• Nenhum resultado encontrado

O ALGUIDAR QUE CHORA OU A HISTÓRIA DAS PEDRAS QUE FALAM

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "O ALGUIDAR QUE CHORA OU A HISTÓRIA DAS PEDRAS QUE FALAM"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

O ALGUIDAR QUE CHORA

OU A HISTÓRIA DAS

PEDRAS QUE FALAM

(2)

O ALGUIDAR QUE CHORA

OU A HISTÓRIA DAS PEDRAS QUE FALAM

AUTORIA E ENCENAÇÃO DE VENÂNCIO CALISTO PERFORMANCE TEATRAL RESULTANTE DA RESIDÊNCIA ARTÍSTICA DESENVOLVIDA, NA SUA FASE FINAL,

NA SALA ESTÚDIO DO TEATRO DA RAINHA

(3)

Esta é a tua primeira criação em Portugal. Comecemos, no entanto, pelo fim: «viajar é transladar geografias». Que Moçambique quiseste trazer até nós neste espectáculo?

Talvez seja um Moçambique universal, culturalmente di- verso e cujo contexto social nos remete a questionamentos existenciais que são inerentes a todos os povos em qualquer época, como é o caso do silenciamento e da opressão que a peça aborda. Portanto, trata-se de um Moçambique revi- sitado enquanto território comum onde estamos todos re- presentados.

A dimensão metafórica reflecte-se logo no título, mas per- corre todo o texto. É como se assistíssemos a um ritual xa- mânico. Qual o papel da vida espiritual no teu trabalho?

A vida espiritual é para mim um portal que nos dá acesso à verdadeira essência das coisas. Chamo de vida espiritual ao acto de questionar, compreender e transcender a realidade.

Venho de um contexto cultural em que o quotidiano é um palco em que o real coabita com o onírico. E isso é fantásti- co porque empresta à vida uma dimensão profundamente poética, em que as coisas à nossa volta, assim como os nos- sos próprios gestos, reivindicam infinitas possibilidades de leitura ou interpretação. Este espectáculo é assumidamente uma performance ritual, um exorcismo poético e existencial alimentado pela memória da vida espiritual comum a todo o elenco.

O AUTOR RESPONDE

(4)

Por outro lado, parece haver algo de político ao longo do ritual. Por exemplo, na recusa do Madala em ser tratado por Senhor. Que feridas históricas estão aqui representa- das, se é que estão?

Acredito que a principal ferida histórica aqui representada é a violência do imperialismo, o silenciamento e a subalterni- zação de culturas e crenças não ocidentais, de que os nossos ancestrais foram vítimas. Há aqui uma afirmação identitária como forma de resgatar a dignidade de todas as pessoas que foram impedidas de existir.

A mulher que surge no centro desta história tanto pode ser vista como uma representação da humanidade ou da natureza. «E dentro de mim explodiu a voz das pedras», diz a dado momento. Há um encontro interior, íntimo, com algo que ela pretende exteriorizar. Isto não pode também ser visto como uma metáfora da criação?

É sim, uma metáfora da criação. Esta mulher é semente e chão, criadora e criação ao mesmo tempo. Ela tem o poder de através do verbo e do gesto recriar o mundo, ela é o espa- ço vazio, um lugar de infinitas possibilidades estéticas e de posicionamento político em relação ao mundo.

(5)

(…)

Por vezes, quando era muito mais nova, deitava-me no chão, toda coberta de terra. Fechava os olhos e ficava ali, numa presença de morte. À espera que se desse a magia, que por um instante me transformasse em terra. À espera que o meu corpo se desfizesse em grãos de areia e que ao menos pudesse ver, ouvir e sentir a terra mais de perto.

Mais tarde, enquanto a minha mãe e as outras mulhe- res da aldeia ficavam absortas a lavar a roupa contra as pedras do rio, quando ninguém me estava a ver, mer- gulhava os dois pés na líquida amargura que nasce daquelas suas cantigas tristes…

dobrava o dorso e encostava a minha cabeça no pene- do que ali havia, para ali há tanto adormecido na mar- gem do rio, e imitava o seu sono. Passava pelas brasas, ali, sobre aquela pedra, na esperança de finalmente ver, ouvir e sentir o coração pétreo mais de perto e talvez desvendar o seu eterno mutismo. E a voz da mi- nha mãe raiava como um relâmpago dentro de mim:

— Tu tens tanta fome…

(…)

O ALGUIDAR QUE CHORA

OU A HISTÓRIA DAS PEDRAS QUE FALAM

(EXCERTO)

(6)
(7)

