• Nenhum resultado encontrado

Fredie Didier Jr. Hermes Zaneti Jr. Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL. Processo Coletivo. 16 a Edição. revista atualizada ampliada

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "Fredie Didier Jr. Hermes Zaneti Jr. Curso de Direito PROCESSUAL CIVIL. Processo Coletivo. 16 a Edição. revista atualizada ampliada"

Copied!
32
0
0

Texto

(1)

2022

16

a

Edição

revista atualizada ampliada

Hermes Zaneti Jr.

Curso de Direito

PROCESSUAL

CIVIL

Processo Coletivo

4

(2)

Introdução ao estudo do processo coletivo

Sumário •1. Conceito de processo coletivo, ação coletiva e tutela jurisdicional coletiva – 2. Três conceitos fundamentais para a compreensão do processo cole- tivo: grupo, membro do grupo e condutor do processo coletivo – 3. Instrumentos para a tutela das situações jurídicas coletivas no direito brasileiro: a ação coletiva e o julgamento de casos/questões repetitivos – 4. A centralização de processos repetitivos como objeto da cooperação judiciária nacional e instrumento da tutela coletiva – 4.1. Generalidades; 4.2. Centralização e modificações de competência – 5.

O processo coletivo como espécie de “processo de interesse público” (public law litigation): Interesse público primário e interesse público secundário no controle jurisdicional de políticas públicas; 5.1. Generalidades; 5.2. Modelo experimentalista de reparação e medidas estruturantes (structural injunctions e specific performance);

5.3. Interesse público primário e interesse público secundário; 5.4. A implementação e controle de políticas públicas por parte do Poder Judiciário (judicial activism, judicial restraint e ativismo judicial seletivo): ativismo da lei e da Constituição em matéria de políticas públicas no Brasil; 5.5. Para além da “politização da justiça”

em uma democracia de direitos: uma conclusão parcial – 6. O microssistema processual coletivo, o papel do Código de Defesa do Consumidor e o diálogo das fontes com o CPC-2015 (era da recodificação); 6.1. Generalidades; 6.2. O CDC como um “Código de Processo Coletivo Brasileiro”; 6.3. O microssistema do pro- cesso coletivo. As relações entre o CPC-2015 e o direito processual coletivo – 7. Legislação e procedimentos relacionados à tutela coletiva: procedimento comum das causas coletivas (art. 21 da LACP e art. 90 do CDC) – 8. Cultura brasileira da tutela jurídica coletiva.

1. CONCEITO DE PROCESSO COLETIVO, AÇÃO COLETIVA E TUTELA JURISDICIONAL COLETIVA

Qualquer teoria pressupõe um conceito primário1, do qual todos os demais são satélites.

O conceito primário do estudo sobre o processo coletivo é, obvia- mente, o conceito de processo coletivo. A definição deste conceito serve a clareza do raciocínio a ser desenvolvido.

1. VILANOVA, Lourival. “Sobre o conceito do Direito”. Escritos jurídicos e filosóficos. Brasília: Axis Mundi/

IBET, 2003, v. 1, p. 10; DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. 3ª ed.

Salvador: Editora Juspodivm, 2013, p. 75 e segs.

(3)

O processo é coletivo se a relação jurídica litigiosa (a que é objeto do processo) é coletiva. Uma relação jurídica é coletiva se, em um de seus termos, como sujeito ativo ou passivo, encontra-se um grupo (comunidade, categoria, classe etc.; designa-se qualquer um deles pelo gênero grupo) e se a relação jurídica litigiosa envolver direito (situação jurídica ativa) ou dever ou estado de sujeição (situações jurídicas passivas) de um determi- nado grupo. Assim, presentes o grupo e a situação jurídica coletiva, temos um processo coletivo.

Assim, processo coletivo é aquele em que se postula um direito coletivo lato sensu (situação jurídica coletiva ativa)2ou que se afirme a existência de uma situação jurídica coletiva passiva (deveres individuais homogêneos, p. ex.)3de titularidade de um grupo de pessoas.

Observe-se, então, que o núcleo do conceito de processo coletivo está em seu objeto litigioso e na tutela do grupo: coletivo é o processo que tem por objeto litigioso uma situação jurídica coletiva ativa ou passiva de titularidade de um grupo de pessoas.

A definição trata da especificidade que distingue o processo coletivo dos demais e, como veremos mais adiante, permite falar de processo cole- tivo no Brasil como um gênero que tem espécies como as ações coletivas e o incidente de julgamento de casos repetitivos.4

Essa definição distingue-se da proposta por Antonio Gidi:

“Segundo pensamos, ação coletiva é a proposta por um legitimado autônomo (le-gitimidade), em defesa de um direito coletivamente considerado (objeto),

2. Direitos difusos, direitos coletivos em sentido estrito e direitos individuais homogêneos, no caso do direito brasileiro (art. 81 do Código de Defesa do Consumidor).

3. Sobre o processo coletivo passivo, ver capítulo próprio neste volume do Curso.

4. O conceito de processos coletivos para fins de direito comparado é bastante amplo. A amplitude confirma o acerto deste conceito proposto, que poderá incluir outras técnicas, como sugerido adiante.

A amplitude pode ser percebida na seguinte passagem dos Principios de Processo Coletivo do American Law Institute: “Um processo coletivo é um processo único que abarca pretensões ou defesas sustenta- das por muitas partes ou pessoas representadas” (ALI. Princípios del derecho de los procesos colectivos.

Francisco Verbic (trad.). Mexico D.F.: Universidad Autónoma de Mexico, 2014, existe tradução para o português por DANTAS, Bruno (trad.). Princípios do Direito: Processo Agregado. São Paulo: RT, 2017). A pesquisa internacional realizada na Europa também chegou a um resultado similar, especialmente para as ações coletivas junto aos tribunais: “The (judicial) collective action is a representative or non-representative action brought by a group representative acting on behalf of a group of persons who are confronted with the same or similar legal and/or factual issues.” HODGES, Christopher; VOET, Stefaan. Delivering Collective Redress. New Technologies. Oxford: Hart, 2018, p. 43. O Draft das Regras Modelo de Direito Processual para a Europa, projeto em andamento do ELI (European Law Institute) e do UNIDROIT, apresenta um conceito igualmente amplo: “A collective redress action is an action which is brought by a qualified claimant on behalf of a group of persons who he claims are affected by an event giving rise to mass harm, but where those persons are not parties to the action (“group members”)”, ver, https://bit.ly/2POBPV3.

(4)

cuja imutabilidade do comando da sentença atingirá uma comunidade ou coletividade (coisa julgada). Aí está, em breves linhas, esboçada a nossa definição de ação coletiva. Consideramos elementos indispensáveis para a caracterização de uma ação como coletiva a legitimidade para agir, o objeto do processo e a coisa julgada”.5

Não parece correto pôr, na definição de processo coletivo, as cir- cunstâncias de ser instaurado por um legitimado autônomo e de ter um especial regime de coisa julgada.

Em primeiro lugar, a legitimidade extraordinária não é uma exclu- sividade dos processos coletivos – não é, enfim, uma sua especificidade.

Basta lembrar os casos de legitimação extraordinária individual existentes em todos os ordenamentos jurídicos; v.g., no ordenamento brasileiro, a legitimação extraordinária: a) do Ministério Público para promover ação de alimentos para incapaz; b) da administradora de consórcio para cobrar valor mensal do consorciado; c) do terceiro que pode impetrar mandado de segurança em favor de outra pessoa, nos termos do art. 3º da Lei n.

12.016/2009 etc.

Além disso, é possível cogitar, ao menos no direito brasileiro, uma ação coletiva ajuizada pela própria comunidade envolvida: a ação co- letiva proposta pelas comunidades indígenas: art. 37 da Lei Federal nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio): “Os grupos tribais ou comunidades in- dígenas são partes legítimas para a defesa dos seus direitos em juízo, cabendo-lhes, no caso, a assistência do Ministério Público Federal ou do órgão de proteção ao índio”. Nestes casos a legitimação é ordinária.

