• Nenhum resultado encontrado

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Ciências Sociais

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Ciências Sociais"

Copied!
44
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Ciências Sociais

Daíse Marcela Benatti Barbosa Aranha

DONAS DE SI:

as vozes que cantam contra a violência de gênero

Guarulhos 2021

(2)

DAÍSE MARCELA BENATTI BARBOSA ARANHA

DONAS DE SI: AS VOZES QUE CANTAM CONTRA A VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais.

Orientadora: Prof.ª. Dra. Marcia Regina Tosta Dias

Guarulhos 2021

(3)

DAÍSE MARCELA BENATTI BARBOSA ARANHA

DONAS DE SI: AS VOZES QUE CANTAM CONTRA A VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais.

Aprovado em: ___/___/___

__________________________________________________________________________

Prof.ª. Drª. Tatiana Savoia Landini

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

__________________________________________________________________________

Prof.ª. Drª. Marcia Regina Tosta Dias UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

(4)

Às pessoas mais importantes de minha vida: minha mãe, Jussara, e meu pai, Genésio. Meu pai, cujo maior sonho era ver a mim e meu irmão formados e estudados. Minha mãe, a luz da minha vida, que moveu mares e rios para me fornecer a melhor educação possível, me apoiando e me incentivando em cada segundo de sua vida. Onde quer que vocês estejam, espero que sintam orgulho de sua filha. Nada neste mundo pode suprir a falta que vocês me fazem. Daqui deste plano, eu seguirei honrando seus nomes e dando o melhor de mim em tudo o que eu faço, porque é isto que vocês me ensinaram. Obrigada pela vida maravilhosa que vocês me proporcionaram. Gratidão é pouco para o que eu sinto.

Às mulheres artistas, que fazem do palco seu campo de luta diária e encontraram na música uma saída.

(5)

AGRADECIMENTOS

À minha companheira, o grande amor da minha vida e melhor amiga, Ana, que desde o começo do nosso namoro segue apoiando as minhas ideias, sejam elas quais forem. A vida ao seu lado é muito mais linda do que qualquer outra coisa que eu pudesse imaginar. Obrigada por todas as conversas, por cuidar de mim com tanto amor e topar viver as mais diversas aventuras ao meu lado. Eu te amo demais e ainda vou me casar com você. Sou extremamente apaixonada por você, seu sorriso lindo, seu coração bondoso e sua mente brilhante.

À minha orientadora, Marcia, quem me acompanha desde 2014, ano em que ingressei em meu primeiro curso do ensino superior, e que me inspira a ser uma grande socióloga neste país onde a educação é, a cada dia que passa em meio a este desgoverno, o maior alvo de ataques vindos de todos os lados. A educação é a única maneira para sairmos do buraco em que nos colocaram. Se eu puder ser metade do que você é, saberei que estou no caminho certo. Obrigada por todas as aulas, conversas, grandiosas trocas e ensinamentos que você me passou.

Às minhas queridas amigas, Daniela Olorruama, Clariane Costa, Luiza Benfatti, Nathalia Miranda, Vanessa Magalhães, Thainá Batista, Gabriela Justino, Regiane Novais e Juliana Correia, que são, além disso, a segunda família que a vida e a Unifesp me deram. Seja em Guarulhos ou em São Paulo, juntas, somos mais fortes. Obrigada por todas as risadas, pelo acolhimento, puxões de orelha - quando necessário - carinho e todo aprendizado que proporcionamos umas às outras. Aos meus amigos de São Manuel, Carlos Reis, Elder Dias e Felipe Medeiros, verdadeiros irmãos que a música me trouxe quando éramos mais novos, e tudo o que queríamos fazer era tocar alguns instrumentos, sem as preocupações da vida adulta. Com vocês, volto facilmente a ser criança. Seguiremos juntos, meus irmãos.

E, por fim, à minha família linda e amada, por nunca me desampararem, pelo carinho constante e pela força que me dão em tudo o que eu me proponha a fazer. Vocês são incríveis.

Em especial à minha tia Marjorie, que desde que eu era apenas uma criança, colocou em minha cabeça que, quando eu crescesse e quisesse estudar em São Paulo, eu moraria com ela - o que você fez com muito amor e maestria. Ao meu irmão mais velho, Diogenes, que influenciou meu gosto musical e compartilhou comigo seus anseios e sua vida. Ao meu tio Ipojucan que, quando eu tinha por volta dos meus oito anos, também influenciou meu gosto musical e me ensinou a tocar meus primeiros riffs no violão - nunca me esquecerei do dia em que você foi me buscar na escola com o Fusca branco de sua mãe, minha avó, e colocou uma fita do The Doors, dizendo: “Dadinha, escuta isso. Isso aqui é música boa!”. À minha avó, Diva, por se fazer

(6)

presente mesmo com os vários quilômetros de distância que nos separam para que eu possa continuar estudando, nunca me deixando faltar amor - você é maravilhosa. Guardo com carinho todos os ensinamentos e conselhos que me dá. E à minha tia Sullien, por defender com unhas e dentes as pessoas que ama, principalmente quando se trata de seus sobrinhos. Seu coração é lindo e gigantesco. Estarei sempre com vocês. A música corre em nossas veias, e sem vocês, nada disso seria possível. Fica aqui o meu amor registrado.

(7)

RESUMO

O presente trabalho apresenta resultado de reflexão sobre a condição feminina, particularmente sobre sua exposição a situações de violência, tal como é possível ver retratadas em uma das principais formas da produção e da prática cultural brasileira: a música popular gravada. As letras das canções “Jogadeira” (Cacau Fernandes e Gabi Kivitz, 2019), “Dona de Mim” (Iza, 2018) e “Desconstruindo Amélia” (Pitty, 2009), bem como algumas de suas características musicais serão objeto de análise e reflexão, considerando a trama de temas relativos às mulheres, música, cultura, economia, gênero, raça, sexualidade e relações de poder.

Não se trata simplesmente de examinar letras de cunho machista, mas sim de observar o discurso feminista presente nas letras em variados estilos musicais (interpretadas ou compostas por mulheres) evidenciando o posicionamento das mulheres ao romperem com a naturalização do machismo e da banalização da violência no cenário brasileiro que emergiu nos anos 2000 até os dias atuais.

Palavras-chave: violência de gênero; violência contra a mulher; música; música popular gravada; feminismo; indústria fonográfica brasileira.

ABSTRACT

This work presents the result of reflection on the female condition, particularly on its exposure to situations of violence, as it is possible to see portrayed in one of the main forms of Brazilian production and cultural practice: recorded popular music. The lyrics of the songs

"Jogadeira" (Cacau Fernandes and Gabi Kivitz, 2019), "Dona de Mim" (Iza, 2018) and

"Desconstruindo Amélia" (Pitty, 2009), as well as some of their musical characteristics will be the subject of analysis and reflection, considering the plot of themes related to women, music, culture, economy, gender, race, sexuality and power relations. It is not simply a question of examining lyrics of a sexist nature, but of observing the feminist discourse present in the lyrics in various musical styles (interpreted or composed by women) highlighting the position of women in breaking with the naturalization of sexism and the trivialization of violence in the Brazilian scenario that emerged in the 2000s to the present day.

Keywords: gender violence; violence against women; music; recorded popular music;

feminism; Brazilian phonographic industry.

(8)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 8

PARTE UM – JOGADEIRA ... 16

PARTE DOIS – DONA DE MIM ... 23

PARTE TRÊS – DESCONSTRUINDO AMÉLIA ... 30

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 37

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 41

(9)

INTRODUÇÃO

A música popular gravada é um dos frutos da sociedade capitalista moderna, da industrialização da cultura e do mercado de massas, de acordo com Marcos Napolitano, em seu livro A Síncope das Ideias (2007). Em suas características próprias, a música popular, tanto aquela apresentada ao vivo, como na forma gravada, constitui manifestação cultural tradicional que se renova constantemente. No caso brasileiro, a música popular está inserida no cerne da população, na essência desta, sendo reconhecida como um produto cultural de grande relevância desde o início do século XX até os nossos dias.

