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ESTUDOS IBERO-AMERICANOS

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Academic year: 2022

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http://dx.doi.org/10.15448/1980-864X.2021.3.39916

IBERO-AMERICANOS

Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 47, n. 3, p. 1-17, set.-dez. 2021

e-ISSN: 1980-864X | ISSN-L: 0101-4064

Artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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  Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus de Governador Valadares (UFJF-GV), Governador Valadares, MG, Brasil.

Fernanda Henrique Cupertino Alcântara

1

orcid.org/0000-0001-8396-147X fernanda.alcantara@ufjf.edu.br

Recebido em: 15 jan. 2021.

Aprovado em: 23 jul. 2021 Publicado em: 17 nov. 2021.

Resumo: O artigo aborda o papel e o lugar de Harriet Martineau na história da sociologia, sua vida, obras e contribuições para o nascimento dessa ciência da sociedade que, em sua época, estava se descolando do plano da filosofia. Além disso, discute seu legado e inicia um diálogo entre a obra martineauniana e o cânone sociológico. Por fim, discorre sobre temas centrais para a autora e conclui ser necessária uma retomada persistente de uma agenda de pesquisa sobre Harriet Martineau e seus estudos sociais, face à institucionalização e história da sociologia. O artigo reitera que o apagamento das clássicas da sociologia é uma forma de violência de gênero e violência epistemológica que precisa ser combatida.

Palavras-chave: Harriet Martineau. História da sociologia. Sociologia clássica.

Observação sistemática. Tipologia empático relativista.

Abstract: The article discusses the role and place of Harriet Martineau in the history of sociology, her life, works and contributions to the birth of this science of society that, in her time, was detaching from the philosophy plan. In addition, he discusses his legacy and initiates a dialogue between Martinian work and the sociological canon. Finally, she discusses themes central to the author and concludes that a persistent resumption of a research agenda on Harriet Martineau and her social studies is necessary, given the institutionalization and history of sociology. The article reiterates that the erasure of the sociology classics is a form of gender violence and epistemological violence that needs to be combated.

Keywords: Harriet Martineau. History of sociology. Classical sociology. Systematic observation. Relativistic empathic typology.

Resumen: El artículo analiza el papel y el lugar de Harriet Martineau en la his- toria de la sociología, su vida, obras y aportes al nacimiento de esta ciencia de la sociedad que, en su tiempo, se fue desprendiendo del plano de la filosofía.

Además, analiza su legado e inicia un diálogo entre la obra martiniana y el ca- non sociológico. Finalmente, analiza temas centrales para la autora y concluye que es necesaria una reanudación persistente de una agenda de investigación sobre Harriet Martineau y sus estudios sociales, dada la institucionalización y la historia de la sociología. El artículo reitera que el borrado de los clásicos de la sociología es una forma de violencia de género y violencia epistemológica que necesita ser combatida.

Palabras clave: Harriet Martineau. Historia de la sociología. Sociología clásica.

Observación sistemática. Tipología empática relativista.

DOSSIÊ MULHERES INTELECTUAIS: PRÁTICAS CULTURAIS DE MEDIAÇÃO

Harriet Martineau (1802-1876): a analista social que inaugurou a Sociologia

Harriet Martineau (1802-1876): the social analyst who inaugurated Sociology

Harriet Martineau (1802-1876): el analista social que inauguró la Sociología

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Introdução

A proposta deste artigo é demonstrar que, embora não tenha nomeado a sociologia, por- tanto, não a fundou formalmente, Martineau foi a responsável por praticá-la de modo substancial e por mais de meio século, inaugurando a ciência da sociedade, citada por ela em Como observar:

morais e costumes. Seria uma impropriedade técnica dizer que ela foi uma socióloga na década de 1820, quando começou a dedicar-se à escrita, pois seus trabalhos não eram, necessariamente, de análise social. Historicamente, a física social foi estabelecida e nomeada em 1830 e em 1844 surgiu o termo sociologia (COMTE, 1978; MAR- TINEAU, 2000). Nesse momento, Martineau já contava com quase 10 anos de experiência de campo, produção e escrita sobre análise social.

Em decorrência, se na década de 1820 não parece razoável considerar que seu trabalho era de cará- ter sociológico, já na década de 1830 impróprio é não o considerar caracteristicamente sociológico.

O motivo é simples: o nome não constitui uma ciência, apenas a identifica. Bem mais tarde, em 1853, Martineau publicou a sua tradução resumida do Curso de Filosofia Positiva, de Auguste Comte.

Portanto, se ela não criou, certamente estreou a sociologia, que, ao contrário do que dizem, não teve Émile Durkheim como o primeiro a realizar pesquisa social, mas a lecionar a sociologia e institucionalizá-la como disciplina. Aliás, muito provavelmente, apenas porque Martineau, sendo mulher, não frequentou uma universidade, o que a impedia de assumir uma cátedra convencional.

Apesar disso, os escritos de Martineau retratam seu esforço em ensinar, informar e disseminar o conhecimento que ela produziu e acessou.

É justo que a teoria sociológica ignore sua obra apenas pelo fato de o nome que hoje reco- nhecemos identificar a sociologia como ciência e disciplina não existisse no período em que ela publicou seus primeiros livros? Obviamente não. Uma de suas primeiras obras de caráter sociológico e, provavelmente, a mais conhecida é Como observar: morais e costumes, publicada originalmente em 1838. Geralmente, a referência a essa obra centra-se na perspectiva metodológica,

no entanto, é impossível falar dessa importante obra do início do século XIX sem considerar que ali constava uma sociologia da religião, dos governos, das nações, do direito, do mercado e uma criminologia, entre outros estudos. Os as- suntos estudados e observados por Martineau alcançaram um leque amplo de temas, vários deles trabalhados na obra que citei anteriormente.

Neste artigo irei me ater, em particular, à obra Como observar: morais e costumes para sus- tentar que, se Comte nomeou, Martineau fez e Durkheim ensinou sociologia. De fato, a partir de 1830, o termo física social já se encontrava disponível, forjado em outra língua e outro país do continente europeu. Comte, possivelmente, já era bastante conhecido, porém, enquanto ele se dedicava aos tais Cursos, Martineau viajou para os Estados Unidos e em sua bagagem de volta trouxe três de suas principais obras, publicadas em 1837 e 1838. Teria ela se recusado a falar em física social ou sociologia? Essas e outras ques- tões discutirei a seguir, entretanto, uma análise profunda exige também a releitura dos escritos de Comte e Durkheim, particularmente, Curso de filosofia positiva e As regras do método sociológico, respectivamente, à luz da obra de Martineau.

1 Vida

Harriet Martineau nasceu em 12/06/1802, em Norwich, Inglaterra. Foi a sexta dos oito filhos do casal Thomas Martineau (1764-1826) e Elizabeth Rankin (1771-1848). Apesar de ter nascido na Ingla- terra, Martineau era descendente, pela parte pa- terna, de franceses calvinistas, mais conhecidos como huguenotes, que migraram ou, nas palavras dela, “foram expulsos da França por iminentes perseguições religiosas”. O fato ocorreu em razão da publicação do Édito de Fontainebleau, em 17/10/1685, por Luís XIV, o qual revogava o Édito de Nantes, publicado em 13/04/1598, por Hen- rique IV. Seu antepassado, Gaston de Martineau (1660, Bergerac, França-1726, Norfolk, Inglaterra), fugiu em 1686, da Normandia para a Inglaterra.

Após quase 117 anos, nasceu Martineau, que,

como ela mesma afirmava, resultou destes “exílios

de consciência”. Em sua autobiografia, não por

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acaso, esse é o fio que ela escolheu para começar a contar a sua história, narrada na terceira pessoa apenas na versão organizada por F. Fenwick Miller (MARTINEAU, 1884). Já a versão organizada por Maria Chapman preserva a proposta original sem cortes (MARTINEAU, 1877).