Também o regime da coisa julgada não é uma especificidade do proces- so coletivo. Dizer que a coisa julgada vinculará à coletividade, em processo coletivo, não acrescenta nada ao conceito, já que, sendo a situação jurídica litigiosa pertencente à coletividade, obviamente eventual coisa julgada a ela dirá respeito.

O próprio julgamento de casos repetitivos (art. 928, CPC) é incidente que serve à tutela coletiva e não produz coisa julgada, como se verá a seguir.

Além disso, nada impede que o legislador crie uma disciplina de coisa julgada coletiva que, em certos casos, não vincule a coletividade – por exemplo, a coisa julgada penal somente ocorre nos casos de sentença absolutória, ou, ainda, o regime da extensão dos efeitos da coisa julgada

5. GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 16. Regis- tre-se que seguimos substancialmente, com pequena diferença, o conceito de Gidi até a 8ª ed. deste volume do Curso.

(5)

secundum eventum litis apenas para beneficiar os titulares dos direitos individuais, disciplinado no Código de Defesa do Consumidor (art. 103 da Lei nº 8.078/1990).

Legitimidade, competência e coisa julgada coletivas não compõem o conceito de processo coletivo. Todas elas poderão receber disciplina ju- rídica própria, peculiar em relação ao processo individual, mas não é isso que torna coletivo um processo. O exame de cada uma delas é importante para identificar como se estrutura o processo coletivo em determinado país, mas não para identificar o que é um processo coletivo.

É certo que, após a definição do processo coletivo, será necessário definir um regime de garantias processuais adequadas a ele, assim como são previstas garantias para os processos jurisdicionais individuais, mas esse é um momento seguinte, que não interfere no conceito definido. Aliás, a importância da distinção é exatamente esta: isolar os objetos permite perceber as diferenças no arco de seu desenvolvimento teórico.

O processo coletivo brasileiro, por exemplo, tem suas próprias carac- terísticas – variáveis, pois decorrentes de regras jurídicas que podem ser alteradas. Essas características compõem o devido processo legal coletivo brasileiro; compõem, enfim, o perfil dogmático do processo coletivo no Brasil.

São elas: a) a legitimação para agir, normalmente atribuída a um legitimado extraordinário ope legis; b) o regime da coisa julgada coletiva, que permite a extensão in utilibus para as situações jurídicas individuais;

c) a caracterização da litigação de interesse público, que é requisito para o prosseguimento de um processo coletivo, flexibiliza o procedimento a favor da tutela de mérito e determina a intervenção obrigatória do Ministério Público como fiscal do ordenamento jurídico em todos os processos. Todas são características contingenciais do processo coletivo brasileiro – não compõem, porém, o conceito de processo coletivo.

Note que, alterada regra sobre legitimidade (permitindo a legitimação ordinária coletiva, como no caso das comunidades indígenas, ou criando uma regra aberta, como no direito estadunidense) ou sobre a coisa jul- gada (estendendo a coisa julgada também para prejudicar os indivíduos membros do grupo, como acontece nas ações eleitorais no Brasil), não se altera o conceito de processo coletivo: altera-se, apenas, a sua estrutura dogmática. Alterações desse tipo, no entanto, devem ser feitas com muita cautela, sobretudo porque tocam em pontos sensíveis, relacionados ao contraditório e ao devido processo legal.

Conceituado processo coletivo, chega-se mais facilmente aos conceitos de ação e tutela jurisdicional coletivas.

(6)

Ação coletiva é, pois, a demanda que dá origem a um processo coletivo, pela qual se afirme a existência de uma situação jurídica coletiva ativa ou passiva exigida para a tutela de grupo de pessoas.

Tutela jurisdicional coletiva é a proteção que se confere a uma situação jurídica coletivaativa (direitos coletivos lato sensu de um grupo de pessoas) ou a efetivação de situações jurídicas (individuais ou coletivas) em face de uma coletividade (grupo), que seja titular de uma situação jurídica coletiva passiva (deveres ou estados de sujeição coletivos).

A conceituação correta de um objeto não é tarefa de somenos.

O primeiro ato de qualquer abordagem científica do Direito é identificar o que se está investigando. Se se pretender, por exemplo, fazer um estudo de direito comparado entre os sistemas de proteção aos direitos coletivos, nos mais diversos países, antes de tudo é preciso definir o que se entende por processo coletivo, para, em seguida, iniciar a comparação.6

A identificação precisa do que seja processo coletivo serve, ainda, para evitar um equívoco comum: confundir ação civil pública com ação coletiva. Ação civil pública é um exemplo, uma espécie, de ação coletiva.

Há diversos procedimentos para a tutela coletiva; o procedimento da ação civil pública é apenas um deles.

Há outros procedimentos especialmente criados para servir às causas coletivas: a ação popular7 (Lei nº 4.717/1965 e art. 5º, inc. LXXIII), a ação civil pública, o mandado de segurança coletivo (art. 5º, inc. LXX, da CF/88) e as ações coletivas para defesa de direitos individuais homogêneos (arts.

91 a 100 do CDC) e, para alguns, a ação de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/1992)8 etc.

Também existe tutela coletiva no âmbito eleitoral: a ação de im- pugnação de mandato eletivo é, sobretudo, uma ação coletiva.9

6. Essa noção serve para atender à preocupação de Michele Taruffo (1943-2020) com as particularidades de cada ordenamento jurídico. Um dos maiores comparatistas italianos dedicou parte de sua obra a analisar os processos coletivos. Um exemplo dessa análise está no seminal artigo de 1969, pioneiro no civil law, ao apresentar as reformas das class actions (Federal Rules of Civil Procedure n. 23, alteração de 1966), cf. TARUFFO, Michele. I limiti soggetivi soggetivi del giudicato e le “class actions”. Rivista di Diritto processuale, 1969, v. XXII, p. 609-636.

7. Sobre a defesa de direitos difusos pela ação popular, ver MOREIRA, José Carlos Barbosa. “A ação pop- ular do direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional dos chamados interesses difusos”.

In: Temas de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 110-123.

8. Ver nota específica nesta edição sobre a Lei 14.230/2021 na qual os autores divergem sobre a ma- nutenção ou não da ação de improbidade no microssistema do processo coletivo.

9. CHEIM JORGE, Flávio; ABELHA RODRIGUES, Marcelo. “A limitação à utilização do inquérito civil no direito eleitoral: a inconstitucionalidade do art. 105-A da Lei 9.504/1997”. Revista de Processo, v. 235, 2014, p. 13-20.

(7)

Os dissídios coletivos trabalhistas também são exemplos de ação coletiva, ainda que não se enquadrem no microssistema de forma perfeita, por terem uma história e um desenvolvimento dogmático específico.

Para uma determinada concepção, a ação penal condenatória é, também, substancialmente, uma ação coletiva. Evidentemente aqui a con- fusão é parecida com aquela que ocorre no controle de constitucionalidade concentrado, toma-se o interesse público na aplicação da lei penal, como se fosse um direito difuso. É um equívoco tanto do ponto de vista teórico, quanto do ponto de vista histórico e prático. Não há um direito subjetivo coletivo à pena por parte do cidadão, evidentemente a antiga “pretensão punitiva” estatal não se constitui em posição jurídica coletiva, em direito difuso. O “direito processual punitivo” tutela processualmente a efetividade e garantias do direito penal e do direito administrativo sancionador. É pos- sível, contudo, pensar em exemplos de ações penais de conteúdo coletivo, como, v.g., o habeas corpus coletivo (ver Cap. 3, item 7.3). Também é possível uma visão diferente, reservando um espaço privilegiado de discussão para bens jurídicos coletivos lato sensu, que se identificam com os direitos co- letivos defendidos pelos autores deste texto, a exemplo do meio ambiente, do direito econômico, do direito do consumidor, da ordem urbanística etc.

