orações, as quais não podem ser ditas a ninguém sob pena de perderem o efeito. Afirma com muita seriedade que as orações podem ser repassadas somente à pessoa

es-colhida que deverá ser preparada como ela foi, a fim de cumprir sua missão e seu ofício. A missão compreende saber que durante toda sua vida terá que aten-der às pessoas que precisarem, sem distinção. Aprenaten-der ofício também significa aprender as regras, guardar as formas e guardar também o segredo, a sete chaves. Somente na velhice deveria escolher alguém para ensinar e transmitir tudo aqui-lo que sabia. Em seguida, Sra. D. nos conduziu ao seu quintal e mostrou suas plantas medicinais, explicando a serventia de cada uma delas: arruda, confrei, algodão, hortelã gordo, erva- cidreira e bálsamo. Diz que aprendeu sobre todas as plantas e suas utilidades com sua avó, a qual ia falando e Sra. D., repetindo. Assim como sua avó, Sra.D. guarda tudo na memória e nunca escreveu nenhuma reza, uma vez que afirma não ter frequentado escola, mas valoriza o estudo e incentiva seus familiares a estudar. Segundo ela, não pode dizer as palavras, pois se as disser, estas perderão o efeito. Sobre sua escolaridade, ela disse:

[...] minha fia, fui trabaiá e esquici de istudá. As professora do Mobral veio aqui em casa, pelejô comigo e eu não fui. Eu arrependo de não tê ido. A noite dava tempo. Mas tava tamém muito cansada, mas dava eu podia tê isforçado. Assiná eu não assino. Depois ocê trás aquela espuminha pra eu podê assiná procê. E esse estudo seu minha fia se Deus quisé vai dá tudo certo. Esses dia veio um povo de Brasília aqui me fazê umas pergunta igual essas suas, mas nem sei quem é, depois eles não voltô mais. Ocês deve de estudá. Eu pelejei com os meu pra podê estudá, estudaro um pôco mais não siguiu não.

O dia a dia de trabalho acabou impedindo a Sra. D., de estudar, segundo ela mesmo afirma.

A BENZEDORA PROFESSORA E CATEQUISTA (III)

Sra. J. 71 anos, nascida em Trindade- Goiás. Seu pai era mineiro e a sua mãe nascida em Trindade, sendo uma família de tradição católica. Reside em Nova Veneza há 36 anos e benze há 52. Diz que “fiz até o quarto ano primário, mas o quarto

(5)

ano valia pro colégio de hoje”. Fui catequista na cidade de Brazabrantes. Le-cionei, quatro anos na roça na fazenda invernada na Escola São João Batista”. Conta ainda que:

Fui catequista na cidade do Brazabrantes. O prefeito foi meu aluno. No dia do catequista assisti a missa lá e o padre falou em meu nome no meio da missa. Me agradeceu e tudo. Preparei muitos alunos para fazer primeira comunhão. Sem-pre fui amiga dos padres. Vou a igreja e eles vem na minha casa. Lá no Braza quando morava na roça todo ano fazia a novena de São Sebastião. Todo ano o padre de lá ia.

Mudou-se para Nova Veneza por motivo de trabalho e para facilitar o estudo dos filhos. Quando morava em Brazabrantes, trabalhava com lavoura. Ao mudar-se para Nova Veneza, seu esposo foi trabalhar na prefeitura e lá se aposentou. Sobre aposentadoria, disse: “ainda não consegui me aposentar. Tem dois anos que tá aprovado e não libera o benefício”. Sobre a prática e a aprendizagem de benzer, diz que:

Eu benzia muita gente, até os alunos eu benzia direto. Aprendi a benzer com a Dona G., na cidade de Brazabrantes. Ela era muito boa para benzer. Ela benzia meus filhos e quando mudei pra roça foi preciso aprender porque era longe e precisava benzer meus filhos. Aí pedi a ela que me ensinasse. Escrevi as orações num caderno, ela foi falando e fui escrevendo, fui aprendendo com ela. Levava os meninos pra ela benzer e fui olhando como ela fazia. Ela já tava bem velhinha, era muito procurada. Ela benzia com rosário eu resolvi benzer só com o sinal da cruz. A Dona G. benzia de muita coisa, benzia de quebrante, dor de dente, mal olhado, espinhela caída, dor de cabeça, ofendido de cobra. Depois eu perdi o caderno, mas com o caderno eu cheguei a benzer de dor de cabeça. Fazia a oração e valia. Hoje benzo de quebrante e espinhela caída, e olha lá a espinhela caída que eu benzo que não melhora viu. Aprendi eu tinha 20 anos hoje tenho 71.

