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A interlocução como recurso metodológico para a pesquisa qualitativa

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Academic year: 2022

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A interlocução como recurso metodológico para a pesquisa qualitativa

Betina Rezze Barthelson1

1Programa de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas – IEL/UNICAMP, Brasil. betinabarth@hotmail.com.

Resumo. Com base nos pressupostos teóricos da Neurolinguística Discursiva, será analisado, por um aporte linguístico, um diálogo entre uma criança de 12 anos - que apresentava dificuldades escolares e não conseguia se alfabetizar - e sua investigadora. Esse diálogo aconteceu durante o seu acompanhamento longitudinal, no CCazinho/IEL/Unicamp. A análise qualitativa evidencia a diversidade e especificidades de dados sobre o processo de aprendizagem do sujeito e aponta possibilidades de intervenção em suas dificuldades escolares através de um trabalho orientado discursivamente, embasado metodologicamente no conceito de dado-achado (Coudry, 1996). Tal reflexão opõe-se às formas de avaliação padronizadas - baseadas em testes psicométricos -, às atividades pautadas pela concepção tradicional de linguagem comumente encontradas nas escolas e desqualifica os diagnósticos que vinculam dificuldades escolares às patologias e que posicionam, à margem, crianças e jovens em seu próprio processo de escolarização.

Palavras-chave: interlocução; fala; leitura; escrita; despatologização.

Interlocution as a methodological resource for qualitative research

Abstract. Based on the theoretical assumptions of Discourse Neurolinguistics, a dialogue between a 12- year-old child, who had difficulties in school and could not become literate, and his researcher will be analyzed through a linguistic contribution. This dialogue took place during his long-term follow-up at CCazinho / IEL / Unicamp. The qualitative analysis reveals the diversity and specificities of data about the subject's learning process and points out possibilities of intervention in his / her school difficulties through a discursively oriented work, methodologically based on the concept of data-finding (Coudry, 1996). Such reflection is opposed to standardized forms of evaluation - based on psychometric tests -, activities based on the traditional conception of language commonly found in schools, and disqualifying the diagnoses that link school difficulties to pathologies and that place children and youth in Their own schooling process.

Keywords: interlocution; speaks; reading; writing; depathologization.

1 Introdução

Neste trabalho, à luz da abordagem da Neurolinguística Discursiva1 (doravante ND), será apresentada a análise qualitativa de um diálogo realizado durante o acompanhamento longitudinal de um sujeito – MT - que, ao procurar por ajuda no CCazinho2, apresentava dificuldades escolares: não conseguia se alfabetizar e, assim como grande parte das crianças que chegam a esse centro, tinha um diagnóstico médico em que suas dificuldades eram associadas a uma patologia. No caso de MT, o diagnóstico era de Retardo Mental Moderado (CID F71.9)3.

1 A ND, desenvolvida no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, teve início com a tese de doutorado Diário de

Narciso: discurso e afasia, defendida por Coudry em 1986 e publicada em livro em 1988.

2 As pesquisas realizadas sob o olhar da ND englobaram, primeiramente, o acompanhamento de sujeitos afásicos no

Centro de Convivência de Linguagens, localizado no Instituto de Estudos de Linguagem/Unicamp. A partir de 2004, há a ampliação dessas pesquisas com a criação do CCazinho, pela Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry.

3 O código CID F71.9 é encontrado no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - Manual de Diagnósticos e

Estatísticas de Distúrbios Mentais (DSM IV). Segundo Benilton Bezerra Jr, médico especialista em medicina social, o CID – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, pode ser considerado como um dispositivo que regulamenta e controla o sistema de saúde: sem a atribuição de um CID pelo profissional, o sujeito não tem acesso aos direitos conferidos pela legislação.

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O CCazinho é um espaço interativo de avaliação e seguimento individual e coletivo dedicado a crianças e jovens com histórias de fracasso escolar que não conseguem aprender a ler e a escrever e têm suas dificuldades escolares associadas, equivocadamente, à sintomas de patologias que os estigmatizam como doentes. Com essa posição, busca-se interferir na atribuição desmedida de diagnósticos que não resistem ao enfrentamento das dificuldades da criança (Coudry e Bordin, 2015).

O dado analisado não é uma atividade como as comumente encontradas na escola e na clínica, mas trata-se da interlocução entre MT e sua investigadora que, através da metodologia - de base qualitativa - do dado-achado (Coudry, 1996) - possibilita ao investigador a reflexão sobre os dados e a visibilidade de possíveis caminhos no trabalho discursivamente orientado em busca da superação das dificuldades apresentadas pelo sujeito.

