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De algum modo, sentia que estava ficando meio maluco. Mas sempre me sentia assim. De qualquer forma, a insanidade é relativa.

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Academic year: 2022

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Índice

Portões do Inferno Moscas

Esquizofrenia grotesca Arrastador de Caixões

Arte Enfermidade

Mulher

A imoralidade do homem religioso Sentimentos afiados

O Autor

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“De algum modo,

sentia que estava ficando meio maluco.

Mas sempre me sentia assim.

De qualquer forma, a insanidade é relativa.

Quem estabelece a norma?”

(Bukowski)

“Os monstros existem, e os fantasmas também;

eles estão dentro de nós, e às vezes eles vencem.”

(Stephen King)

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Portões do inferno

Entro no recinto e vejo milhares de olhos a me amaldiçoar. As bocas tremulam ao cuspir impurezas. As línguas esfaqueiam meu corpo como navalhas afiadas. A perversidade é tanta que sinto seu sabor.

Eu sou como Dante Alighieri em sua passagem pelo inferno.

Os fantasmas do medo e incertezas sussurram em meus ouvidos para desistir, pois, a vida nada de bom tem a me oferecer.

Os excomungados e malditos agarram minhas pernas. Os desgraçados querem roubar meu sopro de vida. O que existirá nesse mundo vazio capaz de me ajudar?

Onde está você Virgílio?

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Moscas

Eu consegui um trabalho em uma livraria não muito longe de casa. Os primeiros meses foram normais eu diria até bons, mas recentemente contrataram um tal de "Ed", não lembro o nome verdadeiro e na verdade não importa.

O novo funcionário, o tal "Ed", foi contratado e no seu primeiro dia eu nem prestava atenção nele. Parecia só mais um cara qualquer, com corte de cabelo normal, postura normal, como disse:

era um cara qualquer.

Depois de um tempo, reparei que ele não era assim tão normal. Ele estava cada vez mais pálido, digo, muito pálido com uns tons de amarelo espalhados pela pele. Era um amarelo leitoso. Eu perguntei se ele estava bem, e ele me olhou com uma cara estranha como se eu tivesse perguntado o óbvio ou algo idiota. Então, respondeu:

— Claro! Estou ótimo.

A sua palidez piorava cada dia mais. Tinha chegado num ponto tal que se ele se deitasse no chão eu diria que era um cadáver prestes a explodir e soltar gases e gosmas. Depois de notar isso, comecei a observá-lo com mais atenção a todo momento e aquela merda ficava cada vez pior.

Eu cutucava meus colegas de trabalho apontando para o sujeito e ninguém parecia ver as moscas envolta dele. Aquelas moscas grandes e gordas voando e despejando seus ovos nele.

Comecei a ficar mal, bem mal. “Ed” me dava náuseas e piorou, sim, isso ficou ainda pior. Muito pior!

Então, começou o fedor. No início, parecia só um cheiro estranho de comida azeda. Depois se tornou um fedor de comida

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estragada até chegar ao insuportável cheiro de carne podre, como se fosse porra de um cadáver ambulante!

Aquele cheiro me invadiu de jeito, me corrompeu de tal forma que mesmo em casa eu sentia o feder se alastrar. Aquilo me impedia de comer, tomar banho parecia inútil e a dor de cabeça somada aos pesadelos não me deixava dormir. Minha vida tinha virado totalmente do avesso e nenhum filho da puta me escutava.

Almoçávamos sempre juntos no trabalho, eu só fazia companhia já que não conseguia mais comer. Meus amigos se preocupam, mas acham que estou exagerando, eu me sinto tão perturbado. É difícil ser compreendido até entre os amigos. "Ed"

sempre ia para o depósito em vez de almoçar. Ninguém sabia ou se importava com o que ele fazia lá. Para mim não dava mais para ignorar, eu precisava recuperar minha vida.

Numa sexta-feira calorenta, eu deixei meus amigos irem almoçar sem mim, aleguei que não tinha fome e esperei na escada olhando para o depósito. O cara demorou quase 45 min para aparecer, eu olhei para o rosto dele e quase vomitei o estômago para fora. O rosto dele estava puxado para trás como se formasse uma máscara bem fodida.

"Ed" entrou e não trancou a porta. Então, eu aproveitei e desci os degraus vagarosamente e fui até a porta. Queria pegá-lo no pulo, por isso, abri a porta de uma vez. O que eu encontrei não era real não podia ser, senti o toque gelado e asfixiante do medo.