Sobre a possibilidade de ensinar a alguém da família ou conhecido, na perspectiva da transmissão cultural, diz:

Ninguém da minha família quis aprender. Uma vizinha quis aprendê, me pediu e eu ensinei as orações, mas ela não deu conta de aprender. Talvez ela não tinha o dom. É igual a oração de jeito, eu não dei conta de aprendê. Tinha que rezá costurando. A Dona A. sabe. Tem que ter o dom e a pessoa tem que interessar porque se não não pode ensinar. Qualquer um pode aprender, mas tem que ser uma pessoa boa, não pode cobrar. E tem que dedicar pros outros.

(6)

Finaliza dizendo que hoje é pouco procurada. Diz que já benzeu tanto que perdeu até a conta. E, como Sra. P., afirma que uns são gratos pelo que faz e outros não. Não se refere a gratificação financeira, mas a uma espécie de agradecimento do coração.

O BENZEDOR ENTRE O TRABALHO, O ESTUDO E A BENZEÇÃO (IV) O Sr. M., 82 anos, afirma que atuou como benzedor na região de Santa Bárbara por

mais de 30 anos. Vindo de tradição católica, viveu boa parte de sua vida nesta região, que fica localizada entre os municípios de Nova Veneza, Nerópolis e Ouro Verde. Seu pai veio da região de Catalão e sua mãe de Nerópolis. Ao ser interrogado sobre seu nível de sua escolaridade, declarou sua pouca experiên-cia com o ensino. Não se lembra do nome do professor particular com quem começou a estudar.

[...] num aprendi nada, nem assiná o nome, mas lembro da parmatória. E ta-mém tinha uma régua cumprida lavrada assim que ele dava nas perna da gente. A gente apanhava do professore e chegava im casa o pai ficava sabeno e nós apanhava de novo. Num tinha esse negócio de tê prazo pa istudá não. Nóis che-gava do istudo tinha uma inxada amolada isperano nóis. Num fui mais.

Tal como outro narrador relata, em pesquisa realizada por Almeida (2009): “A palma-tória era um sinal de escola; quando se via a palmapalma-tória em cima da mesa [...] se dizia: aqui é uma escola!” (Entrevista, 2006 – Levi Carneiro Magalhães). Com muita emoção, também o Sr Ismael Carneiro relembra o que significou esse momento para ele:

Meu primeiro dia de escola ocorreu em 1924, quando eu tinha oito anos. [...] Nessa escola estudei oito meses e aprendi soletrar o “bê-a-bá” e “cantar” a tabuada, com números de dez a cem. A escrita começava com o “debuxo,” letras escritas a lápis pelo professor, que por sinal era escrivão e tinha ótima caligra-fia. Tive a maior dificuldade, mesmo com o auxílio de minha mãe. Mesmo assim, escrevia tão mal que a certa altura o professor me aplicou quatro “bolos” de uma só vez...”. (Entrevista, Ismael Carneiro, 2008).

Assim como outras crianças brasileiras, naquele contexto e nas configurações daquele modelo de educação, ele também não tinha mais vontade de retornar à escola; só o fez, de um lado, porque já pressentia os rigores da desobediência ao pai e, de outro, para não causar desgosto à sua mãe que insistia na necessidade da es-colarização, na falta que isso lhe faria e nas consequências de tal escolha: era

(7)

a escola ou “o cabo da enxada”, como faziam outros pais e como certamente também faria o seu. (ALMEIDA, 2009, p.199).

A imagem que as frases dos entrevistados apresentam exprimem as representações de um contexto em que o uso das coerções como instrumento educativo ocupava lugar comum em toda a sociedade, pois a educação além de escassa era tam-bém excludente. A poetisa Cora Coralina (1985, p. 33) relembrou em seus poemas as memórias dos seus tempos de menina de escola: “sem cânticos, sem merenda”, mas, [...] “sempre haviam distribuídos, alguns bolos de palmatória” (ALMEIDA, 2009, p.198-200).

Torna-se compreensível porque o nosso benzedor que veio de Catalão para Nova Vene-za também abandonou a escola para enfrentar outras labutas da vida.