2 A História de MT

No início de seu acompanhamento longitudinal4, MT tinha 12 anos de idade e já havia refeito o 5º ano do Ensino Fundamental uma vez. Ele frequentava o 6º ano do Ensino Fundamental embora ainda não fosse alfabetizado. Na avaliação individual protocolar para o início dos trabalhos com a criança no CCazinho, MT demonstrou não conhecer letras, pouca familiaridade com a leitura e a escrita e se expressou com dificuldade, o que foi interpretado, pelas investigadoras, como falta de repertório lexical. Ele não conseguia dar informações simples sobre si mesmo ou relativas ao seu cotidiano como, por exemplo: o nome do bairro em que morava, o nome da sua escola, dos estabelecimentos comerciais próximos à sua casa, o número do seu telefone. Assim, MT não respondia às perguntas que lhe eram feitas ou dava respostas aparentemente aleatórias.

Na escola, apresentava atitudes como desatenção e indisciplina que resultaram nas difíceis relações estabelecidas com seus professores. Esse cenário se agravava pelo seu comportamento agressivo e impulsivo e pelas dificuldades em interagir socialmente, chegando a apanhar dos colegas no futebol e até mesmo a ser agredido em sala de aula. No entanto, em sua própria casa, MT também vivenciava relações hostis. Ele tinha um pai omisso e uma mãe com comportamentos que oscilavam entre a dedicação para que ele superasse suas dificuldades e certa irritação na relação com o filho.

Na avaliação e ao longo do acompanhamento de MT foi possível construir a hipótese de que este relacionamento conflituoso entre ambos era fruto da dificuldade da mãe de aceitar o filho, que nasceu em um momento conturbado e não planejado pelo casal. Nesse contexto, ele passava grande parte do dia vendo televisão, sem ter, efetivamente, interlocutores.

De fato, as dificuldades apresentadas por MT não eram condizentes ao que é esperado de um jovem da sua idade (na época, 12 anos) em relação aos conhecimentos sobre a leitura e a escrita e, também, no que se refere às aprendizagens adquiridas pela vivência em um ambiente social. A dificuldade de conversar ou falar minimamente sobre seus interesses, além da postura de corpo que mantinha - curvado e com o olhar direcionado para baixo - dificultava a aproximação do outro e revelava sua disposição de se manter afastado. MT também não tinha uma postura adequada para escrever, deitando o tronco sobre a mesa, inclinando a cabeça lateralmente e segurando-a com uma das mãos, mexendo-se e alongando-se constantemente. Frente à hegemonia da medicina como reguladora da dicotomia entre saúde e doença, normal e patológico (Collares e Moysés, 2012); as considerações sobre MT permitiam acreditar ser plausível o diagnóstico de Retardo Mental

4O critério de seleção de crianças/jovens para serem acompanhadas no CCazinho por um pesquisador – alunos de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado – fundamenta-se na queixa escolar de uma dificuldade que compreenda o eixo fala, leitura e escrita, e que seja, ou não, atestada por um diagnóstico/laudo médico. O ingresso da criança/jovem, no entanto, fica submetido à disponibilidade de vaga. Os acompanhamentos são realizados uma vez na semana, de formas individual, com sessões de uma hora, e em grupo, com sessões de duas horas. O acompanhamento longitudinal de MT ocorreu de setembro de 2010 a julho de 2013 pelas investigadoras Betina Rezze Barthelson e Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry, que também o supervisionou.

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Moderado que lhe fora conferido, uma vez que seus comportamentos correspondiam à descrição do diagnóstico em questão, elaborado a partir do DSM IV.

3 A Crítica Proposta pela Neurolinguística Discursiva (ND)

Desde a década de 80, a ND (Coudry, 1987; Coudry e Scarpa, 1991) tem proposto reflexões, discussões e análises em relação ao excesso de diagnósticos atribuídos, sobretudo, a crianças que apresentam dificuldades no eixo fala, leitura e escrita.

3.1 A Clínica Tradicional

As avaliações a que essas crianças são submetidas são realizadas por profissionais da área da saúde, como psicólogos, psicopedagogos, fonoaudiólogos e médicos que, em grande parte, sem conhecimento específico sobre a língua/linguagem, são despreparados para avaliá-la. Tais avaliações consistem na aplicação de testes psicométricos padronizados (que reduzem a leitura e a escrita à codificação e decodificação), fundamentados em uma concepção biologizante e organicista de aprendizagem concebida a partir de um padrão estabelecido de normalidade. Essas avaliações desconsideram o trabalho linguístico do sujeito relativo à linguagem em funcionamento e ao contexto histórico e social em que está inserido. A avaliação da linguagem por meio desses testes não leva em conta quais tipos de erros são cometidos pela criança, se são recorrentes ou se assemelham-se às dificuldades apresentadas por outro sujeito em processo de alfabetização, importando a quantidade de erros e acertos que estabelecem a fronteira entre o normal e o patológico.

