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MARIA MONFORTE: A MULHER, O ADULTÉRIO E A CRÍTICA AO ROMANTISMO NA OBRA DE EÇA DE QUEIRÓS

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MARIA MONFORTE:

A MULHER, O ADULTÉRIO E A CRÍTICA AO ROMANTISMO NA OBRA DE EÇA DE QUEIRÓS

Bianca do Rocio Vogler (doutoranda) – Universidade de Coimbra

Resumo: Simone de Beauvoir, em sua obra fundamental O Segundo Sexo, ao abordar a vida da mulher casada, aborda a questão do adultério, acerca do qual traz a consideração de que “O casamento, frustrando a mulher da satisfação erótica, recusando-lhe a liberdade e a singularidade dos seus sentimentos, condu-la, através de uma dialéctica necessária e irónica, ao adultério.” (Beauvoir, 1976, p. 361). Tendo em conta tal consideração da intelectual francesa, procura-se realizar, neste artigo, uma abordagem acerca da personagem Maria Monforte, do romance Os Maias, do escritor português Eça de Queirós. Para tanto, deve-se partir de uma observação sobre o modo como se configuram as figuras femininas na obra de Eça, buscando-se compreender de que forma a crítica do escritor ao Romantismo está presente na composição das mesmas.

Essa crítica eciana se apresenta, recorrentemente, nos seus textos, a partir da questão do adultério ligada às suas personagens femininas. A partir disso, portanto, se observará a caracterização que a Monforte possui n’Os Maias, como está inserida no universo romântico que compõe tal obra e a influência que detém com relação aos fatos trágicos da narrativa.

Palavras-chave: Eça de Queirós, Personagens femininas, Romantismo, Maria Monforte, Adultério.

Abstract: Simone de Beauvoir, in her fundamental work The Second Sex, when approaching the life of the married woman, addresses the question of adultery, about which brings the consideration that “Marriage, frustrating the woman of erotic satisfaction, refusing her freedom And the uniqueness of his feelings, leads him through a necessary and ironic dialectic to adultery.” (Beauvoir, 1976, 361). Taking into account such a consideration of the French intellectual, in this article we try to make an approach about the character Maria Monforte, of the novel Os Maias, by the Portuguese writer Eça de Queirós. To do so, we must start with an observation about the way in which the female figures are configured in the work of Eça, seeking to understand how the writer's criticism of Romanticism is present in their composition.

This Ecian critique is recurrently presented in his texts, from the question of adultery linked to his female characters. From this, therefore, one will observe the characterization that Monforte possesses in Os Maias, as it is inserted in the romantic universe that composes such work and the influence that it holds in relation to the tragic facts of the narrative.

Key words: Eça de Queirós, Female characters, Romanticism, Maria Monforte, Adultery.

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1. O Romantismo em Eça

Em 1878, Eça de Queirós escreve uma carta ao amigo Teófilo Braga, na qual revela o seguinte:

A minha ambição seria pintar a Sociedade portuguesa, tal qual a fez o Constitucionalismo desde 1830 – e mostrar-lhe, como num espelho, que triste país eles formam, eles e elas. É o meu fim nas Cenas da Vida Portuguesa. É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso – e com todo o respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e falsas realizações que lhes dá uma sociedade podre. (QUEIROZ, 1979, p. 517).

Essas “Cenas da Vida Portuguesa” a que o escritor se refere eram um seu projeto que constava de 12 títulos, sendo eles: A Capital; O Milagre do Vale de Reriz; A Linda Augusta; O Rabecaz; O Bom Salomão; A Casa nº 16; O Gorjão, primeira dama; A Ilustre Família Estarreja; A Assembleia da Foz; O Conspirador Matias; História dum Grande Homem; e Os Maias.

No entanto, de todos esses títulos, apenas Os Maias e A Capital foram concretizados, havendo, contudo, “[...] a sugestão de que A Ilustre Família Estarreja e História dum Grande Homem ‘escondem’ provavelmente A Ilustre Casa de Ramires e O Conde d’Abranhos.” (REIS, 2009, p. 19).

Assim, Os Maias enquadra-se nessa busca de Eça por “pintar a Sociedade portuguesa” da época e seus indivíduos nas suas feições decadentes, sendo que nesse romance a temática escolhida para ser enfocada é a do Romantismo, o que já se vê no próprio subtítulo que o escritor dá à obra, “Episódios da Vida Romântica”, “[...]

apontando claramente para a representação de um mundo social amplo e culturalmente dominado pelo Romantismo [...].” (REIS, 2009, p. 43).