Na cidade do Rio de Janeiro, assistiu-se à expansão, no início do século passado, de novas opções de entretenimento, dentre eles, cinemas, teatros, cafés-concertos, casas de chope, circos e casas de músicas. O que todos esses estabelecimentos possuíam em comum é o fato de que estavam associados a espaços que ofereciam lazer, entretenimento, divertimento e música, com grande diversidade de ritmos musicais. Além da intensa movimentação cultural, esse cenário repleto de novidades gerou trocas aceleradas de informações e possibilidades de transações comerciais com o surgimento de novas redes de negócios e relações, que envolviam casas comerciais, empresas estrangeiras, consumidores e artistas ligados ao universo musical, o que acabou se expandindo também a outros estados brasileiros. Sendo assim, com os modernos aparelhos de reprodução de músicas gravadas que chegavam em território brasileiro, surge uma alteração no modo como os e as artistas se apresentavam, interagiam e percebiam o mundo (GONÇALVES, 2011). A música ampliava a experiência perceptiva no interior do lar, alterando a rotina diária, compartilhando a canção com toda a família. Segundo Gonçalves (2011, p. 107):

as mídias sonoras afetaram a percepção dos ouvintes de forma avassaladora. As máquinas falantes deram mais autonomia ao som. Este passou a ser ouvido em qualquer lugar da casa, nas ruas e estabelecimentos, distante do seu local original de produção. Esse processo único possibilitou, pela primeira vez na história, a libertação do som do espaço e do tempo.

Ora, com a música popular notabilizada e exaltada pela audiência, pelos críticos e intelectuais, Marcos Napolitano (2007) entende que a tradição (que forma a identidade nacional moderna) foi criada e, de certa forma, “inventada” - pois os processos de invenção e criação dessa tradição se deram em meio a muitos conflitos, contradições e mediações, o que formou uma identidade que leva aspectos locais e universais, nacionais e estrangeiros, orais e letrados, tradicionais e modernos, dos quais determinados elementos acabaram sendo excluídos,

(10)

esquecidos ou agregados a outros (NAPOLITANO, 2007), resultando no que hoje temos como a nossa tradição cultural de música popular. Sendo assim, no nascimento dessa tradição musical, sua base, em meados de 1930 e 1960, era formada e marcada por gêneros do samba, da bossa nova e da Música Popular Brasileira (MPB), atribuídos a uma vasta “comunidade musical”, segundo o autor, e, além disso, é representada por inúmeros artistas, produtores, críticos e amantes da música que sustentam tais tradições. Entretanto, vale destacar que as diversidades culturais encontradas de norte a sul, leste a oeste, do Brasil revelam manifestações que vão muito além do samba, bossa nova e MPB: há muito mais do que esses três pilares na cultura musical brasileira, sendo injusto com a própria história desconsiderar a influência, existência e importância de outros ritmos aclamados pelo povo, sejam contribuições nacionais ou estrangeiras.

A própria MPB, consagrada durante os anos 1960 - ao lado do mercado fonográfico -, é definida, conforme Napolitano explica (2007), como uma “instituição sociocultural” que carrega valores ideológicos, estéticos, simbólicos e eventos históricos em sua origem, além de cada vez mais dialogar, conectar-se e popularizar-se com outras linguagens artísticas existentes.

A identidade nacional, ou a “brasilidade”, que inspirava e guiava a elite intelectual e a política brasileira da época e com a qual os artistas e músicos se identificavam, consolidou um novo sentido de música popular, originando em um redirecionamento do passado para uma nova história musical, cultural e política, sobretudo no que diz respeito à tradição do samba (NAPOLITANO, 2007). Como resultado, o processo histórico que redefiniu social e culturalmente levou à institucionalização da música popular brasileira e, acima de um simples

“reflexo” social, a música pede por ouvintes que compreendam a importância da canção como um processo de educação sentimental, estético e ideológico integrados em sua tradição (NAPOLITANO, 2007).

Para Ciro José Tabet (2017), a música é um veículo de formação e de informação, além de poder ser um instrumento que auxilia na valorização das mulheres na cena musical e de proporcionar coletividade entre elas por intermédio de letras que as colocam como sujeitos, gerando positivas transformações sociais na perspectiva de consciência coletiva e individual.

Um feito de importante destaque, principalmente se for considerada a imagem estereotipada e estigmatizada que as mulheres brasileiras têm no imaginário estrangeiro. Seja no cinema, na música, pintura ou na literatura, a imagem das mulheres brasileiras sempre foi vendida como seres sensuais, de grande beleza e exóticas, construindo uma fetichização que sexualiza e coisifica culturalmente o ser feminino - tornando-as personagens recorrentes em tramas

(11)

artísticas que tratam da conquista, paixão, abandono, traição, subserviência e/ou dores de amores. Para além disso, em canções de autoria masculina, sejam elas interpretadas ou compostas por homens, as mulheres são vistas e representadas como sinônimo de bebidas, diversão, sexo e agressão (CAVALCANTE; PAZ; SILVA; SANTOS; OLIVEIRA, 2017).

Neste trabalho, visando contribuir para com o campo de estudos de gênero e da música por meio de resultados e dados úteis para futuras pesquisas, busca-se refletir e analisar as letras das canções “Jogadeira” (Cacau Fernandes e Gabi Kivitz), “Dona de Mim” (Iza) e

"Desconstruindo Amélia” (Pitty), que evidenciam um outro lado da condição feminina, no qual as artistas rebatem situações de violência ao romperem com a naturalização hegemônica do predomínio masculino, posicionando-se em prol do empoderamento feminino, do autoconhecimento e da consciência de ser por meio das conquistas oriundas dos movimentos feministas no Brasil (HENKIN; RODRIGUES, 2014).

É notória a intenção das cantoras ao questionarem os ideais masculinos que colocam as mulheres como objetos de satisfação e prazer dos homens - além de recusarem a imagem criada de que uma “mulher bonita” é aquela que tem boa educação, bons costumes morais, elegância, sutileza, serenidade, leveza, vaidade, delicadeza e que se volta aos cuidados domésticos, maternos e matrimoniais - fato é que, em geral, são as vozes masculinas que dão tais conotações às mulheres (CAVALCANTE; PAZ; SILVA; SANTOS; OLIVEIRA, 2017). Em suma, características que condicionariam as mulheres para o suposto (pressuposto, no caso) agrado masculino. O campo de música e gênero estão entrelaçados, situados um em relação ao outro, originando em diversos produtos culturais étnico-raciais, políticos e sociais excludentes e silenciadores às mulheres e outros grupos sociais (ZERBINATTI; NOGUEIRA; PEDRO, 2018).

Em relação à perspectiva feminista, do ponto de vista teórico - cujo qual possui um caráter ético, político e conceitual -, se for considerada uma proposta de “filosofia universal”

na qual os homens se colocam como os principais detentores da produção de conhecimento de caráter universal, eles estão ignorando o fato de que este “universal” aplica-se apenas a uma parte da humanidade, ou seja, aplica-se ao sexo masculino, além de ignorarem a existência de outras classificações da humanidade para as questões de gênero, já que o mundo não é formado apenas pela dicotomia entre “homem e mulher”. Isto significa que a problemática exclui parte significativa do todo ao desprezar e descartar a existência das mulheres enquanto produtoras de conhecimento científico. Ora, este problema teórico é de puro interesse das mulheres que

(12)

desejam se impor como sujeitos autônomos do conhecimento e de sua própria razão, além de interessar às próprias ciências humanas, afinal, trata-se de parte considerável da realidade.

Na antiga tradição do pensamento filosófico, as mulheres eram estudadas como uma mera causa secundária por autores renomados como Immanuel Kant (1724-1804), que ajudou a inaugurar toda uma linha de investigações e estudos. Contudo, o levantamento deste debate será melhor trabalhado em uma futura etapa desta pesquisa, mas, apenas para citar um exemplo pontual, estes intelectuais da época, ao refletirem sobre o papel das mulheres na sociedade e como eram vistas, eles comumente colocavam as mulheres como objetos da ação, diferentemente de como os homens eram vistos - verdadeiros sujeitos.

A distinção entre os sexos sempre existiu e os grandes autores não buscavam tratar da discussão de gênero como “assunto principal”, já que não era o objetivo e muito menos do interesse masculino refletir sobre tais causas - como se não houvesse importância ou tratasse de um campo científico de menor valor. O que faz com que a discussão de gênero seja por eles dogmatizada quase que instantaneamente, submetida à crítica e à razão deles, evidente na forma como é esperada a submissão feminina frente aos homens. É neste sentido que as feministas trazem a discussão sobre gênero no cerne da razão, colocando no centro do debate tal discussão para, desta forma, poder aplicar um parecer racional e finalizar o dogma de tal “verdade incontestável”. Uma boa estratégia das autoras feministas, afinal, “razão” e “entendimento” não possuem gênero.

