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O cerco de BlairBruno Cardoso Reis

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Academic year: 2021

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AS DIFICULDADES DE TONY OU O BLAIR RICH PROJECT

2003 foi um ano agitado em terras britânicas.

O símbolo mais visível dessa agitação foi a maior manifestação de sempre em Londres, em Março, em oposição ao envolvimento britânico ao lado dos americanos na invasão do Iraque. Mas o mal-estar é mais profundo, ainda que o preço político da ligação de Blair ao actual presidente norte-americano não deva ser desvalorizado. Tony não parece ter conse- guido corresponder às enormes expectativas criadas pelo seu New Laboure pelo mote «cool Britannia». Uma notícia recente dava conta de que os cartões de filiados no Partido Traba- lhista, que desde há anos ostentavam orgulho- samente a etiqueta New Labour, tinham agora deixado cair o adjectivo…

Os serviços públicos continuam a enfrentar dificuldades de financiamento – como por todo o lado – embora para um português pare- çam funcionar muito razoavelmente. Porém, a verdade é que a intenção do primeiro-ministro de introduzir gestão empresarial nos hospitais públicos enfrentou uma revolta inaudita no último congresso trabalhista, e acabou mesmo rejeitada pela Câmara dos Lordes, que aliás Blair ainda não conseguiu acabar de reformar.

Os jovens seduzidos por Blair foram alienados por um aumento significativo das propinas

– alcunhado pela associação de estudantes de Cambridge de «Blair Rich Project» – que apenas conseguiu aprovação parlamentar por uma maioria de quatro votos, apesar da enorme maioria trabalhista na Câmara dos Comuns.

BLAIR, MP FOR TEXAS CENTRAL?

Não há dúvida, no entanto, de que este senti- mento de desilusão mais do que hostilidade em relação a Blair, azedou subitamente com o recente conflito no Iraque. Muitos britânicos, em particular os eleitores trabalhistas, têm grande dificuldade em aceitar a aliança de Blair com Bush II. A popularidade pessoal do primeiro-ministro foi grandemente afectada por esta percepção da sua subordinação ao

«texano tóxico», ao invés de aos eleitores britâ- nicos. Pela primeira vez Blair tornou-se menos popular do que o seu partido. Love Happens, filme em que participa a actriz portuguesa Lúcia Moniz, é bem a expressão, sob o formato da comédia romântica, do sonho de muitos britânicos de que o seu primeiro-ministro, aqui representado por Hugh Grant, acabará por sair deste sortilégio e enfrentar corajosa- mente a direita norte-americana! É verdade que não se vê grande alternativa. Mas o risco de um crescimento eleitoral ameaçador de conservadores e liberais-democratas pode tornar-se real se a situação se arrastar. Ainda

C A R T A D E L O N D R E S

O cerco de Blair

Bruno Cardoso Reis

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que o sistema eleitoral maioritário britânico – winner takes all– possa levar a um anular de forças dos dois partidos da oposição, pratica- mente empatados actualmente. Mas se os tories – que elegeram há pouco para líder Michael Howard, um político astuto e experiente – con- seguirem recuperar algo parecido ao seu nível de adesão tradicional, as próximas eleições poderão ser bem mais disputadas do que era previsível até há pouco.

BIG BROTHER NA POLÍTICA BRITÂNICA Uma série de livros recentemente publica- dos permitem espreitar o que se passou no Número 10 de Downing Street neste período tão rico em acontecimentos marcantes. Como testemunho destacam-se duas obras: Thirty Days de um antigo editor do Times, Peter Stothard, que obteve o estatuto de «repórter residente» em Downing Street durante um mês, antes e durante a invasão do Iraque, é um relato autorizado que troca o acesso rápido pela contenção; e The Point of Departure, de Robin Cook, que pode ser lido como um longo desenvolvimento, sob a forma de diálogo, do seu discurso de demissão do governo, de 17 de Março (incluído em apêndice), e que faz o registo dos acontecimentos por um dos mais destacados e sólidos opositores da guerra na Grã-Bretanha. Num registo mais analítico há que assinalar Blair’s Wars, de John Kampfner, um dos editores do New Statesman, que procura explicar a política externa de Tony aos perple- xos trabalhistas. Esta é uma boa obra explo- ratória de um facto inesperado – Blair, um político sem credenciais externas, líder de um partido que defendia o desarmamento unila- teral britânico ainda nos anos 80, tornou-se um dos primeiros-ministros britânicos mais belicistas do séculoXX, responsável por cinco importantes intervenções militares em oito anos de governo – os ataques aéreos ao Iraque