O pai de Harriet, entretanto, não foi um cirur- gião, mas um fabricante de coisas, os muitos nomes dos quais são agora estranhos aos nossos ouvidos – bombazines e camlets. Sua esposa era Elizabeth Rankin, a filha de um refinador de açúcar de Newcastle-on-Tyne.

Uma verdadeira mulher norte cumbriana foi a senhora Martineau; com um forte senso de dever, mas pouco calor de temperamento;

com as falhas de uma disposição imperiosa, e suas correlativas virtudes de autoconfiança e força de vontade. Essas qualidades tornam-se abundantemente aparentes na relação dela com seus famosos filhos. Em ambos os lados, portanto, Harriet Martineau foi dotada pela descendência hereditária com fortes quali- dades – a energia, a lucidez, e a consciência forte – as quais ela impregnou dentro de todo o trabalho da vida dela (MARTINEAU, 1884, p.

2, tradução nossa).

Nessa grande família, da qual ela foi uma das últimas filhas, Martineau desenvolveu as bases que repercutiriam em seu trabalho sobre temas como religião, instrução, concepção de mulher e seu papel na sociedade, ou, até mesmo, algo semelhante, ao que hoje denominamos uma perspectiva de gênero. Ela queixou-se de sofrer as consequências por ser uma das filhas mais novas e não receber a atenção dos pais, que, segundo ela, se desdobravam para atender às demandas de todos. Inobstante, lembrou que teve a oportunidade de cuidar do irmão mais novo, tendo por ele uma “terna afeição prote- tora” e um “forte instinto maternal”. Da mesma forma, destacou as características do cuidado despendido pela mãe, os quais, nas palavras de Martineau, faziam daquela “um tipo de mulher que, como eles diriam, não ‘estraga’ seus filhos”.

Porém, embora estivesse sempre pronta para resistir, lutar e sacrificar-se pelos filhos, esse

“tipo de mãe” ainda não tinha acessado aquele caráter carinhoso, afetuoso e amoroso, para ela tão necessários ao crescimento das crianças:

“Matar de fome as emoções em uma criança não é menos cruel do que restringir seu corpo de

comida” (MARTINEAU, 1884, p. 2, tradução nossa).

Em sua autobiografia ela citou esse aspecto da sobrecarga quanto à responsabilidade do papel da mulher na condição de mãe, impedindo-a de viver afável e carinhosamente com seus filhos, o que mais tarde repercutiria em afastamento e solidão para ambos. As reflexões de Martineau sobre a condição da mulher na sua e em outras sociedades que ela pôde conhecer, possivelmen- te, começaram ao observar sua mãe, em uma relação de entendimento com distanciamento e a percepção de que a preocupação com os filhos tomava o lugar e o tempo da realização e encontro consigo mesma. Cabe indagar se faltou

“uma perspectiva de gênero” nessa avaliação que ela fez sobre a relação com a mãe, já que sua análise se centrou na pessoa e não no tipo mulher e mãe na sociedade europeia do século XIX, alegando que, no caso de sua mãe, em par- ticular, não se tratava de “negligência intencional”

ou “indiferença dela para o conforto e felicidade”

dos filhos (MARTINEAU, 1884, p. 3).

Ao longo de sua vida, Martineau, invariavel- mente, enfrentou situações de adoecimento, com consequências para o seu desenvolvimento e interação sociais. Além disso, foi acometida por uma surdez progressiva, só descoberta quando completou 12 anos, o que, mais tarde, levou-a a questionar e identificar a observação social rea- lizada por pessoas com necessidades especiais.

Em seu caso, preferiu falar em “deficiências de sensação”, que a privaram de uma vida “em prima- vera”: sons, cheiros e sabor (MARTINEAU, 1884, p.

5). Ao se questionar sobre a pesquisa de campo, notadamente, ela não se referiu à sua situação em específico, mas nomeou outros viajantes em situação similar (MARTINEAU, 2021). Todavia, não escondeu sua condição e a problematizou (MARTINEAU, 1837). Embora tenha descrito sua infância como “infeliz”, ressaltou o fato de que não apresentar uma saúde desejável contribuiu para esse quadro tanto quanto a relação de distancia- mento ou “hábito da miséria” do “temperamento e caráter da mãe” (MARTINEAU, 1884, p. 4).

Martineau foi autodidata, tendo estudado em

casa até a juventude (MC DONALD, 1998). Apenas

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por volta dos 17 anos, frequentou uma escola particular dirigida por uma tia, sendo tal possi- bilidade impulsionada pela Igreja Unitária, que estimulava as mulheres a acessarem uma boa educação, para melhor cumprirem seu papel social e religioso (MARTINEAU, 1884).

Embora tenha se comprometido com John Hugh Worthington, o noivo faleceu antes do ca- samento (ARBUCKLE, 2019), mantendo-se solteira por toda a vida. Essa situação deu-lhe condições para escrever com certa liberdade e realizar as viagens que pretendeu. Apesar de todos os seus relatos sobre as limitações e sofrimentos, mostrava-se muito determinada ao falar sobre si mesma (MARTINEAU, 1877, 1884). À perda do noivo somou-se a perda do pai, em 1826, e do irmão mais velho, além da falência dos negócios da família, o que a impulsionou a perseguir uma vida mais independente e à necessidade de buscar o autossustento (MC DONALD, 1998). Sua primeira opção foi a costura, mas nesse período já havia escrito alguns artigos que lhe permiti- ram algum retorno financeiro. Interessante notar que seu primeiro livro mais conhecido foi sobre economia política e a necessidade da educação popular a respeito, cuja relação com sua trajetória familiar ela explicitou em algumas oportunidades.

Antes de ganhar o mundo com suas viagens, ainda na juventude, a Martineau escritora já havia surgido. Em 1822 ela escreveu um artigo anônimo, com o título “Female writers of pratical divinity”, em um jornal unitarista e seu irmão Thomas veio mos- trar-lhe o texto, que falava sobre a capacidade de escrita das mulheres, momento no qual revelou-lhe o segredo e após o reconhecimento elogioso do irmão “viu-se escritora”. O seu segundo artigo voltou- -se para a necessidade de educar as mulheres, sob o título “On female education”, também publicado no Monthly Repository (SILVEIRINHA; FERREIRA, 2019). Parece claro, portanto, o quanto o tema foi caro à nossa autora desde os primeiros escritos.

De Norwich, Martineau já havia se mudado para Bristol a fim de estudar, passado um período em Dublin com um irmão e chegado a Londres após o início da publicação de sua coleção de novelas, em 1832 (DUARTE; FEIJÃO, 2012). Além desses

deslocamentos, cabe destacar a importância das viagens para a pesquisa de Martineau, sempre atreladas à sua produção bibliográfica, não sendo possível dissociar esses dois elementos em sua vida. Se os livros lhe deram acesso a formas de pensar e escrever, à história da filosofia, à lite- ratura e à história mundial, nas viagens ela foi apresentada à realidade não europeia, a outras línguas, costumes, política e formas de organizar a sociedade: “the morals and manners”.

De 1834 a 1836 Martineau esteve nos Estados Unidos, resultando da empreitada suas obras, possivelmente, mais conhecidas: Society in Ame- rica; Retrospect of Western Travel; Como observar:

morais e costumes. Após o retorno, iniciou uma viagem pela Europa, mas precisou interrompê-la para cuidar de sua saúde em um longo intervalo de cinco anos. Posteriormente, conheceu o Egito, a Palestina e a Síria, entre 1846 e 1847, cuja expe- riência produziu Eastern Life, Present and Past. Por fim, foi para a Irlanda, em 1852 (MARTINEAU, 1877).