Para esses bens, teria surgido um direito penal supraindividual, no qual se verifica que a tutela desses bens jurídicos coletivos, surgidos com mais força após a Constituição de 1988 – bens ligados muitas vezes a uma mac- rocriminalidade – se dá de forma especial, diferente da tutela do “direito penal básico”, “restrito à tipificação de condutas atentatórias contra a vida, a saúde, a liberdade e a propriedade (denominado também de Direito Penal nuclear) (…)”10. Nestes casos a relação com o microssistema do processo coletivo ocorre inclusive com a possibilidade de ação coletiva ex delicto para tutelar a responsabilidade civil decorrentes do ato antijurídico ou ilícito já confirmado na esfera penal.

O mesmo fenômeno ocorre com o direito penal e em relação ao dire- ito administrativo sancionador. Conforme Fábio Medida Osório: “O certo é que (...) os ilícitos administrativos estão, à semelhança do que ocorre com os ilícitos penais, a serviço de valores substantivos. Não parece ra- zoável distinguir normas penais de normas administrativas a partir dos

10. FISCHER, Douglas. Delinquência econômica e estado social e democrático de direito: uma teoria à luz da constituição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. No mesmo sentido: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge Silveira. “Direito Penal Supra-individual”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. Note-se que o próprio CDC permitiu o transporte in utilibus da eficácia da sentença penal, nos termos do art. 103,

§ 4º, originando uma nova hipótese de actio civilis ex delicti, a “ação coletiva ex delicti” ou “ação civil pública ex delicto”. (TAHIM JR., Anastácio Nóbrega. “Ação civil pública ex delicto”. Revista de Processo.

São Paulo: RT, 2004, n. 115, p. 28-54).

(8)

valores tutelados ou da imoralidade inerente a umas ou outras infrações.

Valores éticos podem e devem ser protegidos pelo Direito Administrativo.

Inexiste óbice nesse sentido. Basta que a presença reguladora ou sancio- nadora do Estado seja reclamada pela realidade social. E o Direito Penal, a seu turno, está cada vez mais pragmático, tutelando interesses difusos e coletivos, muito mais centrado na defesa de direitos constitucionais do que propriamente na justificação moral de seus preceitos proibitivos.”11 O

“direito processual punitivo” inclui o direito penal e o direito administra- tivo sancionador, sendo instrumento do direito sancionador a ação civil pública punitiva.12

2. TRÊS CONCEITOS FUNDAMENTAIS PARA A COMPREENSÃO DO PROCESSO COLETIVO: GRUPO, MEMBRO DO GRUPO E CONDUTOR DO PROCESSO COLETIVO

É preciso apresentar três definições importantes para a compreensão da tutela jurisdicional coletiva.

Grupo. Grupo é o sujeito de direito que é titular da situação jurídica coletiva afirmada em um processo coletivo. É, assim, sujeito de um dos po- los da relação jurídica afirmada (litigiosa) no processo coletivo. Categoria, classe, comunidade e coletividade são termos sinônimos, embora este Curso prefira o termo grupo.

Membro do grupo. O grupo é sempre um conjunto de outros sujeitos de direito. Os sujeitos de direito que compõem o grupo são os membros do grupo. O membro do grupo pode ser um indivíduo ou um outro grupo – há, assim, grupo de indivíduos ou grupo de grupos.

É possível conceber, por exemplo, um grupo de todas as comunidades indígenas brasileiras, ou de todas as comunidades indígenas amazônicas – grupos de grupos; é possível, obviamente, cogitar grupo composto pelos indivíduos vítimas de um fato do produto (adquirentes de carro que veio

11. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: RT, 2020, Cap. 6.

12. “Pensamos que o Direito Processual Punitivo talvez devesse merecer maior atenção, inclusive, na seara da processualística como um todo. Há, indiscutivelmente, uma crescente aproximação entre normas de Direito Processual Administrativo e Direito Processual Judiciário. Também existem aproximações ainda mais convergentes entre normas de Direito Processual Penal e normas de Direito Processual Administrativo, além da inegável aproximação entre Direito Processual Civil e Direito Processual Penal na regulação de determinados tipos de relações. Desse contexto é que nasce e se desenvolve um conjunto específico de normas processuais agrupáveis debaixo da categoria que se pode designar como Direito Processual Punitivo: Direito Processual Administrativo, Direito Processual Judiciário Civil (ações civis públicas punitivas ou controle da Administração Pública no tocante ao exercício de pretensão punitiva) e Direito Processual Judiciário Penal (fonte inspiradora de garantias, regras e

princípios).” (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: RT, 2020, Cap. 6).

(9)

com defeito de fábrica, p. ex.). Lembre-se, a pretensão coletiva não é de titularidade do membro do grupo, mas do próprio grupo.

Também é possível conceber um grupo a partir das ações coletivas e individuais tramitando quando do julgamento dos casos repetitivos, que serão afetados pela tese jurídica fixada no incidente de resolução de deman- das repetitivas ou nos recursos extraordinário ou especial repetitivos; este grande grupo é formado somente por aqueles que estão em juízo discutindo a tese jurídica objeto do julgamento de casos repetitivos, que se subdividirá em tantos grupos quantas sejam as soluções defendidas para essa tese ju- rídica, e pelos grupos tutelados nas ações coletivas ajuizadas.

Nas ações coletivas, o membro do grupo pode ser beneficiado com a decisão favorável ao grupo, independentemente de qualquer manifestação sua para aderir ao grupo. No julgamento de casos repetitivos, outra espécie de processo coletivo, o sujeito de direito que deseje ser membro do grupo – na hipótese de não haver ação coletiva pendente - precisa manifestar sua intenção em fazer parte do grupo, ajuizando sua ação individual. Em ambos os casos, ações coletivas e casos repetitivos, o membro do grupo, no direito brasileiro, tem a possibilidade de se excluir do grupo.

Condutor do processo coletivo. A parte do processo coletivo costuma ser, como regra, um terceiro, legitimado extraordinário, que nem é o grupo nem é membro do grupo. O Ministério Público, ao propor uma ação coletiva, por exemplo, atua como legitimado extraordinário, pois pretende defender em juízo situação jurídica que não titulariza; o Ministério Público não é, no caso, o grupo cujo direito se busca tutelar, nem é membro desse grupo.

Essa é a regra do processo coletivo brasileiro.

Excepcionalmente, há o caso da comunidade indígena, que, no Brasil, pode ser parte em processo coletivo; nesse caso, o próprio grupo é o condutor do processo coletivo. Trata-se de hipótese rara e possivelmente a única do Direito brasileiro. Não obstante, concepção mais atual sobre a legitimidade na tutela coletiva defende que, ao longo do processo coletivo, se deva, na medida do possível, promover a participação do grupo, por meio de audiên- cias públicas e prestação de contas. Essa participação dá mais legitimidade à decisão e amplia a possibilidade de acerto e efetividade prática daquilo que for decidido, especialmente em relação às políticas públicas, mas não se pode esquecer que, em grande medida, a tutela dos direitos fundamentais é contramajoritária e a participação não é pressuposto para sua tutela.

O membrodo grupo também raramente pode ser o condutor do proces- so coletivo. No Brasil, o membro do grupo pode ser o condutor do processo coletivo nos casos da ação popular ou quando conduz o processo-piloto no julgamento de casos repetitivos. Nesses dois casos atua em nome

(10)

próprio para defesa dos interesses do grupo, mesmo que também defenda interesses próprios. A possibilidade de conflito de interesses entre esse legitimado e o grupo deve ser hipótese de exclusão de sua legitimidade.

Há casos, ainda, que, embora não possa ser o proponente da ação coletiva, o membro do grupo poderá dele fazer parte como terceiro interveniente.