Kant menosprezava as capacidades femininas, tanto que, para o autor, as mulheres até podem vir a se tornar matemáticas, cientistas, estudiosas ou entenderem sobre mecânica, mas que tais “estudos laboriosos ou especulações penosas sufocam os traços que são próprios a seu sexo” (KANT, 2012 [1764]). Além disso, o filósofo acredita que a geografia e a história são competências que não convêm às mulheres estudarem porque a própria filosofia da mulher não consiste em pensar e raciocinar, mas sim em sentir. Ademais, Kant alega que a constituição filosófica das mulheres se resume no gosto instável pelo prazer, e é isto que compõe sua geografia e história, porque elas não conhecem a respeito do universo mais do que aquilo que é necessário para se comoverem, sendo este o principal fator do porquê os homens oferecerem às mulheres explicações fáceis sobre o clima, a liberdade, a escravidão, a descrição dos povos, as diferenças de gosto e sentimento moral. Ora, enquanto música e arte são, moralmente, tratadas como “sentimentos”, elas são, para o filósofo, capazes de refinar e elevar o gosto feminino. O motivo disto é que as mulheres são educadas para agirem de acordo com este comportamento sensível (KANT, 2012 [1764]).

(13)

A nossa tentativa, aqui, é fazer uma breve conexão entre tais pensamentos retrógados com as ideias feministas três séculos depois, na tentativa de se livrar das amarradas impostas às mulheres. O contato com esse tipo de literatura e grandes referências motivaram a reflexão acerca da música popular gravada no Brasil pela grande movimentação atual de mulheres- artistas que expressam ideias feministas artística e musicalmente, no intuito de colocar um ponto final nas mensagens machistas que são reproduzidas e vendidas por homens no cenário musical e que, com isto, são incorporadas pelo público ouvinte em geral. Sendo assim, ao analisar as letras das canções, tem-se por objetivo dar visibilidade, resgatar e evidenciar as obras destas artistas que se situam como Sujeito da ação, lugar que, até então, fora designado aos homens. Isto porque a mulher feminista contraria o lugar imposto pelos homens e pela sociedade, tornando-se insubmissa a este lugar porque este é o desejo delas: ser seu próprio objeto de ação e de conhecimento. Sendo assim, como um direito e dever das feministas que prezam pela autonomia da razão e do entendimento, a crítica que essas mulheres realizam se contrapõe e atinge aos “medalhões eternizados” na história das ciências humanas.

Para o desenvolvimento deste trabalho, ganharam grande importância três artigos recolhidos pela pesquisa e possibilitaram a construção de uma base comum de reflexão, sendo eles: “O Discurso Feminista nos Estilos Rock, MPB e Funk” (de autoria de Rosana Monti Henkin e Marlon Leal Rodrigues, 2014), “Cê Vai se Arrepender de Levantar a Mão pra Mim:

A Violência Doméstica Exteriorizada Por Elza Soares Na Canção Maria Da Vila Matilde” (por Alexandre Bezerra de Almeida e Michele Wadja da Silva Farias, 2017) e “O Futuro é Feminino:

O Empoderamento Feminino Por Meio da Música” (por Júlia Medici, Clariana Castro e Tiago Monteiro, 2017).

Os artigos têm relevância por colocarem as mulheres como protagonistas em um mundo Ocidental e patriarcal, com raízes coloniais e eurocêntricas que revelam, além disso, a indignação e cansaço das mulheres frente ao domínio masculino nessa esfera social e política contaminadas pelo machismo historicamente enraizado e naturalizado, passando-se por desapercebido, e até mesmo reproduzido por outras mulheres desligadas ou desinteressadas pelo movimento feminista.

Os homens sempre ocuparam os espaços proeminentes dos conhecimentos científicos, econômicos, políticos e sociais, e se sobressaem desta forma até hoje ao colocarem as mulheres em segundo plano. A opressão masculina sobre as mulheres não é algo recente, da mesma forma que a discussão sobre gênero não é uma mera novidade.

(14)

Em relação ao Funk, por exemplo, vê-se o protagonismo das mulheres enquanto cantam sobre suas conquistas (amorosas, profissionais, dentre outras) e seus posicionamentos quanto à sociedade, em certos casos. Trata-se de mulheres que vivenciam as conquistas do movimento feminista, porque cantam acerca da sua liberdade, sobre o que falam e as coisas que fazem por e para si, cantam sem medo de expor sua sexualidade; cantam como e enquanto Sujeitos, não mais como objetos (CAVALCANTE; PAZ; SILVA; SANTOS; OLIVEIRA, 2017) que aguardam para serem manuseados e tutelados: elas são donas de si!

A música está presente em toda sociedade como produto cultural forte e influente.

Reproduzida em estabelecimentos comerciais, meios de transporte, na rua ou em casa, a música chega facilmente aos ouvidos dos indivíduos. Pensando no Brasil, há pelo menos uma música por década - no mínimo, desde 1950 - que faz alusão à violência contra a mulher (essas canções variam entre os ritmos de bolero, xote, balada, samba, rock, rap, hip hop, funk, sertanejo e pagode), de acordo com Jéssica Garcia, Jennifer Pereira, Luana de Antoni e Kelly de Lara Soczek, autoras do artigo “A Influência da Música Brasileira na Naturalização da Violência Contra a Mulher” (2017).

A grande questão é: por que, então, não dar voz às mulheres que desde os tempos mais primitivos sofrem com inúmeros obstáculos opressivos? Por que não ouvir o que elas, enquanto mulheres e artistas, têm a dizer? Por que não rebater o machismo estrutural e tentar compreender, denunciar e/ou mudar a violência que mata essas mulheres diariamente1?

Elza Soares é uma artista que faz este trabalho de forma muito contundente. Por possuir um histórico de experiências traumáticas trazidas por situações de violência, encontrou na música uma saída, de modo a englobar em seus álbuns assuntos como sofrimento urbano, morte, transexualidade, narcodependência e violência doméstica. Na canção “Maria da Vila Matilde”

1 Com base na segunda edição da pesquisa “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil” (2019), extraída do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foi possível obter alguns dados que revelam altos índices de violência contra a mulher. Dentre os anos de 2017 a 2019, são 28,6% das mulheres que já sofreram algum tipo de assédio e 27,4% às mulheres que sofreram algum tipo de violência física e/ou psicológica. Fato que pode ser traduzir como mais de 16 milhões de mulheres com 16 anos ou mais já sofreram formas de violência no Brasil. O que é mais preocupante em todos esses dados é que 76,4% dessas vítimas conheciam, de alguma forma, o agressor, variando entre namorados, cônjuges, companheiros ou vizinhos. No que diz respeito à localização, 42% das mulheres informam terem sido agredidas dentro de suas residências, onde apenas 10% recorreram ao auxílio da Delegacia da Mulher - em contraponto, 52% dessas mulheres não agiram contra o agressor -, enquanto 29,1% das mulheres alegam terem sido agredidas, de alguma forma, na rua, além de outros 8,2% que informaram que as agressões vieram no ambiente de trabalho ou pela Internet. As maiores porcentagens representam vítimas numa faixa etária entre os 16 e 24 anos: 42,6%. No que concerne à raça, as mulheres negras são as mais atingidas pelas formas de agressão: 13,3%, sendo 39,7% de mulheres pretas que alegam terem vivenciado agressões na rua (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019). Cf.: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PUBLICA. Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. 2 ed. Brasília: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; DataFolha Instituto de Pesquisa, 2019. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp- content/uploads/2019/02/relatorio-pesquisa-2019-v6.pdf. Acesso em: 18 ago. 2021.

(15)

(2015), Elza Soares, de uma forma direta e bastante intensa, interpreta uma mulher mais independente, forte, ativa e com grande representatividade, pois não se cala perante seu agressor - o próprio marido - (ALMEIDA; FARIAS, 2017). Desta forma, o discurso feminista encontrado nesta canção apresenta-se na voz de alguém que sabe do que está falando devido à proximidade pessoal com a narrativa tratada pelo álbum “Mulher do Fim Do Mundo” (Douglas Germano, “Maria da Vila Matilde”, Mulher do Fim do Mudo, Estúdio Red Bull Station, São Paulo - SP, Gravadora Circus, 2015).

É de suma importância simbolizar, cultural e socialmente, a presença das mulheres no cenário musical, tanto no panorama independente quanto em relação às grandes gravadoras/editoras e produtoras - simbolismo este que representa a valorização e o poder feminino. Afinal, assim como o foi para Elza Soares, é na música que muitas outras mulheres encontram refúgio e somam vozes e forças para lidar com as barreiras da dominação masculina, o que não é uma tarefa fácil. Neste sentido, se através da música muitas mulheres são silenciadas, é também por meio dela que muitas se reconhecem, se identificam e expressam o que querem ou precisam comunicar ao público (MEDICI; CASTRO; MONTEIRO, 2017).