No mesmo período em que estava se dedi- cando a traduzir Comte, chegou um convite para escrever “leaders” para o Daily News, o que lhe abriu uma nova perspectiva na carreira. Marti- neau alegava que o esforço era pequeno e os temas abundantes. Também confessou que teve grande simpatia pelo editor, o senhor Hunt, mas que ele faleceu pouco antes da escrita da sua autobiografia. Nesse momento, trabalhou como jornalista correspondente, produzindo cartas para o Daily News, mais tarde publicadas como Letters from Ireland (SILVEIRINHA; FERREIRA, 2019). Concomitantemente, ela também colabo- rou com Household Words e Westminster Review (MARTINEAU, 1877).

Ao longo de sua vida, Martineau conviveu ou

conheceu pensadores que até hoje reconhece-

mos: Thomas Malthus (1766-1834), Robert Owen

(1771-1858), Auguste Comte (1798-1857), John

Stuart Mill (1806-1873), Harriet Taylor Mill (1807-

1858), Charles Darwin (1809-1882) e Florence

Nightingale (1820-1910). Foi amiga de Erasmus

Alvin Darwin (1804-1881) e de Charlotte Brontë

(1816-1855) (MC DONALD, 1998). Cabe ressaltar

que ainda conhecemos pouco sobre a obra de

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Martineau, quiçá sobre a relação dela com a obra de outras(os) pensadoras(es) seus contemporâ- neos, como Flora Tristan (1803-1844), Alexis de Tocqueville (1805-1859), Karl Marx (1818-1883) e Herbert Spencer (1820-1903).

Sobre as influências recebidas, ela textualmen- te cita Francis Bacon (1561-1626), Voltaire (1694- 1778), Jean Jacques Rousseau (1712-1778), Adam Smith (1723-1790), Edmund Burke (1729-1797), Oliver Goldsmith (1730-1774), Johann Gottfried von Herder (1744-1803), William Jacob (1761-1851), Jane Marcet (1769-1858), Jane Austen (1775-1817), James Holman (1786-1857) e, na maturidade, Auguste Comte, entre outros.

Obviamente, as condições de existência, as re- lações sociais, a classe e as condições históricas refletem no pensamento das(os) teóricas(os). Não seria diferente com Martineau. Com 53 anos, já havia escrito sua autobiografia, acreditando que viria a óbito em decorrência de um adoecimento cardíaco. Mal sabia ela que só faleceria 21 anos depois, em 27/06/1876, em Ambleside, com 74 anos. Seu também popular irmão James, três anos mais novo, faleceu em 1900, com 95 anos.

2 Obra

Ao longo dos seus 74 anos de vida, Martineau escreveu muitos livros e artigos para jornais e re- vistas (MC DONALD, 1998). Quanto à sua produção, vislumbro aqui duas abordagens possíveis: um olhar ensimesmado, para dentro de cada obra por ela produzida; ou, uma perspectiva relacional, da sua posição intelectual e da sua obra em relação ao cânone sociológico. Tentarei realizar esses dois movimentos, ainda que de modo sumário, dado o escopo e o espaço disponíveis para um artigo.

Martineau começou a escrever ainda na juventude, produzindo artigos para jornais, que, geralmente, eram publicados anonimamente ou valendo-se de pseudônimos como “Discipulus” ou “An Englishwo- man”, mas tal estratégia não funcionava sempre, como relatado pela própria autora com relação às Letters from Ireland (MARTINEAU, 1877).

2

  Parte de sua obra pode ser encontrada, de modo gratuito, por ser de domínio público, nos sites: https://oll.libertyfund.org/people/

harriet-martineau ou https://babel.hathitrust.org/cgi/ls?field1=ocr;q1=Harriet%20Martineau;a=srchls;lmt=ft e http://orlando.cambridge.

org/public/svPeople?person_id=martha. Acesso em: 20 ago. 2021.

É certo que, no período, no século XIX, as escritoras tinham revistas e jornais como plata- formas para ascenderem profissionalmente e, como atividade remunerada, escrever para os periódicos também conferia renda e liberdade financeira. Mais tarde, Martineau publicou uma coleção para tentar popularizar conhecimentos em economia política e conseguiu liberdade financeira a partir da venda desta. Em síntese, podemos listar algumas de suas obras, entre os, aproximadamente, 50 livros e 1600 artigos produzidos (MC DONALD, 1998; MIGUEL, 2017), seguindo a ordem cronológica

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:

1822, “Female writers on pratical divinity”

(Monthly Repository)

1823, “On female education” (Monthly Repository)

1823, “Devotional exercises for the use of young persons”

1826, “Addresses for the use of families”

1827, “The rioters; or, a tale of bad times”

1827, “The turn out, or patience the best policy”

1832, “On the duty of studying political eco- nomy” (Monthly Repository)

1832-1834, Illustrations of political economy Vol. 1 Life in the Wilds

Vol. 2 Demerara

Vol. 3 Manchester Strike Vol. 4 Homes abroad

Vol. 5 The charmed sea. Berkeley the banker.

Vol. 6 Messrs, Vanderput and Snoek Vol. 7 Sowers not reapers

Vol. 8 Briery Creek

Vol. 9 The farrers of budge-row

1833-1834, “Poor laws and paupers illustrated”

1834, “Illustrations of taxation”

1837, Society in America

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1838, How to observe morals and manners 1838, Retrospect of western travel

1838, “Martyr Age of the United States”

(London and Westminster Review) 1839, Deerbrook

1841, The hour and the man 1841, The playfellow 1844, Life in the sickroom

1845, “Forest and Game-Law Tales”

1845, Letters on mesmerism 1848, Eastern life, present and past 1849, “Household education”

1850, The history of the thirty years peace (1816-1846)

1851, “Letters on the man’s nature and development” (em coautoria com Henry Atinkson)

1852, Letters from Ireland

1853, The positive philosophy of Auguste Comte (livremente traduzida e conden- sada em três volumes)

1855, Harriet Martineau’s Autobiography (publicação póstuma, em 1877)

1859, “Female industry” (Edinburgh Review) 1869, “Letters about Contagious Diseases Acts” (Daily News)

Com esse breve resumo, podemos observar que Martineau transitou por vários temas, lidou com objetos diversos e dialogou com teorias de vários teóricos. Foi uma autora muito popular, tendo vendido uma média de 10 mil livros, por ano, logo no início de sua carreira (MIGUEL, 2017).

Escritora reconhecida em sua época, ela se refere a si e ao irmão mais novo como “os famosos da família” ou “os dois que estavam por fazer o nome da família famoso” (MARTINEAU, 1884, passim). Po- rém, sua trajetória não começou a partir da análise social, mas da repetição e reflexão sobre dogmas religiosos, que, inclusive, permitiram e deram condições para que ela fosse reconhecida como escritora. Dos livros sobre religião, ela passou à democratização dos conhecimentos relativos à economia política até entregar-se à análise social.

Inobstante, mesmo tendo alcançado eleva- da produtividade e reconhecimento, Martineau não formou escola com a institucionalização da sociologia, e acabou sendo apagada da tradi- ção sociológica (ARANGO, 2005), duplamente excluída do cânone sociológico, que se centrou em homens, franceses ou alemães. Ao prefa- ciar o livro The positive philosophy de Auguste Comte (1853, p. 20), ela fez referência direta aos que “são de outra escola”, acaso refutassem a

“solidez geral da exposição”. Embora esse livro tenha sido escrito por Comte entre 1830 e 1842, datando inegavelmente o uso do termo física social, o esforço de Martineau em traduzir uma obra que acreditava ajudaria a desenvolver uma ciência da sociedade, tornou-a coadjuvante de um autor, cujo trabalho era muito menos rico em análise social do que o seu e contribuído indire- tamente para o seu apagamento (MARTINEAU, 2000, p. 18-26). Difícil enxergar Martineau como discípula de Comte, devido à sua autonomia e reflexividade, sua obra era bem distinta da dele em métodos e propósitos. Porém, também não é passível de discussão o entusiasmo que ela demonstrou quando defendeu Comte e acusou seus críticos de não conhecerem nem lerem sua obra. Essa Martineau da maturidade era distinta da jovem Martineau? Quantas versões existiram?