Esses três conceitos são, ainda, importantes, para que se possa com- preender a coisa julgada coletiva: a coisa julgada coletiva atinge o grupo e, como regra, apenas se estende ao membro do grupo se favorável.

Tudo isso será visto com minúcia nos capítulos respectivos deste volume do Curso: legitimidade, intervenção de terceiro e coisa julgada.

Estes conceitos são importantes também para entender as duas es- pécies, principais, do processo coletivo brasileiro atual. O gênero processo coletivo se subdivide em ações coletivas e casos repetitivos, como veremos a seguir.

3. INSTRUMENTOS PARA A TUTELA DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS CO- LETIVAS NO DIREITO BRASILEIRO: A AÇÃO COLETIVA E O JULGA- MENTO DE CASOS/QUESTÕES REPETITIVOS13

No Direito brasileiro, as situações jurídicas coletivas podem ser tuteladas por dois tipos de instrumento: as ações coletivas, objeto prin- cipal deste volume do Curso, e o julgamento de casos repetitivos (art.

928, CPC), examinado no v. 3 deste Curso, como tipo de incidente em processos que tramitam em tribunais – é preciso consultar esse capítulo do v. 3 para a compreensão do panorama geral sobre o julgamento de casos repetitivos.14

13. Na doutrina, afirmando a superioridade do processo coletivo das ações coletivas em relação aos casos repetitivos, ver PIZZOL, Patrícia Miranda. Tutela Coletiva. Processo Coletivo e Técnicas de Padronização das Decisões. São Paulo: RT, 2020.

14. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes destacou que, além das ações coletivas e do modelo casos repet- itivos (IRDR e REER), os meios consensuais de resolução de conflitos coletivos, como o TAC, também fazem parte do que ele denomina Direito Processual Coletivo. MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro.

Incidente de resolução de demandas repetitivas: sistematização, análise e interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p.04. Ver ainda, GRINOVER, Ada Pellegrini. Ensaio sobre a Processualidade. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016. Para este Curso a autocomposição é considerada uma forma adequada de tutela jurídica, não necessariamente pertencente ao Direito Processual, mas sendo importante capítulo do Direito Coletivo. É de se observar que o conceito aqui utilizado trata, portanto, das duas espécies principais de tutela jurisdicional coletiva no Brasil, sendo possíveis outras (como, v.g., as ações por representação denominadas pelo STJ e STF “ações coletivas ordinárias” e os atos concertados entre juízes cooperantes para produção de prova e centralização de processos repeti- tivos, art. 69, § 2º, II e VI, CPC). Na doutrina internacional atualmente se defende a possibilidade de cumular os diversos mecanismos de tutela coletiva, sendo que os melhores sistemas devem contar conjuntamente com ações coletivas, autocomposição coletiva e agências reguladoras/ombudsman, HODGES, Christopher; VOET, Stefaan. Delivering Collective Redress. New Technologies. Oxford: Hart, 2018.

(11)

Ambos os instrumentos podem ser considerados “processos coletivos”

15, nos termos defendidos neste Curso, pois têm por objeto a solução de uma situação jurídica coletiva – titularizada por grupo/coletividade/co- munidade.

Na ação coletiva, a situação jurídica coletiva é a questão principal do processo – o seu objeto litigioso. Algumas questões não podem ser questões principais de ação coletiva, tendo em vista a proibição decorrente do art.

1º, par. ún., Lei n. 7.347/1985.16 O seu propósito é a prolação de uma de- cisão final que tenha aptidão para a formação de coisa julgada coletiva:

a situação jurídica coletiva litigiosa passa a ser situação jurídica coletiva julgada. A coisa julgada pode ser desfeita pelos instrumentos usuais do processo coletivo (ação rescisória, ação para produção de prova nova capaz de por si só alterar o resultado da decisão anterior, resultante da coisa julgada secundum eventum probationis). No Direito brasileiro, a coisa julgada coletiva somente pode beneficiar os membros do grupo. A ação co- letiva pode ser proposta por alguns legitimados e a decisão final vincula o grupo, necessariamente, e os membros do grupo, no caso de ser favorável.

Pendente a ação coletiva, cabe ao membro do grupo, caso queira sair (opt out) do âmbito de incidência da ação coletiva, propor a sua ação individual ou nela prosseguir, uma vez informado da pendência do processo coletivo.

O julgamento de casos repetitivos tem por objeto a definição sobre qual a solução a ser dada a uma questão de direito (processual ou materi- al, individual ou coletivo; não há restrições como aquelas decorrentes do art. 1º, par. ún., Lei n. 7.347/1985) que se repete em diversos processos pendentes. Esses processos podem ser homogêneos (têm por objeto litigi- oso questão de direito semelhante) ou heterogêneos (têm objeto litigioso dessemelhante, mas há questões comuns, normalmente processuais, que se repetem em todos eles – em todos se discute, por exemplo, se uma pessoa jurídica pode ser beneficiária da gratuidade da justiça, embora nos processos pendentes a discussão de fundo seja totalmente diferente)17.

Para os autores: “The leading contenders for these tasks are the ‘new technologies’ of regulatory and ombudsmen mechanisms”, idem, p. 312, a conclusão também afirma que, pelo menos para a Europa, não devem ser autorizadas ações de grupo individuais ou coletivas para pessoas com poten- cial conflito de interesses, preferindo-se instituições públicas ou ombudsmen privados devidamente autorizados. As ações coletivas devem ser consideradas como mecanismos de “last resort”, quando as novas tecnologias não forem efetivas.

15. Em sentido diverso, entendendo que o incidente de resolução de demandas repetitivas não é uma técnica de processo coletivo, TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Salvador:

Editora Juspodivm, 2016, p. 91-92.

16. Ver adiante os fundamentos para a inconstitucionalidade das referidas limitações.

17. Percebendo o ponto, TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Salvador: Editora Juspodivm, 2016, p. 91 e ss.; TALAMINI, Eduardo. “A dimensão coletiva dos direitos individuais ho- mogêneos: ações coletivas e os mecanismos previstos no Código de Processo Civil”. Repercussões do

(12)

A repetição da questão em diversos processos faz com que surjam dois grandes grupos, e daí surgem as situações jurídicas coletivas respectivas.

Um grupo é formado pelos interessados que têm processos tramitando e o outro por aqueles sobre os quais os eventuais impactos do precedente formado poderão surtir efeito. Em razão da multipolaridade dos proced- imentos de julgamento de casos repetitivos, ainda é possível identificar a existência de subgrupos dentro de cada um dos grupos. Nunca haverá uma unidade completa acerca da interpretação que deverá ser conferida para a questão de direito, o que faz com que surjam diferentes subgrupos. Por exemplo, dentro do grupo das partes dos processos sobrestados, poderão existir um subgrupo que defende a interpretação x, um subgrupo que defende a interpretação y e ainda um outro que compreende que a inter- pretação z é mais adequada.

O julgamento de casos repetitivos tem alguns propósitos: a) definir a solução uniforme a uma questão de direito que se repete em processos pendentes, permitindo o julgamento imediato de todos eles em um mes- mo sentido; b) eventualmente, uma vez observadas as exigências formais e materiais do sistema de precedentes brasileiros (como, por exemplo, a obtenção de maioria sobre determinado fundamento determinante), produzir precedente obrigatório a ser seguido em processos futuros, em que essa questão volte a aparecer.

A tese jurídica vinculará todos os membros do grupo, independente- mente de o resultado ser favorável ou desfavorável, como precedente-norma; não se trata de coisa julgada, mas de força obrigatória do precedente.

O julgamento de casos repetitivos pode ser instaurado por provo- cação do próprio órgão julgador, do Ministério Público, da Defensoria Pú- blica ou da parte de um processo pendente. Os legitimados à propositura de ação coletiva, que não se encaixem em um dessas situações legitim- antes, poderão participar do incidente como intervenientes (assistentes ou amici curiae).