Sobre seu aprendizado da benzeção conta:

Aprindi a benzê cum dizoito ano, de vê os benzedô benzê. Fui oiano e fui apren-deno. Eles me binzia e eu punha sintido nu que eles falava. Quando me dava dor de cabeça eu ia benzê, ô dor no corpo. De iscutá aprindi. Um dia minha irmã tava cum dor de dente e eu falei que ia benzê. Ela falô que eu só sabia cumê fei-jão. Binzi caladim e o dente dela miorô. De lá pra cá peguei a benzê. Binzia de quebrante, maloiado, dor de dente, dor de cabeça e bicho mau. Otras binzição forte nunca fiz não, isso não. Quando binzia de bicho mau pegava o livrim de São Bento e levava pa roça e binzia. Nunca topei uma cobra.

Segundo afirma hoje, ele não atende mais devido a um problema de indisposição com uma pessoa que queria que ele benzesse ao entardecer e que o ofendeu quando ele expli-cou sobre o impedimento do horário. Desse modo, abandonou o ofício de benzedor. A EDUCAÇÃO EM DIFERENTES ESPAÇOS SOCIAIS E CULTURAIS: O PAPEL EDUCATIVO DAS BENZEÇÕES E BENZEDORES/AS

O Educador Social numa comunidade atua nos marcos de uma proposta socio-educativa, de produção de saberes a partir da tradição de culturas locais exis-tentes e da reconstrução e ressignificação [...] em confronto com o novo que se incorpora (GOHN, 2010, p. 55).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9394 de 12 de dezembro de 1996) definiu educação como formação humana que pode ser realizada em di-ferentes espaços sociais e culturais. Segundo o Título I – Da Educação, Art.1º:

A educação abrange os ‘processos formativos’ que se desenvolvem na vida fami-liar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa,

(8)

nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e ‘nas manifestações culturais’ (grifos nossos).

Os espaços de benzeções cultualizadas por pessoas e famílias de origem e configura-ção popular, residentes no município de Nova Veneza - Goiás, do ponto de vista da religiosidade podem ser considerados expressões educativas das ma-nifestações culturais. “Assim, tudo o que é importante para a comunidade, e existe como algum tipo de saber existe também como algum modo de ensinar” [...] (BRANDÃO, 2007, p. 22). A figura do educador social é decisiva para a manutenção de saberes específicos locais numa determinada comunidade. Por este motivo, definem-se, aqui, os agentes sociais portadores de saberes e transmissores dos mesmos como a figura do “Educador Social”.

As produções simbólicas existentes na sociedade atual que se circunscrevem no campo da cultura popular expressa neste trabalho como manifestações da religiosida-de popular só existem por conta da força das tradições culturais. Isto tem a ver com os processos identitários constituintes das comunidades e de seus agentes sociais. Eis um valioso processo de educação visto no sentido mais amplo, es-sencialmente, de formação humana integral na qual as memórias representam um papel determinante.

Ao escrever sobre o passado, segundo Bosi (1994, p. 37) “nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuar-se na história de sua vida. Recolhi aquela “evocação em disciplina” que chamei de memória-trabalho”. Nessa teia de relações, “[...] cada memória individual é um ponto de vista so-bre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes”. (HALBWACHS, 2006, p. 69).

As observações intercaladas por entrevistas acerca destes/as quatro/as benzedores/as benzeções respectivas, nos permitem revelar que nenhum é natural de Nova Veneza. Dois são procedentes de outros estados da federação (Bahia e Minas Gerais) e dois de relativa proximidade geográfica (Trindade e Santa Bárbara de Goiás). Encontram-se na faixa etária entre 71 a 95 anos, e seu tempo de ‘ofício’ de benzedor/a fica entre 52 a 80 anos com forte ligação familiar reli-giosa católica, portanto com proximidade das práticas da igreja, das festas e rituais religiosos da comunidade.

Vivendo em um pais como o Brasil em que somente nos tempos atuais as crianças e jovens, de fato, conquistaram o direito a 14 anos de escolarização obrigatória (02 Pré-Escola + 09 Educação Fundamental + 03 Ensino Médio) a ser efetiva-da em 2016, todos os quatro não tiveram nem mesmo a instrução obrigatória de 04 anos para os todos cidadãos brasileiros, definida pela constituinte im-perial( menos de 5% da população à época era cidadã). No entanto, guardam

(9)

relembranças de uma educação tradicional marcada pela disciplina e castigos, como manifestam:

Aprendi um pôco a lê, meu tio era professor (I).