São questões que merecem atenção.

Se tomarmos por objeto a coletânea Illustra- tions of political economy (1832-1834) responsá- vel por torná-la conhecida, verificaremos que nela não são esboçados elementos teóricos e concepções próprias, mas uma tentativa de po- pularizar conhecimentos de economia política.

Fica claro, portanto, a preocupação da autora em transformar tais conteúdos em acessíveis e disseminados para um público mais amplo.

Todavia, essa experiência não corresponde ao restante de sua obra em que a autora desenvol- veu uma análise social, valendo-se de recortes e perspectivas variadas.

Apagada, não traduzida para outras línguas,

nem divulgada, existe um esforço atemporal para

classificar a obra de Martineau como “relatos

de viagem”, “mera descrição” e “reformismo so-

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cial”, descaracterizando sua densa análise social.

Como afirmei anteriormente, não são apenas relatos e descrição de viagem, mas também análise social densa alicerçada em pesquisa de campo sistemática. Ao contrário de Flora Tristan, em Peregrinações de uma pária, Martineau não produziu uma literatura pessoal e biográfica. Ela, inclusive, deixou muito evidente em seus textos o seu lugar de fala e as condições da observação para, logo em seguida, orientar os observadores a não manterem o foco na sua própria experiên- cia (MARTINEAU, 1837, 2021). Inegavelmente, os relatos de viagem não constituem gênero menor, mas, segundo a distinção feita pela própria Mar- tineau, existem duas modalidades que precisam ser claramente distinguidas e fornecem contri- buições diferentes das do cientista social: as do viajante não filosófico e as do viajante filosófico (MARTINEAU, 2021). Ironicamente, ela que se dedicou a estabelecer os limites e características dessas práticas de pesquisa, recebe esse tipo de crítica que peca, tanto por tentar descaracterizar sua contribuição, quanto por menosprezar a centralidade da experiência de viagem, como base para a observação social e o confronto com outras realidades sociais.

Por outro lado, a afirmação de que foi uma

“reformadora social” pode ser encontrada até mesmo nas obras que buscam resgatar as clás- sicas. Um exemplo é Mc Donald (1998), que or- ganizou sua obra Women Theorists on Society and Politics e situou Harriet Martineau como “teórica da reforma social”, ao lado de Flora Tristan, Flo- rence Nightingale, Helen Taylor e Beatrice Potter Webb. E, aqui, um detalhe, quando contraposto a Marx, Comte é apresentado como “reformador social”, contrário à revolução social. Porém, se o termo casa bem com o autor de Reorganizar a sociedade (1822) e Catecismo positivista (1852), que são livros normativos, beirando ao dogma na busca pela superação da “metafísica”, não se pode dizer o mesmo sobre Martineau. As duas classificações, assim como a de “pioneiras” são apenas formas sutis de não se ameaçar o cânone e não colocar em pauta a história da sociologia.

Dessa discussão decorrem alguns questiona-

mentos: Não existe no trabalho da autora uma preocupação com a conceitualização? Ou, existe apenas um modelo válido para a formulação e explicação de conceitos? A título de exemplo, Martineau separava sua redação em tópicos, com subtópicos bem estruturados e destacava palavras ou temas colocando as letras iniciais dos termos empregados em caixa alta. Então, é certo que ela distinguia o uso comum das palavras dos momentos em que elas representavam temas ou “conceitos”. Após destacá-las, tecia sobre elas considerações diversas e, recorrentemente, separadas em travessões (--), dois pontos (:) ou ponto e vírgula (;), demonstrando uma siste- matização rigorosa e complexa do conteúdo abordado, frequentemente abusando do uso de apostos (MARTINEAU, 2021). Alguns exemplos de análises sociais que ela desenvolveu a partir da observação social e da identificação de correla- ções possíveis versaram sobre religião, governo, morais, justiça, caráter nacional, vida doméstica, trabalho, condição das mulheres, prisões, crimes, greves, legislação, escravidão, guerras e outros (MARTINEAU, 1837, 2021).

Martineau partia do conhecimento disponí- vel para formular tipos, que também estavam fundados na observação da realidade, mas não se limitavam a esta. Separava os temas a serem abordados em tópicos no texto geral e, predo- minantemente, produzia um desenvolvimento explicativo, reflexivo, não taquigráfico, que culmi- navam em um resumo das características apre- sentadas. Entretanto, desconheço se a aborda- gem conceitualista, tal como conhecemos hoje, já existia no período, estilo que será atribuído a Durkheim décadas depois (ARON, 2000). Inde- pendentemente disso, o fato de ela ser ou não uma conceitualista não a torna menos importante para a sociologia e para a construção dessa ci- ência, pois, existe em sua obra, claramente, uma tentativa de não apenas sistematizar o trabalho de observação social, mas de produzir análises sociais, conjugando a bibliografia disponível com a pesquisa de campo (MARTINEAU, 1837, 2021).

Sobre o método de Martineau, às vezes ignora-

do ou tratado como inexistente, cabem algumas

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considerações. Ela sempre abordava os temas aos quais se propunha de uma forma semelhante e escalonada. Interessante ressaltar que ela cruzava e correlacionava de modo complexo, o que leu sobre o assunto escolhido, o que observou em campo a respeito e o confronto entre diferentes realida- des fáticas. Então, os temas eram relacionados e introduzidos a partir de tipologias que recorriam ao conhecimento socializado e às experiências dela e de terceiros com a pesquisa de campo.

A esse método e forma de produzir sua análise social denomino tipologia empático relativista, re- ferindo-me aos termos e descrição que Martineau recorrentemente usou para definir como procedia.

Outra questão aventada trata do caráter de sua obra: Martineau foi uma proto socióloga ou sociólo- ga fundadora? Do meu ponto de vista, entendo que foi não só uma, mas a socióloga e pesquisadora social fundadora, foi a primeira escritora conhecida a elaborar uma metodologia para o estudo da vida social e falar abertamente sobre a análise social que produziu, demonstrando intencionalidade e consciência sobre seu trabalho. Sem dúvida, o primeiro tratado metodológico sistemático sobre a ciência da sociedade (DUARTE; FEIJÓ, 2012; MC DONALD, 1998; HILL, 2001), antes que Comte batizasse e registrasse a sociologia em 1844. Isso não implica dizer que não existissem outras autoras no período ou que elas não tenham colaborado para a fundação da nova ciência e é tarefa nossa estarmos sempre atentos a novos achados e in- dícios, já que, como diria Martineau, a ciência da sociedade não pode ser peremptória.

Martineau sabia o que queria e sabia que o mundo acadêmico ainda não entendia bem o que seria estudar a sociedade (MARTINEAU, 1877;

ARANGO, 2005; MC DONALD, 1998). Por isso, a dúvida: falava que fazia filosofia ou estudava a sociedade? Martineau falava da importância de se ter uma abordagem científica para observação e análise das “morals and manners”, por meio de uma ciência da sociedade, mas ainda alocada dentro filosofia. Com esse intuito, ela fez uma divisão estratégica sem sair da filosofia: a) o ob- servador social coletava os dados, se preparava para ir a campo e relatava o que havia observado;

b) o filósofo fazia as generalizações experientes, procedendo à análise social em si. De modo se- melhante, ela definiu o objeto de estudo: morais e costumes ainda remetem à filosofia, mas igual- mente fazem menção ao comportamento social, já que ainda não estava disponível o conceito de cultura. Com isso, ela encarnou a análise social na transição de um veio da filosofia para a socio- logia (MARTINEAU, 2021) e superou a separação dos agentes observador/viajante e filósofo de modo estanque, pois o mesmo indivíduo poderia assumir as duas funções, desde que uma fase não interferisse na outra, exatamente como ela fazia (MARTINEAU, 1837).