Nos estudos realizados no interior da ND, o erro ou desvio são episódios esperados no processo de aquisição da linguagem escrita (Coudry e Scarpa, 1991) e, portanto, parte integrante do trabalho do sujeito com e sobre a língua (Franchi, 1977). Assim, hipóteses de escrita como abóbura (por abóbora), queigho (por queijo) e caisa (por caixa), representam a possibilidade de descoberta do sujeito sobre a própria língua (Coudry e Bordin, 2015), diferentemente da abordagem tradicional em que tais episódios são considerados como erros porque não coincidem com a ortografia. Nessa direção, os diagnósticos emitidos a partir dos testes psicométricos avaliam, equivocadamente, como erros/sintomas, os processos normais da aquisição da leitura e da escrita - as hipóteses de escrita de crianças e jovens em processo de aprendizagem -, contribuindo para o grande número de sujeitos diagnosticados hoje encontrados por Transtorno do Déficit de Atenção, Transtorno de Aprendizagem, Déficit de Aprendizagem, Dislexia, Alteração de Processamento Auditivo, entre outros, tal como mostram os estudos sustentados pela perspectiva da ND (Muller, 2013; Righi- Gomes, 2014; Silva, 2014).

3.2 A Escola na Contemporaneidade

As pesquisas realizadas pela ND têm verificado que, na escola, predominam a mesma concepção de linguagem e de aprendizagem presente na clínica. Através da análise dos cadernos escolares das crianças, observa-se a relevância dada pelos professores às atividades facilitadoras da memorização do sistema ortográfico da língua, baseados em uma visão técnica de alfabetização (Coudry, 2007;

2014). Observa-se, também, que essas atividades são corrigidas, mas não são retomadas com as crianças. Sem uma explicação para o erro, elas automatizam indevidamente as suas hipóteses de escrita. A escola, sem saber como lidar com os processos envolvidos na aprendizagem da leitura e da escrita, atribui ao corpo da criança o impedimento de aprender, resultando nas várias patologias hoje em voga. Estigmatizadas por um diagnóstico médico, essas crianças têm sido submetidas a uma vida marginal no sistema educacional (Martz, 2015). Privadas da construção de uma identidade de estudante e do reconhecimento da escola como o lugar do conhecimento e da aprendizagem do

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novo, essas crianças passam a reconhecê-la como um lugar de sofrimento (Coudry, 2014; Coudry e Bordin, 2015).

3.3 A ND como um Contradispositivo (Agamben)

Essa crítica se consolidou com a criação do Centro de Convivência de Linguagens. Norteado por uma perspectiva teórico-prática, o CCazinho tem como um dos objetivos analisar o recorrente processo de patologização de sujeitos, crianças em sua maioria portadoras de um diagnóstico/laudo médico.

Tais crianças são acompanhadas longitudinalmente por pesquisadores com o intuito de compreender as explicações para suas dificuldades escolares e de ajudar esses sujeitos a enfrentá-las.

A ND consolida-se como um arcabouço teórico e metodológico de reflexão e de crítica frente à banalização de sintomas, à atribuição desmedida de diagnósticos médicos a crianças e jovens, e à inadequação das formas de avaliação e acompanhamento – escolar e clínico – que vêm sendo realizados. A sua proposta é remontar as condições de produção desses diagnósticos e dar relevância, como um instrumento de resistência – pelas hipóteses de fala, leitura e escrita –, à singularidade do sujeito (Coudry e Bordin, 2015). Para tanto, incorporou em seu aporte teórico o conceito de dispositivo formulado por Foucault (1969) e ampliado por Agamben (2009), que o define como:

“Um conjunto de práxis, saberes, medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e os pensamentos dos homens. (...) De natureza estratégica, o dispositivo está inscrito em um jogo de poder que condiciona saberes e práticas” (Agamben, 2009, p.40).

Os discursos produzidos à luz da ND assumem, portanto, o papel de contradispositivo (Coudry 2009, 2014; 2015) em relação à práxis, saberes e medidas que são usados para encobrir problemas de ordem social, política e psico-afetivos, e justificar as dificuldades escolares do aluno, eximindo a escola da responsabilidade e a família da participação no aprendizado da criança. Ao longo desses acompanhamentos, é possível se observar que as intervenções realizadas através do eixo fala, leitura e escrita permitem que as crianças superem suas dificuldades, o que mostra que os diagnósticos médicos atribuídos a elas não se confirmam. No entanto, devido à associação de suas dificuldades escolares a uma patologia, elas permanecem estigmatizadas como doentes.

4 A Metodologia Qualitativa do Dado-achado

O acompanhamento longitudinal analisado neste artigo é fundamentado na metodologia de base qualitativa do dado-achado - heurística e de procedimentos de descoberta. Nesses acompanhamentos, os procedimentos heurísticos – os critérios selecionados – orientam o olhar do investigador para a interpretação de um fato em dado, que então se torna um achado pelo tratamento discursivo em sua análise e nas formas de seu acontecimento. Nesse movimento, “o intervalo de tempo entre um fato e sua transformação em dado pode ser maior ou menor, quase simultâneo ou não” (Coudry e Freire, 2010).

É na interlocução o lugar em que se dá a produção e interpretação dos fatos, momento em que se pode explicitar, perguntar, comentar, explicar, repetir, responder, nomear, descrever, justificar, relatar, muitas vezes, mais do que se faz fora desse ambiente. O método da ND é, assim, a interlocução que recobre as várias práticas com a linguagem (Coudry e Freire, 2010).