E essa evocação do Romantismo e da sua influência na configuração da sociedade portuguesa é constante nos textos ecianos, seja nos ficcionais, seja nos jornalísticos e mesmo nas suas correspondências, estabelecendo-se, assim, esse aspecto como o principal caracterizador das suas personagens e do determinismo que as afeta.

Configurando-se, então, como uma espécie de “alvo” primordial da crítica de Eça ao longo de toda a sua obra, o Romantismo acaba por assumir, em diversos textos, uma

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personificação, sendo apresentado por meio de uma personagem, ou personagens, em especial no que diz respeito às figuras emblemáticas dos seus poetas românticos e das suas mulheres adúlteras.

Tal crítica também acaba por ser permeada por um reconhecimento do escritor quanto à profunda ligação dessa sociedade que pinta em seus textos com esse caráter romântico. E é n’Os Maias, como aponta Reis ao abordar a questão do subtítulo da obra, que o Romantismo assume sua feição mais significativa, se instaurando como o lugar incontornável.

A disputa entre românticos e realistas é um dos episódios principais (se não o principal) da história da literatura portuguesa, iniciando-se em 1865, com a Questão Coimbrã, e tendo em 1871, nas Conferências do Casino, um evento bastante significativo, sendo este o momento em que Eça de Queirós profere a conferência intitulada “A literatura nova – O Realismo como nova expressão da arte”, na qual faz a defesa da escola realista, contrapondo-a à romântica:

[...] o romantismo era a apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do carácter.

É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade. (REIS, 1990, p. 140).

Assim como na carta enviada a Teófilo Braga, essa conferência evidencia o objetivo de Eça, bem como de seus colegas de escola literária, de pintar a sua sociedade em todos os seus defeitos, expondo aos olhos de tais indivíduos a mediocridade e a dissimulação dos seus comportamentos.

E nesse trecho da sua conferência, já podemos identificar, também, a componente que perpassa toda a escrita eciana: a crítica ao Romantismo a partir do olhar determinista advindo do Realismo. Sua perspectiva com relação à literatura romântica é a de que esta se apresenta como um meio inspirador de um sentimentalismo corrosivo e alienante, o que só poderia ser combatido por meio de um olhar realista revelador de todos os males e fraquezas dos homens e mulheres dessa sociedade.

Nesse sentido, Maria Manuel Lisboa, em Teu amor fez de mim um lago triste, ressalta que:

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O romantismo foi o paradigma em oposição ao qual não só Eça mas também todos os seus mestres e correligionários desempenharam as suas atividades literárias e sócio- reformistas. Como nos ensina a teoria desse género literário e desse período, contudo, o entendimento do romance naturalista, e sem qualquer dúvida do romance queirosiano, tem necessariamente de ser remetido à tradição literária que o antecedeu.

(LISBOA, 2000, p. 339).

Essa necessidade, observada pela autora, de os escritores realistas, e mesmo dos naturalistas, estarem em um movimento constante de evocação do Romantismo estabelece, principalmente no tocante à obra de Eça, um motivo recorrente que se transforma em uma espécie de “obsessão”: a desestruturação da literatura e do pensamento românticos que veem como motivos da decadência daquele meio social em que estão inseridos.

Contudo, tal “obsessão” acaba por determinar a recorrente presença de um caráter romântico na escrita de Eça de Queirós e, por fim, especialmente no que diz respeito a’Os Maias, a sua conclusão de que esse Romantismo contra o qual ele e a sua geração haviam se erguido seria impossível de ser evitado, pois constitui todo o pensamento de tal sociedade.

E é possível observar uma forma distinta com que o Romantismo está presente nos principais romances de Eça, já que naquelas obras de maior influência de uma visão realista e naturalista, nomeadamente O crime do padre Amaro e O primo Basílio, a consideração do escritor português acerca desse caráter romântico que permeia a sociedade portuguesa se dá em uma perspectiva de crítica da literatura romântica e consideração da necessidade de uma mudança de comportamento dos indivíduos desse meio social.

Em contrapartida, n’Os Maias, o que se vê é um Romantismo que está impregnado na cultura dessa sociedade, como motivo que rege esses indivíduos e ao encontro do qual caminham todos, inevitavelmente, mesmo que lutem contra isso, como é o caso de Afonso da Maia e de João da Ega no romance e do próprio Eça nas suas experiências literárias.