3 De parturiente da ciência da sociedade à parteira da física social

Martineau, não foi alheia ao movimento de constituição da nova disciplina que se dedicaria especificamente “ao social”. Além de seu trabalho referir-se diretamente à ciência da sociedade, ela não apenas leu, como traduziu, do francês para o inglês, e condensou o Curso de Filosofia Positiva (1830-1842), de Auguste Comte, o publicando em 1853, onze anos após o encerramento da publi- cação de suas palestras. Em sua autobiografia Martineau contou que, por anos, ouvia falar sobre Auguste Comte, tendo chegado a ler duas obras que mencionavam diretamente a teoria do autor.

Todavia, apenas em 1850 decidiu-se por lê-lo e encomendou seus cursos em seis longos volu- mes. Ao consultar um amigo sobre sua intenção imediata em traduzi-lo para o inglês, ele a apoia, mas adverte que deveria dar-lhe um formato encurtado e eliminar as repetições. Com esse contato, descobriu também que um discípulo escocês de Comte tinha o mesmo intento, mas se encontrava em condições frágeis de saúde, por isso, ela o contactou e ele a remunerou pelo trabalho. Porém, esse seu apoiador faleceu antes que a obra ficasse pronta (MARTINEAU, 1877).

Diante dessas e outras informações, nota-se

em Martineau uma extrema habilidade em con-

tactar pessoas, constituir redes de colaboradores

e empreender seus projetos, planejando-se para

tanto. Ela não só assumiu a tradução, foi remu-

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nerada, pagou os custos da impressão, como afirma ter considerado justo reservar uma parte para pagar o próprio Comte. Isso certamente a difere de outras autoras, como Olympe de Gouges (1748-1793) e Flora Tristan (1803-1844).

A primeira foi estigmatizada uma “cortesã” por possuir “amigos patrocinadores” de suas peças teatrais e brochuras (DALLARI, 2016). A última, sua contemporânea, diferenciou-se por recorrer a um financiamento coletivo, já que não possuía condições de arcar com os custos. Ambas tive- ram trajetória diferente de Martineau, não pelo empenho, mas pela capacidade de alavancar grandes projetos, valendo-se dos seus contatos e sendo remunerada por eles, devido ao reco- nhecimento que suas obras haviam alcançado à época (TRISTAN, 2017; MARTINEAU, 1877, 1884).

Cabe perguntar: Como e se a sua obra se modifi- cou após o contato com a teoria comteana? O ideal é ouvir da própria Martineau uma análise a respeito.

O longo estudo de Comte impressionou-me profundamente com as imagens da gloriosa hierarquia das ciências que ele exibiu. Já se foi o tempo em que eu podia olhar os objetos como meras superfícies, ou existências sepa- radas; e desde aquele último trabalho de amor, eu tinha mais do que nunca visto a aliança e concerto dos corpos celestes, e a ação mútua e composição interior das substâncias que eu costumava considerar como uma em si mes- mas, e desconectadas em relação umas às ou- tras. É realmente um prazer primoroso sonhar, depois do trabalho árduo de estudo, com as abstrações sublimes da matemática; o cenário transcendente desenrolado pela astronomia;

as forças misteriosas e invisíveis vagamente sugeridas a nós pela Física; a nova concep- ção de constituição da matéria originada pela Química; e então, os inestimáveis vislumbres abertos para nós, no que diz respeito à natu- reza e ao destino do Homem, pelas pesquisas sobre a organização vegetal e animal, que são finalmente percebidas como o caminho certo de investigação dos assuntos mais elevados do pensamento. Toda a grandeza e toda a beleza desta série de espetáculos são aprofundadas pelo sentido sempre presente da pequenez da quantidade de descobertas alcançadas.

No cenário de nossas viagens, é o contrário.

A floresta, a estepe, o lago, a cidade, cada um preenchia e bastava o sentido do observa- dor nos velhos tempos, quando, em vez dos continentes ocidentais, se sonhavam com o distante Catai; e nós hoje estamos ocupados por enquanto com qualquer cena, sem nos importar se todo o globo é explorado. Mas é diferente na esfera da ciência. Maravilhoso, além da compreensão de qualquer mente, é

a massa de fatos gloriosos e a série de pode- rosas concepções expostas; mas a sombra da escuridão circundante repousa sobre tudo. O desconhecido sempre ocupa a maior parte do campo de visão; e o temor do infinito san- tifica tanto o estudo quanto o sonho. Entre esses mundos e outros interesses, literários e políticos, foram minhas noites passadas, há pouco mais de um ano. Talvez ninguém tenha desfrutado muito mais vivamente do que eu da sociedade londrina de alta ordem; e poucos, creio eu, são de natureza mais radicalmente social do que eu: no entanto, posso dizer que nunca houve, desde que eu tive uma casa própria, uma noite passada no mais charmoso relacionamento que eu não tivesse trocado (tão longe quanto no que diz respeito ao mero prazer) para uma de minhas noites comuns sob a lâmpada interna e as luzes do céu por fora (MARTINEAU, 1877, p. 59, tradução nossa).

A citação acima ilustra a percepção de Mar- tineau sobre a obra comteana, mas não indica influências sofridas. Também não esclarece que tipo de correspondência estabeleceram e a partir de quando. Nesse momento, Martineau já contava os seus mais de 50 anos, com uma longa expe- riência profissional, e quatro anos depois, Comte viria a óbito. Vimos que em sua autobiografia ela contou em detalhes o desenvolvimento de seu interesse pela obra de Comte, porém, isso nada diz sobre as mudanças ocorridas em sua própria obra após o contato com o positivismo comte- ano. Fato é que, no nascimento da sociologia, passou de parturiente da ciência da sociedade à parteira da física social. Sem dúvida, foi Comte quem antes falou da necessidade de criar um ramo científico que desse conta de estudar a sociedade tendo em vista a sua reorganização, desvendando as leis necessárias para se avançar no desenvolvimento do espírito humano (COMTE, 1978). A esse veio científico ele nomeou física social, tendo em vista que já existiam “outras físicas”, cabendo agora uma que se dedicasse à sociedade. Mas foi Martineau, na mesma década, quem inaugurou a sociologia ao produzir em quantidade, qualidade e diversidade a análise social, inclusive, muito mais próxima do que é a sociologia contemporânea.

Portanto, embora Martineau não tenha nome-

ado a disciplina sociologia, ela desenvolveu aná-

lise social e contribuiu para a institucionalização

daquela, mesmo que, ironicamente, não tenha

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sido incorporada ao seu cânone. Como buscarei demonstrar, para obter o reconhecimento como fundadora, não é necessário “dar um nome” ao que se fazia ou filiar-se politicamente a dado mo- vimento, mas ter realizado contribuições efetivas para a formação da disciplina e identificar o marco temporal. Pois, autonomear-se sociólogo(a) im- plicasse filiação à disciplina, Karl Marx, Alexis de Tocqueville, Georg Simmel e, até mesmo, Max Weber não deveriam ser considerados como tais. Portanto, esse não é um argumento válido, ou, ao menos, não é o único a ser considerado.