“Ed" estava sentado perto da porta onde ficava uma mesinha de escritório, o corpo dele estava aberto e a pele do rosto foi retirada e jogada sobre outras que pareciam ser usadas como máscaras ou algo assim. Em volta de todo o seu corpo as moscas

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voavam, zumbindo alto enroladas em vermes que caíam aos montes. Em seu rosto se via apenas os olhos e os dentes, ele virou para mim sem expressar preocupação nos olhos e disse:

— O que foi? Eu ainda tenho 15 minutos de almoço!

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Esquizofrenia grotesca

Minhas mãos tremem enquanto procuro um abrigo. Quero fugir dos gritos de Ódio em minha cabeça.

Todo aquele sangue ... havia tanto sangue. O cheiro de morte se espalha no ar. Os cadáveres esparramados imersos em suas vísceras. E ele não para, quer todos mortos. Quer puni-los. Vejo a mim mesmo andando como a morte ao escolher a próxima vítima.

Deliro sobre essa imagem grotesca de mim mesmo. A loucura flui por uma realidade quebrada. O Ódio me domina e me convence a espalhar seu veneno pela terra onde o ser humano não deve mais existir com suas mãos destrutivas. Hipócritas desde sua origem, mortos desde o nascimento, ocos pregando sua religião de amor para matar e se apoderar. Homens parasitas...

Deveria eu deixar o Ódio escapar?

Arrastador de caixões

Andrea caminha pelo quarto procurando o pijama por todos os lados. Assim que o encontra se despe sem cerimônias para dormir.

É domingo, melhor dormir cedo para estar descansada na Segunda.

Só de calcinha, coloca os pés dentro da última peça do pijama, então sente o arrepio percorrer todo corpo e o incômodo de ser observada.

Ela se assusta com a sensação repentina, olha para todos os cantos do quarto, porém não vê nada além da bagunça corriqueira.

A sensação aumenta fazendo a respiração se tornar difícil, ofegante.

O pânico se instala por todo corpo.

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Do lado de fora, um barulho alto de ferro raspando no cimento chama sua atenção. Ela olha pela janela e percebe o que parece ser um homem de idade no outro lado da rua. O estranho veste um sobretudo sujo, quase não tem cabelos e segura uma pá velha.

Sob a fraca luz de um dos poucos postes acesos, ele caminha devagar na direção dela. Andrea está paralisada de medo, ele olha diretamente nos olhos dela. Quando está próximo o suficiente da janela, ela escuta o chiado grave dele como se os pulmões não funcionassem direito. O fedor de podridão queima suas narinas e o olhar do estranho a invade com violência.

Num súbito acesso de adrenalina pós choque, ela fecha as cortinas com tanta força que quase as arranca do suporte. Seus pensamentos correm para lá e para cá, desesperados. Com o coração batendo acelerado, ela abre uma pequena fresta nas cortinas para ver se o homem ainda está lá. Para a sua surpresa, há apenas marcas de terra arrastada sobre a calçada.

***

Um mês depois, a rotina corrida apagou o acontecido da memória de Andrea. Ela fica, quase todos os dias, até mais tarde no escritório. Como mora perto, volta a pé tranquilamente para casa.

Em uma quarta-feira, ela encerra mais uma vez o expediente após o horário normal, fecha o escritório e caminha pelas calçadas penumbrosas do bairro, levando algumas pastas na mão. Em meio ao completo silêncio, algo ecoa num som cortante que faz um calafrio rasgar seu corpo inteiro. A memória foi resgatada lá do fundo da sua mente, ela se lembra daquele ruído: o raspar metálico contra o cimento frio.

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Andrea olha para trás, seu corpo está tenso de medo e não há nada além de estabelecimentos fechados. O som ecoa novamente, ela anda mais rápido olhando em todas as direções em busca da origem do ruído que fica mais alto e mais agoniante.

A respiração pesada se atropela em cada transpiração. A sensação de estar sendo observada retorna, é a mesma que a assolou em seu quarto. Aquilo deixa sua cabeça desnorteada e como um baque instantâneo de adrenalina ela solta as pastas e corre o mais rápido que pode para sua casa.

Ao cruzar a esquina e vislumbrar seu portão de longe, ela sorri. O som assustador para e seus passos ficam mais lentos.