Assim, o peso que o Romantismo possui nessa sociedade caracterizada n’Os Maias será refletido, então, na constituição do mesmo como o destino nesse romance, o destino inelutável contra o qual Afonso da Maia se opõe, tentando driblá-lo, mas que

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irremediavelmente o atingirá por meio do filho e, principalmente, do neto: “E afastou- se, todo dobrado sobre a bengala, vencido enfim por aquele implacável destino que, depois de o ter ferido na idade da força com a desgraça do filho – o esmagava ao fim da velhice com a desgraça do neto.” (QUEIRÓS, 2014, p. 499).

Assim, vemos que as críticas do patriarca a um sentimentalismo resultante tanto da religiosidade quanto dos valores românticos, e a sua busca por tornar o neto um ser racional não afetável por tais aspectos que vê permearem aquele meio social, são desestruturadas quando percebe que suas instâncias haviam sido inúteis, pois aquele meio e seus indivíduos estavam, inevitavelmente, destinados a tal sentimentalismo ao mesmo tempo corrosivo e estruturador dessa identidade portuguesa:

O português nunca pode ser homem de ideias, por causa da paixão da forma. A sua mania é fazer belas frases, ver-lhes o brilho, sentir-lhes a música. Se for necessário falsear a ideia, deixá-la incompleta, exagerá-la, para a frase ganhar em beleza, o desgraçado não hesita... Vá pela água abaixo o pensamento, mas salve-se a bela frase.

(QUEIRÓS, 2014, p. 205).

E, desse modo, observa-se que o caráter problemático do Romantismo na escrita eciana se apresenta com toda a sua singularidade n’Os Maias, onde Eça fará desse elemento o motivo norteador de toda a ação, influenciando a caracterização das principais personagens e exercendo o papel fundamental no desenlace trágico da narrativa.

Há a necessidade de se considerar, portanto, o fato de que, enquanto está no processo de elaboração d’Os Maias, o escritor português se vê em meio a uma diversidade de conflitos que se mostram importantes para que ele estabeleça a empresa de algumas modificações de dados aspectos da sua escrita.

Assim, a decadência dos valores das escolas realista e naturalista e a ascensão e predominância de uma nova compreensão da escrita literária se apresentam como um aspecto relevante para que o escritor português realize, nesse romance caracterizado por um longo processo de criação, uma importante mescla de características.

Dessa forma, tal romance é construído a partir de uma influência das tragédias clássicas e, nesse sentido, o destino que inevitavelmente atinge o herói, no caso a família Maia, se dá como esse Romantismo que permeia os comportamentos dos

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indivíduos daquela sociedade. E a presença desses elementos próprios às tragédias clássicas n’Os Maias dá a ver, então, as transformações que tanto a escrita quanto a perspectiva realista de Eça sofrem no processo de composição dessa obra.

Então, ao mesclar uma visão determinista com tais elementos, o escritor não se afasta completamente de uma estética realista e naturalista, mas aponta para uma reconsideração da mesma e das possibilidades literárias que detém para estabelecer as mudanças na sua ideologia e no seu estilo.

Percebe-se, então, nesse romance, uma confluência entre as críticas de Eça à visão romântica e a reflexão a que chega de que tal visão inevitavelmente estrutura a sociedade portuguesa e o pensamento até mesmo dele e de seus companheiros realistas.

E esse aspecto pode ser observado, inclusive, n’Os Maias, na consideração final daquela personagem vista como o mais fiel autorretrato do escritor, o irreverente João da Ega:

Uma comoção passou-lhe na alma, murmurou, travando do braço do Ega:

– É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!

Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida – a paixão.

– Muitas outras coisas dão valor à vida... Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega!

– E que somos nós? – exclamou Ega. – Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão...

Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até o fim...

– Creio que não – disse Ega. – Por fora, à vista, são desconsoladores. E por dentro, para eles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que neste lindo mundo ou tem de se ser insensato ou sem sabor... (QUEIRÓS, 2014, p. 550).

Assim, aquela crítica realizada por Eça de Queirós na sua conferência no Casino Lisbonense acerca da superioridade da razão sobre a emoção, do Realismo sobre o Romantismo, é revista sob uma nova perspectiva a partir das conclusões a que chegam Ega e Carlos no final do romance, considerando, então, a inevitabilidade de se ser influenciado por essa visão romântica.

