Tribunal da Relação do Porto Processo nº 0456111
Relator: MARQUES PEREIRA Sessão: 18 Abril 2005
Número: RP200504180456111 Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
TRESPASSE DIREITO DE PREFERÊNCIA COMPROPRIEDADE
LITISCONSÓRCIO
Sumário
Em acção de preferência, intentada, nos termos do art. 116º, nº1, Regime do Arrendamento Urbano (RAU), na hipótese de contitularidade da posição do senhorio proprietário, por o arrendamento incidir sobre um imóvel em situação de compropriedade, é necessária a intervenção de todos os
contitulares da relação de preferência (hipótese prevista no art. 419º, nºl do Código Civil), sob pena de ilegitimidade.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Nos autos de acção de preferência, com processo sumário, do ...º Juízo, do Tribunal Judicial de Valongo, em que são Autores B...,
C... e D... e Rés E... e F..., findos os articulados, foi, logo, proferida decisão a julgar procedente a excepção da ilegitimidade activa, invocada na contestação, por, sendo caso de litisconsórcio necessário activo, faltar a intervenção, ao lado dos demais Autores, da
G..., como co-proprietária do local locado, absolvendo-se as Rés da instância. Condenaram-se os Autores nas custas, sendo a taxa de justiça reduzida a metade.
Apelaram os Autores, finalizando a sua alegação, com o enunciado das seguintes conclusões:
1 - O despacho saneador recorrido julgou procedente a excepção dilatória de
ilegitimidade activa invocada pelas Rés absolvendo-as da instância.
2 - Segundo a decisão recorrida o direito de preferência, titulado em regime de comunhão, deve ser exercido por todos os co-titulares.
3 - Esta obrigatoriedade de exercício conjunto, segundo a decisão, assenta na aplicação do n.º 1 do artigo 1405º, ex vi artigo 1404º, ambos do Código Civil.
4 - Assim, e ainda naquele entendimento, sendo quatro os comproprietários, só em conjunto - e não apenas três deles - podem exercer o direito de
preferência.
5 - Porquanto: 1) "Sendo quatro os titulares do direito de preferência, por serem todos eles co-titulares da posição jurídica de senhorio (decorrente da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel que constitui o locado), devem os mesmos exercê-lo como se de uma só pessoa se tratasse; 2º)
"Apenas quando o direito se mostre extinto em relação a algum dos contitulares se poderá admitir o seu exercício pelos demais sem estarem acompanhados daquele.
6 - Por fim, refere que tal entendimento, pugnado pela douta decisão objecto do presente recurso, "decorre da aplicação das regras gerais da comunhão de direitos, que se mostra pressuposta pelas normas previstas no art. 116 n.2 e ), do RAU."
7 - Falece-lhe, porém, a razão.
8 - As AA são, juntamente com a G..., proprietárias do prédio onde está instalado o estabelecimento comercial dado de trespasse, e, nessa qualidade são senhorias.
9 - Daí lhes advém o falado direito de preferência.
10 - Que é um direito legal de preferência, estabelecido no n.º l do artigo 116º do RAU e não um direito convencional de preferência.
11 - A norma contida no n.º 2 do artigo 116 do RAU, referindo-se aos direitos legais de preferência determina que lhes é "aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416 a 418 e 1410" todos do Código Civil.
12 - Mas só se convoca parcialmente a aplicação deste regime, ficando
afastada a aplicação da norma do artigo 419 pela falta de remissão expressa do n.2 do artigo 1409.
13 - Nem é aqui aplicável, como defende a decisão, a norma contida no artigo 1405 do Código Civil.
14 - De resto, quer esta norma quer a do artigo 1404, pela sua inserção sistemática, integram-se nas disposições gerais do instituto da
compropriedade, mas vêm seguidas da norma expressa do artigo 1409 que regula os direitos do comproprietário, concretamente no que ao exercício do direito de preferência diz respeito; e esta exclui da sua aplicação o disposto no artigo 419.
14 - Não se trata aqui de regular direitos que incidam sobre a própria coisa objecto do direito de propriedade, mas antes de um direito reflexo, qual seja o direito de preferência.
15 - Por isso e na falta de norma legal específica que imponha o exercício conjunto do direito legal de preferência, desaparece o fundamento invocado na decisão recorrida para julgar procedente a excepção dilatória de
ilegitimidade activa.
16 - Inexiste fundamento legítimo para obrigar todos a adquirir em conjunto, como seria ilegítimo impedir um só comproprietário de exercer em exclusivo tal direito.