Andrea continua olhando para todos os lados para ter certeza de que não há ninguém a perseguindo. A sensação de alívio se manifesta, mas é cortada ao piscar da luz de um poste. Andrea olha para cima e fita a luz que falha novamente. Seus olhos voltam a olhar em volta, onde a fonte de luz ilumina. O que vê ali faz seu coração disparar e os órgãos se contraem.

Lá está o homem de idade e poucos cabelos brancos, trajando seu sobretudo, segurando a pá suja de terra apoiada no chão.

Andrea não arrisca ficar observando e corre para a segurança de sua casa. Aspira e transpira, aspira e transpira.

A chave enrola em suas mãos até achar a certa, atrás de si a luz de outro poste pisca constantemente até estourar e fazer a noite virar dia por alguns milésimos. A chave entra na fechadura ao girá-la para destrancar a porta, seus olhos se arregalam e o desespero intensifica, a porta não abre.

A presença se aproxima atrás de suas costas, Andrea se vira e ao ver a imagem horrenda do homem cadavérico, ela gruda na

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porta. A criatura grotesca abre um pouco a boca onde se vê uma baba meio amarelada que cobre seus dentes tortos, os lábios são ressecados e esfolados. Ele é tão pálido quanto um cadáver que começa a decompor. Da boca exala um cheiro nauseante, Andrea treme de terror.

O homem coloca as duas mãos no rosto dela que se contorce de nojo. As mãos são grossas de unhas grandes e amareladas que se cravam perto dos olhos. Andrea mexe a cabeça tentando se livrar, mas não consegue. Começa a chorar e implorar:

Não, por favor! Não! Eu imploro, eu não mereço isso, eu não mereço...

A boca forma um sorriso, mas Andrea não percebe. Ele chega mais perto e passa a língua inteira pelo rosto dela, é algo frio e gelatinoso que deixa um rastro gosmento. Andrea chora aos soluços. O velho a observa e diz numa voz fraca e distante:

Shhi shh shhii. Não se preocupe eu só me deito com o alimento dos vermes.

Ele termina com uma risada baixa e doente como se tivesse contado um segredinho sujo. Ela murmura qualquer súplica, as lágrimas se aglomeram na sua boca. Ele pressiona o rosto de Andrea com mais força entre as mãos e sussurra na mesma voz distante:

— Acorde!Acorde!Acorde!

— Andrea! Andrea! Acorde!

Andrea acorda de supetão, assustada e suando frio. Um homem jovem trajando roupa social está em pé na sua frente, ele parece, ligeiramente, preocupado. Andrea, ainda atordoada, olha ao redor e percebe que está no escritório.

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Você acabou dormindo no trabalho de novo! Tem que dar uma maneirada no trabalho. — Disse o jovem, deixando a sala.

***

Nos três últimos meses, Andrea se sentia aliviada por ter terminado aquela situação horrorosa. Não passava de um mero pesadelo, sua vida entrou nos eixos aos poucos. Agora, ela não trabalhava tanto e ganhava mais.

Andrea espera o sinal abrir na calçada, distraída nos seus pensamentos, alguém se aproxima e para ao seu lado, diz numa voz distante:

— Senhora poderia me dar uns trocados?

Ela vira e dá de cara com o homem velho de rosto magro e poucos cabelos brancos. Andrea dá passos tortos para o lado. Em choque, não acredita, não pode ser ele.

— SAI! Sai de perto de mim!

Andrea grita enquanto caminha aos tropeços para o meio da rua olhando para o mendigo que não entende nada. Ela não vê o carro que vem em alta velocidade.

Andrea acorda e olhara para as pessoas turvas à sua volta, sentindo muita dor. Mal consegue virar a cabeça, então consegue erguer o rosto e olha para um ponto fixo. Na imagem tremida que a cerca, ela vê o homem que a atormenta, o velho de longos e poucos cabelos brancos a observa de modo divertido passando a línguas nos lábios de forma pervertida. Do meio da multidão a voz distante chega aos ouvidos dela:

— Logo, logo estaremos juntos.

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Quando ele termina de falar, Andrea sente o sangue escorrer da boca, sua vida se esvai aos poucos. A velha pá está nas mãos do coveiro. Ela ouve a terra sendo revirada e sente o chacoalhar do caixão ao ser arrastado.

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Arte

Betty Lockre, nascida em 14/03/1972. Vinte e quadro anos.

