A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA NA REGIÃO DE BAURU (SP) NAS DÉCADAS DE 1960 E 1970: ESBOÇO DE UMA PAISAGEM
Ivete Maria Baraldi Doutora em Educação Matemática – USC – Bauru (SP) ibaraldi@terra.com.br Antonio Vicente Marafioti Garnica Doutor em Educação Matemática – UNESP – Bauru (SP) vgarnica@travelnet.com.br
Introdução
Neste trabalho, mostramos alguns detalhes da investigação “Retraços da Educação Matemática na Região de Bauru (SP): uma história em construção”, cujo principal objetivo foi o de esboçar algumas respostas para a questão: “Como evidenciou- se, delineou-se, caracterizou-se a formação do professor de Matemática, nas décadas de 1960 e 1970, em seus variados aspectos, na região de Bauru?” e de traçar um perfil da região, através dos “retraços” da vida de alguns professores e professoras de Matemática.
Dessa maneira, para que atingíssemos o objetivo, trabalhamos com a História Oral (temática) como metodologia de pesquisa, utilizando tanto as fontes orais, na forma de depoimentos de professores de Matemática da Região de Bauru, como os documentos escritos (revisão bibliográfica). A partir dos depoimentos pudemos detectar algumas tendências referentes à formação de professores de Matemática na região e questão. Estas tendências são: a importância da ferrovia para a região e para os professores; a CADES (Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário) como possibilidade de formação; a Matemática Moderna e a Lei 5.692/71 nos anos 70.
Com o intuito de divulgar nossa pesquisa, neste trabalho dissertamos sobre
alguns aspectos referentes à história oral como metodologia de pesquisa e destacamos
as características das tendências descritas anteriormente, dando maior destaque à
CADES. Por fim, delineamos alguns traços sobre a formação do professor de
matemática nas região e época enfocadas.
Possibilidades: História Oral e Educação Matemática
A História Oral, vista como metodologia, apresenta proximidade com os parâmetros gerais das abordagens qualitativas já utilizadas nas investigações em Educação Matemática. Ela surge como uma possibilidade de organizar a busca de traços dos cenários históricos relacionados à formação e às práticas dos docentes, bem como a compreensão de fatores e de significados das tramas constitutivas das práticas atuais, objetivos característicos das pesquisas situadas na tendência, ainda em configuração,
“História de Educação Matemática”.
Como metodologia, a História Oral possibilita tecer as tramas que nos fornecerão uma referência histórica e cultural, que até então estava inscrita apenas nas memórias dos professores ou de pequenos grupos. A vida, as experiências, as lutas e as visões de mundo adquirem um novo estatuto ao serem socializadas, sendo transformadas em documentos que podem apresentar, de maneira contextualizada, uma outra – nova ou complementar – versão da história.
A História Oral Temática, diferentemente da História de Vida, está vinculada ao testemunho e à abordagem sobre um determinado assunto específico. Ela é um recorte da experiência de vida do colaborador e, não obrigatoriamente, concorre com a existência de pressupostos já documentados, fornecendo, então, uma outra versão histórica.
Adotando a História Oral como metodologia de pesquisa para o nosso trabalho, seguimos alguns passos para o seu desenvolvimento. Tivemos como colaboradores professores de Matemática da região de Bauru que estavam em exercício do magistério nas décadas de 1960 e 1970 em escolas de ensino fundamental ou médio. Tal opção foi feita devido a nossa questão diretriz, esboçada na introdução. Este período foi escolhido, principalmente, por compreender uma época em que não havia centros (faculdades ou universidades) de formação de professores de Matemática em Bauru ou cidades próximas. Também ressaltamos que a região de Bauru foi escolhida porque é a que está diretamente ligada a nós, seja pela nossa naturalidade ou pela formação profissional.
Coletamos o depoimento de oito professores de matemática: Ana Maria Cardoso
Ventura, Antonio Augusto Del Preti, João Linneu do Amaral Prado, Milton de Oliveira,
Miriam Delmont, Rubens Zapater, Vera Macário e Vilma Maria e Silva Novaes da
Conceição. Realizamos a entrevista, gravando-a em fitas cassetes de áudio. Assumindo que a História Oral concretiza-se somente quando chega ao texto, após a etapa da entrevista e da formação de arquivos, houve o processo de transcrição e textualização das entrevistas que nos forneceu um corpo documental a ser trabalhado.