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2. Eça e o adultério: o Romantismo nas suas personagens femininas

Partindo, assim, dessas considerações acerca da forma como está estruturada a crítica ao Romantismo na escrita de Eça de Queirós, tendo-se em especial atenção de que modo isso se dá no romance Os Maias, é possível passar a uma ponderação sobre o tratamento que o escritor dá às suas personagens femininas, sendo que esse fator está intrinsecamente ligado à sua visão relativamente aos valores românticos impregnados na sociedade portuguesa que pinta em seus textos.

Nesse sentido, a crítica acerca da presença de uma misoginia na obra do escritor português se baseia em uma compreensão de que as suas personagens femininas são caracterizadas de um modo secundário e negativo em seus escritos. Porém, tal crítica deixa de observar que essa negatividade está presente quase na totalidade da figuração de suas personagens, sejam elas femininas ou masculinas.

E quanto à secundaridade, deve-se ter em conta o momento e o lugar que o escritor narra, já que, inserido no Portugal dos finais do século XIX, Eça, mesmo em consequência da sua influência realista e naturalista, reflete a sociedade portuguesa da época e as formas como se inscrevem os indivíduos nessa sociedade decadente e regida por um patriarcalismo fixado nos valores do passado.

Tendo em conta tal ponderação, Carlos Reis afirma, no livro Eça de Queirós, que:

[...] a visão queirosiana da mulher apresenta-se-nos retrógrada e parcial; relacionada com a doxa dominante e com o decurso da evolução sócio-cultural da época, a imagem queirosiana da mulher assume a feição de um testemunho crítico, sustentado pelas representações então dominantes e condicionado pelo ponto de vista masculino que o elaborava. É decerto esse ponto de vista masculino, afetado pela tensão entre impulsos sexuais e interdições morais, que determina uma imagem da mulher como mistério e como contradição [...]. (REIS, 2009, 218-219).

Além disso, a crítica constante que Eça de Queirós realiza ao Romantismo é refletida na figuração das suas personagens femininas, que, submetidas ao olhar masculino, são afetadas por uma idealização romântica. Como afirma Maria Manuel Lisboa, em Teu amor fez de mim um lago triste,

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As invectivas de Eça contra o sentimentalismo relambido dos românticos são claras e dispensam interpretação: o romantismo encapsulado na literatura piegas do ridículo Alencar e seus correligionários é responsabilizada pela queda moral das mulheres que os lêem, nomeadamente Luísa e Maria de Monforte. (LISBOA, 2000, p. 342).

E é dessa submissão aos valores românticos que se configura um dos principais temas de caracterização da mulher na obra eciana: o adultério. Tal temática acaba por erigir uma compreensão da mulher como lugar da irracionalidade, do descontrole baseado na emoção e de desestabilização dos valores morais daquela sociedade. E Carlos Reis, ao abordar esse tema, evidencia que

[...] o adultério, tal como surge elaborado na obra de Eça de Queirós, traduz um juízo crítico muito severo (e de certa forma parcial) em relação à mulher; mais alargadamente, ele pode ser considerado como evidência de uma situação de decadência que afeta sobretudo a sociedade burguesa e as suas instituições. (REIS, 2009, p. 192).

Nessa perspectiva, a associação do feminino como um motivo da decadência desses valores pode ser percebida nesse trecho de Reis, além da submissão ao comportamento masculino a que está relegado, sendo que

[...] o sentimento amoroso associa-se à questão da educação, pelas deficiências que nesta são denunciadas; o adultério é uma sua consequência negativa, relacionado também com o bovarismo que afeta algumas das mulheres queirosianas, sujeitas a processos de sedução provindas do donjuanismo próprio de certas personagens masculinas. (REIS, 2009, p. 193).

Assim, nesse movimento de crítica ao Romantismo e à sociedade portuguesa regida por esses valores românticos, Eça de Queirós empreende a figuração do feminino em um formato determinista pautado no pensamento patriarcal que configura o século XIX.

Em tal sentido, Monica Figueiredo, no posfácio intitulado “Por entre desencontros, enganos e ruínas: a vitória da ficção”, afirma que,

Numa sociedade marcadamente “falocêntrica”, são as personagens femininas aquelas que mais têm de lutar por seus desejos: solteironas, beatas, viúvas, criadas desprezadas, adúlteras endinheiradas, prostitutas espanholas, mulheres avant la lettre ou humanas heroínas são peças fundamentais desta “vasta machine” que denuncia o difícil lugar ocupado pelo feminino num século destinado aos homens.

(FIGUEIREDO, 2014, p. 563).

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É de extrema importância, portanto, compreender que a construção das personagens femininas na obra de Eça está submetida ao momento histórico em que o escritor se insere, assim como, e principalmente, aos pressupostos estéticos e ideológicos das escolas realista e naturalista a que ele está ligado.