1,65m de altura, provavelmente uns 60 kg. Cabelos cor mel, olhos castanhos, dentes bem alinhados e saudáveis. Seios medianos.

Uma barriga lisa. Coxas torneadas. O peso bem distribuído pelo corpo, chutaria 10% de gordura corporal. Talvez fizesse exercícios diariamente. Não parecia fumar. Os pelos pubianos eram escuros e curtos. O resto do corpo era bem depilado. Calçava 36. As unhas sempre bem-feitas, cobertas com esmalte vermelho sangue. O rosto tinha uma aparência agradável apesar dos hematomas e rugas acentuadas oriundas de cansaço e estresse intensos, mas nada disso importava. Tudo estava no passado.

Conheci Betty num bar sujo de esquina na parte mais decadente da cidade. Ela tomava um Dry Martini, e eu um Conhaque.

À primeira vista, notei o quanto era solitária e lidava com a vida de forma desesperada. Os olhos bonitos, mas cansados, nem mesmo a pesada maquiagem conseguia disfarçar.

Aproximei-me sorrindo, lhe ofereci um drink e começamos a conversar assuntos aleatórios tão ordinários quanto as segundas- feiras monótonas. Descobri que ela desejava cursar faculdade, administração talvez. Não lembro. O assunto ganhou um teor sério.

Betty começou a dizer que se sentia inútil, uma derrotada. Sentia tanta raiva por ser tão pouco, por ter feito tão pouco. Dizia que não era boa em nada. Apenas mais um corpo ocupando espaço no mundo. Depois de longos silêncios, ela encarava seu drink intocado, perdida em pensamentos sombrios. A pressão dos familiares e do

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mundo ao redor pesava em suas costas. Eu via o sofrimento emanar e envolvê-la numa áurea negra e espessa.

Virei o resto de conhaque no meu copo e então chamei-a e olhei no fundo dos seus bonitos olhos castanhos, convidei-a para sair dali comigo. Iria mostrar-lhe a solução, um caminho a ser seguido. Confusa pela dor latente, Betty demorou um pouco a captar minhas palavras, por fim conseguiu tomar sua decisão.

Em pouco tempo, estávamos na minha casa, avisei que seria algo difícil de aceitar, mas que era seu destino, seu legado. Ela me olhava confusa e perplexa sem entender muito bem, mesmo assim, concordava ao balançar, lentamente, a cabeça. Betty dizia ter medo, mas estava ansiosa. Peguei em sua mão e a levei até a porta do porão. Descemos as escadas, ela me seguia grudada em minhas costas. A cada degrau, eu imaginava sua reação, a gratidão e apreço por minha arte. Nossa arte!

Ao fim da descida para a escuridão do porão gelado, acendi a luz. No fundo, havia uma mesa e sobre ela estava minha belíssima escultura!

A composição se resumia ao tórax de uma mulher com os belos e fartos seios expostos, os braços estavam levantados como se recebessem uma benção amaldiçoada; das laterais do tronco, braços peludos estavam anexados e, também, voltados para cima com as unhas pintadas com sangue; das costas surgiam estacas feitas de colunas vertebrais com cabeças perfeitamente acopladas nas pontas: os rostos sem olhos estavam contorcidos em pleno horror de dentes expostos sem lábios que os cobrissem. Tudo havia sido retalhado gentilmente por minhas mãos. Eu sentia a excitação acelerar o coração ao lembrar de suas gloriosas mortes! O rosto da

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mulher era o detalhe mais deslumbrante. A parte inferior da mandíbula foi arrancada e os dentes também, dali pendia a língua inchada que se mesclava aos longos cabelos negros como plumas de corvos. O toque final era a coroa de arame farpado sobre a cabeça.

Eu sorria magnificado mais uma vez com a escultura, olhei para Betty esperando nada mais que lágrimas de felicidade. Para minha decepção o que vi foi horror, nojo, repulsa expostos em seu belo rosto. Ela soltou minha mão e andou para trás sob passos lentos. A pobrezinha tremia e soltava sussurros chorosos que foram seguidos por um grito roufenho.

Como fui tolo! Se nem Van Gogh e Monet foram aceitos ou compreendidos, por que veio a mim o pensamento de que eu seria?

Betty não poderia entender! Meu passado não poderia entender!