Dessa forma, o artigo de Júlia Medici, Clariana Castro e Tiago Monteiro sobre

“Empoderamento Feminino Por Meio da Música” é também importante para este trabalho porque apresenta mulheres que resolveram assumir a responsabilidade pela produção musical, composição, edição e divulgação, além da opção de se ter uma banda em um cenário independente, por exemplo. Trata-se de mulheres que ensinam outras mulheres a tocarem instrumentos, mulheres que cuidam de todo o trabalho de produção musical sem a interferência ou ação de um homem (COSTA; ROSA, 2017). Mulheres são mais do que rostos bonitos e corpos; são mais do que sentimentos e emoção; são mais do que mães e esposas, elas também estudam, trabalham, pensam, obtém e repassam conhecimento, e justamente pelo fato de terem sido ensinadas a serem submissas, a serem o “sexo frágil”, é que as mulheres têm tanta dificuldade de se colocarem como protagonistas neste palco reinado pelo machismo.

No histórico musical brasileiro, tem-se canções como “Amélia” (de Mário Lago e Ataulfo Alves) e “Lôra Burra” (de Gabriel, O Pensador), que também são exemplos de músicas que ofendem e oprimem as mulheres. Além disso, há também a falta de oportunidade para as mulheres em grandes editoras e na indústria fonográfica. Apesar do fator musical ser importante para essas produtoras, a imagem é ainda mais valorizada quando se trata de mulheres nesse cenário - o que se tornou, de certa forma, um pouco mais facilitado para elas depois da era digital e virtual (MEDICI; CASTRO; MONTEIRO, 2017). Acima de qualquer outra coisa, o

(16)

palco passou a ser um cenário político e de luta para essas artistas, compositoras, instrumentistas, cantoras e intérpretes, visto que a arte também se enquadra como uma forma de militância (COSTA; ROSA, 2017). A teoria feminista, aliás, se diferencia de outras práticas por buscar uma mudança social e, desta forma, dialoga com a arte dentro dos movimentos sociais, visando transformações (COSTA; ROSA, 2017).

Neste sentido, justifica-se este estudo, afinal a música popular gravada é uma forma de manifestação cultural que transita de maneira atemporal pela vida social, a música é, além disso, um resultado da sociedade capitalista moderna e da industrialização da cultura que está associada ao lazer e entretenimento por meio de uma farta variedade de musicalidades regionais e nacionais.

Neste sentido, também se busca compreender essa indústria cultural como uma forma de produção e consumo (de grandes gravadoras para grandes públicos) que, imprescindivelmente, gera contradições, conflitos, movimentos e manifestações.

A música popular brasileira age, além disso, como um espelho da sociedade, uma vez que é um instrumento formador e informador popular que, por vezes, afeta até mesmo o comportamento dos indivíduos, seja de forma estética, ideológica ou sentimental - instrumento este que, por sua vez, pode ajudar as mulheres artistas dentro do cenário da música brasileira, pois as mulheres do meio tendem a apoiar fortemente umas às outras ao produzirem obras que trazem posicionamentos afirmativos e positivos para elas quando são evidenciadas como Sujeitos de suas ações, ocasionando, inclusive, em grandes transformações coletivas e pessoais na vida em sociedade.

Além de todos os obstáculos enfrentados pelas mulheres na luta feminista, as dificuldades materiais, políticas, sociológicas e toda a discriminação sofrida, todo este somatório de obstáculos, pesos e desavenças enfrentados, a investigação que serve de base para este projeto tem, desta forma, seu ponto de partida na perspectiva feminista.

Com isso, se tratando posicionamento da mulher em relação ao mundo enquanto Sujeito, por intermédio da música, ver-se-á como as mulheres não renunciaram à autonomia de pensamento e ação dentro da indústria musical brasileira.

(17)

PARTE UM

JOGADEIRA

A chamada Parte Um do presente texto tem por objetivo central apresentar e refletir acerca da canção Jogadeira de autoria de Carina Gomes Fernandes e Gabriela Andrade Kivitz, lançada em 2019, pela gravadora Editora Musical Som Livre S/A, na cidade de São Paulo, capital, sem pertencer a um álbum em específico. O seu principal meio de divulgação foi: YouTube, Deezer e Spotify.

A partir das reflexões produzidas até aqui, a apresentação deste ponto em diante estará centrada em três etapas, três tempos diferentes. Para esse primeiro momento, a canção escolhida é “Jogadeira”, com autoria da conhecida atleta Cacau Fernandes (Carina Gomes Fernandes, nascida em 23 de agosto de 1986, defende a camisa do Corinthians desde a temporada de 2016) e Gabriela Kivitz (ex-jogadora de futebol).

A canção, que nasceu em 2011, ganhou grande destaque e visibilidade com a seleção brasileira feminina de futebol no ano de 2019, durante a Copa do Mundo de Futebol Feminino que ocorreu na França - sendo a 8ª edição da competição entre as mulheres, tendo início marcado apenas em 1991 (o torneio masculino, para se ter ideia, existe desde 1930). No Brasil, entre os anos de 1941 e 1979, o então presidente Getúlio Vargas assinou o decreto de lei 3.199, que impedia a prática de futebol entre as mulheres (RODRIGUES, 2021), destinando-as, mais uma vez, ao papel de mães e donas de casa. Esses 42 anos de proibição impediram que o esporte na modalidade feminina pudesse se desenvolver e se consolidar tanto quanto a modalidade masculina. O primeiro torneio do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino ocorreu apenas em 2013, sem grandes atenções por parte da mídia e torcedores - estes, muitas vezes, argumentam a favor da falta de visibilidade para a categoria feminina alegando que as mulheres não apresentavam técnica suficiente ou performance de alta qualidade. Desde aquela época, as mulheres traziam incômodo aos homens quando ocupavam espaços aos quais não foram, por eles, designadas e ganhavam destaque indesejado. Por conseguinte, a evolução do futebol feminino vive um processo lento (RODRIGUES, 2021).

A música tornou-se o grande hino da seleção, também vale o destaque para a 8ª edição porque nenhuma competição de futebol feminino foi tão divulgada e tão assistida quanto esta;

todas as atenções, os holofotes, apoios e receitas voltadas à seleção brasileira. De fato, um grande marco para a história do futebol feminino, principalmente quando um megaevento como

(18)

a Copa do Mundo passa a contar com transmissões globais; no Brasil, emissoras como a TV Globo e a Band cobriram todos os jogos da seleção feminina - ora, com as emissoras falando sobre e transmitindo os jogos em rede aberta, mais pessoas passaram a acompanhar e apreciar, mais empresas começaram a mudar suas visões acerca da modalidade e de investimentos na área, valorizando fortemente o trabalho dessas mulheres (PIRES, 2019).

Outro momento de expressão é em relação à patrocinadora Adidas, que, além de fornecer uniformes exclusivos para as seleções que patrocina, igualou a premiação oferecida entre as equipes femininas e masculinas (PIRES, 2019).

Entretanto, ainda há um abismo gigantesco entre as duas modalidades. Já que o evento do masculino existe há mais tempo do que o feminino, logo, está socialmente mais consolidado, obtendo um lucro maior2 do que a modalidade das mulheres. A responsabilidade é também da Federação Internacional de Futebol (FIFA), organizadora dos eventos, que deve investir muito mais, não apenas no quesito Copa e premiação, mas no desenvolvimento profissional do futebol feminino, aumentar os direitos de transmissão, contar com novos patrocinadores, assim como o faz com o masculino. As atletas precisam de oportunidades, investimento, visibilidade. Só assim será possível pensar nas quatro linhas existindo com equidade e superar décadas de desigualdades, preconceitos e discriminações dentro e fora do campo, que é o palco dessas mulheres. Além da FIFA, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) conta, atualmente, com duas mulheres entre os responsáveis na área de estratégias para a categoria feminina: Aline Pellegrino, coordenadora de competições, e Duda Luizelli, coordenadora das seleções femininas (RODRIGUES, 2021).

Cientes do contexto no qual a canção ganhou notoriedade, cabe apresentar as informações gerais da música, a produção de vídeo foi feita pela Urbani Films, com a produção de áudio e mixagem realizada por Daniel Maia e Kivitz. Produção e Direção: Gabriela Kivitz, Marcela Urbani e Camila Sanchez; Assistente de Produção: Silvana Goulart Urbani, Nathalia Falcão Costa; Cobertura de Making Off e Fotos: Bianca da Cruz Ferreira; Câmera: Marcela Urbani, Camila Sanchez; Edição e Finalização: Marcela Urbani; Apoio: Mandela Espetos. A faixa, em seu clipe oficial disponível em plataformas de grande alcance como Spotify e YouTube, contém 3 minutos e 14 segundos. Deste modo, cabe analisar a letra de “Jogadeira”, retirada do site letras.mus.br.