em 1998, e ao Kosovo, em 1999, e as operações na Serra Leoa, em 2000, no Afeganistão, em 2002, e no Iraque, em 2003. Kampfner conclui que estas foram, como indica o título da sua obra, sobretudo guerras de Blair, mais do que do país ou dos trabalhistas, pois tiveram de ser vendidas a ambos pelo primeiro-ministro, por vezes com dificuldade.

O que nos dizem de essencial estes livros sobre o lado britânico na crise internacional recente?

Desde logo, que as divisões na sociedade britâ- nica se reflectiram, até certa medida, no seio do próprio governo. Mas que Blair geriu a situa- ção com relativa facilidade com base no seu carisma, convicção e grande capacidade de argumentação pública, mas também graças a uma máquina política sólida e implacável, em que Alastair Campbell, o homem da comuni- cação, era a figura central. Depois, que a forma como Blair lidou com esta crise tem causas profundas. Numa visão progressista, optimista do mundo. Numa concepção da política como missão, que aponta para metas ambiciosas e controversas, e para não se desistir até alcançá- -las. Por fim, como corolário das anteriores, a enorme fé na capacidade dele próprio e da Grã-Bretanha para desempenharem um papel activo na criação de uma nova ordem interna- cional mais justa e democrática. Inicialmente este «belicismo humanitário», apesar de algo inesperado, enquadrou-se relativamente bem nas aspirações progressistas e democráticas tradicionais do trabalhismo. As coisas muda- ram quando a nova Administração republicana de Bush II obrigou Blair a escolher entre a Europa e a América, entre a sua propensão para derrubar ditadores que perturbavam a ordem internacional pela força e o seu respeito pela lei internacional, entre um multilateralismo de princípio e um unilateralismo eficaz.

Porque escolheu Blair alinhar com Bush II?

Kampfener refere, citando um diplomata do

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gabinete de Blair, que «a sua posição de partida é pró-americana, para o levarmos a opor-se aos EUA temos de apresentar um argumento especialmente forte». As razões são fáceis de perceber e ficam claras nestes três livros. Blair considera que só os EUAtêm o poder para moldar a sociedade internacio- nal. Portanto, só uma estreita ligação com Washington pode permitir ao governo britâ- nico ter real influência nesse esforço. É tam- bém claro que ele estava determinado a provar que a eleição de um republicano não afecta- ria o seu relacionamento privilegiado com Washington. Por fim, percebe-se que Blair pre- fere uma posição subordinada a Washington, do que uma posição marginal face ao eixo Paris-Berlim.

O problema para alguém como Cook é saber até que ponto Londres não ficará à margem das grandes decisões quer na América quer na Europa. Para ele é claro que os neoconser- vadores não só não se importaram com a hos- tilidade de muitos países aliados em relação a uma invasão do Iraque, como até viram nesse facto uma oportunidade para afirmar a pri- mazia americana. Rumsfeld seria o porta-voz dessa corrente quando afirmou, na véspera da invasão do Iraque, sem se importar com o enorme investimento político feito por Blair na questão, que os norte-americanos não preci- savam dos britânicos para avançar! O euro- peísmo de alguns membros da elite britânica é algo que é frequentemente ignorado. Mas não deixa de ser um facto. Apesar de a maioria dos políticos ter optado por uma postura populista relativamente à Europa que lhes rende votos fáceis. Cook diz aquilo que pelo menos alguns pensam em Whitehall – a ter de optar, a priori- dade de Londres deveria ser a Europa e não os EUA. É daí que virá uma real influência inter- nacional britânica, e não de uma relação subordinada a Washington, particularmente

se a direita unilateralista continuar no poder.