17 - Diferente será o caso prevenido no n.º 3 do artigo 116 do RAU mas, não é o caso dos autos.
18 - A situação dos autos é tão só esta: são quatro os senhorios do
estabelecimento mas só três querem exercer o direito de preferência no trespasse, isto é, só três, embora em conjunto, querem ficar com o
estabelecimento.
19 - E isto é perfeitamente legítimo porque nenhuma norma o impede: assim mesmo tem decidido a Jurisprudência e Doutrina citadas.
20 - A decisão recorrida fez menos correcta aplicação do disposto nos artigos 1404, 1405, 1409 e 419 do Código Civil, pelo que deve ser substituída por outra que, julgando as AA partes legítimas, ordene o prosseguimento dos autos.
Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Delimitado o recurso pelas conclusões das alegações dos recorrentes (arts.
684, n.º 3 e 690, n.º 1 do CPC), a única questão a decidir é a de saber se, em acção para o exercício do direito de preferência do senhorio no trespasse por venda, intentada, nos termos do art. 116, n.º 1 do Novo Regime Jurídico do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, na hipótese de contitularidade da posição do senhorio
proprietário, por o arrendamento incidir sobre um imóvel em situação de compropriedade, há ou não litisconsórcio necessário activo.
A matéria da legitimidade activa, nas acções de preferência, é, como se sabe, de especial complexidade (o mesmo sucede, relativamente, á legitimidade passiva).
Dispõe o art. 116 do RAU, sobre os direitos do senhorio no caso de trespasse, que:
“1. - No trespasse por venda ou dação em cumprimento do estabelecimento comercial, o senhorio do prédio arrendado tem direito de preferência.
2. - É aplicável neste caso, com as necessárias adaptações, o disposto nos
artigos 416 a 418 e 1410 do Código Civil.
3. - Sempre que, por contitularidade da posição do senhorio ou pela
existência, no estabelecimento trespassado, de mais de um arrendamento, haja dois ou mais preferentes, abre-se licitação entre eles, revertendo o excesso para o alienante”.
Segundo os Recorrentes, dada a norma contida no n.º 2 do art. 116 do RAU, por falta de remissão expressa, não é aplicável, neste caso, o art. 419 do Cód.
Civil, em que, sob a epígrafe “Pluralidade de titulares”, se estabelece que:
“1. Pertencendo simultaneamente a vários titulares, o direito de preferência só pode ser exercido por todos em conjunto; mas, se o direito se extinguir em relação a algum deles, ou algum deles declarar que não o quer exercer, acresce o seu direito aos restantes.
2. Se o direito pertencer a mais de um titular, mas houver de ser exercido apenas por um deles, na falta de designação abrir-se-á licitação entre todos, revertendo o excesso para o alienante”.
O argumento que se esgrime não nos parece, no entanto, ser decisivo.
Em anotação este artigo, escreve-se no Código Civil Anotado, de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. I, 4.ª ed., p. 396:
“1. O n.º 1 prevê o caso de o direito de preferência pertencer a vários titulares conjuntamente. Neste caso, só por todos, conjuntamente, poderá ser exercido, sem prejuízo do direito de acrescer em relação aos restantes, se se extinguir em relação a algum deles, ou se algum deles declarar que não pretende preferir. Um dos casos de extinção do direito é o da morte do titular (cfr. art.
420).
Por conseguinte, se o obrigado tiver concedido preferência a três pessoas (A, B e C), não podem A e B vir exercer o seu direito sobre dois terços da coisa vendida (Vaz Serra, …).
2. O n.º 2 prevê a hipótese de, sendo vários os titulares, o direito só dever ser exercido por um deles. Proceder-se-á neste caso a licitação entre todos, salvo se se tiver estabelecido uma ordem sucessiva de preferentes ou, por qualquer outro modo, se tiver determinado a forma de escolher, entre os preferentes, o que deve preferir em primeiro lugar”.
Escreve, ainda, o Prof. Antunes Varela, em RLJ Ano 120, p. 113, que:
“O artigo 419 do Código Civil distingue, efectivamente, no caso da pluralidade de titulares do direito de preferência (tendo directamente em vista a
preferência pactícia ou convencional, mas em termos que cobrem, com as necessárias adaptações, a preferência legal atribuída a vários titulares), entre as hipóteses em que (segundo a vontade dos pactuantes) a preferência só pode ser exercida por todos em conjunto e as hipóteses em que, por força da mesma fonte, o direito de preferência, apesar de pertencer a mais de um
titular, deve ser exercido apenas por um deles”. [No sentido de que esta disposição não é aplicável em matéria de direitos legais de preferência, Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Volume III, p. 210; Vaz Serra, RLJ Ano 105, p. 160].