Ser pedra é astúcia, uma defesa. Muita vez o bicho faz concha para ser pedra e evitar o predador. Até o bichinho de conta, o que conta histórias, faz concha e acaba a his- tória, pára de andar. Aquela antiga de «era uma vez», mes- mo antiga, antiga, vem do tempo anterior aos bichos, esse tempo era da pedra. E no princípio era a pedra, devia rezar o evangelho. Mas não, enganaram-se e gravaram na pedra:

«no princípio era o verbo». Mas não é verdade, pois mesmo no princípio, princípio, mesmo mesmo, era o mutismo, o calado da pedra lia-se aí nos olhos dos humanos, bichos muito particulares, bípedes, o polegar oponível e linhas de vida na palma da mão.

A pedra transporta tempo, é testemunha, carne feita pedra. O seu silêncio mais que fala, grita. A poça de sangue foi a pedra que a colheu. É nela que se lê o ADN dos cha- cinados, nos interstícios, nos seus veios, na sua superfície, até no seu mutismo há falas de sangue. A poça de sangue é a História em que as histórias se formam em busca de sen- tido e sentido para estar vivo. Todas são histórias da Histó- ria, todas as poças de sangue são a História em andamento perpétuo, um mar de sangue, um mar de histórias. Nesta estória, a gente tira o h para facilitar, há uma menina e uma avó e um Madala e há a pobreza. Nela quem grita mais o que quer que seja sabido, é a fome. Essa personagem que se dizia que ia ser ultrapassada por outra chamada progres- so. Mas não. Essa mentira também foi incinerada. Também se fala a chorar, de fome mesmo, as lágrimas são palavras dessa corrente que une os famintos e os subalternizados

INCINERAR A SUBALTERNIDADE

(8)

numa mesma irmandade, a irmandade dos que querem fuzilar a fome no paredão das inverdades e das hierarquias da troca desigual.

Quando li o texto do Venâncio vieram-me imagens, todas em catadupa, que tenho gravadas na cabeça, dos tempos da minha pátria adolescente. Eu conheço esse Ma- dala que tem na peça, eu lembro-me do seu corpo magro, de mago, sobrevoando com o olhar os próprios ossos em que mal cabe. Conheci-o, não foi na Manhiça, foi no Bilene, ele estava sentado junto a uma bomba de gasolina. Era um sábio. E é. Essa sabedoria é transportada nessas histórias em que as pedras falam. Que são muitas. Esta aqui, que o Venâncio escreveu, é metáfora num feminino que se liber- ta. Elas, as mulheres, diz o Venâncio, nem o seu choro po- dem chorar, choram de todos os outros que ela se preocu- pa com eles, lá nos confins em que deambulam em busca de água.

Uma das fomes mais temíveis é a sede. Também o é a sede de justiça. A pedra que fala, fala intifada, essa lemos nos jornais. Essa não é história de fadas. É outra. Aqui, a mulher chega ao seu ponto de queimar tudo o que a infe- rioriza, preconceito, que fede quando queimado, porrada, que fede mais ainda, sujeição, estar debaixo, só, sempre — ela queima isso tudo. Ela é a pedra que fala e liberta todos os mutismos para que a humanidade, toda ela, uma coisa enorme, seja uma cidade de livres, não de escravos forros, mas de iguais, de entre iguais, de só iguais. De uma igual- dade entre todos os diferentes.

Este poema em prosa cénica do Venâncio é um canto universal, um canto político, simbólico, um canto de eman- cipação, um canto que põe de pé as vítimas da fome atri- buindo-lhes vozes libertas do mutismo da pedra, um canto de beleza para vozes femininas, as actrizes assim o concre- tizarão.

Fernando Mora Ramos

(9)

VENÂNCIO CALISTO (Maputo, Moçambique, 1993) formou- -se em Teatro pela Escola de Comunicação e Artes da Universi- dade Eduardo Mondlane. Estreou-se na encenação, em 2015, com Qual é a sentença: a mulher que matou a diferença?, es- pectáculo que, passados dois anos, levou ao festival Yesu Luso no Brasil. De sua autoria são também A crise (2016) e (Des) mascarado (2018). Em 2018 foi distinguido com o Prémio de Artes e Cultura da Mozal, na Categoria de Teatro, e ficou em Primeiro Lugar num concurso de poesia promovido pelo Cen- tro Cultural Moçambicano Alemão (CCMA). Reside em Portu- gal desde 2019, onde se encontra a frequentar o 2.o ano do Mestrado em Teatro, especialização em Teatro e Comunidade na Escola Superior de Teatro e Cinema, Instituto Politécnico de Lisboa. Tem trabalhado como assistente de encenação em vá- rios espectáculos. Integrou o elenco de A cidade dos pássaros, de Bernard Chartreux, e A noite das hienas, a partir de textos de Peter Weiss e José Craveirinha, ambos com encenação de Fernando Mora Ramos. O alguidar que chora ou a história das pedras que falam marca a sua estreia em Portugal, sendo apre- sentado no contexto de uma residência no Teatro da Rainha, em Caldas da Rainha.