Em Como observar: morais e costumes (1838) obra obrigatória, ainda hoje, para os estudiosos e pesquisadores, a autora se firmou como primei- ra analista social, metodóloga e pesquisadora de campo. Assim, é inegável o seu pioneirismo na pesquisa sociológica e no desenvolvimento de técnicas para a coleta de dados. Além disso, problematizou a relação do pesquisador com o objeto e as instituições sociais. No livro citado observamos o questionamento acerca do que é a verdade sobre um fenômeno, associado à dúvida se bastaria presenciar o fato para conhe- cê-lo. Martineau concluiu que é necessário um

“treinamento” para saber observar a sociedade, o qual compreende a “preparação intelectual” ou

“requisitos filosóficos” (MARTINEAU, 2021, passim):

“O observador de homens e costumes permanece tão necessitado de preparação intelectual como qualquer outro estudante. Isto não é, de fato, ge- ralmente suposto, e uma multidão de viajantes age como se não fosse verdade” (MARTINEAU, 2021, p. 25). A figura do viajante foi central nessa obra e corresponde ao observador social e ao produtor de relatos para análise, porém, para ela existiriam dois tipos de viajante: o filosófico e o não filosófico.

Além disso, a observação social martineau- niana pressupunha uma perspectiva relativista, a preocupação com as práticas de generalização e “princípios da moral”.

Do amplo número de turistas que anualmente navega de nossos portos, não existe provavel- mente um que sonharia pretender fazer obser- vações de qualquer assunto de pesquisa física, dos quais ele não entende mesmo os princí- pios. Se, sobre seu retorno do Mediterrâneo, o despreparado viajante foi questionado sobre

a geologia da Córsega, ou as construções públicas de Palermo, ele replicaria: ‘Oh, eu não posso contar-lhe nada sobre isso – eu nunca estudei geologia; eu não sei nada sobre arquitetura’. Mas poucos, ou nenhum, fazem a mesma confissão sobre a moral e os costumes da nação. Todo homem parece imaginar que ele pode entender os homens num relance; ele supõe que é suficiente estar entre eles para conhecer o que eles estão fazendo; ele pensa que olhos, ouvidos e memória são suficientes para as morais, embora eles não se qualifica- riam para observação botânica ou estatística;

ele pronuncia com confiança sobre os méritos e a condição social das nações entre as quais ele viajou; nenhum receio o leva a dizer, ‘Eu posso dar a você poucas informações gerais sobre as pessoas que eu tenho visto; eu não estudei os princípios morais; eu não sou juiz de costumes nacionais’ (MARTINEAU, 2021, p. 25).

Inobstante, ela não faz apenas essa distinção.

De acordo com Martineau, o observador expe- riente não faz generalizações. Por outro lado, o observador inexperiente é um ignorante quanto à realidade, não sendo capaz de perceber a com- plexidade da vida social. Some-se a isso o fato de que ao enunciar explicações sobre o mun- do social, o observador inexperiente demonstra mais de si do que sobre o que observa, como:

ignorância ou boa formação; características psi- cológicas; domínio ou alienação com relação ao tema; reprodução de preconceitos ou criticidade (MARTINEAU, 2021).

A obra que apresentou Martineau ao mundo acadêmico e científico questionou, ainda outros elementos fulcrais para a pesquisa de campo. En- tre eles: a legitimidade de quem fala; os recortes que se faz da realidade a partir de interesses; a relação problemática entre amostra e universo pesquisado; e o fato de nem toda pesquisa ser representativa da realidade social. Martineau chegou a asseverar que as entrevistas, ainda que bem feitas, precisavam ser realizadas a partir da relação com o todo, enunciando a necessidade de atenção para com o padrão da amostra e não perdendo de vista os seguintes questionamentos:

É possível compreender algo da realidade social, seja ela familiar ou estranha, próxima ou distante, em um tempo curto ou longo de observação? O que não fazer no ato de observar a sociedade?

Ao que ela responde: Sim, desde que não seja

definitivo! Implica dizer que na primeira metade

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do século XIX, uma mulher falou sobre relativismo, relacionismo e atenção ao significado do com- portamento social muito antes de Max Weber e Georg Simmel sonharem em nascer.

Ao mesmo tempo, Martineau discutiu as impli- cações da produção de conhecimento e o “erro da generalização” devido à proposição, aceitação e reprodução de assertivas contrapostas à sua desconstrução, somada à perda de tempo e prejuízos causados. Entretanto, ela fez uma dife- renciação quanto aos meios “acadêmico” e “leigo”, pois, no primeiro, existiam formas protocolares de identificação e revisão dos erros, enquanto no último, os dados publicizados pelos viajantes não contavam com tal recurso e os julgamen- tos de valor que emitiam, por serem populares, propagavam-se rapidamente, sem condições de reversão (MARTINEAU, 2021).

Porém, não implicava dizer que Martineau repudiasse a “generalização” em si, acabando por distingui-la em “apressadas” e “seguras”, mas reafirmando que nem toda generalização base- ava-se na observação social. Qual seria, então, o

“papel do observador social”? Fornecer exemplos, testar princípios importantes e amplos. E o “papel do cauteloso filósofo”? Proceder à análise social.

Martineau passou, então, a questionar o objeto de observação e a conduta do próprio obser- vador. Não por acaso ela se perguntou: “Quais requisitos filosóficos o viajante deve ter certeza que possui antes de se comprometer a oferecer observações sobre as morais e costumes das pessoas?” (MARTINEAU, 2021, p. 35). E concluiu que o observador: 1) Deve saber claramente o que deseja conhecer; 2) Equipar-se com os meios necessários para alcançar o conhecimento pretendido, o que implica não confiar apenas nos sentidos naturais ao ser humano: visão, audição e capacidade cognitiva; 3) A diferença entre um viajante filósofo e um despreparado também diz respeito à noção de sentido moral que ele concebe (MARTINEAU, 2021, cap. I).

Por fim, face à pluralidade de morais e costu- mes convivendo e prevalecendo em povos tão diversos, observou que, independentemente da forma, do como, o objetivo de qualquer socie-

dade seria a “felicidade humana” como princípio.

Embora não tenha descrito em que consistiria essa, desenvolveu uma percepção geral do que é a busca em um plano abstrato e como ela pode ser observada em cada território ou povo, como concepção e prática. Ela expressamente abdicou e não se interessou pela comparação entre sociedades, explicitando que existia o ris- co do julgamento de valor. O leitor desavisado achará que por ela citar muitos exemplos de cada sociedade, seguidos a cada subtópico ou tema, estaria realizando comparações, mas existe aqui uma diferença significativa entre conhecer empaticamente e relativamente a pluralidade das organizações sociais, de um lado, e comparar sociedades, de outro (MARTINEAU, 1837, 2021).

Se Martineau tentou popularizar debates, tor- nar obras e conceitos acessíveis, o mesmo es- forço não foi realizado por outros teóricos com relação à sua produção. Suas obras não foram traduzidas para o português, esforço que tem sido implementado apenas recentemente, e ainda não foram incorporadas aos currículos das ciências sociais (MIGUEL, 2017; DEBIA, 2019). A percepção de que não se tem notícias sobre dificuldade de acesso à obra de Martineau, precisa considerar o fato de que, embora suas publicações se en- contrem em domínio público, o inglês britânico aristocrático do século XIX tem sua compreensão limitada territorialmente e pela aquisição de bens simbólicos muito característicos de um dado segmento da sociedade. A questão do conhe- cimento e fluência em outras línguas, além de sua importância para o trabalho do observador, foi colocada pela própria Martineau em diversos momentos (MARTINEAU, 1837, 1877, 2021).

Quanto à sua relação com o cânone sociológi- co, cabe ressaltar que Martineau foi pioneira dos estudos metodológicos e do que mais tarde seria nomeado de microssociologia, tendo antecipado em 57 anos a discussão que Durkheim institucio- nalizou em As regras do método sociológico (1895).

Contudo, ela também não é reconhecida pelo

feito. No texto Como observar: morais e costumes

(1838), ela discutiu as formas de suicídio e seus

muitos “sentidos” e tipos, além da moral presente

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nas diversas sociedades. Será, então, que teria Émile Durkheim sofrido alguma influência de Martineau? De que forma? São questões passí- veis de investigação e Fritsch (1995) se dedicou a respondê-las em sua dissertação de mestrado.