Nesse viés, Maria Manuel Lisboa, em Teu amor fez de mim um lago triste, faz uma ponderação relativa ao modo como se inscreve a figura da mulher em uma visão naturalista, apontando, então, para o fato de que

A fórmula naturalista subentende-se então como tendo implicitamente exigido a Eça uma misoginia desiludida que, em qualquer caso, continuava (e invertia) o debate em volta das prévias categorias sexuais-morais do romantismo. Para os românticos, a emoção tinha ficado indelevelmente igualada a um elemento feminino idealizado, e a razão ao domínio masculino livre-pensador e corrupto. O naturalismo preservava esta distribuição de pelouros, mas, ao fomentar o culto da razão, invertia a atribuição de culpas e virtudes que o romantismo, ao menosprezar a razão e ao apoteotizar os méritos da emoção descontrolada, tinha associado aos dois termos do binómio sexual.

No universo naturalista queirosiano, por conseguinte, a mulher (precisamente devido ao seu monopólio sobre a emotividade) perde o potencial mariânico e redentor que o romantismo lhe atribuía, e passa a sustentar mais explicitamente que o homem o fardo de responsabilidade irracional e pecaminosa que este, só muito menos substancialmente, iria compartilhar. (LISBOA, 2000, p. 367-368).

É, portanto, a partir desse predomínio de um olhar realista e naturalista que a condição feminina será narrada pelo escritor português, no que, ao apresentar uma constante e áspera crítica ao Romantismo e às visões que tal escola literária estabelecia, acaba por trazer a condição feminina como uma concatenação do pensamento masculino. Assim, estando submetidas à hegemonia do poder patriarcal daquela sociedade, as personagens femininas de Eça estão enredadas por esse processo de degradação que os valores românticos impõem a tal sociedade, sendo o adultério o meio primordial de materialização do sentimentalismo a que são votadas.

3. Maria Monforte: o adultério como revolta

E é n’Os Maias, obra-prima do escritor português, que essa configuração do feminino submetido a tais convenções se apresenta com maior particularidade,

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principalmente, em minha perspectiva, no que diz respeito à personagem Maria Monforte, sendo ela que se vê afetada de forma mais profunda por essas configurações de um racional dominado pelo masculino.

A impossibilidade de desassociar a figura de Maria da do pai, Manuel Monforte, assim como do passado de negreiro deste, é o ponto fundamental para a oposição estabelecida por Afonso da Maia, e por grande parte daquela sociedade lisboeta, com relação a ela, sendo tal oposição o motivador inicial para o desenrolar dos acontecimentos funestos que atingem a família Maia.

Essa associação da figura da Monforte aos comportamentos das personagens masculinas também pode ser vista na relação dela com o poeta Tomás de Alencar, o qual personifica os valores românticos e assume uma grande influência no processo de transformação de Maria, transformação que a encaminha para uma espécie de bovarismo e, consequentemente, para o adultério e a fuga em que leva a filha, possibilitando, assim, o incesto de Carlos e Maria Eduarda.

Passagem caraterística de tal influência pode ser vista quando Tomás de Alencar aconselha à Maria Monforte dadas leituras, sendo de uma delas que ela tirará o nome do filho, Carlos Eduardo, escolha que, posteriormente, ficaremos sabendo ter sido incentivada pelo poeta:

Andava lendo uma novela de que era herói o último Stuart, o romanesco príncipe Carlos Eduardo; e, namorada dele, das suas aventuras e desgraças, queria dar esse nome a seu filho... Carlos Eduardo da Maia! Um tal nome parecia-lhe conter todo um destino de amores e façanhas. (QUEIRÓS, 2014, p. 36).

– Teu pai – dizia ele – o meu Pedro, queria-te pôr o nome de Afonso, desse santo, desse varão de outras idades, Afonso da Maia! Mas tua mãe, que tinha lá as suas ideias, teimou em que havias de ser Carlos. E justamente por causa de um romance que eu lhe emprestara; nesses tempos podia-se emprestar romances a senhoras, ainda não havia a pústula e o pus... [...]. Enfim, adiante! Tua mãe, devo dizê-lo, tinha literatura e da melhor. (QUEIRÓS, 2014, p. 132).