2 Sobre a diferença entre a premiação masculina e a feminina, ver: MENDONÇA, R. Homens tiveram prêmio 10 vezes maior que as mulheres na Copa; Atletas rebatem”. UOL. Dibradoras, online, São Paulo. Publicado em 30 out. 2018. Disponível em: https://dibradoras.blogosfera.uol.com.br/2018/10/30/mulheres-terao-premiacao-10- vezes-menor-que-homens-na-copa-atletas-rebatem/. Acesso em 10 de julho de 2021.

(19)

“Essa música é dedicada a todas aquelas meninas que sonham em ser jogadora de futebol.

Jogadeira!

Desde pequena muito preconceito

Aqueles papo “futebol não é pra mulher”

Mas aprendi a dominar no peito

Por no chão e responder com a bola no pé Sempre com a molecada correndo na rua É ligeira, monta o time e a panela é sua

Não quer brincar de boneca e nem pintar na escola Só quer saber de driblar correr atrás de bola,

(REFRÃO) Qual é, qual é

Futebol não é pra mulher Eu vou mostrar pra você, mané Joga a bola no meu pé

Agora a menina já virou mulher

"Tá" correndo atrás do sonho e sabe o que quer Driblando as dificuldades, deixando pra trás Com orgulho, é jogadora e ama o que faz Qual é, qual é

Futebol não é pra mulher Eu vou mostrar pra você mané Joga a bola no meu pé

Joga bola no meu pé

Se você pensa que é fácil A vida dessa mulherada

Mas não é não, você "tá" enganado Antes de jogo, não tem balada

Além de muito treino e dedicação, não tem final de semana Nem feriadão e se quiser pagode só tem no "busão"

(20)

Então fecha com a palma agora no refrão Qual é, qual é

Futebol não é pra mulher Eu vou mostrar pra você mané Joga a bola no meu pé

(RAP)

Mina de fé, de garra, swing e samba no pé Na ginga, catinga, encanta por ser mulher Dona da bola não enrola na roda

Entra de sola, seja de bola ou de samba faz o que quer Quem é que toca, provoca, dá de mané

Assim como quem não quer nada na marra

Chega onde quer, faz batucada, é ousada na roda, é respeitada Toca instrumento e o seu de trabalho é o pé

(REFRÃO FINAL) Qual é, qual é

Futebol não é pra mulher Eu vou mostrar pra você mané Joga a bola no meu pé

Joga a bola no meu pé

A canção é embalada pelo ritmo de pagode do primeiro ao último segundo; ritmo este que anima, que empolga, que te faz querer batucar e sambar, que faz querer cantar e dançar.

Além disso, o pagode é uma tradição no futebol brasileiro, independente de gêneros, apontando para um clima mais descontraído e harmonioso entre as atletas antes e após a bola rolar em campo.

Quando o batuque do tambor começa, Cacau Fernandes conversa com os ouvintes, dedicando a canção especialmente às meninas que sonham em ser jogadoras de futebol. Então, o foco desta música se mostra como “de mulher para mulher”.

A primeira estrofe da música cantada por Cacau informa que desde pequenas, as meninas sofrem preconceitos oriundos do machismo quando são impedidas e impossibilitadas

(21)

de jogarem futebol com o argumento de que “futebol não é para mulher”, que “futebol é coisa de homem”, sofrem ataques homofóbicos, mesmo que não sejam do meio LGBTQIA+, quando ouvem coisas como “maria sapatão” ou “maria macho” pelo simples fato de gostarem de jogar futebol. A própria Cacau dá sua resposta a todos os questionamentos que as meninas ouvem e sofrem quando jogam bola: aprende “a dominar no peito”, aguenta firme, coloca a bola no chão e responde com ela no seu pé.

Na segunda estrofe, a imagem que é passada é daquela menina que está sempre correndo e chutando bola pela rua com os meninos - ela não quer saber de brincar de boneca, de fazer pinturas, de brincar de “casinha”: ela quer jogar futebol! E se, geralmente, são os meninos quem mais são instruídos a jogar futebol, se são os meninos que ganham bolas de presente de aniversário, é entre eles que essa menina deseja estar porque é onde ela vai poder jogar futebol, driblar, correr atrás da bola, montar a sua panela (o termo ‘panela’, termo bastante utilizado no futebol, faz referência a uma “equipe fechada”; trata-se de uma equipe titular que consegue manter um bom relacionamento pessoal e profissional com as(os) comandantes, sendo assim, o

“time preferido” da(o) treinadora(o) responsável; a ‘panela’, ou seja, o time preferido da garota está montado e será comandado por ela). E qual é o problema nisso se, no final das contas, essas meninas e esses meninos estão simplesmente brincando, se divertindo, socializando? Quem verdadeiramente coloca como um problema, as meninas praticando e jogando futebol, são os adultos - como um ciclo aparentemente sem fim, “as meninas devem vestir rosa, brincar de boneca, de casinha”, enquanto os meninos são estimulados a “usarem azul”, a brincarem de carrinho, a lutarem, a jogarem futebol e outros esportes entendidos/defendidos como masculinos.

Até que chega o primeiro refrão: “Qual é, qual é?/Futebol não é pra mulher?/Eu vou mostrar pra você, mané/Joga a bola no meu pé”. Bastante autoexplicativo, o refrão mostra um posicionamento empoderado, podendo se traduzir como a menina que diz “futebol não é para mulher? Então joga a bola no meu pé para você ver o que eu posso fazer, joga a bola no meu pé que eu vou te deixar no chão, driblando, marcando gols, fazendo o que os amantes da bola chamam de “verdadeiro futebol-arte”.

Após o primeiro refrão, a história continua quando Cacau canta que aquela garotinha que cresceu entre os meninos jogando bola, agora é uma mulher formada, decidida e que segue atrás de realizar seu sonho: o de ser jogadora de futebol. Essa mulher sabe melhor que qualquer outra pessoa quais foram e quais são todas as dificuldades e obstáculos pelos quais ela passou e passa, mas ela dribla todas essas dificuldades com a cabeça erguida e muito orgulho de poder

(22)

fazer o que mais ama: jogar futebol. De fato, existe uma união muito forte entre as mulheres que gostam de jogar futebol, sejam atletas profissionais ou amadoras, ou apenas adoradoras do esporte, e esta união é extremamente necessária para que, no futuro, mais e mais meninas venham a se tornar atletas profissionais e com um ambiente de trabalho mais justo, sem desigualdades.

Na sequência, a mulher, que agora é jogadora de futebol, afirma que a vida de todas essas atletas não é fácil, passa por um repertório cheio de desavenças que obriga sua grandíssima maioria a desistirem no meio do caminho. Cacau canta que “antes de jogo não tem balada”. Na verdade, é exatamente o contrário disso: há muito treino e dedicação, porque só quem é mulher e joga bola sabe a trajetória extremamente difícil que foi e é percorrida. Mas, já diria aquele velho ditado popular, ao final da tempestade, o sol sempre volta a brilhar, “então fecha com a palma agora no refrão”.

Por trás de toda essa exposição até aqui, cem por cento embalada pelo pagode, é chegada a hora do Rap na canção, cantado pela própria coautora e ex-jogadora, Gabriela Kivitz. A imagem que ela constrói é que aquela garotinha que cresceu entre os meninos jogando bola, se tornou uma mulher de fé, de garra, de gingado e samba no pé; essa mulher cativa e encanta por ser mulher dentro desta profissão, na qual há o predomínio dos homens. Essa mulher é dona da bola, ela sabe perfeitamente o que faz e nunca precisou de um homem para “ensiná-la” a jogar.

Além de saber o que faz com a bola, ela também sabe o que faz com o instrumento musical porque “como quem não quer nada, na marra, chega onde quer, faz batucada, é ousada e é respeitada na roda” - ela sabe fazer bem o batuque, mas o seu melhor instrumento, que também é o seu de trabalho, é o seu pé.

Depois do Rap, a música chega ao final com um último refrão, reafirmando as falas das autoras Cacau Fernandes e Gabriela Kivitz: “Qual é, qual é?/Futebol não é pra mulher?/Eu vou mostrar pra você, mané/Joga a bola no meu pé!”.