[...] minha fia, fui trabaiá e esquici de istudá. As professora do Mobral veio aqui em casa, pelejô comigo e eu não fui. Eu arrependo de não tê ido. A noite dava tempo. Mas tava tamém muito cansada, mas dava eu podia tê isforçado. Assiná eu não assino. Depois ocê trás aquela espuminha pra eu podê assiná procê (II). Fiz até o quarto ano primário. Mas o quarto ano valia pro colégio de hoje (III). Num aprendi nada, nem assiná o nome, mas lembro da parmatória. E tamém ti-nha uma régua cumprida lavrada assim que ele dava nas perna da gente. A gente apanhava do professore e chegava im casa o pai ficava sabeno e nós apanhava de novo. Num tinha esse negócio de tê prazo pa istudá não. Nóis chegava do istudo tinha uma inxada amolada isperano nóis. Num fui mais (IV).

Compreender as manifestações culturais como espaços de formação humana requer que se busque descrever quais formas são recorrentes para formar os benze-dores/as. As manifestações populares são aprendidas culturalmente e o “ofí-cio” é construído por intermédio de ensinamentos dos saberes e crenças que constituem seu repertório pessoal, delegado por familiares, aprendendo pelas observações e repetições. Vejam os depoimentos:

Aprendi essas reza com meu povo na Bahia. Todo ano rezava. Dentro da Bahia que eu era rezadeira. Também cuidava ajudava a cuidá da igreja. Tinha apren-dido um pôco na escola quando ajudava a fazê a merenda. Aprendi umas reza nos caticismo da igreja. Mas nunca ninguém me ensinou, fui aprendendo de vê os outro rezá.

Aprendeu com sua avó a qual antes de morrer, chamou-a pedindo-lhe que apren-desse todas as rezas para poder ajudar os outros (II).

Eu benzia muita gente, até os alunos eu benzia direto. Aprendi a benzer com a Dona G., na cidade de Brazabrantes. Ela era muito boa para benzer. Ela benzia meus filhos e quando eu mudei para longe ela me ensinou para benzer meus filhos (III).

Aprindi a benzê cum dizoito ano, de vê os benzedô benzê. Fui oiano e fui apren-deno. Eles me binzia e eu punha sintido nu que eles falava. Quando me dava dor de cabeça eu ia benzê, ô dor no corpo. De iscutá aprindi (IV).

As formas de transmissão cultural expressa pelos saberes e “ofício” remetem-nos a formas elementares de aquisição dos saberes da experiência e da prática. Inte-ressante observar que embora as práticas de benzeções sejam muito comuns, tanto no imaginário como na prática dos segmentos sociais populares, a

(10)

socie-dade contemporânea na redefinição de princípios e valores, as novas gerações trazem certa desconfiança com relação a este universo simbólico de crenças e verdades, e poucos se interessam ou por desinteresse ou por falta de vocação. A este respeito, somente dois se manifestaram:

Com muita seriedade, que as orações podem ser repassadas somente à pessoa escolhida que deverá ser preparada como ela foi a fim de cumprir sua missão e seu ofício. A missão compreende saber que durante toda sua vida terá que atender às pessoas que precisarem, sem distinção. Aprender ofício também sig-nifica aprender as regras, guardar as formas e guardar também o segredo, a sete chaves (II).

Ninguém da minha família quis aprender. Uma vizinha quis aprendê, me pediu e eu ensinei as orações, mas ela não deu conta de aprender. Talvez ela não tinha o dom. É igual a oração de jeito, eu não dei conta de aprendê. Tinha que rezá costurando. A Dona A. sabe. Tem que ter o dom e a pessoa tem que interessar porque se não não (III).

Nesse sentido, Walter Benjamim (1989), avalia que ficamos mais pobres, pois as novas gerações distanciam-se das experiências do passado, tornaram-se reféns do “atual”, do mágico e cômodo modo de viver moderno, contexto no qual negli-gencia-se o ancião, o velho sábio, que deixa o trabalho e a experiência como um legado rico e próspero, tal como as dos/das benzedores/as e seus saberes, como relata uma das narradoras/benzedeira: “ Ninguém da minha família quis aprender”.