A tese jurídica que venha a ser a vencedora poderá ser revista após a instauração de um novo incidente de julgamento de casos repetitivos – note que não se trata de coisa julgada, que virá da aplicação da tese jurídica nos casos pendentes e futuros. A definição da questão de direito vincula todos os membros do grupo que estejam com processos pendentes ou que venham a ser ajuizados.

novo CPC – Processo Coletivo. Hermes Zaneti Jr. (coord.). Salvador: Editora Juspodivm, 2016, p. 127;

DIDIER Jr., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 13ª ed. Salvador:

Editora Juspodivm, 2016, v. 3, p. 587.

(13)

Para entrar (opt in) no âmbito de incidência dessa decisão, é preciso que o membro do grupo permaneça com o processo em andamento – por isso, o art. 1.040, § 2º, CPC, permite que o membro do grupo desista do seu processo, saindo do âmbito da incidência do julgamento de casos repeti- tivos – ou que proponha uma demanda (opte por ingressar com a demanda, opt in), de modo a que a decisão seja aplicada também ao seu caso.

As distinções entre as técnicas facilitam que se percebam, também, as semelhanças entre elas.

Além de ambas servirem à tutela de direitos de grupo, há aspectos técnicos semelhantes, como o regramento especial da desistência (seja da ação coletiva, seja do caso que deu azo à instauração do incidente de julgamento de casos repetitivos), a legitimação extraordinária para a provocação de um ou outro, a possibilidade de suspensão de processos individuais, a realização de audiências públicas, a intervenção obrigatória do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica e o aumento da par- ticipação de outros sujeitos no processo em qualquer dos casos.

O uso de uma técnica ou de outra dependerá, de um lado, evidente- mente, das definições estratégicas dos litigantes: legitimados coletivos, membros do grupo (litigantes eventuais) e os litigantes habituais. A bus- ca (ou a precaução contra) de uma coisa julgada ou de um precedente obrigatório são as variáveis em torno das quais discussões sobre os custos (financeiros, políticos, sociais etc.) da litigância surgirão.18 Opções como a desistência do caso em andamento (arts. 976, § 1º, 998, par. ún., e 1.040,

§ 1º, CPC), intervenção como amicus curiae ou interessado (art. 983, CPC), suscitação do incidente, escolha do caso de onde o incidente deva partir ou propositura da ação coletiva são ferramentas à disposição dos litigantes na definição de suas estratégias processuais.

De outro lado, a escolha da técnica a ser utilizada deverá observar o princí- pio da adequação. É também uma questão de estratégia processual do grupo.

Há situações jurídicas coletivas insuscetíveis de solução pela técnica da ação coletiva – é inconcebível a instauração de uma ação coletiva cujo propósito seja definir se uma pessoa jurídica (em tese) pode ser benefi- ciária da gratuidade da justiça ou para definir se um determinado bem pode ser penhorado ou não.19

18. Propondo a escolha estratégica e adequada entre processos coletivos opt in e opt out, cf. DODSON, Scott. An Opt-In Option for Class Actions. Michigan Law Review, vol. 115, n. 2, 2016.

19. Trabalhando a convivência entre o IRDR e as ações coletivas em defesa dos direitos individuais ho- mogêneos, Gustavo Silva Alves aponta algumas situações em que eventualmente será mais adequado utilizar-se de alguma das duas técnicas do modelo de julgamento de casos repetitivos: “(i) questões de

(14)

Do mesmo modo, há situações jurídicas coletivas insuscetíveis de solução por meio do julgamento de casos repetitivos. É inconcebível a instauração de um incidente de resolução de demandas repetitivas para definir se há o dever de uma indústria de colocar um filtro antipoluente em suas chaminés. Esse é um tipo de situação jurídica coletiva que somente pode ser veiculada por meio de ação coletiva20.

Pode haver, no entanto, coincidência entre os objetos de uma ação coletiva e um incidente de julgamento de casos repetitivos. Ou seja: uma mesma situação jurídica coletiva pode ser objeto de ação coletiva e de incidente de julgamento de casos repetitivos.

Basta pensar na hipótese de uma ação coletiva que versa sobre o “di- reito de alunas de universidade de usar saia” e um incidente de resolução de demandas repetitivas, eventualmente instaurado em razão da existência de diversas ações individuais ajuizadas por estudantes que queiram usar esse traje21. Quando isso acontecer, é preciso priorizar o julgamento da ação

direito que não podem ser objeto de tutela coletiva, como algumas demandas referentes ao direito tributário e previdenciário (art. 1º, parágrafo único, da Lei 7.347/85); (ii) situações jurídicas em que exista predominância dos aspectos individuais sobre os comuns, o que levaria a uma ineficácia da tutela coletiva e uma sobreposição do IRDR, o qual poderá oferecer uma solução mais célere, eficaz e adequada à controvérsia; (iii) e principalmente, questões comuns de direito material e processual extraídas de demandas heterogêneas quanto ao mérito” (ALVES, Gustavo Silva. “O incidente de res- olução de demandas repetitivas irá extinguir as ações coletivas em defesa dos direitos individuais homogêneos? A convivência dos dois mecanismos no ordenamento jurídico brasileiro”. In: Revista de Direito do Consumidor, v. 113, set./out., 2017, versão digital, p. 8-9).

20. ROQUE, André Vasconcelos. “As ações coletivas após o novo Código de Processo Civil: para onde vamos?”. Repercussões do novo CPC – Processo Coletivo. Hermes Zaneti Jr. (coord.). Salvador: Editora Juspodivm, 2016, p. 180. Assim como, a título exemplificativo, as ações coletivas também seriam mais adequadas em: “(i) situações jurídicas em que os danos causados ao grupo são de pequena monta, pois não existiria efetiva repetição de processos individuais que levasse à instauração do IRDR [uma vez que as demandas individuais simplesmente não seriam propostas por falta de estímulo finan- ceiro]; (ii) casos procedentes de um único ato lesivo, nos quais poderia acontecer o aproveitamento da produção probatória no processo coletivo a todas as pretensões individuais; (iii) controvérsias que envolvam a tutela de hipossuficientes, tendo em vista as condições socioeconômicas do Brasil e o número insuficiente de Defensores Públicos, pois nesses casos também não existiria uma efetiva repetição de processos, sendo mais adequado o uso das ações coletivas; (iv) situações em que a tutela coletiva, pela ampla cognição, seja mais adequada para a comprovação dos danos individualmente sofridos” (ALVES, Gustavo Silva. “O incidente de resolução de demandas repetitivas irá extinguir as ações coletivas em defesa dos direitos individuais homogêneos? A convivência dos dois mecanismos no ordenamento jurídico brasileiro”. In: Revista de Direito do Consumidor, v. 113, set./out., 2017, versão digital, p. 8). Observe-se, ainda, que, além da técnica das ações coletivas, haveria a possibilidade de se valer da conexão probatória, ato concertado de colaboração interna, de que trata o art. 69, § 2º, II do CPC, para o fim de produção de prova comum a ser utilizada em todos os processos.

21. Outro exemplo em que o uso das ações coletivas é tão adequado quanto o do incidente dos casos repetitivos é o da situação em que se busca a invalidação, por abusividade, de uma cláusula prefixada em um determinado contrato de adesão, com milhares de atingidos, cf., ALVES, Gustavo Silva. “O incidente de resolução de demandas repetitivas irá extinguir as ações coletivas em defesa dos direitos individuais homogêneos? A convivência dos dois mecanismos no ordenamento jurídico brasileiro”. In: Revista de Direito do Consumidor, v. 113, set./out., 2017, versão digital, p. 9. Perceba-se que situações dessa espécie

(15)

coletiva, por ser a técnica mais adequada, já que a situação jurídica coletiva leva à coisa julgada e é inteiramente conduzida por legitimado coletivo.