Tanto em Como observar quanto em Society in America, Martineau também abordou o tema das religiões e dos costumes de cada povo como ilustrativo do seu grau de desenvolvimento social e racionalização do mundo, além de afirmar que os sentidos conferidos às ações sociais devem ser entendidos pelos observadores. Haveria, então, alguma relação entre sua obra e a perspectiva que mais tarde seria desenvolvida por Max Weber e Georg Simmel? Essa é outra proposta de pesquisa.

Outro aspecto relevante na obra de Martineau é o estudo da democracia americana no mesmo momento em que Alexis de Tocqueville viajou com Gustave de Beaumont para os Estados Unidos. Não por acaso, a publicação de ambos ocorreu no mesmo período. Martineau teria sido influenciada pelo primeiro volume de “A demo- cracia na América” (1835) de Tocqueville? Teria Martineau influenciado o segundo volume da obra de Tocqueville, uma vez que, já havia publicado a primeira parte de “Society in America” (1837)?

De acordo com Hill (2001, p. 73), sem citar fonte e entre parênteses: “Curiosamente, o trabalho de Martineau foi trazido para atenção de Tocqueville durante o longo intervalo entre o aparecimento de seu primeiro volume em 1835 e a finalização de Democracia na América em 1840, mas ele recusou-se a lê-lo”. Coincidência ou não, ambos foram para os Estados Unidos com o intuito de conhecer a jovem democracia americana, mas as formas, os propósitos e resultados não foram os mesmos. Citei o trabalho de Hill (2001), ainda que ele não responda especificamente essa questão, pois dedicou-se apenas a comparar a produção de Tocqueville e Martineau.

Percebe-se, portanto, que, mais do que já sabe- mos sobre Martineau, é notório que temos muito a investigar, tanto sobre sua obra, quanto com relação à obra dos considerados clássicos. Basta

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  Disponível em: https://martineausociety.co.uk. Acesso em: 20 ago. 2021.

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  Disponível em: http://www.sociological-origins.com. Acesso em: 20 ago. 2021.

lembrarmos uma diferença substancial entre o trabalho de Tocqueville e o de Martineau, tendo ela permanecido em campo por mais do que o dobro de tempo do que ele. Alguém alegará que, como mulher, teria mais dificuldade em se deslo- car no território. Todavia, não parece ter sido este o caso, mas sim o método de abordagem, os tipos e a quantidade de informantes e locais visitados, como podemos perceber pelo próprio relato de Gustave de Beaumont (TOCQUEVILLE, 2010).

Vale a pena mencionar que, já no século XX, duas associações científicas foram criadas para preservar e disseminar a obra dessa importante autora, com destaque para a primeira, que realiza, anualmente, um encontro sobre a vida e obra de Harriet Martineau. São elas, The Martineau Society, criada em 1944,

3

na Inglaterra, e Harriet Martineau Sociological Society (HMSS), criada em 1996, nos Estados Unidos.

4

Nos referidos sítios, cujo acesso é gratuito e aberto, existem livros, artigos, informativos e referências importantes à obra de Martineau. Tais organizações resultam do empenho da sociedade civil organizada em manter e disponibilizar informações e acervo, democratizando seu acesso.

4 Democracia, escravidão e condição social da mulher

Dada a sua vasta obra, dificilmente consegui-

ríamos elencar todos os temas trabalhados por

Martineau. Provavelmente, os aspectos epistemo-

lógico e metodológico sejam os mais caracterís-

ticos no pensamento dela. A sua preocupação

incessante com como conhecemos o mundo,

a sociedade, os costumes e a nós mesmos se

destaca ao longo de toda a sua obra, mas tam-

bém destacarei a análise sobre a democracia, a

escravidão e a condição da mulher nas diversas

sociedades conhecidas por ela. Inobstante, sua

obra sobre metodologia citou vários outros ins-

titutos sociais e como observá-los, já deixando

uma rica amostra da sua contribuição para a aná-

lise deles em escritos posteriores (MARTINEAU,

2021). A democracia também foi objeto de suas

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análises e em sua abordagem discutiu os princí- pios conhecidos da democracia norte-americana frente ao que veio a conhecer em sua viagem. Ao questionar se uma democracia é compatível com escravidão e exclusão das mulheres, ela concluiu que os norte-americanos não cumpriam seus próprios princípios, não cabendo compará-los aos europeus (MARTINEAU, 1837; HILL, 2001).

Cinco anos antes de publicar Society in Ame- rica (1837), Martineau publicou On the Duty of Studying Political Economy, no Monthly Reposi- tory, afirmando que, para a Democracia lograr êxito, era necessário haver um conhecimento universal da ciência da economia política, po- pularizar a informação, educar as pessoas para saberem votar e escolher seus representantes.

A sua viagem aos Estados Unidos foi motivada pela curiosidade acerca das instituições demo- cráticas e como o povo americano relacionava-se com elas. Quanto a este último, alegava serem piores do que algumas partes do velho mundo:

Como a sociedade norte-americana falava tanto em liberdade e igualdade se ela “era” tão discri- minatória e excludente? Como é possível uma democracia que submete mulheres e negros?

Em 1838, ela escreveu em The Martyr Age of the United States uma crítica à democracia apenas como participação popular e escolha:

O direito de petição tem sido virtualmente ani- quilado por esses três anos passados e a nação tem sido deixada sem representação sobre a mais importante questão que tem ocupado a mente da nação. O povo mantém seu remédio na urna eleitoral (1838, p. 53, tradução nossa).

Muito antes de publicar Society in America, Martineau escreveu Demerara (1832), uma novela sobre a escravidão. Nela discutiu qual modelo era economicamente melhor, o trabalho escravo ou o trabalho livre. A discussão sobre a ineficiência econômica da escravatura estava no plano teórico e pôde ser confrontada com a realidade norte- -americana, que lhe possibilitou a perspectiva moral. Porém, não sabemos se teria ela ido a campo com tal expectativa.

Fato é que Martineau escreveu Society in Ameri- ca vinte e quatro anos antes da Guerra de Seces-

são (1861-1865), nos Estados Unidos. Ela alegou, ainda, que o trabalho livre era mais econômico do que o trabalho escravo, pois a falta de produ- tividade seria causada pelas condições de vida dos(as) trabalhadores(as), somada ao elevado custo da escravatura. Além disso, afirmou ocorrer uma falta de investimento da parte dos escravos no seu trabalho, já que o investimento mental e a volição no trabalho são importantes. Segundo a autora, as condições sociais a que eram subme- tidos escravos e mulheres distorceria a natureza deles, tornando-os “seres inferiores”, cujo resultado é usado como instrumento contra eles próprios.

O excelente Society in America está disponí- vel em uma boa versão editada por Seymour Martin Lipset, 1962, e consequentemente não foi extraído aqui. Inclui substancial tratamento do tema da escravidão, e o movimento para abolição que estava, então, em seus estágios iniciais. Martineau continuou a escrever sobre escravidão, ambos em jornais eruditos e, mais frequentemente, na imprensa popular. Dois dos seus numerosos não assinados “leaders”

para o Daily News são citados aqui junto com partes de dois artigos de jornais, um cedo e outro tardio. Todos estes se baseiam sobre a informação que ela obteve em primeira mão, por visitar plantações e leilões de escravos, e por manter-se em contato com abolicionistas (MC DONALD, 1998, p. 140, tradução nossa).

Ao falar sobre a luta abolicionista, Martineau argumentou:

A história desta luta parece fornecer um pouco de inferências que devem, nós pensamos, ser evidentes para todas as mentes imparciais...