Ela olhava para mim com a maquiagem borrada pelo choro, a boca torta de medo. Quando se virou em direção da escada na propensão de fugir dali o pé alcançou o primeiro degrau, mas minha mão agarrou-a pelo cabelo. O outro pé foi em direção chutou os degraus acima. Apesar da luta, bati sua cabeça com toda a força na parede. O ruído oco do crânio se chocando contra o cimento frio me estremeceu de prazer.

Em seguida joguei-a para trás, ela caiu no chão soltando um ganido agudo de dor. Não havia outra forma. Meu presente e futuro não suportariam. Betty, meu passado, ficaria pra trás, ela deveria morrer.

Ela se contorcia de um lado para o outro, a cabeça sangrava enquanto cuspia palavras incompreensíveis. Em cima da mesa, onde estava a escultura, havia uma corda grossa o suficiente para o

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que pretendia. Fiz o laço que finalizaria suas memórias, minhas memorias. Enrolei no pescoço de Betty, ela se debatia numa tentativa vã de luta. Os dedos tentavam tirar a corda enlaçada no pescoço, puxava com força e tossia.

Tomada por desespero, ela se levantou aos tropeços em busca de alguma escapatória, a adrenalina bombeava pelo seu corpo. Naquele momento, a corda estava amarrada num cano grosso, seus passos a trouxeram para mais perto da morte.

Aproveitei os movimentos de Betty e puxei a corda usando toda minha força, meu corpo foi para trás e desabou no chão enquanto a vi, suspensa no teto, balançando para todos os lados.

As mãos alternavam movimentos entre sacudir para todos os lados, procurando ao redor algo no que se agarrar e arranhar a corda envolta do pescoço em busca de ar.

Eu puxei com mais força até a corda estralar junto do seu pescoço. Betty soltou gorgolejos estranhos, os olhos injetados de sangue quase saltaram para fora, segundos depois se instalou o silêncio. O vácuo de um passado asfixiado e esquecido.

Betty.Betty Lockre está morta.morta,morta,betty lockre está morta.Betty.Betty Lockre está morta.morta,morta,betty lockre está morta. Betty.Betty Lockre está morta.morta,morta,betty lockre está morta. Betty.Betty Lockre está morta.morta,morta,betty lockre está morta.

Betty.Betty Lockre está morta. morta,morta,betty lockre est…

***

— Hey, aberração! — A voz de um homem de jaleco e roupas brancas percorre o pequeno e simples quarto.

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Chegou a hora da sua consulta diária, mas hoje é um doutor diferente. Então é bom você tomar os remédios e sorrir bastante. Você sabe que eu posso piorar e muito sua vida aqui se me der trabalho — O homem sustenta um sorriso de puro escarnio enquanto a encara.

Merda, ela ainda brinca de boneca, cara Diz outro homem de jaleco e roupas brancas.

— Era de se esperar, ela é retardada!

Meu Deus, cara você sem dúvida vai para o inferno! Dá logo os remédios para ela e vamos!- O segundo homem se vira e caminha para a porta do pequeno quarto.

— Eu sou Deus meu camarada! Eu sou Deus!

— Urrmm — Alguém pigarreia atrás do enfermeiro.

Ah Doutor hehe... eu nem tinha visto você aí... Ele se afasta da paciente, constrangido.

Que tal dar logo as medicações da paciente e ir atrás do paciente do quarto 5? É a quarta vez na semana que ele escapa.

O doutor fala de forma gentil, mas sua "energia" e presença são estranhas, são ácidas. Seu olhar era como um dos pacientes que ele tratava. Como se, de alguma forma, a insanidade pudesse ser transmitida.

Certamente senhor! Certamente! Aqui senhorita seus remédios.

O enfermeiro espera que ela estenda as mãos, entrega os comprimidos e um copinho de plástico. Ela os coloca na boca e engole de uma vez. O homem de jaleco sai rapidamente do quarto e o doutor fecha a porta. A mulher decrépita continua imóvel

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encarando para a parede. Um caderno repousa em suas mãos e a boneca está sobre a mesa.

Bem... vamos ver... O doutor folheia algumas páginas dentro de uma pasta. Ele parece encontrar algo em uma das páginas, analisa as letras e depois encara a paciente. Volta a folhear, senta-se na cama e cruza as pernas. Então, diz na sua fala serena:

— Olá Betty, eu sou o Dr. Alex.