É possível, inclusive, criar uma diretriz para o incidente de resolução de demandas repetitivas em Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal:

a existência de ação coletiva, pendente no Estado ou na Região, enquanto não estiver no Tribunal, seria fato impeditivo da instauração do inciden- te; a pendência da ação coletiva deveria levar à suspensão, até mesmo de ofício, dos processos individuais, tal como defendido por este Curso no capítulo sobre conexão e relação entre processos individuais e coletivos, e sufragado pelo Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 1.110.549/RS (recurso especial repetitivo).

Além disso, no caso de serem distintos os objetos da ação coletiva e do incidente de julgamento de casos repetitivos – o que poderá ocorrer com frequência quando o julgamento de casos repetitivos tiver por objeto questão processual –, havendo entre as causas repetitivas uma ação co- letiva, ela deve ser a escolhida como caso piloto (causa representativa da controvérsia, nos termos do § 6º do art. 1.036 do CPC)22-23.

Há, assim, uma diretriz normativa no sentido de priorizar a tutela coletiva por ação coletiva. Essa opção revela-se com alguma clareza do art. 139, X, CPC: diante de casos repetitivos, é dever do juiz comunicar o fato aos legitimados, para que verifiquem a viabilidade do ajuizamento de uma ação coletiva. Perceba: constatando a repetição, o órgão julgador tem o dever de informar para fim de instauração da ação coletiva.

efetivamente têm ocorrido, como no caso dos expurgos inflacionários, no qual ocorreu a suspensão dos processos individuais para julgamento do processo coletivo; houvesse já processo coletivo no tribunal, poderia ter sido o caso de um incidente de resolução de demandas repetitivas, há época, inexistente.

22. Como, aliás, sugeriu CABRAL, Antonio do Passo. “A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2014, v. 231, p. 217-220; “Do incidente de resolução de demandas repetitivas”. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2ª ed. Antonio Cabral e Ronaldo Cramer (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1.457. Nessa linha, também, enunciado n. 615 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Na escolha dos casos paradigmas, devem ser preferidas, como representativas da controvérsia, demandas coletivas às individuais, observados os requisitos do art. 1.036, especialmente do respectivo § 6º”. Essa sugestão foi encampada no art. 8º da Recomendação n. 76/2020 do Conselho Nacional de Justiça.

23. No caso de Mariana, o maior desastre ambiental da história do Brasil, existirão, provavelmente, várias ações individuais de indenização, mas a ação coletiva já ajuizada para discutir a responsabil- idade e sua extensão deve ser analisada prioritariamente como caso piloto, caso ocorra a afetação a um incidente de resolução de demandas repetitivas, pois a característica de indivisibilidade do grupo, decorrente do litígio global envolvendo o meio ambiente, e a maior representatividade dos interesses do grupo na ação coletiva, são essenciais ao julgamento do incidente neste caso.

Muito embora exista uma concomitância de situações jurídicas distintas, há uma predominância da tutela coletiva. A ação coletiva neste caso não admite a opção pela exclusão; tutela direitos difusos. Quando a situação jurídica ambiental é principal, ou seja, é a questão jurídica debatida para formação da tese jurídica, a técnica das ações coletivas opt out deve predominar para garantir a adequada tutela.

(16)

Questão difícil é a compatibilização desse dever com a legitimi- dade do juiz de provocar a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 977, I, CPC). Duas são diretrizes desse Curso: a) o dever do art. 139, X, é compatível com a le- gitimidade do art. 977, I: o julgador pode cumprir o dever e provocar a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas24; b) o juiz somente pode provocar a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas caso haja algum processo no tribunal de onde o incidente possa ser gerado;

assim, tendo conhecimento da repetição, que se revela ainda apenas em primeira instância, cabe ao julgar apenas cumprir o seu dever previsto no art. 139, X, CPC. A previsão desse dever confirma dogmaticamente a tese aqui sustentada: o processo coletivo brasileiro possui duas espécies: a) ações coletivas; b) incidente de julgamento de casos/questões repetitivos. Ambas as técnicas possuem distinções e similaridades que permitem falar em um devido processo coletivo (fair trail, processo justo, giusto processo, procès équitable) para a tutela dos grupos e das situações jurídicas ativas e passivas coletivas.

Imagine, então, a seguinte situação: uma ação coletiva é escolhida como causa piloto para fim de julgamento de casos repetitivos – rigor- osamente, foi escolhido um recurso interposto no bojo de uma ação co- letiva. Se houver desistência desse recurso, poderá o Ministério Público ou qualquer outro colegitimado assumir o polo ativo do procedimento. A condução da discussão da tese jurídica a ser firmada continuará vinculada ao caso-piloto, pois se trata de desistência ineficaz. Em suma: aplica-se ao caso-piloto o regramento diferenciado da desistência ou abandono em processo coletivo (art. 5º, § 3º, Lei n. 7.347/1985). Nesse caso, a tese que vier a ser fixada aplicar-se-á ao caso-piloto.

Se o caso-piloto não for uma ação coletiva, a desistência é eficaz para fim de julgamento do caso. Mas como o incidente de julgamento de casos repetitivos é um processo coletivo, o Ministério Público assumirá a condução da discussão da tese jurídica a ser firmada, migrando da posição de fiscal da ordem jurídica para a posição de parte do incidente. Nesse caso, a tese a ser fixada não se aplicará ao caso-piloto25. O incidente será julgado, com a fixação da tese jurídica; o caso não será julgado. O incidente transforma-se de “ca- so-piloto” para caso-modelo, julgamento da tese sem a existência de um processo tramitando no tribunal. Em tal situação, cabe recurso

24. Nesse sentido, enunciado 658 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “O dever de comuni- cação previsto no inciso X do art. 139 não impede nem condiciona que o juiz suscite a instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas nos termos do inciso I do art. 977”.

25. Assim, enunciado n. 213 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “No caso do art. 998, parágrafo único, o resultado do julgamento não se aplica ao recurso de que se desistiu”.

(17)

contra acórdão que julga o incidente, cujo propósito é exclusiva- mente discutir a tese jurídica firmada26; esse recurso é um processo coletivo, pois seu objeto litigioso se resume à definição da situação jurídica coletiva; a esse recurso deve aplicar-se a regra da ineficácia da desistência infundada em processo coletivo (art. 5º, §3º, Lei n.

7.347/1985) e não a regra geral de desistência dos recursos (art.

998, CPC); ou seja, não será eficaz, sem justo motivo, a desistência de recurso interposto contra acórdão que julga incidente de casos repetitivos que tenha por objeto apenas a discussão da tese jurídica definida no incidente.

Assim, é preciso fazer a sintonia fina entre esses dois instrumentos que, juntos, compõem o complexo sistema da tutela de direitos coletivos no Brasil.

4. A CENTRALIZAÇÃO DE PROCESSOS REPETITIVOS COMO OBJETO DA COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA NACIONAL E INSTRUMENTO DA TU- TELA COLETIVA27

4.1. Generalidades

O art. 69, §2º, VI, autoriza a cooperação judiciária, por ato concerta- do, para a “centralização de processos repetitivos” (sobre a cooperação judiciária, ver capítulo respectivo no v. 1 deste Curso).

O termo “centralização de processos repetitivos” é indeterminado e não é de fácil compreensão dogmática. Isso porque o CPC, como regra, ad- ota “casos repetitivos” (mais genérica, art. 928) ou “demandas repetitivas”

(arts. 976 e segs.); “processos repetitivos” é expressão que apenas aparece no art. 69, no contexto da cooperação judiciária.

Há, portanto, duas opções interpretativas evidentes: ou bem se con- sidera “processo repetitivo” sinônimo de “caso repetitivo” ou “demanda repetitiva”, creditando o fato a um lapso de técnica legislativa, ou bem se considera “processo repetitivo” um termo com conteúdo dogmático próprio.