MARINA CAMPANATTI (Brasil), actriz formada pela Escola Célia Helena (2013), graduada em Cinema pela Universidade Anhembi Morumbi (2013). Pós-graduada em Arte-Educação e Sociedade pela PUC-SP. Mestranda em Teatro e Comunidade pela ESTC-IPL. Trabalha como artista-pedagoga no projecto

«Teatro de Identidades», de Rita Wengorovius. Actuou nas pe- ças Muito barulho por nada (2013), de William Shakespeare, e Aqui estamos com milhares de cães vindos do mar”, de Matei Visniec, direcção Rodrigo Spina — vencedor do prémio APCA de melhor espectáculo adulto de 2015. Actuou no espectáculo de rua Sonho de uma noite de Verão”, de William Shakespeare, direcção de Pedro Granato, e na peça Diásporas, de Marcelo Lazzaratto.

VÂNIA CRISTINA DO ROSÁRIO DA LUZ (Cabo Verde), actriz de teatro e de cinema, é Mestranda em Teatro, especialização em Teatro e Comunidade pela ESTC–IPL. Participou em diver- sas formações de teatro e de dança. Fez parte da Companhia Audiovisual Tal & Qual, que produz curtas-metragens humorís- ticas em Cabo Verde. Trabalhou como actriz em diversos espec- táculos dirigidos por João Branco, director do Centro Cultural do Mindelo – Cabo Verde.

(10)
(11)

NOTA sobre o exercício-espectáculo

O alguidar que chora ou a história das pedras que falam Este exercício integra-se no âmbito dos projectos internacio- nais do Teatro da Rainha. Na sequência de um conjunto de actos de formação em Moçambique, em corealização com o Curso de Teatro da Escola de Comunicação e Artes da Univer- sidade Eduardo Mondlane, uma oficina de escrita com Joseph Danan, uma outra de encenação com Fernando Mora Ramos e António Parra e o Exercício-espectáculo dirigido por FMR, Noi- te das hienas, com textos de José Craveirinha e Peter Weiss, criamos agora condições a este grupo multicultural para a concretização deste também exercício-espectáculo, dirigido por Venâncio Calisto (autor e encenador) e interpretado pelas estudantes actrizes da ESTC Marina Campanatti e Vânia Luz. O exercício realiza-se após uma residência artística no espaço do TR.

fmr Encenação e dramaturgia: Venâncio Calisto

Interpretação: Marina Campanatti e Vânia Luz

Pesquisa e composição musical: Marina Campanatti, Rita Couto e Nandele Manguni

Acompanhamento técnico: António Anunciação e Lucas Keating

Comunicação: Nuno Machado e Cibele Maçãs

Organização do programa: Henrique Fialho Fotografias: Margarida Araújo

Ilustração e design gráfico: José Serrão

(12)

262 823 302 | 966 186 871 www.teatrodarainha.pt comunicacao@teatrodarainha.pt

Referências

Documentos relacionados

Para analisar as Componentes de Gestão foram utilizadas questões referentes à forma como o visitante considera as condições da ilha no momento da realização do

Nessa perspectiva, o objetivo geral deste trabalho é o de analisar a proposta curricular do Curso de Especialização em Gestão e Avaliação da Educação Pública, oferecido

Esta dissertação pretende explicar o processo de implementação da Diretoria de Pessoal (DIPE) na Superintendência Regional de Ensino de Ubá (SRE/Ubá) que

O Fórum de Integração Estadual: Repensando o Ensino Médio se efetiva como ação inovadora para o debate entre os atores internos e externos da escola quanto às

Além desta verificação, via SIAPE, o servidor assina Termo de Responsabilidade e Compromisso (anexo do formulário de requerimento) constando que não é custeado

De acordo com o Consed (2011), o cursista deve ter em mente os pressupostos básicos que sustentam a formulação do Progestão, tanto do ponto de vista do gerenciamento

Esta ação consistirá em duas etapas. Este grupo deverá ser composto pela gestora, pelo pedagogo e ou coordenador pedagógico e um professor por disciplina

Na experiência em análise, os professores não tiveram formação para tal mudança e foram experimentando e construindo, a seu modo, uma escola de tempo