A paciente ao ouvir isso sai de seu estado catatônico, vira o rosto o suficiente para conseguir olhar Dr. Alex. Com seus incandescentes olhos castanhos ela o encara, fala numa voz áspera:

— Betty? Betty está morta.

O caderno em suas mãos está aberto, mostrando um desenho infantil de uma mulher enforcada.

Enfermidade

Andando por essas ruas de desespero. Os corpos desfigurados sem vida, os olhos arregalados cheios de horror, por detrás de suas máscaras de superficialidade...

Não consigo correr, não consigo me defender. Minhas mãos e pés carcomidos pelos vermes do desânimo. Meus pulmões feridos pelo ódio fétido, coração apodrecido pelo medo, um sorriso falso aberto de lado a lado...

Me arrastando para não ser pego pelos parasitas sem vida que lhe querem como abutres, querem as carcaças, mentes vazias

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oficinas de seus próprios diabos. Querem você, querem corromper sua alma...

Pai... mãe... estou doente, não percebem?

Estou tentando, juro que estou, em cada segundo dessa vida sem valor.

Deus! Se está aí, me dê um pouco mais para não esparramar meu vermelho pelas paredes...

Estou tão cansado.

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Mulher

Melanie é uma linda mulher. Os longos cabelos negros brilham em leves ondulações, seus olhos são uma mistura de castanho e verde escuro. Algo único. O rosto é uma pintura de Da Vinci, e o corpo uma escultura de Michelangelo, a lingerie e vestido aportando os belos seios e coxas torneadas são confeccionadas em Savile Row. A pele é branca como neve e macia como pétala de rosa. Sua boca é equilibrada, nem muito grande nem muito pequena, e está pintada com um vermelho vivo. Suas características são sem igual.

Bem que o pai dizia quando Melanie era criança: Que bela garota você é! Que bela mulher você será!

Melanie anda nas ruas à procura de diversão, uma aventura.

Ela arranca olhares curiosos e cochichos instigantes pela sua aparência e vestimenta. Adora toda aquela atenção, mas ninguém ali merecia a sua. Às vezes andava e andava sem achar nada com o brilho que se adequasse ao seu.

Mas essa noite foi diferente. Ela vê aquele homem elegante, fumando cigarro, perdido em pensamentos, parado em uma calçada vazia. Sua aparência é divina, ele poderia ser muito bem o personagem mitológico Narciso.

Melanie enche os olhos ao observá-lo, se excita ao imaginá-lo tocando delicadamente seu corpo. Então, de forma quase teatral ela se aproxima. Ao vê-la chegar perto, o homem demonstra surpresa em um olhar curioso. Melanie desliza a mão sobre o peitoral dele que dá uma risada de deboche e fala:

— Olha "docinho" não estou a fim...

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Melanie olha confusa com a rejeição do elegante homem, mas não se abate e se aproxima para lhe dar um beijo. Em súbita revolta, ele a empurra:

— Já disse que NÃO cara! Seu rosto é uma mistura de nojo e irritação.

Melanie fica parada olhando "Narciso" se virar e ir embora por um beco sujo. Em seu rosto uma careta angustiada se forma. Ela vê um cano enferrujado ao lado de uma lixeira, pega e vai atrás do homem. O belo rosto a transformara em alguém fora de si, tomada por pensamentos loucos e destrutivos.

Ela anda sob passos largos e antes que Narciso perceba, Melanie o acerta nos joelhos por trás. O homem cai berrando de dor.

O seu grito corre pelo beco mal iluminado.

Melanie o chuta para poder olhar em seus olhos, o que Narciso vê o faz entrar em choque. Ele se arrasta para trás soltando gemidos que parecem pedidos de misericórdia. Melanie o acerta no outro joelho e o faz gritar mais alto. Ele baba enquanto lamenta segurando o joelho, ela o acerta de novo, mas dessa vez no rosto fazendo-o soltar um ganido de dor.

Narciso permanece deitado, a cabeça vira de um lado para o outro tentando controlar a dor e desespero de alguém que sabe que vai morrer. Melanie está acima dele levantando o cano ensanguentado, seu rosto se contorce entre tristeza e ódio. Os mesmos que chocaram Narciso estampam a loucura depravada que corre em sua cabeça, ela diz:

— Papai, papai sempre disse que eu era uma linda garotinha!

Que eu seria uma linda mulher! MULHER!