Cook considera que o temor britânico de ser marginalizado e isolado na Europa não tem fundamento e reflecte uma mentalidade deca- dentista e um complexo pós-imperial.

A MAIS VELHA ALIANÇA

Talvez devido a este seu europeísmo, Cook é o autor que dá mais espaço a Portugal (e é pouco, claro). Concretamente, regista a sua troca de impressões com Jaime Gama – que na sua última ida a Londres como ministro dos Negócios Estrangeiros tomou o pequeno- -almoço com ele – como um eco das suas preo- cupações por parte de um veterano da política externa europeia e representante de um país tradicionalmente amigo da Grã-Bretanha.

Gama teria dito a Cook que a impressão domi- nante nos fora europeus logo após o 11 de Setembro tinha sido a de admiração pelos britânicos, nomeadamente pela capacidade militar que demonstravam no Afeganistão, e também de alívio porque Londres parecia poder controlar os impulsos mais aventurei- ristas de Washington. Mas depois veio a per- plexidade porque afinal Blair não pesava mais junto de Bush II do que qualquer outro esta- dista europeu, e, no entanto, persistia em ficar ao seu lado.

Em Thirty Daysa Cimeira dos Açores também merece destaque. Porém, ela não corresponde a um grande protagonismo do governo por- tuguês, pelo menos na percepção do autor da obra. O arquipélago é apresentado como sendo simplesmente mais conveniente do que os Bar- bados ou uma visita de Bush II à Grã-Bretanha (que animaria os adversários de Blair). «Os por- tugueses» surgem ligados à insistência num jantar que não agradava a Blair que queria regressar o mais depressa possível a casa, e à preocupação de evitar um comunicado final demasiado belicista, que Alastair Campbell, o

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poderoso responsável pela comunicação no gabinete de Blair, teria classificado como um

«appeasement» covarde dos franceses! Pelos vis- tos, Tony não será o único a sofrer custos polí- ticos internos sem receber grande recompensa externa pelos seus esforços…

HUTTON E O IRAQUE

Fica claro nestas obras e nas suas declarações que Blair estava convencido de que o sucesso de curto prazo da intervenção militar, e de longo prazo em termos da reconstrução do Iraque, lhe iria permitir sair por cima. Seria mais um triunfo da sua visão que reforçaria a sua capacidade de liderança e lhe permitiria fazer avançar a sua agenda interna e externa.

O que se pode concluir nesta altura é que o esforço para vender junto da opinião pública a invasão do Iraque custou a Blair o maior e mais trágico escândalo da sua carreira política.

A denúncia pela BBC de pressão política na divulgação de informações «secretas» em Setembro de 2002 para reforçar os argumen- tos para invadir o Iraque, acabou por levar a uma enorme pressão do governo, culmi- nando na oferta de tréguas por Geoff Hoon, o ministro da Defesa, em troca de abafar o nome da fonte entretanto descoberta. A poderosa BBCrecusou o acordo, por considerar que tal violaria a sua independência editorial. Acabou tudo nos jornais, e o tratamento de choque a que foi submetido o especialista em armas químicas e biológicas que tinha estado na origem da questão levou-o ao suicídio. Entre- tanto, o inquérito Hutton à morte de David Kelly tornou-se uma fonte muito rica de infor- mações sobre o que se passou neste período.