A formulação de dado-achado proposta por Coudry “tanto expõe os fatos linguísticos quanto os torna objeto de reflexão” (Coudry e Freire, 2010, p.25): o investigador, orientado pelo referencial teórico com o qual trabalha, levanta questões relevantes na busca da solução de alguns problemas e da colocação de outros, o que autoriza a (re)interpretação de um mesmo fato. Com essa posição, na

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metodologia do dado-achado, o dado é tanto revelador quanto encobridor de fenômenos linguísticos.

Ao investigador são disponibilizados certos procedimentos metodológicos – registro em vídeo e transcrição de sessões – que permitem o seu afastamento do momento da interlocução para sobre ela se debruçar na formulação das hipóteses e da explicação para o fato acontecido (Coudry e Freire, 2010). Com o objetivo de retratar a dinâmica da interlocução, as transcrições dos acompanhamentos longitudinais orientados pela ND são organizadas em tabelas – um sistema de notação e codificação – que auxiliam a identificação de dados e cobrem o espectro das especificidades verbais e não verbais - fala, escrita, gesto, tom/humor, ritmo (repetição; pausa; segmentação; sobreposição) - da cena enunciativa fundamentais para a análise. Elas são armazenadas no Banco de Dados de Neurolinguística (BDN) que vem se desenvolvendo, desde 1996, no interior das pesquisas realizadas no âmbito da ND (Coudry, 1996; 2010).

Nessa metodologia, o conceito de dado-achado formulado por Coudry (1996), através da relação entre teoria e dado, ilumina as hipóteses do investigador sobre a relação do sujeito com a linguagem e permite o olhar para os dados de fala, de leitura, de escrita como singularidade reveladora – nos termos do paradigma indiciário - comportamentos que apontam para o trabalho linguístico do sujeito.

O conceito de dado-achado afina-se ao paradigma indiciário de Ginzburg (1989) como um modelo epistemológico, descrito pela primeira vez a partir do “método morelliano” usado para legitimar a autoria de obras de arte. Segundo Morelli, era preciso dar relevância aos detalhes e às características menos influenciadas pela escola à qual o pintor pertencia para se conferir uma autoria a obras não assinadas ou reconhecidas de modo incorreto. O método morelliano, base para a formulação do paradigma indiciário, foi citado por Freud em uma tentativa do autor relacioná-lo à psicanálise.

Outras comparações também foram feitas, como a usada na série em que o detetive Sherlock Holmes utiliza-se do procedimento investigativo para dados singulares reveladores de indícios imperceptíveis para um observador menos atento.

O papel de detetive exercido pelo investigador proposto pelo paradigma indiciário de Ginzburg contribui para o conceito de dado-achado, fonte de reflexão sobre o aprendizado, através de um refinamento/movimento teórico do investigador que se volta para o sujeito na intenção de reorientá-lo em sua aprendizagem.

5 Os Acompanhamentos Longitudinais Realizados no CCazinho

No CCazinho, os acompanhamentos longitudinais, individuais e em grupo, são realizados através de diversas práticas discursivas que envolvem a leitura, a escrita, a soletração, jogos, dramatização, canto, histórias, pintura, dança, dentre outras (Coudry, 2007), com o principal objetivo de levar a criança/jovem a refletir sobre o trabalho linguístico ao usar a leitura e a escrita nas práticas sociais que vivencia.

A partir da reflexão de Coudry, em Diário de Narciso: discurso e afasia (1988), sobre os acompanhamentos realizados com sujeitos afásicos, as diversas práticas propostas devem ser objeto de reflexão e de cuidado do pesquisador em relação à sua variação e adequação. Para a autora, o investigador deve aprender, no processo, “numa permanente crítica de seus procedimentos, como interagir com esse sujeito idêntico somente a si mesmo”, considerando-se que “não existe um sujeito médio ideal que possa ser tomado como padrão” (Coudry, 1988, p.77).

Para a ND, os caminhos percorridos pelas crianças e jovens em direção à aprendizagem são heterogêneos em relação às suas formas e aos seus tempos (Coudry e Bordin, 2015). Encontrar tais caminhos junto ao sujeito pressupõe um relacionamento intersubjetivo na direção de um conhecimento mútuo, que cria as condições de interação e permite a ampliação da participação dos interlocutores na instância discursiva de que fazem parte (Coudry, 1988). Em busca dos caminhos

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para a inter-relação investigador e sujeito, as atividades realizadas nas salas do prédio em que se localiza o CCazinho são, muitas vezes, substituídas por outras que acontecem nos seus arredores, como bibliotecas, cantinas, praças, ginásio de esportes. Tais práticas possibilitam a exploração de um amplo ambiente em que é possível a leitura de placas, avisos, panfletos e escritos diversos. Essa vivência com a leitura proporciona a descoberta das várias funções sociais da escrita e desperta nas crianças a curiosidade de saber o que está escrito ao seu redor. Assim, são aprendidas histórias que poderão ser partilhadas com o outro, enriquecendo o repertório da criança para que ela tenha o que dizer e o que contar, condição para que seja estabelecida uma relação de interação, uma interlocução.