As mudanças econômicas e sociais, o cotidiano das pessoas, ainda que pareçam dis-tantes de cada um de nós e sempre vistas pela perspectiva dos outros, que não nós, conspiram para que sejam apagadas uma a uma nossas experiências, nossos rastros e vestígios na sofreguidão da busca incessante do sonho e da solução mágica, “um desses sonhos do homem contemporâneo (...), em que natureza, técnica, primitivismo e conforto se unificam completamente” (1989, p. 119). Assim, constata Benjamim, “ficamos mais pobres de expe-riências”, de tradições culturais, de memórias, principalmente aquelas vi-venciadas e transmitidas pelos segmentos ligados à cultura popular, vistas sempre com alguma dose de preconceito e negligências pela sociedade con-temporânea.

No percurso da pesquisa, foram construídos sete (07) indicadores para analisar as nar-rativas inventariadas com vistas a demonstrar que estas manifestações cul-turais possam ser nomeadas legitimamente como instituidoras de processos formativos, sendo que a identidade pessoal de cada agente social pesquisado foi preservada:

(11)

1)Tempo de Realização do Ritual: em média 30 a 80 anos

2) Existência de Saberes Reconhecidos pelo grupo: benzeções contra zipele, carne quebrada, inveja, mau-olhado, vento virado, resfriado, cobreiro, espinhe-la caída, / simpatias/ aconselhamento/ picada de cobra/ bafo de rio/ esgotamen-to de sangue/ plantas medicinais.

3) Sistema de Crenças e Demandas: em geral, são crenças ligadas ao catolicis-mo popular. Atendem o público em geral, havendo pequenas variações, alguns atendem mais adultos outras, crianças. Apresentam carisma, liderança religiosa e legitimidade perante o grupo de adeptos.

4) Existência de um processo educativo de constituição dos educadores sociais portadores de Saberes a serem Transmitidos/Partilhados: o aprendizado, em geral, ocorre com grupos familiares e amigos. Há um pouco de leitura em ca-tecismos da igreja. Muitas vezes, ninguém da família se prontifica a aprender. Há utilização da observação e memorização para aprendizagem. Boa parte das experiências advém da infância e pela experiência oral.

5) Recursos simbólicos mediatizadores das práticas culturais: rosários, orações, gestos, orações aprendidas e ou adaptadas da igreja católica, santos, pilão, al-tar, ramos, linha, agulha, cipó, vela, água benta, panos de prato, cordão,orações socializadas outras secretas.

6) Cultualização coletiva como ritual para a transmissão e/ou vivência de sa-beres: na própria residência (geralmente em um cômodo específico da casa do benzedor ou benzedeira), em frente aos altares, ocorre o momento do atendi-mento aos que procuram as benzeções ou mesmo a residência ou propriedade dos adeptos ocorrendo até mesmo benzeções à distância. Há benzedores que atendem, em média, oito a dez pessoas por dia. Não havendo gratificação finan-ceira pela realização do ofício.

7) Organização coletiva na qual as relações internas são hierarquizadas den-tro do sistema de crenças com nítida hegemonia do educador social: trabalho voluntário/ solidário. Membro da comunidade que apresenta carisma, legitimi-dade moral, saberes específicos (orações e ritos) para atuar como benzedor/a perante o público atendido. Habitus incorporado do benzedor e do benzido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em todos os rituais de benzeção observados, existe uma relação com a Igreja Católi-ca loCatóli-cal, mesmo porque todos declararam forte ligação familiar religiosa Os benzedores/as, apresentados como educadores sociais que são, participam das programações e festividades tanto da Igreja Católica Matriz de Nossa Senhora do Carmo localizada na praça central da cidade; Igreja de Nossa Senhora Apa-recida localizada na Vila Nossa Senhora das Graças; Igreja de Rosa Mística

(12)

localizada no Setor Dim Dim e ainda nas Capelas Católicas localizadas nas zonas rurais, que são Igreja de São José e Santa Mônica.

Além das participações nas instituições religiosas, ainda há uma grande circularidade em rituais do catolicismo popular como Folias de Reis; Folia de São Sebastião e No-venas urbanas e rurais. Há um respeito à religião como instituição, mas há uma necessidade popular de fazer prevalecer à tradição. As benzedeiras e benzedores também, como educadores sociais, exercem uma peculiar liderança espiritual e carismática no município de Nova Veneza localidade onde vivem e trabalham dia a dia em seu ofício. São frequentemente procurados e respeitados pela comu-nidade, por pessoas de todas as idades.