O relatório final, que acabou de ser publicado, era ansiosamente esperado. E apesar de ser inteiramente favorável ao governo, não permi- tiu encerrar o incidente ou restaurar a popula- ridade de Blair. A Alastair Campbell, uma das

eminências pardas do New Labour, esta crise já tinha custado o lugar. E o ministro da Defesa, Geoff Hoon, sobreviveu inesperadamente, mas é muito impopular, pois foi o seu gabinete a denunciar Kelly, e entretanto emergiram acusações de que geriu politicamente a com- pra de equipamento para a invasão do Iraque, o que terá resultado numa maior mortalidade das tropas britânicas. Caso haja uma remode- lação parece difícil que consiga sobreviver. As grandes questões, no entanto, continuam por responder. Por um lado, temos a natureza da informação fornecida pelos serviços secretos a respeito das ADMs e a sua utilização no Dos- sier de Setembro elaborado pelo gabinete do primeiro-ministro. Este ponto, que Hutton se recusou a abordar, deverá agora ser objecto de uma nova comissão de inquérito. Por outro, qual foi o impacto de tudo isto em Tony Blair?

Sobreviveu, titula o Economist. Mas será ele capaz de recuperar a iniciativa política?

Embora tenha conseguido fazer passar a sua controversa lei das propinas, ainda assim enfrentou uma das maiores revoltas parlamen- tares de sempre. O que parece inquestionável é que o futuro político do primeiro-ministro bri- tânico está altamente dependente do sucesso da sua política externa. Nomeadamente, da emergência de um Iraque democrático, ou pelo menos estável. Ou seja, de um esforço de reconstrução cuja direcção está quase inteira- mente em mãos norte-americanas. Pois tam- bém neste campo Blair não conseguiu grandes contrapartidas dos aliados norte-americanos.

Afinal, foi ele mesmo que os caracterizou como «good friends but difficult allies». Indeed…

Ainda mais incerta e não menos importante é a postura das autoridades xiitas iraquianas. Pois não é por acaso, ou apenas pelo maior know- -howdos militares britânicos em peace-keeping, que a situação na zona de maioria xiita do Sul do Iraque tem sido melhor do que no Norte

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entregue a tropas norte-americanas. Em suma, se o grande ayatollahSistani não ficar satisfeito com as condições da transição as coisas podem complicar-se para as forças britânicas.

E se finalmente Blair acabar por desistir, o que parece pouco de acordo com a sua personali- dade, mas enfim, quem lhe poderá suceder?

Os sucessores mais prováveis ainda parecem ser outras figuras do Partido Trabalhista, pois poucos pensam que o partido de Blair irá perder as eleições de 2005. Os delfins neste momento são claramente Gordon Brown, o actual titular das Finanças, numa linha de maior continuidade, e talvez Robin Cook, actualmente fora do governo, caso a saída de Blair seja menos controlada. Em termos quer de política interna, quer de política externa, curiosamente, ambos tenderão a apresentar pontos importantes em comum. Por um lado, maior investimento nos serviços públicos, embora Brown tenda a ser visto como mais business-friendly. Por outro, uma maior aposta na Europa. De facto, estamos convencidos de

que as reservas de Brown em relação ao euro resultam sobretudo do desejo de ser ele e não Blair a ficar com a adesão da Grã-Bretanha à moeda única no seu CV. Certamente o seu posicionamento actual faz dele a pessoa ideal para convencer os mais cépticos. Robin Cook é abertamente europeísta, o que pode ser uma desvantagem eleitoral e talvez torne a sua polí- tica externa mais complicada de vender… Mas, para tudo isto acontecer, Blair teria de sair do N.º 10 de Downing Street, e ele não parece pronto para isso.

LEITURAS & SITES CITADOS

Robin Cook, The Point of Departure, Londres: Simon & Schuster, 2003.

John Kampfner, Blair’s Wars, Londres: Free Press, 2003.

Peter Stothard, Thirty Days: A Month at the Heart of Blair’s War, Londres: Harper Collins, 2003.

www.theblairrichproject.com/

www.the-hutton-inquiry.org.uk/

www.loveactually.com/

Referências

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