5.1 A Interlocução no Trabalho com MT

Diante das profundas dificuldades de MT de estabelecer e permanecer em relações com o outro, foram privilegiadas em seu acompanhamento longitudinal propostas que favorecessem a aproximação da investigadora ao sujeito, através da interlocução. Essas propostas eram também, possibilitadoras do trabalho com a leitura e a escrita em contexto social, momento em que a função e o sentido eram privilegiados. Nessa direção, o dado apresentado em seguida refere-se ao diálogo entre a investigadora – Ibb - e seu sujeito de pesquisa – MT, ocorrido enquanto caminhavam no entorno do prédio do CCazinho e observavam uma obra de reforma de um lago, situado na praça do Ciclo Básico, na Unicamp. O dado 1 representa, sobretudo, uma estratégia para a compreensão das questões envolvidas na aprendizagem da leitura e da escrita apresentadas por MT a fim de encontrar intervenções que o ajudassem em sua alfabetização e na sua entrada no mundo das letras (Coudry, 2009).

Dado 1: Sobre a reforma do lago na praça do Ciclo Básico (03/04/2013)

Turno Sigla do Locutor

Transcrição5 Observações sobre o enunciado verbal

Observações sobre o enunciado não

verbal

1 MT Isso aqui é \: um laguinho E começa a querer

descer no tanque que está sem água 2 Ibb Não, não vai descer aí não porque a

gente não sabe se pode entrar. Um laguinho?

3 MT É, olha lá o negócio. Esse negócio aqui é no meio

Apontando para a manta

impermeabilizadora 4 Ibb Vamos pensar é \ // MT. Tem \ // lugar

para as pessoas circularem em volta, certo? Você acha que é um lago? Sabe o que tá me parecendo isso aqui, um teatro, sabe teatro... assim, para apresentar uma peça no meio

Referindo-se a um teatro de arena

5 MT Mas \ //

6 Ibb Mas eu acho que você tem razão, pode ser um lago sim.

7 MT Por que teatro não vai por isso aqui Apontando para uma

manta

impermeabilizadora 8 Ibb Exatamente... Muito bem... Esse

negócio, como é que chama isso aqui?

9 MT Manta \ // é pra por no chão

5Na transcrição o símbolo \ // refere-se a uma pausa longa e o símbolo \: refere-se ao prolongamento de uma vogal, segundo tabela do Banco de Dados em Neurolinguística (BDN).

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582 10 Ibb Como é que chama? Mas serve pra quê?

11 MT Pra água não vazar pra baixo. Faz gesto indicando

embaixo de alguma coisa

12 Ibb Pra água não infiltrar no chão. Não é isso?

13 MT É ali, também vai por, ó! Aponta para a outra

parte da construção onde estavam 14 Ibb Pode ser... Então chama uma manta

para impermeabilizar. Olha lá ó, tá escrito, ó! Nas letrinhas pequenininhas.

Im-per-me-a-bi-li-zan-te, entendeu?

Apontando para o rótulo da manta impermeabilizadora 15 MT Meu tio pôs isso lá, e ele pôs um piso

em cima

Saindo da construção em direção ao gramado da praça 16 Ibb Seu tio pôs isso lá aonde? \ // Entendi. E

me explica o que o seu tio fez... ele pôs essa manta impermeabilizadora...

17 MT Na casa dele

18 Ibb Mas em que lugar?

19 MT No floresta

20 Ibb Na floresta?

21 MT Floresta

22 Ibb Como assim?

23 MT No Floresta

24 Ibb Hã?

25 MT É no mesmo ele mora... Fez os gestos indicando o

trajeto que se deve fazer para chegar no Floresta 26 Ibb Ah! Floresta é o bairro! Referindo-se ao bairro da

cidade de Campinas, o Parque Floresta

27 MT É

28 Ibb Ã? Mas ele pôs aonde isso? O que ele não queria...

29 MT Na casa dele!

30 Ibb Não, mas isso eu já entendi!

31 MT Prá água na, na \: ele pôs na laje.

32 Ibb Ah, agora eu entendi \: ele pôs na laje, pra água não ir pra onde? Pra água da chuva não ir pra onde?

33 MT Pra casa.

34 Ibb Pra que lugar da casa?

35 MT Dentro da casa.

36 Ibb Pra dentro da casa...

Diante das dificuldades enunciativas apresentadas por MT já abordadas neste artigo, se faz importante esclarecer que este dado – a conversa entre Ibb e MT - aconteceu em 2013, dois anos e meio após o início de seu acompanhamento longitudinal, quando MT já conseguia se manter em uma relação dialógica. No entanto, tal dado foi escolhido para esta reflexão por contribuir aos propósitos deste artigo.