Eduardo Vicente (2008), autor de “Segmentação e Consumo: a Produção Fonográfica Brasileira - 1965/1999”, expõe sua visão geral da produção fonográfica brasileira dentre os anos de 1965 até 1999, bem como apresenta uma classificação de tal produção em diferentes segmentos e lança uma breve descrição do surgimento e da dinâmica de cada qual. O autor apresenta, ainda, sua análise detalhada das características e do desenvolvimento da produção fonográfica no Brasil. Além disso, como parte da base de trabalho de Eduardo Vicente, foi feito um mapeamento dos segmentos musicais predominantes no período de 1965 a 1999, produzido a partir de dados estatísticos de vendas de discos elaborados pela Nelson Oliveira Pesquisas de

(23)

Mercado (NOPEM). Vicente (2008) relata três divisões dentre o período contemplado: a) 1965 a 1979; b) 1980 a 1989 e; c)1990 a 1999. Entretanto, não se entrará nesses detalhes aqui, visto que não é este o foco da discussão e reflexão.

Segundo o escritor, o pagode dispõe de uma grandíssima tradição no que diz respeito à história musical e no cenário fonográfico brasileiro. O termo, por sua vez, não trata, essencialmente, de um gênero/estilo musical - trata-se de uma celebração, de um momento de festa, da união e reunião entre pessoas, definindo, por sua vez, uma maneira diferenciada de interpretar e compor o samba (VICENTE, 2008). Sendo assim, a grande explosão pagodeira aconteceu em meados de 1986 com artistas e grupos alcançando seus respectivos lugares nas chamadas “paradas de sucesso”, como Alcione, Beth Carvalho, Agepê, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Jorge Aragão, dentre outros grandes nomes, que consolidaram ainda mais suas carreiras em decorrência do estilo (para relacionar com a análise de Jogadeira feita até aqui, relembra-se que neste mesmo período de 1986 a Copa do Mundo de futebol feminino sequer existia, tampouco o Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino). Vale destacar, ainda, que os grupos Originais do Samba e Fundo de Quintal demarcaram as grandes características do pagode ao utilizarem o banjo ao invés do cavaco, o tantã no lugar do surdo e do repinique.

O pagode, então, passou a contar com características bastante definidas, que, de acordo com Vicente (2008), facilitou a atuação dos artistas e produtores - sendo possível transformar qualquer música em pagode, como o próprio grupo Sambô faz ao interpretar artistas como Maroon 5, por exemplo. Além disso, Vicente (2008) também afirma que os grupos exaltam e demonstram com veemência suas identificações étnicas e locais com o objetivo de apoiar e/ou reforçar suas ligações para com as periferias de onde se originaram, afirmando todo seu

“slogan” artístico (VICENTE, 2008, p. 115).

A Jogadeira em forma de pagode junto ao conteúdo da composição marcar não somente a resistência feminina no futebol como também ilustra a força da mulher no esporte e na luta cotidiana por reconhecimento da sua qualidade e competência.

(24)

PARTE DOIS

DONA DE MIM

A chamada Parte Dois tem por objetivo central apresentar e refletir acerca da canção Dona de Mim de autoria de Arthur Marques, interpretada por Iza, lançada em 2018, pela gravadora Warner Music Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, capital, pertencente ao álbum de mesmo nome. O seu principal meio de divulgação foi: YouTube, Deezer e Spotify.

Antes de a apresentação e a análise musical da canção, segue-se com uma breve descrição sobre quem é a Iza. Isabela Lima, nascida em 3 de outubro de 1990 em Olaria, subúrbio do Rio de Janeiro, conhecida artisticamente como Iza Legion - atua como cantora, compositora e apresentadora. Desde pequena a cantora mostrou sua vocação para a música, tendo iniciado sua carreira aos 14 anos, contando com a plataforma YouTube como a grande aliada e impulsionadora de sua trajetória quando lançava covers que a ajudaram no caminho para a fama. Em 2016, foi contratada pela Warner Music Brasil, onde segue até hoje. Seu primeiro single de sucesso foi “Quem Sabe Sou Eu” (escrita por Pretinho da Serrinha, Gabriel Moura e Rogê), compondo a trilha sonora da novela Rock Story, transmitida entre 9 de novembro de 2016 a 5 de junho de 2017 na Rede Globo, também disponível na plataforma de streaming Globoplay.

Já no ano de 2018, Iza lançou seu primeiro álbum, intitulado Dona de Mim, que acabou sendo indicado ao Grammy Latino de melhor álbum pop contemporâneo em língua portuguesa.

Além do hit que dá nome ao álbum, o single Pesadão também teve grande destaque, contando com a participação de Marcelo Falcão, vocalista da banda O Rappa. A cantora também compôs a banca de jurados do programa The Voice Brasil, substituindo Carlinhos Brown a partir da sétima edição. Outro destaque envolvendo a cantora vai para sua participação como dubladora da personagem Nala, na live-action de O Rei Leão, estreando no Brasil em 18 de julho de 2019.

A canção “Dona de Mim” tem duração de 3 minutos e 28 segundos, sendo composta por Arthur Marques e produzida por Brabo Music Team, Pablo Bispo, Ruxell e Sérgio Santos.

O álbum, por sua vez, conta com 14 faixas e “Dona de Mim” foi escolhida como a faixa-título do álbum - que também trouxe a inspiração para o título deste trabalho. Quanto aos aspectos musicais encontrados na música, tem-se a influência do pop, do afrobeat eol, do reggae fusion.

Após as devidas considerações eis a letra da canção, a qual também foi acessada pelo site letras.mus.br.

(25)

“Já me perdi tentando me encontrar Já fui embora querendo nem voltar Penso duas vezes antes de falar Porque a vida é louca, mano A vida é louca

Sempre fiquei quieta, agora vou falar Se você tem boca, aprenda a usar Sei do meu valor e a cotação é dólar Porque a vida é louca, mano

A vida é louca

(REFRÃO)

Me perdi pelo caminho Mas não paro não Já chorei mares e rios Mas não afogo não

Sempre dou o meu jeitinho É bruto, mas é com carinho Porque Deus me fez assim Dona de mim

Deixo a minha fé guiar Sei que um dia chego lá Porque Deus me fez assim Dona de mim

Já não me importa a sua opinião

O seu conceito não altera a minha visão Foi tanto sim, que agora digo não Porque a vida é louca, mano A vida é louca

Quero saber só do que me faz bem Papo furado não me entretém

(26)

Não me limite que quero ir além Porque a vida é louca, mano A vida é louca

(REFRÃO)

Me perdi pelo caminho Mas não paro não Já chorei mares e rios Mas não afogo não

Sempre dou o meu jeitinho É bruto, mas é com carinho Porque Deus me fez assim Dona de mim

Deixo a minha fé guiar Sei que um dia chego lá Porque Deus me fez assim Dona de mim”

É importante indicar que o single, bem como o álbum em si, é marcado por elementos estéticos do Pop internacional com características brasileiras fortemente atribuídas a seu conteúdo, o que deixa uma grande marca no cenário musical brasileiro.

A canção se refere ao autoconhecimento (SIGILIANO, 2020), evidente logo de imediato na primeira estrofe quando a artista diz que se perdeu na tentativa de se encontrar. A mensagem interpretada por Iza é muito clara, e a narrativa aponta para a ideia de uma mulher que passou por “poucas e boas” em sua caminhada para o autoconhecimento: “Já fui embora querendo nem voltar/Penso duas vezes antes de falar”. Até aqui, têm-se aspectos importantes para a presente reflexão, tais como empoderamento, valor próprio e reafirmação de seu próprio ser enquanto mulher negra, notório nos seguintes trechos: “Sempre fiquei quieta, agora vou falar/Se você tem boca, aprenda a usar/Sei do meu valor e a cotação é dólar”. Além disso, há neste trecho uma denúncia de opressão que muitas mulheres passam, porém, vê-se um posicionamento combativo e reativo (SIGILIANO, 2020), o que significa que esta mulher não

(27)

se calará diante de nenhuma forma de opressão e de violência, e, seja como for, haverá resistência, posicionamento, opinião e respostas.

A sensação do autoconhecimento percorrendo suas veias é libertadora. E, mais uma vez, a mensagem da artista se mostra evidente porque o que ela deseja é que todas as mulheres se sintam e sejam empoderadas, confiantes de si, livres para fazerem o que quiserem e sem medo de ser quem são; elas não precisam seguir à risca tudo o que dizem para fazer e ser porque elas são donas de si. Portanto, o autoconhecimento e a consciência de sua própria identidade são como pontos centrais do single, aspectos que trazem felicidade para o ser, conforto, conhecimento de direitos e segurança, dentre outros aspectos, mesmo com os inúmeros

“obstáculos”, mesmo com as inúmeras complexidades e preconceitos trazidos pela vida em sociedade, principalmente quando se trata de ser uma mulher negra. Iza vai além de sua própria individualidade apontando diversos e importantes contextos; vai além porque se opõe aos estereótipos, padrões e paradigmas que são, insistentemente, impostos às mulheres e à negritude (SIGILIANO, 2020).