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Ela desfere golpes no rosto de Narciso rugindo essas mesmas palavras desconexas. O sangue espirra para todos os lados se misturando a água da chuva remanescente no chão. Os inúmeros golpes transformam o rosto do homem numa massa disforme de dentes, miolos e gosma. Seu corpo treme em espasmos até Melanie interromper os rugidos e golpes.

Ela está encarando-o totalmente descontrolada como se ele ainda estivesse vivo e volta a sussurrar:

— Papai me disse que eu sou uma linda mulher.

A poça de água misturada ao sangue emoldura o reflexo de Melanie: um homem de maquiagem borrada pelas lágrimas. Um homem vestido de mulher.

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A imoralidade do homem religioso

Filho da puta! Abra seus olhos não há um deus aqui! Suas mãos estão sujas com o sangue do dito pecador imoral! Com a espada mutilaram, com a tocha queimaram, com seus olhos julgaram. Nossas escolhas e pensamentos jogados por terra, perdidos e sozinhos estamos segurando o que resta de nós, desfigurados pelas crenças do homem "são".

Vou enterrá-los 70x7 palmos abaixo da terra, seus ossos minha calçada serão, seu sangue irá banhar-me aos olhos dos ditos perdidos.

O rosto do homem "são" se contorce numa mistura de medo e raiva, Ódio se aproxima em passos pesados para cumprir seu julgamento. O homem agora ajoelhado como os que sofreram em sua mão, busca no céu por toda ajuda que não pode ter. Sua morte chegou, seu tempo terminara.

Sinto o sangue quente respingar meu rosto, quando Ódio atinge a cabeça do homem "são". Eu sinto o cheiro da imoralidade que ele exala, seus medos expostos, suas mentiras lavadas. O rosto desfigurado conta toda sua história suja dita por ele mesmo como pecaminosa.

O sermão acaba e Ódio estava certo, não há nenhum deus aqui.

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Sentimentos afiados

Aquele era um dia gelado de março do ano de 1996. Nas ruas não se via uma alma viva, o som das folhas secas ao sabor do vento perturbava o estranho silêncio das calçadas vazias. Todos os seres vivos estavam escondidos em casa, talvez se esquentando para fugir do frio da noite.

Eu andava a passos lentos por uma calçada qualquer que circundava um parque mal iluminado. Olhos fixos à frente, mas totalmente vazios. Estava preso em pensamentos que só intensificavam minha conturbação mental. As vozes na cabeça gritavam: Até que ponto perdurará nossas existências? A minha e a sua. Levará o prazo de decomposição do corpo? Até a alma ser condenada? Até as ideias se apagarem?

Todas essas perguntas sem respostas consumiam infindáveis momentos de minha vida. Elas permaneciam no poço da mente, se repetindo como um gravador estragado. Ao tardar da noite, na minha recorrente insônia, os fantasmas digeriam meu coração em uma sinfonia destoante: Você é sozinho, não tem amigos. Ninguém se importa. Seus pais não te amam. Você não vale nada. Você não é nada.

Em dados momentos, eu apagava e era assombrado por pesadelos que pareciam reais e não meros frutos aleatórios do meu subconsciente. Separar o que era real e o que eram apenas sonhos se tornou muito difícil. Mesmo assim, aprendi de alguma forma a pressenti-los, como um predador à espreita, mas infelizmente eu me tornei a presa desses estranhos jogos mentais.

Ao completar 18 anos, mais um aniversário de morte, eu me rastejava sem destino, sem casa, família ou amigos, sem conexões.

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Exceto por Dr. Alex, a quem recorria em busca de alguma resposta para meus devaneios. Merda! quando isso pararia? Eu deveria morrer?!

Não via mais por onde andava. Minha cabeça latejava fazendo meus olhos tremerem de forma espasmódica, meu peito chiava como um rádio velho. Eu dava mais um trago no cigarro, dominado pela ansiedade. Sabia que encher os pulmões com a fumaça tóxica não evitaria o que estava por vir, os pesadelos.

Mais à frente no trajeto, onde deveria ser a extensão da calçada levando até o lago, eu vi incontáveis corpos no chão. Eram meus corpos! Cada um correspondia aos momentos que tinha me eliminado no frenesi dos impulsos autodestrutivos.

Os cadáveres estavam mergulhados em líquido vermelho escuro e espesso. Eles deslizavam, inertes e amolecidos, num aglomerado harmonioso vindo em minha direção. Prontos para reintegrar o corpo de seu dono. Ao esbarrarem em meus pés, o cheiro metálico de sangue invadiu meus sentidos despertando a perpetua tortura em me entregar ao inevitável.