A transcrição (ou de-gravação) de cada entrevista consistiu na passagem literal e rigorosa das palavras da fita para o papel. Essa passagem foi bastante demorada e exaustiva. Esse documento produzido foi também enviado aos colaboradores para conferência. No processo de textualização, passou-se a uma narrativa na qual pretendemos conservar “a voz” do colaborador, embora articulada pelo pesquisador. As perguntas e todas as nossas intervenções foram incorporadas à fala do entrevistado, com a finalidade de tornar essa textualização um texto mais fluente, muitas vezes, reorganizado e, em todos os casos, livres dos vícios da oralidade.
Nas textualizações procuramos ordenar o texto de forma que ficasse evidenciado o eixo temático deste trabalho. Desse modo, nossa articulação baseou-se na periodização e na contextualização sócio-política e econômica da história contada, de maneira que fossem destacadas características da formação profissional, da atuação docente, da vivência durante o regime militar e da importância de Bauru no âmbito da Educação Matemática. Nos textos, em notas de rodapé, procuramos explicitar informações adicionais sobre determinadas citações como, por exemplo, nomes de professores, de escolas, de cidades e outras características próprias da região em questão, que julgamos necessárias para situar o leitor, nunca como forma de checagem, de validação definitiva, de atribuir o carimbo da certeza, mas como forma de complementação, esclarecimento, compreensão de perspectivas e possibilidades.
Após essa etapa, enviamos os textos para a conferência pelo depoente.
Encerrada a conferência, que consistiu na alteração, retirada ou acréscimo de alguns dados, ou até mesmo na textualização refeita, fizemos as correções dos textos e novamente enviamos para os colaboradores apreciarem. Esse processo enriqueceu esses documentos escritos e, assim, a textualização final da entrevista, de nossa autoria, passou a ter como co-autor o colaborador. Depois da conferência, quando definitivamente aprovado o texto, os colaboradores nos cederam o direito de utilização do documento.
Em Educação Matemática, conforme Garnica (2003), verificaram-se maneiras
distintas de procedimentos de análise dos dados. Observamos que não existe, ainda, um
delineamento preciso para esta tarefa, se é que isto se faz necessário.
No entanto, parece ficar evidente que a utilização de fontes escritas para auxiliar no esclarecimento e preenchimento de lacunas dos testemunhos orais é necessária, fornecendo também ingredientes para a composição do cenário que está sendo retraçado.
De modo geral, com base em Garnica (2003), podemos afirmar que a análise de dados numa pesquisa em Educação Matemática, utilizando a História Oral como metodologia, pode ser caracterizada como a forma de interpretar/identificar evidências ou tendências. Estas evidências ou tendências podem ser entendidas como os traços
“mais visíveis”, segundo o pesquisador e seu grupo, do cenário em composição e que, juntamente com outros registros escritos, fornecerão subsídios para o pesquisador encaminhar respostas para suas questões. São os aspectos divergentes e/ou convergentes, as lembranças e/ou os esquecimentos presentes nos testemunhos dos colaboradores que apontam quais são os elementos essenciais para o esboçar de compreensões e, a partir destas, de uma versão histórica.
Ultrapassado o momento das entrevistas e, conseqüentemente, as etapas de registro, começamos a identificar/interpretar tendências relacionadas à nossa pergunta diretriz.
Salientamos que em nosso trabalho de pesquisa todo foi dividido em três volumes, com o intuito de apresentar as textualizações integrais dos depoimentos, num dos volumes. Nos outros dois apresentamos o estudo bibliográfico referente às tendências detectadas e às definições de História Oral. No entanto, neste trabalho, apresentamos, ao considerar a tendência referente à formação do professor pela CADES, recortes das textualizações com o objetivo de ilustrar como esta foi constituída e percebida nos depoimentos.
1 – Tendência: Os trilhos de Bauru, para onde nos levam?
Nossa trama desenvolve-se a partir da cidade de Bauru. Ela entrelaça outras cidades: Jaú, Pederneiras, Botucatu, São Carlos, Duartina, Piratininga, ... . Damos o nome, portanto, a essa unidade de enredo de “a região de Bauru”, apoiando-nos em Arruda (2000) que afirma que a região é um espaço geográfico atravessado pela história que o institui enquanto referencial para os próprios homens. “(...) A região não existe a priori, é resultado de uma série de representações que possuem historicidade.”
(ARRUDA, 2000, p. 24)
A “região de Bauru” não nos remete a um recorte geográfico ou econômico específico e instituído, nem a um agrupamento de elementos naturais com características comuns. A região é um contexto, uma paisagem elaborada por nossos olhos e mentes, carregada de lembranças e significados.