A redação do inciso X do art. 6º da Resolução n. 350/2020 do CNJ é clara ao relacionar a centralização de processos repetitivos com a “gestão” dos processos repetitivos, função daquele microssistema.

26. Assim, o enunciado n. 604 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “É cabível recurso especial ou extraordinário ainda que tenha ocorrido a desistência ou abandono da causa que deu origem ao incidente”. Nesse sentido, também, DIDIER Jr., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 13ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2016, v. 3.

27. Sobre o tema, DIDIER Jr., Fredie. Cooperação judiciária nacional: esboço de uma teoria para o Direito brasileiro (arts. 67-69, CPC). 2ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2021.

(18)

Situações jurídicas coletivas:

direitos coletivos lato sensu (difusos, coletivos e individuais homogêneos) e casos repetitivos

Sumário • 1. Introdução – 2. Conceito formal (estrutural) de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos; 2.1. Direitos ou “interesses”?; 2.2. Direitos difusos; 2.3. Direitos coletivos stricto sensu; 2.4. Direitos individuais homogêne- os; 2.4.1. Generalidades; 2.4.2. Direitos individuais homogêneos como direitos coletivos: visão crítica da doutrina dos “direitos individuais coletivamente trata- dos”; 2.4.3. O julgamento do RE n. 631.111/GO: Núcleo de Homogeneidade e Margem de Heterogeneidade – 3. Titularidade dos direitos coletivos lato sensu:

direitos subjetivos coletivos. – 4. Critérios para a identificação do direito objeto da ação coletiva. – 5. Dos direitos coletivos aos conflitos coletivos: a adequação do processo coletivo às peculiaridades do caso levado a julgamento. A proposta de Edilson Vitorelli; 5.1. Introdução; 5.2. Litígios coletivos de difusão global; 5.3.

Litígios coletivos de difusão local; 5.4. Litígios coletivos de difusão irradiada;

5.5. Cumulação de litígios de difusão irradiada com litígios globais e locais; 5.6.

Conclusão – 6. Situações jurídicas coletivas passivas; - 7. Ação repetitiva, ação pseudoindividual, ação relativa a relação jurídica plurilateral indivisível e ação individual com alcance coletivo: distinções e posturas do juiz – 8. Tópicos es- peciais; 8.1. Superendividamento e tutela coletiva; 8.2.Tutela coletiva do direito fundamental à proteção dos dados pessoais.

1. INTRODUÇÃO

O momento atual do Direito revela a necessidade de efetiva proteção de posições jurí�dicas que fogem à antiga fórmula individual credor/devedor.

Quando a doutrina passou a enfrentar o problema das ações coletivas, viu-se inicialmente com sérias dificuldades para definir conceitos para os novos direitos que lhe estariam na base da tutela, o que levou alguns juristas a afirmar que esses eram “personagens misteriosos”.1

1. VILLONE, Massimo. La Collocazione Istituzionale dell’Interesse Diffuso (Considerazioni sul sistema statunitense). In.: A. Gambaro. La Tutela degli Interessi Diffusi nel Diritto Comparato – con particolare riguardo alla protezione dell’ambiente e dei consumatori. Milano: Giuffrè, 1976, p. 71/91, especialmente, p. 73.

(19)

Como veremos neste capí�tulo, a tutela desses direitos tem uma feição estrutural no CDC. Denominam-se direitos coletivos lato sensu os direitos coletivos entendidos como gênero, dos quais são espécies: os direitos difusos, os direitos coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos.

Essa é a subdivisão feita pelo art. 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990): I – interesses ou direitos difusos;

II – interesses ou direitos coletivos; III – interesses ou direitos individuais homogêneos.

Em conhecida sistematização doutrinária, haveria os direitos/inte- resses essencialmente coletivos (difusos e coletivos em sentido estrito) e os direitos acidentalmente coletivos (individuais homogêneos).2 Partindo dessa proposta, Teori Zavascki classifica a tutela dos direitos como tutela de direitos coletivos (difusos e coletivos em sentido estrito) e tutela coletiva de direitos (direitos individuais homogêneos).3

Essa conhecida, difundida e tradicional solução doutrinária não é suficiente.

Este Curso analisa o problema a partir de três premissas básicas:

a)é preciso visualizar a questão pelas situações jurí�dicas coletivas, que podem ser ativas e passivas; assim, há os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos de um grupo, assim como há os deveres difusos, coletivos e individuais homogêneos; b) é preciso examinar o problema também pela perspectiva dos lití�gios coletivos, que podem ser divididos em três categorias: lití�gios globais, lití�gios locais e lití�gios de difusão irradiada; c) as situações jurí�dicas coletivas podem ser originadas pela formação de um grupo a partir da técnica de julgamento de questões repetitivas.

2. MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos”. Temas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1984, 3ª série, p. 195-197.

3. ZAVASCKI, Teori. Processo Coletivo. Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 4ª ed. [2001].

São Paulo: RT, 2014. O posicionamento de Teori Zavascki é dominante na doutrina nacional e com- parada. No mesmo sentido, SALGADO, José María. Tutela Individual Homogénea. Buenos Aires: Astrea, 2011. Mas o problema que suscita é um tratamento enfraquecido para os direitos individuais ho- mogêneos. O CPC previa ainda o incidente de conversão da ação individual em ações coletivas do art. 333, que seria outra técnica à disposição da resolução destes problemas, mas o texto foi vetado.

Defendendo o retorno do texto e sua utilidade: MORAIS, Dalton Santos. A perda da oportunidade de coletivização do processo contra o poder público no novo Código de Processo Civil. In.: ZANETI JR., Hermes (coord.). Processo Coletivo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 489/510, (DIDIER JR., Fredie, coord.

Geral. Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 8).

(20)

2. CONCEITO FORMAL (ESTRUTURAL) DE DIREITOS DIFUSOS, COLE- TIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

A tutela adequada, tempestiva e efetiva dos direitos dos grupos exige a proteção dos direitos dos grupos como direitos subjetivos, ou seja, como posições jurí�dicas que autorizam permissões especiais de aproveitamento ou situações jurí�dicas complexas que se revelam em uma dinâmica relação com os fatos da vida relevantes para o Direito.

A previsão formal das categorias de direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos é relevantí�ssima para este fim. Sem a dimensão estrutural dos direitos coletivos lato sensu a tutela dos direitos dos grupos esbarraria em resistências técnicas como: a) a afirmação de que esses direitos não são direitos, mas meros interesses; b) que não há titularidade, logo, não há possibilidade de se aferir a posição jurí�dica do grupo em abstrato; c) que a pretensão do grupo não encontra guarida no ordenamento jurí�dico por não ser prevista como pretensão coletiva (situação jurí�dica em abstrato).

Ao prever uma estrutura formal para a tutela coletiva o CDC garantiu aos grupos a possibilidade de veicular quaisquer pretensões afirmadas como pretensões coletivas em juí�zo, desde que dissessem respeito a uma coletividade de pessoas, reconhecendo a dimensão coletiva dos direitos subjetivos, já garantida pela Constituição.4

2.1. Direitos ou “interesses”?

Na legislação brasileira, revela-se comum a denominação conjun- ta “direitos e interesses” referindo-se a direitos difusos, direitos coleti- vos e individuais homogêneos (art. 129, inc. III da CF/1988, CDC, Lei n.

7.347/1985 etc.).

Contudo, em nosso entender, o termo “interesses” é expressão equí�- voca, sendo que não poucos juristas brasileiros apontaram a questão,5 seja

4. Na doutrina, afirmando que os casos atuais que atingem os grupos muitas vezes se qualificam como direitos substanciais autônomos, no plano material, e defendendo, ainda, que a maior parte dos litígios atualmente são decorrentes de pretensões isomórficas ou homogêneas, sendo a exceção os direitos individuais heterogêneos, RODRIGUES, Marcelo Abelha. Fundamentos da tutela coletiva. Bra- sília: Gazeta Jurídica, 2017, p. XII e passim. A percepção poderia ser desenvolvida pelos instrumentos de monitoramento do CNJ, para que soubéssemos com exatidão quais os litígios estão prevalecendo atualmente no direito brasileiro, quais suas características, permitindo um tratamento mais adequado (judicial ou case management).