No primeiro refrão, a cantora ressalta os aspectos tratados até aqui acerca do autoconhecimento, da identidade, do empoderamento e da negritude ao cantar “Me perdi pelo caminho/Mas não paro não/Já chorei mares e rios/Mas não afogo não”. É impossível desconsiderar todo o caráter político que engloba a canção, bem como o posicionamento feminista existente do começo ao fim, levando em conta, também, que há muitas diferenças entre o feminismo negro e o feminismo branco, pois os perigos vividos pelas mulheres negras não são exatamente os mesmos vividos pelas mulheres brancas, embora haja muito em comum:

no que tange ao acesso e garantia de direitos. De acordo com Gloria Anzaldúa (1981) em seu ensaio “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, as mulheres negras são invisíveis no mundo dominante dos brancos e no mundo feminista das mulheres brancas, ainda mais quando se é uma mulher negra e lésbica neste mundo heteronormativo no qual as mulheres são sexualizadas constantemente de diversas maneiras; a homoafetividade não apresenta “relação” com a família tradicional e, consequentemente, não é lucrativa para o capitalismo. Assim, a mulher negra e lésbica, além de invisível, ela não existe e não é ouvida (ANZALDÚA, 1981, p. 229). Raça e gênero seguem de mãos dadas. A autora ainda acrescenta que os olhos brancos não querem conhecer aos negros, que não se preocupam em aprender a língua que os reflete, muito menos a cultura ou o espírito deles. As questões levantadas pela autora na década de 1980 ainda são válidas: “Por que eles nos combatem? Por que pensam que somos monstros perigosos?” (ANZALDÚA, 1981, p. 230). E se são vistos

(28)

desta forma, é porque a negritude desequilibra, é porque rompe com as imagens carregadas de estereótipos que os brancos têm rotulados.

No single, é notável, também, que há uma denúncia contra as formas de violências vivenciadas por pessoas negras, principalmente quando se ouve a música acompanhando o videoclipe oficial, que narra a história de três mulheres negras em suas próprias batalhas cotidianas contra o racismo e o machismo estrutural (SIGILIANO, 2020). Assim, a mensagem trata de resistência frente às problemáticas em que se encontram, o que se exemplifica com as próprias situações mostradas no videoclipe (LIMA, 2018), como ser uma mulher negra e mãe solteira, ser professora negra em uma escola de rede pública para pessoas pobres ou ser uma mulher negra que passa por um julgamento perante a um júri hegemonicamente composto por homens brancos (SIGILIANO, 2020). O que quer mostrar é que as experiências vividas por essas mulheres é algo que faz com que tenham, desde muito cedo, consciência de quem são e que resistam com tudo o que têm contra os preconceitos, os estereótipos, às imposições, ao machismo e ao racismo. Tendo isto tudo em mente, fica muito fácil interpretar o que a Iza quis passar tanto na canção quanto no videoclipe, que pode se traduzir como: ora, posso ter me perdido pelo caminho, mas eu não paro de seguir com a minha, com a nossa luta. Percorro uma longa trajetória que já me fez chorar mares e rios, mas eu não me afogo, porque eu sempre dou

“o meu jeitinho”. E, mesmo que seja bruto, faço com carinho porque eu sou assim, e sou dona de mim. Tenho consciência de quem eu sou e me orgulho disso; confio em mim, conheço a minha fé e deixo com que ela me guie; sei do meu valor, sou dona de mim.

Vale destacar que não é um dos objetivos abordar todos os elementos por trás do clipe, apenas citá-lo para poder desenvolver os exemplos como um argumento para a sequência do raciocínio. Para pontuar outros exemplos de racismo comuns em dias atuais, situações como jovens negros se exercitando com uma bicicleta sofrendo abordagens truculentas da polícia e acusados de furtar a própria bicicleta3 por aparentar ser mais cara “do que este jovem poderia deter” - inclusive, precisando andar com a nota fiscal de seu bem para provar que é realmente o dono. Há também situações nas quais pessoas pretas são perseguidas por seguranças - geralmente brancos - de shoppings ou supermercados pelo simples fato de não serem brancas e

“passarem uma imagem de desconfiança ou insegurança” para esses seguranças e respectivos estabelecimentos. Ou situações de uma mãe ou um pai negro tem como primogênito uma criança branca e essa mãe ou pai ouvem de pessoas brancas espantadas coisas como “essa

3 Cf.: OLIVEIRA, Rafaela. Jovem sofre racismo ao ser acusado de roubar a própria bicicleta. R7 Notícias, Rio de Janeiro, online, publicado e atualizado em 15 jun. 2021. Disponível em: https://noticias.r7.com/rio-de- janeiro/jovem-sofre-racismo-ao-ser-acusado-de-roubar-a-propria-bicicleta-15062021. Acesso em: 18 ago. 2021.

(29)

criança é realmente sua filha ou você é a babá?”. Ou mulheres negras que são assediadas por homens que acham que estão no direito de violentar uma mulher, mais ainda quando essa mulher é preta. Nota-se que é possível pontuar diferentes exemplos de situações extremamente racistas vivenciadas pelas pessoas pretas, mas os sentimentos resultados disso são de grande tristeza, revolta e raiva desse racismo, machismo, homofobia e tantas outras ações de desrespeito e violação de direitos que matam diariamente, e praticamente nada é feito para acabar com isso. O plano de violência controlado pelo governo é executado com maestria há muito tempo, e quanto menos pessoas compreendem o que significam todas essas problemáticas, melhor, porque menor será o número de pessoas que desejarão as mudanças neste sistema. Ora, as mulheres negras encontram-se entre as maiores vítimas nos indicadores de violações de direitos humanos. Novamente, trata-se de violência estatal e racismo institucional.

Prosseguindo com a análise na sequência da música, a estrofe cantada por Iza ressalta, mais uma vez, os elementos de autoconhecimento, autoafirmação e consciência quando verbaliza “Já não me importa a sua opinião/O seu conceito não altera a minha visão/Foi tanto sim, que agora digo não/ [...] Quero saber só do que me faz bem/Papo furado não me entretém/Não me limite que quero ir além”. Ora, a interpretação aqui gira em torno de

não importa o que você pensa, tenho consciência de mim e de minha história. Os seus conceitos (e pré-conceitos) não alteram em nada a minha visão sobre os fatos, sobre a vida, sobre o mundo, por isso, quero perto de mim só quem e o que me faz bem, então, não venha com “papo furado” porque isto não me interessa e não me acrescenta em nada; não tente me limitar, eu quero e vou muito além!

Concerne à autoconsciência! A autoconsciência aqui revela e permite uma postura mais combativa perante as situações, revela uma força muito poderosa para lidar com a vida, e é justamente o posicionamento e todo o conhecimento de si que a cantora deseja às mulheres.

Ao final da canção, o refrão se repete, tornando indubitável o senso político do hit. A sensação passada pela música é de grande empatia: se sou uma mulher consciente, se sou essa mulher forte que a vida e suas condições trouxeram, eu também desejo que outras mulheres possam se libertar, se desconstruir e se reconstruir; também desejo que outras mulheres se fortaleçam, se ajudem, se unam contra as formas de opressão, contra os preconceitos, contra o machismo e racismo. E “Dona de Mim” faz este trabalho muito bem-feito ao trazer poder às mulheres em suas lutas diárias, principalmente para as mulheres negras, afinal, elas são as protagonistas de suas vidas, são donas de si.

Para tratar um pouco sobre o afrobeat, o gênero musical (que tem sua presença na canção de Iza) leva uma mistura de funk, jazz, música iorubá, highlife e outros ritmos de

(30)

percussão africana. O grande diferencial do estilo está nas batidas. É um dos grandes legados deixados por Fela Kuti (1938-1997), considerado o criador do estilo musical (VINICIUS, 2020).

Em reportagem lançada pelo jornal Folha de Pernambuco em 16 de junho de 2020, o autor Bruno Vinicius entrevista o pesquisador da música do Atlântico Negro e doutorando no programa de Pós-graduação em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, Rafael de Queiroz, que explica um pouco sobre quem foi Fela Kuti e o contexto no qual se originou o afrobeat. Segundo Queiroz, o musicista nigeriano Fela Kuti se mudou para a Inglaterra ao final dos anos 1950 para estudar medicina e teve seus planos alterados quando, chegando lá, resolveu estudar música e acabou formando a banda Koola Lobitos na companhia de outros nigerianos: seu ritmo? O highlife. Já no ano de 1963, Kuti regressou para seu país natal e a banda passou por uma reformulação. O que o músico não sabia é que, poucos anos depois, em 1969, a Nigéria viveria uma guerra civil, o que fez com que a banda toda se mudasse para os Estados Unidos da América (EUA).