Por muito tempo, a única, mais vantajosa e segura maneira de viajar nesta região, seja partindo de Bauru, Pederneiras ou Jaú, era por meio da ferrovia. Pelos trilhos da Paulista, depois FEPASA, viajaram diversos educadores, parte da história da Educação Matemática da região de Bauru, que tiveram sua formação em Rio Claro.
Esses mesmos trilhos levaram para outras regiões do Oeste ou para São Paulo outros tantos educadores matemáticos. Infelizmente, os trilhos da região de Bauru não representam mais um caminho para a Educação Matemática. Estão fadados à iniciativa privada e ao transporte de cargas.
Em nosso trabalho, realizamos um pequeno resgate histórico do papel das ferrovias brasileiras que costuraram a região de Bauru (Companhia Paulista, Noroeste e Sorocabana), descrevendo algumas de suas características com o objetivo de traçar um esboço do que as linhas férreas representaram para os educadores que as utilizavam.
Nossas informações sobre a ferrovia vieram do estudo de bibliografia específica, da pesquisa virtual (Internet) e da tradição oral de nossos familiares, conhecidos e professores entrevistados.
Esse tema – a ferrovia em Bauru – apresentou-se de forma significativa nos depoimentos coletados para essa nossa pesquisa e obrigou-nos a delinear e aprofundar conhecimentos e referências sobre ele. Primeiramente, tornou-se importante, pois nossos entrevistados salientaram a relevância da ferrovia para a região; posteriormente, fascinou-nos a idéia de reconstituir uma história que nos despertava recordações do
“tempo de criança”, bem como a possibilidade de visualizar, com mais proximidade, o passado.
Percebemos, então, que sem a ferrovia, o traçado da Educação Matemática na Região de Bauru seria diferente, pois a formação profissional dos professores envolvidos nessa pesquisa e, conseqüentemente, de tantos outros que foram seus alunos e alunos de seus alunos, seria, praticamente, impossível.
2 - Tendência: Os anos 60 e a Matemática Moderna
Em nossa pesquisa, os professores-depoentes expressam claramente a sensação
de “perda de tempo” relacionada ao trabalho com a Matemática Moderna. Ainda,
percebemos que a este movimento se constitui como um “modismo”, pois da mesma maneira que os professores empenhavam-se em divulgar a abordagem proposta, posteriormente, deixaram de se preocupar com o Movimento, retornando às práticas e abordagens usuais.
O Movimento da Matemática Moderna ocorreu, no Brasil, em momento sócio- político-econômico bastante conturbado. Nas décadas de 1960 e 1970, o Brasil sofria com uma economia instável resultante da desaceleração na produção das indústrias nacionais, da consolidação de empresas multinacionais e do crescente endividamento externo. Um forçoso silêncio foi imposto pelo regime militar implantado em 1964.
Como uma forma mista de idéias importadas de outras culturas e uma síntese de diferentes premissas feitas pelos próprios educadores matemáticos brasileiros, o Movimento da Matemática Moderna mostrava uma Matemática neutra e isenta de aspectos que pudessem favorecer uma análise crítica do cotidiano vivenciado por alunos e professores, contribuindo, pela conivência, com os desmandos do regime e impedindo que as experiências realizadas até então fossem avaliadas e compreendidas em profundidade até mesmo pelos seus protagonistas.
Segundo Búrigo (1989), a modernização do ensino de Matemática, “importada”
e adaptada de discursos estrangeiros, no Brasil, deu-se de forma fluida. Isso ocorreu devido à consonância com o discurso oficial identificado como progressista, refletindo, assim, um cenário nacional que valorizava a ciência como fator de progresso, numa economia em processo acelerado de internacionalização, cada vez mais carente de mão de obra tecnológica especializada.
A linguagem oficial era a adotada para a Matemática Moderna que, questionando o “tradicional”, pretendia impulsionar a formação de “cidadãos modernos”, operários melhor preparados. Em nenhum momento a função social e política do ensino de Matemática foi colocada em evidência.
Desse modo, a Matemática Moderna, embora nunca tenha sido explicitamente
adotada como política educacional do Estado, foi amplamente divulgada e incorporada
aos currículos escolares (via livros didáticos) sem maiores resistências oficiais ou por
parte de alunos, professores e pais. Mesmo dentro do território brasileiro, houve
problemas quanto à utilização das idéias da Matemática Moderna, pois o principal
agente divulgador, o GEEM, era um órgão paulista, ou seja, pertencia a um dos estados
economicamente mais poderosos, e com instituições de formação específica para
professores mais bem estruturadas em comparação aos outros estados (ainda que a
necessidade de formação pela CADES aponte que, mesmo em São Paulo, a oferta dessas instituições era ainda insuficiente). Dessa maneira, como balizar a viabilidade da implantação da Matemática Moderna entre São Paulo e os demais estados do país?