As manifestações populares apresentadas povoam o imaginário popular coletivo e sua transmissão cultural segue as formas tradicionais sobre as quais repousam o universo de saberes da tradição, de velhas gerações que se reproduzem como resistência numa sociedade marcada pelas desigualdades culturais e sociais cujos determinantes atuais tem determinado não somente sua reprodução como também sua ampliação. Como atividade furto de expressão de fé, do dom, da missão familiar, da ordem moral, da caridade como princípio e gesto, a isenção de valores financeiros; mais do que nunca a tradição, a fé, os princí-pios cristãos, a religiosidade, a agregação comunitária, a solidariedade transi-tam, instituem este universo simbólico das manifestações culturais populares. São educativas porque mobilizam saberes, práticas como experiências de vida, enfim, no processo de formação humana.

Se a educação abrange os processos educativos que se desenvolvem também nas manifes-tações sociais, quem tem identidade legítima para operar estes processos ganha significados antes mesmo do universo simbólico dos saberes, reconhecidos tam-bém por desempenharem papéis e funções de educadores sociais.

EDUCATION IN CULTURAL MANIFESTATIONS RELIGIOUS POPULAR: SANCTIFIERS AND THE TRANSMISSION

OF KNOWLEDGE AND “SECRETS”

Abstract: this inventory of cultural manifestations of popular religious flavor, dense

description (GEERTZ, 1989) covers for sanctifiers of Nova Veneza- Goiás, seized in their spaces call for ritualizations that express. With the purpose of illustrating that the education, can be held in these social spaces, demonstra-tions were sieved by analytical indicators to interpret their formative proces-ses and cultural transmission.

(13)

Referências

ALMEIDA, M. Z. C. M. de. Educação e Memória: velhos mestres de Minas Gerais. Tese (Doutorado) – Universidade de Brasília, 2009.

BENJAMIM, W. Experiência e Pobreza. Obras escolhidas. Tradução de Sergio Paulo Rouanet, v. 1, 4ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.

BOSI, E. Memória e Sociedade: Lembrança de velhos. 6ª ed.São Paulo: Companhia das Letras, 1994. BOURDIEU, P. A Produção da Crença: uma contribuição para uma economia dos bens simbólicos. 3ª Ed. Porto Alegre: Zouk, 2008.

BRANDÃO, C. R. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense, 2007 (Coleção Primeiros Passos).

BRASIL, LDB. Lei 9394/96- Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <www.pla-nalto.gov.br >. Acesso em: ago./2011. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Câmara de Educação Básica.

BURKE, P. Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. CORALINA, C. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global, 1985. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

GOHN, M. da G. Educação não Formal e o educador social: atuação no desenvolvimento de projetos

sociais. São Paulo: Cortez, 2010. (Coleção questões da nossa época, v. 1).

HALBWACHS, M. A memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.

LOURES, P. M. Inventário de benzeções, rezas e novenas, folias e congada: educação nas manifestações culturais. Dissertação (Mestrado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica de Goiás, 2012. SCZIMINSKI, T. de F. J. et al. O fenômeno religioso na contemporaneidade: uma intensa busca pelo sa-grado e a Ciência da Religião. In: BRANDENBURG, L. et al (Org.). Ensino Religioso e Docência e(m)

Referências

Documentos relacionados

Parágrafo segundo – Para os PROFESSORES não participantes do INDUSPREV, a complementação será de 100% (cem por cento) da diferença entre a remuneração fixa mensal paga

Las Casas (2019) argumenta que na atualidade, os consumidores têm à sua disposição grandes variedades de serviços e produtos, que por sua vez, são muitos semelhantes. Portanto, o

8 A universidade pública constitui um espaço no qual coexistem diferentes atores sociais, com objetivos distintos e provenientes das mais diversas culturas,

• a suspensão é bombeada diretamente para os compartimentos do filtro onde a torta é recolhida; • podem ser usados vários tipos de meio filtrante:. lona,

2 — Sem prejuízo do disposto no número seguinte, constitui, ainda, contra -ordenação, punível com coima, nos termos da presente lei, o não pagamento de taxas de portagem

As crianças, que têm episódios recorrentes de resfriado durante o ano, possuem maior chance de desenvolverem otite média e sinusite agudas, por causa de sua tuba

1º Canadá Canadá Canadá Canadá Canadá 2º Alemanha Belarus Rússia Rússia Rússia 3º Belarus Rússia Belarus Belarus Belarus 4º Rússia Alemanha Alemanha China

Para o acompanhamento do comportamento estrutural da ponte a partir das informações provenientes do sistema de monitoração instalado, foi construído um sistema integrado