Aqui começa um marco importante, o que Rafael de Queiroz chama de “virada crucial no fazer político estético”: Fela Kuti, em sua passagem por Los Angeles, na Califórnia, teve contato com o movimento Black Power e com o radicalismo de políticas negras por meio de sua mentora Sandra Izsadore, militante dos Panteras Negras. A partir deste momento, as grandes influências do afrobeat passaram a ser o jazz, o soul, o funk e, também, o pensamento de Malcolm X, trazendo um indiscutível prestígio para as letras e ritmização, pois Kuti conseguiu unir elementos sonoros da música negra diaspórica com as crenças políticas na luta antirracista e anticolonial e criar um gênero musical que tem grande influência no mundo todo (VINICIUS, 2020). Não à toa tem sua influência na canção de Iza, anos e anos após os feitos de Kuti, que usou sua voz no combate contra o imperialismo, o racismo e em defesa das pessoas negras.

Nos tempos mais atuais, o afrobeat tem novas formas, e, também influencia a sonoridade de artistas afros em todos os cantos do mundo, que seguem resgatando ancestralidades africanas, demasiadas vezes apagadas e suprimidas pelos processos coloniais e escravistas, como é o caso do Brasil. Além de influente, o afrobeat é uma potente referência.

Aliás, artistas brasileiros em trabalhos recentes como Drik Barbosa, Rincon Sapiência e Rael são bons exemplos de toda essa influência, referência e resgate do continente africano (VINICIUS, 2020).

Neste sentido, a canção Dona de Mim traz um conjunto de elementos que transcendem a sua própria letra e se materializa em forma de crítica social e política.

(31)

PARTE TRÊS

DESCONSTRUINDO AMÉLIA

Por fim, a Parte Três tem por objetivo central apresentar e refletir acerca da canção Desconstruindo Amélia de autoria de Martin Andrade de Mendonça e Priscilla Novaes Leone (Pitty), lançada em 2009, pela gravadora Deckdisc, Polysom, na cidade do São Paulo, capital, pertencente ao álbum Chiaroscuro. O seu principal meio de divulgação foi: YouTube, Deezer e Spotify.

Até aqui, as duas primeiras partes trazem análises de canções bastante recentes, 2019 e 2018, na devida ordem de investigação. Nesta terceira e última análise, reflete-se sobre a cantora, compositora e produtora Priscilla Novaes Leone (7 de outubro de 1977), nascida em Salvador, na Bahia, e criada na cidade de Porto Seguro. Seu nome artístico “Pitty” é, na verdade, um apelido de infância devido à baixa estatura da cantora.

Pitty, roqueira, nordestina, mulher branca, foi influenciada desde pequena por artistas e bandas como Nirvana, Metallica, Beatles, Elvis Presley, The Smiths, Madonna, Faith No More, Raul Seixas, Legião Urbana, Rita Lee, Raimundos, Charlie Brown Jr. (TUDO SOBRE, 2014), e outros mais. Um verdadeiro fruto musical dos anos 1990. Pitty também apoia e apoiou fortemente a cena independente do rock na Bahia. Suas primeiras experiências em palco vieram com sua primeira banda, denominada “Shes”, composta por outras três integrantes no período de 1997 a 1999, na qual Pitty era a baterista, seguida por Liz Bee no vocal e guitarra, Carol Ribeiro na segunda guitarra e Lulu no baixo.

De maneira simultânea, Pitty também seguiu com seus trabalhos na banda Inkoma, assumindo o vocal da banda até o ano de 2001. Após este momento, Priscilla Novaes montou a banda que leva seu nome artístico Pitty, lançando seu primeiro álbum em 2003, nomeado como “Admirável Chip Novo” (TUDO SOBRE, 2014). Desde então, a carreira da roqueira alavancou rápida e potentemente com uma grande sequência de álbuns de estúdio e DVDs de sucesso, como “Anacrônico” (2005), “{Des} Concerto Ao Vivo” (2007), “Chiaroscuro” (2009),

“A Trupe Delirante No Circo Voador” (2011), “Setevidas” (2014), “Matriz” (2019) (DISCOGS, 2021). A baiana, então, se tornou a “queridinha” do rock no Brasil - tanto que, alguns anos depois, foi escolhida para encerrar o palco principal do Rock In Rio de 2011, após

(32)

a participação de System Of a Down, Guns N’Roses e Evanescence (TUDO SOBRE, 2014).

Além deste evento, Pitty também participou do Lollapalooza (2015) e do João Rock.

Esse intenso sucesso da cantora também lhe rendeu grandes frutos em premiações como melhor clipe do ano, melhor show do ano, melhor artista, melhor vocalista e outros. Ao todo, são cerca de 51 premiações conquistadas (PAIXÃO, 2020). Em 2003, o álbum “Admirável Chip Novo” foi o disco de rock mais vendido daquele ano com mais de 370 milhões de cópias.

“Anacrônico” e “Chiaroscuro” também são álbuns de muito sucesso da roqueira, contendo hits que permaneceram por um bom tempo nas paradas de sucesso das rádios brasileiras.

Pitty tem muita personalidade, presença e opinião. É feminista desde sua adolescência, sem sequer se utilizar do rótulo durante os anos 1990. A música a ser analisada recorre ao ano de 2009, do álbum “Chiaroscuro”: Desconstruindo Amélia. O álbum contém 11 faixas, no qual cada uma delas conversa bastante entre si. A canção tem duração de 4 minutos. Ao todo, são 45 minutos e 11 segundos, contendo a seguinte formação: Pitty (vocal), Duda (bateria), Joe (baixo) e Martin (guitarra). A produção do álbum ficou por conta de Rafael Ramos, André T.

na gravação e mixagem, Jorge Guerreiro como assistente de mixagem e Bernie Grundman na masterização. A faixa “Desconstruindo Amélia” foi composta pela própria Pitty e por Martin.

Desde o lançamento do primeiro álbum, a cantora apresenta músicas com letras que quebram tabus por meio de muitas reflexões e certa agressividade melódica, oriundas das guitarras carregadas com riffs pesados de distorção. Compõem temáticas de sua carreira assuntos que tratam de controle social, alienação, sistema, relacionamentos possessivos, transformações e julgamentos, além das canções de amor. São álbuns com grandes hits e canções atemporais. Ela sabe produzir sons revolucionários, mantendo uma boa conexão com o próprio conceito de se “fazer rock”.

Em “Desconstruindo Amélia”, Pitty levanta a discussão sobre feminismo e a posição da mulher na sociedade contemporânea (ARRUDA, 2020). A letra foi consultada por meio do site letras.mus.br.

“Já é tarde, tudo está certo Cada coisa posta em seu lugar Filho dorme, ela arruma o uniforme Tudo pronto pra quando despertar

O ensejo a fez tão prendada

Referências

Documentos relacionados

6.5 Até o final do desenvolvimento do projeto, os itens patrimoniáveis (equipamentos e bens permanentes), adquiridos com recursos do presente edital, deverão ser patrimoniados na ICT

Se introduzir, no 7º passo, um outro código numérico, verificar-se-á o cancelamento da programação e o codificador por radiofrequência comuta para o funcionamento normal. 8 .2

Art. O administrador judicial será profissional idôneo, preferencialmente advogado, economista, administrador de empresas ou contador, ou pessoa jurídica

O piso salarial de ingresso do trabalhador motorista no posto revendedor, para 220 horas de trabalho mensal, é de R$ 1.048,03, para motoristas de jamanta, carreta, semi-reboque

ocorreu em razão do maior espaço aéreo gerado entre o meato auditivo externo e a parede óssea medial da bula, apesar dos variados graus de estenose do

Abdome: Semiologia Radiológica do Abdome (RX, US, TC e RM) Parte I: - Anatomia Normal nos diferentes métodos de imagem;.. - Semiologia Radiológica na interpretação da Radiografia

Política específica para Agricultura Familiar Politicas temáticas Desenvolvimento Sustentável ou Territorial Rural Segurança Alimentar e luta conta a pobreza Argentina* SAGPyA,

método psicanalítico que tem primazia sobre as teorias e técnicas, toda vez que o empregamos devemos conservar um posicionamento de máxima proximidade ao acontecer