5. Já se expressaram neste sentido autorizadas vozes da doutrina brasileira: Cf. OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. “A ação coletiva de responsabilidade civil e seu alcance”. In: BITTAR, Carlos Alberto (Coord.).

(21)

porque consideraram não existir diferença prática entre direitos e interes- ses, seja porque os direitos difusos e coletivos foram constitucionalmente garantidos (v.g., Tí�tulo II, Capí�tulo I, da CF/88) e, portanto, apresentam- -se como direitos. Ao que parece, deu-se mera transposição da doutrina italiana, um italianismo decorrente da expressão interessi legitimi e que granjeou espaço na doutrina nacional e, infelizmente, gerou tal fenômeno não desejado.

Por outro lado, a grande maioria dos juristas nacionais tem preferido manter a expressão “interesses”, porque: a) “a expressão direitos traz uma grande carga de individualismo, fruto mesmo de nossa formação acadê- mica”;6 b) há “evidente ampliação das categorias jurí�dicas tuteláveis para a obtenção da maior efetividade do processo”.7

Ousamos discordar.

Cabe, por dever de precisão, afastar a erronia. Vale lembrar, não se trata de defesa de interesses e, sim, de direitos, muitas vezes, previstos no próprio texto constitucional.

Exemplo de consequência não pretendida pelo legislador está na limi- tação imposta por parte da doutrina ao “mandado de segurança coletivo”.8 Os primeiros textos sobre o mandado de segurança coletivo traziam uma ad- vertência a respeito da impossibilidade de serem tutelados pelo writ “meros interesses”. Nesse sentido manifestavam-se, por exemplo, as vozes autoriza- das de José Cretella Junior9 e Celso Neves, como demonstra a crí�tica abaixo.

Afirmando que “interesses” não são tuteláveis por mandado de segu- rança coloca Celso Neves a noção clássica de direito subjetivo como poder da vontade vinculado a um interesse pessoal ou individual ao qual o Estado, mediante o ordenamento jurí�dico, confere coercibilidade como forma de atuação. Afirma, ainda, que “interesses simples” ou até mesmo “interesses

Responsabilidade civil por danos a consumidores. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 87-116, p. 98; PASSOS, José Joaquim Calmon de. Mandado de segurança coletivo, mandado de injunção e habeas data, p. 11.;

GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas, p. 17-18.

6. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Tutela jurisdicional coletiva. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 60.

7. LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: RT, 2002, p. 85.

8. Esta ação tipicamente brasileira, que não encontra similar no direito alienígena, excetuando uma “certa proximidade” com o juício de amparo, ganhou dimensão coletiva a partir da Carta Constitucional de 1988 (art. 5º, LXX). O mandado de segurança individual já foi objeto de diversos estudos compara- dos em língua espanhola, destes destacamos o trabalho de FIX-ZAMUDIO, Hector, RÍOS ESPINOZA, Alessandro, ALCALÁ-ZAMORA, Niceto. Tres estudios sobre el mandado de seguridad brasileño. México:

UNAM, 1963.

9. CRETELLA JUNIOR, José. Do mandado de segurança coletivo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.

77-79.

(22)

juridicamente protegidos” não podem ser tutelados pelo mandado de segurança ou qualquer outra ação porque justamente estão desprovidos da coercibilidade, não têm os seus titulares o “poder de vontade para a prevalência de seu interesse” que configuraria direito subjetivo.10

A essas observações podemos opor as seguintes considerações crí�ticas:

a) não se trata de tutela de interesses e sim de direitos subjetivos coletivos;

b) os titulares desses direitos subjetivos são aqueles indicados no art. 81, par.

ún. do CDC, sendo sua legitimação ad causam, nas ações coletivas brasileiras, atribuí�da às entidades expressamente listadas na legislação.

Baseado na perspectiva de direito processual “moderno”, conclui Celso Neves: “A autonomia do direito de ação não se compadece com tal extremo, porque ineliminável o binômio direito-processo, mormente num momento em que a instrumentalidade essencial da relação processual volta a ser proclamada, com redobrado vigor, pelos doutrinadores contemporâneos”.11

Aqui, também, devem ser feitas certas considerações. A instrumen- talidade consiste, justamente, em fornecer um instrumento hábil e eficaz para a defesa dos direitos. O processo é instrumento (meio) de realização do direito. A autonomia do direito de ação, nesse sentido, é primordial para que sob a égide de “preconceitos” de direito material, ou interpre- tações “fixas” não se evite a apreciação pelo Poder Judiciário da lesão ou ameaça ao direito afirmado pelo autor. Assim, ocorre um abrandamento do “ineliminável” binômio substância-processo, sempre orientado pelo fim:

o processo existe para a ordem jurídica justa.

No sentido do até agora exposto, contra a concepção estreita e ex- cludente de “interesses”, e voltados para a correção da erronia legislativa esforçaram-se os juristas brasileiros. Calmon de Passos, por exemplo, chama atenção para o “conteúdo de direitos, inclusive em sua dimensão subjetiva” com que se revestem os “interesses” coletivos, como também, para a inaplicabilidade do conceito de “interesses legí�timos” na atual rea- lidade democrática. Assim, “Trazer-se para o direito brasileiro categorias já sem funcionalidade como a dos interesses legí�timos, para colocá-los ao lado dos direitos subjetivos, ou pretender excluir os interesses transindi- viduais da categoria dos direitos subjetivos é insistir numa visão do di- reito, do Estado, da organização polí�tica e da sociedade já ultrapassada”.12

10. NEVES, Celso. Mandado de segurança, mandado de segurança coletivo e mandado de injunção. LTr, São Paulo, v. 52, n. 11, p. 1315-1320, nov/1998, p. 1.318.

11. NEVES, Celso. Mandado de segurança, mandado de segurança coletivo e mandado de injunção, p. 1.318.

12. PASSOS, José Joaquim Calmon de. Mandado de segurança coletivo, mandado de injunção e habeas data, p. 11.

Referências

Documentos relacionados

determinados sistemas ou fenômenos da natureza, usam modelos científicos, constituídos por proposições semânticas, representações externas simbólicas (como são as

•A Cyrela realizou a primeira emissão de debêntures no montante de R$ 500,0 milhões • Cisão da Cyrela Commercial Properties (CCP). •2 a emissão pública de debêntures

3 - Na contabilização do período normal de trabalho semanal referido no número anterior não é incluído o traba- lho suplementar prestado por motivo de força maior. 4 -

・ Não é possível a inscrição simultânea ao Pake-hodai double, Pake-hodai, Pake-hodai Full, Biz-hodai double, Biz-hodai simple, Biz-hodai ou Packet Pack.・ Aplicado o plano

Brasil e Algarves, em 7 Depois do curto reinado de Tito come ar com v rios O Coliseu conhecido como o maior s mbolo da cidade de Roma, e um dos. Pablo Yuri Raiol Santana |

A competition is open for the attribution of 1 Research Grant in the framework of the project ‘Mites associated with Red Palm Weevil (RPW; Rhynchophorus ferrugineus O.) in Portugal

Note que, alterada regra sobre legitimidade (permitindo a legitimação ordinária coletiva, como no caso das comunidades indí�genas, ou criando uma regra aberta, como no

O PROCESSO COLETIVO COMO ESPÉCIE DE “PROCESSO DE INTE- RESSE PÚBLICO” (PUBLIC LAW LITIGATION): INTERESSE PÚBLICO PRIMÁRIO E INTERESSE PÚBLICO SECUNDÁRIO NO CONTROLE JU-