A análise apresentada em seguida é fundamentalmente orientada pela metodologia qualitativa do dado-achado. Os turnos da enunciação de MT retratados pela tabela acima são primeiramente fatos linguísticos, que pelo procedimento heurístico da investigadora permitem a visibilidade da dificuldade de enunciação do sujeito, então interpretados como dados-achados. Tais dado-achados, ao serem relacionados ao referencial teórico que sustenta as análises no âmbito da ND, iluminam os caminhos para a organização do trabalho com MT ancorado na reversibilidade dos papéis discursivos

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assumidos por ele e pela investigadora, na interlocução, para a ampliação de seu repertório de referências e para a sua alfabetização.

A condução desta reflexão será iniciada pela análise dos turnos 3, 7, 13 e 15, em que MT usa os termos “esse”, “isso aqui”, “ali”, “lá” - essencialmente elementos dêiticos. O uso desses elementos aponta para a dificuldade de MT em encontrar os recursos expressivos da língua para construir e compartilhar o sentido daquilo que queria dizer. A expressão de um pensamento ou de uma ideia é algo complexo que exige a fala externa. A fala externa é mais detalhada e desdobrada sintaticamente do que aquela pela qual o pensamento se organiza - a fala interna - que se caracteriza por ser agramatical e reduzida. Assim, dizer sobre o que se pensa requer da língua um conjunto de recursos expressivos para que se possa ser compreendido pelo outro (Vygotsky, 1934).

Tendo em vista que o uso de dêiticos “impede uma análise em termos de condições de verdade por procedimentos puramente composicionais do sentido de suas palavras, sem recorrer-se às relações que os dêiticos estabelecem entre o enunciado e o contexto, isto é, a situação de enunciação”

(COUDRY, 1988, p.50), é possível afirmar que MT não percebe a relação de dependência que os dêiticos estabelecem entre o enunciado e o contexto. MT não percebe também que não consegue se fazer entender pelo outro, o que, por vezes, só é possível se ambos, ele e seu interlocutor, partilharem a mesma situação de enunciação. É o que se pode observar na análise do turno 3 em relação ao uso da expressão esse negócio para se referir à manta impermeabilizante: é a participação de Ibb na situação da enunciação que permite a ela compreender o sentido presumido por MT (manta impermeabilizante). O sentido da expressão esse negócio está diretamente relacionado ao contexto, sendo preciso que Ibb recorra à relação que o dêitico estabelece entre o enunciado e o contexto para acessar o sentido. Situações como essa eram comuns na interlocução com MT, que frequentemente usava de termos como esse negócio, troço e coiso compreendidos como alternativas buscadas por ele na tentativa de um sentido comum com seu interlocutor - sem que houvesse a sua percepção da necessidade da contextualização do outro para o entendimento daquilo que ele queria dizer.

Ainda em relação aos termos esse negócio usado por MT, a reflexão realizada por Franchi (1977) sobre a significação da linguagem na interlocução, propicia uma melhor compreensão das questões envolvidas em suas dificuldades enunciativas. Para o autor, o sentido atribuído ao contexto da situação com relação à enunciação é o que permite a significação das expressões. Mas o autor não se refere ao contexto da situação como um lugar real fisicamente delimitado ou mesmo como uma situação imediata, e, sim, relaciona-o às condições de uso significativo da linguagem. Franchi compreende as condições de uso da linguagem como as “instâncias e as condições da situação discursiva”, presentes, necessariamente, em qualquer língua natural, e que permitem que as expressões adquiram sentido por remeterem-se a “um referencial em que essas correspondências se atualizam (o tempo, o lugar, as instâncias pessoais do discurso, a indicação demonstrativa dos objetos, a atitude do locutor frente a seu próprio discurso, etc.)” (Franchi, 1977, p.34). Com relação ao dêitico esse seguido do termo negócio usado por MT, seria preciso que a cuidadora participasse da situação da enunciação no sentido da situação imediata e do lugar real e fisicamente delimitado para perceber o sentido atribuído à expressão. No entanto, a partir da discussão sobre o conceito de uso significativo da linguagem realizado por Franchi, os recursos expressivos da língua usados de forma que as expressões situassem a interlocutora de MT em um mesmo referencial que ele, seriam suficientes para a indicação demonstrativa do objeto, no caso, a manta impermeabilizadora.

Uma análise nessa mesma direção pode ser feita em relação ao turno 15, ocasião em que MT usa o dêitico lá, para se referir a um contexto do qual Ibb não participou. Novamente, as considerações de Coudry sobre os elementos dêiticos fundamentarão a análise: “são como coordenadas (...) que orientam a interpretação para certos aspectos das condições de produção”. Embora esses elementos

“estabeleçam relações bem precisas com um elemento do contexto (a pessoa que fala, o lugar de

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onde se fala, o momento em que se fala), fica inteiramente dependente desse contexto (entendido enquanto correspondência de referencial pelos interlocutores) a identificação da referência ou mesmo da predicação a ser apreendida pela relação dêitica” (Coudry, 1988, p.50).