E é logo em seguida a essa leitura romântica feita por Maria que vemos entrar em cena Tancredo, o príncipe italiano com o qual ela foge levando a filha, ou seja, a personificação do ideal que os romances românticos lhe apresentam: “Toda essa noite Maria dormiu mal, na excitação vaga que lhe dava aquela ideia de um príncipe

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entusiasta, conspirador, condenado à morte, ferido agora, por cima do seu quarto.”

(QUEIRÓS, 2014, p. 37).

Assim, a caracterização da Monforte está submetida à influência do Romantismo de que Tomás de Alencar é representante, ou seja, está submetida ao olhar masculino acerca do feminino e às transformações que esse olhar implica, transformações que provocam os acontecimentos trágicos da narrativa.

Nesse romance, então, a inserção de elementos próprios às tragédias clássicas mesclados aos recursos do Realismo e do Naturalismo implicam na configuração das personagens marcadas por uma tragicidade e pela representação.

Dessa forma, Maria Monforte se instaura como uma figura de oposição a Afonso da Maia, ou seja, a figura da mulher que se coloca como um meio de oposição a um patriarcado fixado no passado da nação portuguesa. E nesse confronto, a Monforte ausenta-se da narrativa logo no segundo capítulo, para só voltar a ela por meio de algumas referências feitas pelas demais personagens, ou, ainda, por meio da presença da figura da filha, Maria Eduarda. Nesse viés, Maria Manuel Lisboa explica que

A mãe, cuja presença enfraquece o poderio masculino paterno, é excluída, deposta, ou, quando tudo o mais fracassa, morta. É esta a táctica adoptada em relação à Monforte por Afonso, que primeiro a recusa enquanto nora, depois a rejeita como adúltera, e por fim a declara morta ao neto que ela lhe abandonou. A estratégia, no entanto, fracassa. O regresso incestuoso da mãe por intermédio da filha viola com sucesso um tabu, o incesto, cuja força é tal que até consegue reconciliar as posições habitualmente opostas da teologia e da ciência [...]. (LISBOA, 2000, p. 153).

Essa consideração feita por Lisboa aponta para uma possibilidade da constituição dessa personagem como lugar de confronto aos valores desse poderio masculino paterno representados, principalmente, pela figura de Afonso da Maia. Mas, nesse confronto, Maria não possui voz, e as suas ações que resultam no final trágico do nome Maia estão implicadas, como visto anteriormente, à atuação das personagens masculinas sobre ela, sendo, nesse sentido, o adultério o meio de instauração dessa espécie de revolta com relação a tal poder a que está submetida.

Nessa perspectiva, é possível recorrer ao que Simone de Beauvoir, em seu livro fundamental O segundo sexo, aponta relativamente à temática do adultério, quando, no primeiro volume dessa obra, intitulado “Os factos e os mitos”, evidencia que,

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Ela é infiel para além mesmo dos seus desejos e pensamentos, da sua consciência;

pelo facto de ser encarada como objecto está entregue a toda a subjectividade que resolve apossar-se dela; encerrada no harém, escondida sob véus, nem assim se tem a certeza de que não inspire desejos a alguém: inspirar desejo a um estranho já é estar em falta com o marido e com a sociedade. Demais, pela mentira e pelo adultério que pode provar que não é a propriedade de ninguém e desmentir as pretensões do homem. (BEAUVOIR, 1975, p. 268).

É nesse sentido que se pode compreender a atitude que leva Maria Monforte ao adultério, como uma forma de afirmação contra a opressão que sente com relação às figuras masculinas que a rodeiam. Tal atitude se torna fundamental no desenrolar dos eventos principais da narrativa, os quais levam à morte de Afonso da Maia e a uma derrocada final dos Maias e do nome patriarcal por excelência.

Referências Bibliográficas

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo I: Os factos e os mitos. (Tradução de Sérgio Milliet). Lisboa: Livraria Bertrand, 1975.

FIGUEIREDO, Monica. Por entre desencontros, enganos e ruínas: a vitória da ficção.

In: QUEIRÓS, Eça de. Os Maias: episódios da vida romântica. (Edição comentada e ilustrada). Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

LISBOA, Maria Manuel. Teu amor fez de mim um lago triste: ensaios sobre “Os Maias”. Porto: Campo das Letras, 2000.

QUEIRÓS, Eça de. Os Maias: episódios da vida romântica. (Edição comentada e ilustrada). Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

QUEIROZ, Eça de. Obras de Eça de Queiroz. Porto: Lello e Irmão Editores, 1979, vol. III.

REIS, Carlos. As conferências do Casino. Lisboa: Alfa, 1990.

__________. Eça de Queirós. Lisboa: Edições 70, 2009.

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Referências

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