O líquido vermelho me guiou através da linha da calçada do parque. Os lampiões piscaram até apagarem, minhas pálpebras pesaram até fecharem me levando para o centro de uma fria escuridão. Tudo desapareceu tão rápido quanto veio, num piscar de olhos, no período de um suspiro e eu estava de volta ao mundo que julgava ser real.

A cabeça ainda latejava passei as mãos nos olhos. Aos poucos, minha visão melhorou. Foi então que me vi em outro local do parque, um ambiente escuro e sujo. Os bancos estavam quebrados e com um aspecto bolorento, a maioria dos lampiões

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estava apagada o que tornava aquela paisagem ainda mais macabra.

Minha garganta seca gritava por um gole d’água, quase sorri ao ver uma velha fonte na minha frente; uma escultura de anjo segurava um vaso por onde vertia água. O rosto da estátua devia ter sido bonito em outros tempos, mas estava desfigurado como se alguém tivesse destruído a pancadas e decorado com camadas lodosas. E aquela água que a princípio percebi tão cristalina, ao me aproximar notei que estava lamacenta e malcheirosa.

O céu estava sem estrelas e à medida que caminhava percebi que a escuridão aumentava. Isso me assustou, a apreensão de quem está sendo observado tomava conta de mim. Olhei para todos os lados e não via nada, decidi ir embora dali, corri na direção contrária ansiando em sair do parque.

O clima ficou tão tenso que eu poderia quase apalpá-lo. Eu me sentia observado por aquilo que mais temia, o cheiro podre de morte contaminava o ar. O mundo que acreditava ser real sempre fora uma farsa. Aquela sensação de dissociação estava cada vez mais forte.

Pelos cantos dos olhos eu percebi movimentos rápidos por todos os cantos. Vários corvos pousaram em galhos de árvores mortas, eles crocitavam alto como se pedissem ajuda, mas eram gritos de alerta. Avisos que me diziam que o grande sofrimento viria como sempre vinha para todos que caminhavam ao encontro da verdade.

Tentei seguir em frente e ignorar, mas para quem não tem destino a morte vêm cedo. O frio no corpo não era por causa do inverno, aquilo era o sangramento da alma humana. Tudo sempre

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foi igual mesmo quando parecia novo, não havia superação ou felicidade somente dor.

Quando dei por mim já era tarde demais, as carcaças das árvores abrigavam milhares de corvos, o parque se tornou lodoso como um cemitério abandonado. Eles ergueram as asas como as sombras que me perseguiam nos sonhos.

Mal ergui os braços para me proteger e os bicos afiados me cobriram como navalhas, estraçalhando minha carne. O sangue voou para todos os lados. Como eu poderia me defender de meus próprios sentimentos?

Correr era inútil, minhas pernas estavam em frangalhos.

Próximo do momento da única verdade, meus ouvidos perceberam o aranhar da pá do coveiro, as navalhas dos corvos terminaram seu violento trabalho. Só existiam gritos e tudo era manchado por sangue. Seis passos próximos à morte, o sangue derramava entre meus lábios como uma fonte, não havia mais dor e nem tristeza.

Jogado ali, eu finalmente iria dormir.

Ao amanhecer:

A senhora Annabette andava pelo parque com seu cachorro, quando avistou alguns corvos se alimentando de algo. Achou aquela imagem peculiar e, então, se aproximou para checar o que estava no chão. O que ela não esperava era encontrar o corpo mutilado de um jovem morto.

“Oh! Coitado do pobre garoto, fugiu do único lugar que poderia estar seguro e terminou aqui banhado em suas próprias vísceras!

Me pergunto quem faria algo tão terrível.”

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O Autor

Alexandre Bareicha nasceu em Brasília e mora em Goiânia há alguns anos. Aos 20 anos, influenciado pelo metal extremo (death metal, black metal, grindcore, etc) e pelo horror começou a escrever contos como forma de lidar com problemas. Sua produção intensificou após ler obras como Rei Amarelo (1895) de Robert Chambers; Misto-Quente (1982) de Charles Bukowski; e Fúria (1977) de Stephen King, inspirações que moldaram sua maneira de escrever.

Instagram: @contosnefastos

Wattpad: wattpad.com/story/177121203-contos-nefastos

Referências

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