Essa reflexão fundamenta o fato da investigadora estar impossibilitada de entender a que se referia o uso do dêitico lá, por MT. Esse dêitico não permite que a investigadora acesse o seu sentido, por não haver uma correspondência de referentes entre os interlocutores. Ibb não compartilha com MT a situação de enunciação em que esse dêitico tinha um sentido, e, portanto, ela não identifica a sua referência. Assim, o dêitico lá, usado, nessa situação, sem a função de dêitico, promove a pergunta da investigadora no turno 16: seu tio pôs isso lá aonde? Os turnos 19 a 26 correspondem à resposta de MT à pergunta da cuidadora, que têm em Franchi os pressupostos de sua análise:

“Deve-se observar que a linguagem nem sempre (ou poucas vezes) se utiliza de recursos expressivos suficientes para identificação precisa dos objetos singulares referidos; nas expressões em geral se indicam os limites de uma certa ‘regionalidade’, a ser precisada com recurso à situação ou às regras implícitas do jogo de fatores no sistema de referências, pressuposto comum” (FRANCHI, 1977, p. 35).

MT mora em um bairro próximo ao bairro Parque Floresta, chamado pelas pessoas que nele moram ou que o frequentam somente como Floresta. Por se tratar de um bairro conhecido da investigadora, mas distante do contexto vivido por ela, Ibb demora a perceber, no diálogo, a que MT se referia quando responde, no turno 19, que seu tio pôs a manta impermeabilizante “no floresta”. Ibb se orienta pelo sentido “cheio” de floresta, e, não se atém ao fato de MT usar a palavra como se fosse masculina, referindo-se ao bairro Floresta -“no (bairro) Floresta”-, enunciado que traz a palavra bairro implícita. Por essa razão, Ibb o questiona.

A discussão realizada por Franchi em torno do uso de um mesmo sistema de referência - as categorias que possibilitam a construção de sentidos aos recursos expressivos no discurso - como pressuposto à interlocução permite compreender que o desconhecimento de Ibb do contexto que MT usou o termo Floresta (como bairro), e, a incompreensão do gênero usado por ele – masculino:

no Floresta - fazem com que este termo não tenha sentido para ela, o que a remete aos limites de certa regionalidade sugerida pela palavra floresta (como bosque, por exemplo). É possível dizer que, o sentido usado por ele não estabelece relação com as expressões correspondentes ao sistema de referência acionado pela investigadora. Sem ter outros recursos verbais para conseguir se fazer entender por seu interlocutor, naquele momento, MT usa de um recurso não verbal, no caso, o gesto, que faz sugestão a um caminho para se chegar a algum lugar, nesse caso, o bairro Parque Floresta. Nesse contexto, o gesto traduz o verbal e faz parte da construção conjunta da significação pelos interlocutores (Jakobson, 1954; Coudry, 1988), permitindo o compartilhar de um sentido comum entre eles.

A concepção de linguagem assumida nos trabalhos orientados pela ND, como “um sistema aberto e criativo e, por isso, disponível ao entendimento das necessidades e intenções das mais variadas condições de comunicação” (Franchi, 1977, p.26), sustenta o entendimento da variedade dos recursos verbais e não verbais usados pelos sujeitos na interlocução como alternativas legítimas na busca da interação com o outro. Com essa posição, a análise discursiva dos dados não se limita ao apontamento das dificuldades do sujeito e do que falta, como um déficit, mas busca olhar e valorizar o que o sujeito sabe e pode fazer em um determinado momento. Esses recursos, ao serem confrontados com o quadro teórico da ND, orientam o olhar do investigador na evolução do processo (Coudry, 1988).

Nessa perspectiva, o diagnóstico ou o laudo médico não é o determinante para o acompanhamento do sujeito: importa o conhecimento da sua história e como ele revela sua subjetividade na relação

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dialógica com o outro. Os desdobramentos desse posicionamento teórico e metodológico podem ser observados nas considerações acerca dos primeiros turnos de fala do diálogo em questão: o turno 3 mostra a relação estabelecida por MT entre a presença da manta impermeabilizante e a possibilidade da construção de um lago onde estava acontecendo a reforma que ele e sua investigadora observavam. MT revela compreensão da função da manta impermeabilizante na vedação de uma construção que terá contato com a água. No turno 15, MT estabelece outra relação de uso com a manta impermeabilizante, ao se lembrar desse material usado na laje da casa construída por seu tio. Considerando que informações a respeito de uma manta impermeabilizante não fazem parte de um repertório habitual de jovens na idade de MT, a possibilidade de estabelecimento de relações entre o que observava e o que se lembrava de suas vivências fica evidenciada, o que demostra atitude de atenção e uso da memória às situações das quais participava.