Pois bem, no caso dos autos, há um único direito de preferência pertencente a vários (quatro) titulares (contitularidade da posição de senhorio proprietário).
A preferência deve, assim, segundo julgamos, ser exercida, em conjunto, por todos os contitulares, em litisconsórcio necessário (activo), nos termos do art.
419, n.º 1 do Cód. Civil, [Este artigo foi adjectivado pelo disposto no art. 1459- B do CPC (que corresponde, no essencial, ao art. 1458, n.º 6, na redacção anterior ao DL n.º 329-A/95) - cfr. Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 18.ª ed., p. 1400; Lopes do Rego, Comentários ao Código de
Processo Civil, volume II, 2.ª ed., p. 320.] como reflexo do princípio segundo o qual, nas situações de compropriedade ou comunhão, os direitos nelas
integrados devem ser exercidos conjuntamente por todos os contitulares (cfr.
arts. 1404 e 1405, n.º 1 do Cód. Civil).[Neste sentido, podem ver-se, na doutrina: Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., p. 165; António Pires Henriques da Graça, A Legitimidade na Acção de Preferência, CJ Ano IX, Tomo I, p. 30. Na
jurisprudência: Ac. do STJ de 5 de Maio de 1988, BMJ 377-476; Ac. do STJ de 7 de Novembro de 1989, BMJ 391-574; Ac. do STJ de 9 de Dezembro de 1999, BMJ 492-391 (onde se dá conta das divergências jurisprudenciais sobre a matéria); Ac. do STJ de 19 de Fevereiro de 2004, de que foi Relator o Ex. m.º Senhor Juiz Conselheiro Dr. Azevedo Ramos e Ac. do STJ de 1 de Julho de 2004, de que foi Relator o Ex. m.º Senhor Juiz Conselheiro Dr. Moitinho de Almeida, estes dois últimos, em www.dgsi.pt.]
A presente acção foi instaurada, apenas, por três contitulares do direito de preferência, que pretendem exercer em conjunto o seu direito.
Não tendo, porém, alegado que o outro contitular do mesmo direito concreto de preferência não pretende preferir, restava-lhes provocar a intervenção do mesmo na acção, nos termos do art. 325, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, sob pena de ilegitimidade, o que não fizeram. [Sobre a matéria da legitimidade activa, na acção de preferência, v., ainda, RLJ Ano 115, p. 282; RLJ Ano 116, p. 282;
Oliveira Ascensão, Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo
Regime do Arrendamento Urbano, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 51, 1991, p. 62; M. Januário gomes, Arrendamentos Comerciais, 2.ª ed., p. 176;
Luís Miguel Henriques Monteiro, Direitos e Obrigações Legais de Preferência no Novo Regime Jurídico do Arrendamento Urbano (RAU), Mestrado em
Ciências Jurídicas, Lisboa, 1992; M. Januário Gomes, Cessão da Posição do Arrendatário e Direito de Preferência do Senhorio, Estudos em Homenagem
ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles, volume III, Direito do
Arrendamento Urbano, p. 493; Jorge Alberto Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª ed., p. 698; António Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano (RAU), 6.ª ed., p. 334; Fernando de Gravato Morais, Alienação e Oneração do Estabelecimento Comercial, p. 88.
Em particular, sobre a contitularidade de direitos subjectivos, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2005, 3.ª ed., p. 676]
Pelo que, decidiu bem o Ex. m.º Juiz “a quo”, ao considerar verificada a
excepção dilatória da ilegitimidade activa, absolvendo as Rés da instância, nos termos dos arts. 28, n.º 1, 288, n.º 1, al. d), 494, al. e) e 495, todos do Cód.
Proc. Civil.
Conclusão:
Em acção de preferência, intentada, nos termos do art. 116, n.º 1 do Novo Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321- B/90, de 15 de Outubro, na hipótese de contitularidade da posição do senhorio proprietário, por o arrendamento incidir sobre um imóvel em situação de compropriedade, é necessária a intervenção de todos os contitulares da
relação de preferência (hipótese prevista no art. 419, n.º 1 do Cód. Civil), sob pena de ilegitimidade.
Decisão:
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas, em ambas as instâncias, pelos Autores.
Porto 18 de Abril de 2005
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira Manuel José Caimoto Jácome
Carlos Alberto Macedo Domingos