3 - Tendência: Os anos 70 e a Lei 5.692/71
Até 1971 vigorava a Lei nº 4024/61, estabelecendo as Diretrizes e Bases da Educação Nacional referentes aos níveis de ensino do pré-primário ao superior. Os currículos não eram rigidamente padronizados, admitindo-se uma certa variedade, segundo as preferências dos estabelecimentos em relação às matérias optativas. O sistema de ensino era dividido em primário (quatro séries) e ensino médio (quatro séries do ginasial e três do colegial). A passagem do ginasial para o colegial não era automática, existindo a seleção através de exames de conhecimentos (exames de admissão). O mesmo acontecia do primário ao ginásio. O ginásio, nessa época, era profissionalizante (industrial, comercial, agrícola e normal). Com a Lei 5.692/71, o sistema de ensino ficou estruturado em primeiro grau (oito séries) e segundo grau (três séries), em regra geral. O ensino de segundo grau tornou-se todo ele profissionalizante, um grande engodo, segundo os professores-depoentes.
Essa lei também exige que os professores dos 1º e 2º graus possuíssem diploma de ensino superior. Dessa maneira, para os professores que já estavam em exercício e possuíam a formação por meio da CADES ou o curso normal, precisaram buscar formação de nível superior. Deu-se, então, o que podemos perceber através dos depoimentos dos professores, a corrida aos “cursos vagos” ou “de finais de semana”.
Os professores ressaltam, ainda, que com a nova estrutura do ensino surge a necessidade de planejamento. Os conteúdos de cada disciplina e de cada série passam a ser determinados pelas Secretarias Estaduais de Educação, mas cada escola, cada professor deveria planejar.
4 - Tendência: CADES – Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário
Dos professores entrevistados, cinco fizeram alguma referência à CADES, seja porque foram “alunos” ou professores nessa ocasião.
Nas décadas de 1950 e de 1960, todos os anos, acontecia o
‘curso’ CADES de reciclagem para professores, sob orientação
do MEC, e os alunos professores obtinham os registros para
exercerem o magistério. Lecionei em São Carlos, Londrina
(Paraná), Ubá (Minas Gerais), Nova Friburgo (Rio de Janeiro).
No CADES, era incumbido de desenvolver o conteúdo do ginásio, com o nível um pouco mais elevado. Nas aulas, além do conteúdo, expunha os temas desenvolvidos no livro HOW TO SOLVE IT, de Polya. Mas também, naquela época, não tinha curso de licenciatura em Matemática. Então, por isso, existia o registro dado pelo Ministério da Educação. O professor era aprovado pela CADES e obtinha o registro para lecionar no curso secundário. Com a proliferação de cursos de licenciatura, o MEC extinguiu a CADES. (Professor João Linneu)
No entanto, a Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (C.A.D.E.S), inicialmente, mostrou-se uma grande incógnita para nós, pois os livros de história da educação não a descreviam, quando muito citavam algumas datas apenas. As orientações que possuíamos eram os relatos dos professores, sendo que nenhum deles tinha muito conhecimento da legislação que a regia. Analisando o acervo de documentos da Biblioteca da Diretoria de Ensino de Bauru encontramos algumas referências em revistas e livros
1publicados nas décadas de 1950 e 1960.
Posteriormente, encontramos outros materiais referentes ao ensino de Matemática, principalmente os de Malba Tahan. Sendo assim, pudemos traçar algumas características da CADES e de suas publicações.
Com a criação do Ministério da Saúde, na década de 1950, o Ministério da Educação e da Saúde Pública passa a se chamar Ministério da Educação e Cultura – MEC. Vinculada a esse ministério existia a Diretoria do Ensino Secundário, dirigida por Armando Hildebrand, na era do governo getulista.
Neste governo, pregava-se a corrida à modernização e à industrialização e, conseqüentemente, a necessidade de elevar os padrões existentes à condição de padrões normais, ou seja, se fazia urgente, com o sentido de emergência real, completar as competências do ensino médio. As escolas surgiam e era imperioso treinar os professores até então leigos.
(...) na década de 1950, o problema era a falta de professor específico para cada disciplina, principalmente no interior.
Desse modo, o MEC - MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO - sentiu esse problema em termos de Brasil e, por volta de 1955, difundiu a Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino
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