Para Vygotsky (1979), estabelecer relações representa um importante processo em que estão envolvidas categorias de comparação e diferenciação responsáveis pela generalização, uma função superior diretamente relacionada à formação do pensamento e, portanto, ao aprendizado. Para o autor, o pensamento se desenvolve a partir da interação social e da linguagem, quando os instrumentos linguísticos, a palavra, o sentido, incialmente vinculados à prática social imediata são abstraídos e internalizados. Vygotsky (1934) denomina por pensamento verbal a união entre pensamento e linguagem, sendo que a linguagem, além de organizar o pensamento, o compõe e o expressa.

Decorre da abordagem de linguagem adotada pela ND, como atividade, em que o sentido não é dado a priori, e sim, é construído no discurso, a concepção de sujeito histórico, heterogêneo, incompleto e constituído na e pela linguagem (Coudry, 1988). Nessa perspectiva, processos como a formação do pensamento, da memória e o desdobramento da fala interna em fala pública estão estreitamente relacionados ao contexto social em que o sujeito está inserido. Tendo em vista as complicadas relações sociais vividas por MT, tanto na escola quanto em sua família, é possível se pensar que as relações interlocutivas vivenciadas por ele foram insuficientes para a consolidação dos processos fundamentais para a regularidade e continuidade de sua aprendizagem.

Em oposição ao diagnóstico de Retardo Mental Moderado, esta reflexão possibilita a observação da disponibilidade de recursos para a continuidade do processo de seu aprendizado, bem como para a superação das dificuldades por ele apresentadas. Os encaminhamentos realizados podem ser observados nos turnos 10, 11 e 12, que se rementem à intervenção da investigadora na continuidade do trabalho com a principal questão apresentada por MT: a fala. Em tais turnos, os recursos expressivos usados por Ibb põem em questão a relação de sentido ou a relação gramatical, para, então, provocar em MT outra forma de dizer, outra organização sintática, ancoradas na expansão de seu repertório e de seu sistema de referência.

É pela fala do outro - pela repetição - que se aprende a falar e é pelo sentido da fala do outro que se atribui sentido ao que se lê. A escrita é considerada como o desdobramento da fala, sendo que ela possibilita, pela organização do pensamento, o planejamento do que se vai escrever. Em relação aos momentos iniciais do processo de alfabetização, é pela fala que se dá o conhecimento das letras, de seus nomes, de sua representação fonográfica vinculada ao sistema alfabético e de suas possibilidades de combinação (Coudry e Freire, 2010). Considerando-se que nos acompanhamentos discursivamente orientados pelo eixo fala, leitura e escrita, a fala tem papel fundamental para a aprendizagem, a priorização da superação das dificuldades enunciativas apresentadas por MT foi primordial para que ele superasse a sua condição de barrado na leitura e na escrita (Coudry e Freire, 2010; Coudry e Bordin, 2012).

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6 Conclusão

Os estudos realizados no âmbito da ND têm observado que as práticas realizadas na clínica vinculada à área da saúde, voltada para o cumprimento dos protocolos envolvidos nos testes psicométricos padronizados, e também na escola, pela habitualidade do professor com o trabalho pautado em exercícios mecânicos e atividades que priorizam a metalinguagem, têm, de fato, distanciado tais profissionais do que seria a mais importante finalidade de seus ofícios. Preocupados com o déficit e com o que não corresponde ao padrão de normalidade esperado, tais profissionais deixam de procurar e de ler “indícios de possibilidades” de aprendizados (Padilha, 1997) e não se propõe a intervir nas dificuldades apresentadas pelo sujeito, atribuindo ao seu corpo - pela vinculação da dificuldade a uma patologia - a responsabilidade pela impossibilidade de seu aprendizado.

Essa discussão é relevante, sobretudo, no que toca a fragilidade da instituição escolar brasileira assolada por sucessivos períodos marcados por políticas públicas que têm contribuído para o seu desprestígio e desqualificação. A escola, sem saber como lidar com as dificuldades escolares e com os processos de subjetivação do sujeito, tem permitido a apropriação e a deturpação pela área da medicina do que seria, fundamentalmente, do campo da educação. Os professores, ao encaminharem os alunos com dificuldades escolares para os profissionais da área da saúde, se destituem do que seria a sua principal atribuição: a aprendizagem e a construção do conhecimento.

À luz da ND e através da metodologia qualitativa do dado-achado, a intervenção de orientação discursiva do investigador nos acompanhamentos longitudinais realizados tem favorecido um posicionamento diferenciado do sujeito frente ao outro, a aprendizagem, ao mundo e ao seu futuro.

Não se quer dizer, contudo, que os caminhos percorridos por esses sujeitos sejam lineares e livres de obstáculos, de impasses e de contrariedades. Também não se nega que haja patologias de fato, mas a discussão proposta neste artigo argumenta contra o excesso de patologização e sua banalização nos dias atuais (Coudry, 2007) e enfatiza a possibilidade do enfrentamento e da superação das dificuldades escolares apresentadas por crianças e jovens através do respeito aos modos particulares de aprender e de significar desses sujeitos, uma vez que o que está em jogo são as consequências não somente na vida escolar, mas também na vida profissional e na vida afetiva.

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