Um é que isto é uma luta na qual não se pode desistir até ter prevalecido. Se isso é verda- de, a consequência de ceder a isso seria a salvação de um mundo de culpa e aflição.

Outro é que outros tipos de liberdade, além da emancipação da escravidão, virão com isso, que o espírito em todas as suas manifestações está sendo purgado da comunidade, que com todo escravo negro um branco será também libertado. Outro é que o republicanismo não é em nenhum grau responsável pelo desejo de liberdade, e na turbulência e tirania estão a imediata e visível descendência do velho mundo, feudal, o espírito europeu que ainda vive na instituição assaltada e no seio da aris- tocracia do país, enquanto os baluartes da Constituição, os verdadeiros republicanos, são os “peacemen”, os sofredores, os solda- dos morais, que têm ido armados somente com fé, esperança e caridade. Outra é que as pessoas de cor têm uma promissora morale sobre a qual fundamentam sua civilização.

Sua inteira conduta proporciona evidências

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de generosidade, paciência e esperança das quais bons resultados de caráter podem ser antecipados sempre que esta raça desafortu- nada tiver licença para exercer suas energias libertadas sob circunstâncias de justiça media- na (MARTINEAU, 1838, p. 58, tradução nossa).

Além de falar sobre a opressão e violência contra os abolicionistas, citou o “aniquilamento do direito de petição”, o empenho de Angelina Grimké (uma líder quaker abolicionista) e o fato de que Abraham Lincolm não teria assumido uma posição firme sobre a escravidão em si, questio- nando apenas a sua extensão (Mc DONALD, 1998).

Dois anos mais tarde, ela publicou The hour and the man, como um romance baseado na história de Toussaint L’Ouverture (1743-1803), herói negro da Revolução Haitiana (1791).

Sua análise social não era ensimesmada e ocupava espaço na imprensa para informar o que observava e formar a opinião pública. Em artigo escrito tardiamente, já durante a Guerra de Secessão, Martineau insistiu:

Não existe dúvida de que o tempo chegou quando nós devemos formar um julgamento para nós mesmos, independente da orientação americana, sobre o curso e as probabilidades dos negócios políticos em Washington. Existe, naturalmente, um forte desejo sobre todas as mãos para guiar a opinião europeia, e nós somos apresentados às visões otimistas e projetos favoritos de cada seção que tem um plano para propor... É um claro dever agora para nós tomarmos quaisquer dores que são requisitos para entender a posição de negócios no momento quando uma escolha deve ser feita em Washington de um curso entre vários (MARTINEAU, 1862, tradução nossa).

Sobre a luta feminista por direitos e tratamento igualitário, embora Martineau tenha recuperado alguns argumentos de Mary Wollstonecraft (1759- 1797), feminista do século XVIII, existem relatos de que se refere a ela com pesadas críticas à sua condição pessoal, provavelmente, por ter sido mãe solo (SILVEIRINHA; FERREIRA, 2019). Martineau expressava uma posição de classe que alegava ser pautada em uma perspectiva moral e objetividade intelectual e sofreu duras críticas por não ser uma ativista “comum”, pois, embora fosse relativista na análise social, quanto ao feminismo, ela assumiu uma perspectiva conservadora em situações como

essa. Ainda assim, tinha consciência de sua influ- ência política sobre a sociedade patriarcal inglesa, mesmo não sendo eleitora pelo simples fato de ser mulher, embora também tivesse posturas conservadoras, típicas de sua época (SILVEIRINHA;

FERREIRA, 2019). Vale destacar que destoando da maioria, alguns (algumas) teóricos(as) a reconhe- cem como sufragista (DUARTE; FEIJÓ, 2012).

Por outro lado, Martineau alegava que faltava às mulheres tanto formação quanto oportunidade e é acusada de valer-se de uma “lógica masculi- na” (SILVEIRINHA; FERREIRA, 2019). Poderíamos, então, em alguns momentos, considerá-la mais uma das muitas vítimas de violência simbólica (BOURDIEU, 2020)? Fazendo a referência a tal posicionamento Mc Donald (1998, p. 139, tradução nossa) explica que:

Martineau foi precoce e o conservadorismo severo suavizou com o tempo. Seu jornalismo tardio mostra que ela advogou pela interven- ção do governo onde era prático. Ela dedi- cou muitos anos de sua vida para defesa da igualdade da mulher (notavelmente sufrágio, educação, ocupações e direitos legais) e a abolição da escravidão.

Ao entender que o tratamento conferido às mulheres as tornava inferiores, criticou os Estados Unidos por fornecerem uma educação restrita e passiva a elas. Como parte de sua contribui- ção, Martineau publicou vários artigos acerca da educação, profissionalização e trabalho dessas, demonstrando sua participação na indústria, além dos indícios de uma certa autonomia financeira, com a elevada presença das mulheres no mercado de trabalho a partir da análise do Censo Britânico de 1851. Inobstante, Martineau também denunciou a miséria dos salários recebidos pelas mulheres.

Além disso, se defendeu o direito das mulheres ao trabalho, salvo melhor juízo, não o fez questio- nando a sobrecarga, o ambiente doméstico e os papéis sociais tradicionalmente atribuídos a elas.

A discussão sobre a condição da mulher na

sociedade em que viveu perpassou toda a sua

obra, porém, o seu trabalho da maturidade lidou

mais detidamente com a questão das mulheres

no mercado de trabalho. Trata-se do “Female

Industry”, publicado na Edinburgh Review, em

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1859, no qual demonstrou que as mulheres: já participavam do mercado de trabalho; não eram simplesmente sustentadas por pais e irmãos;

seu trabalho era produtivo e não apenas repro- dutivo. Ao mesmo tempo, questionou o fato de que a situação das mulheres seria melhor acaso recebessem salários iguais aos dos homens e se as condições dos trabalhos fossem menos pre- cárias. Portanto, para Martineau, a discussão não deveria focar apenas no “trabalhar fora de casa”

e as implicações para o ambiente doméstico e a prole, sendo esse apenas o início de um longo processo de emancipação.

5 Martineau hoje

Cem anos após a morte de Martineau, a so- ciologia começou a olhar para as suas raízes e descobrir a contribuição das mulheres para a tradição sociológica, porém esse processo tem sido bastante demorado e marcado por muitas resistências injustificadas. O estilo da escrita de Martineau é muito contemporâneo: sem rebusca- mentos, crítico, por vezes até irônico. Obviamente, reflete um período histórico, uma formação e, por isso mesmo, uma classe, mas é uma leitura atual não só na forma quanto no conteúdo. Falta agora incorporarmos sua produção nos currículos das ciências sociais, apoiarmos traduções de sua obra e contemplá-la nos livros sobre teoria social e história da sociologia, além de incluí-la nos temas dos editais de concurso em qualquer modalidade que envolva a teoria sociológica como base de formação. Só assim, combateremos parte da violência de gênero e da violência epistêmica que vivenciamos (DEBIA, 2019).

Os temas por ela abordados continuam atuais e urgentes. Destaco a discussão sobre os requi- sitos necessários à observação: a necessidade de pensar a forma como nos relacionamos com os fenômenos sociais observados, as fontes e pessoas, além de o pesquisador também se colocar enquanto objeto de reflexão. As questões postas por Martineau ainda são recorrentes e nada assentadas. A pesquisa de campo ainda vive inconstâncias e a multidão de indivíduos que hoje acessa o ensino superior, vendo-se obrigado

a produzir um mero trabalho de conclusão de curso, acaso tivesse contato com bons metodó- logos, como Martineau, não estariam condenados a trabalhos, por vezes, tão desastrosos.

Não menos atual e oportuno é o debate que Martineau inaugurou sobre a democracia e seus princípios, o que também permanece pujante e em aberto (HILL, 2001). Basta citarmos a condição da imigração, do trabalho análogo ao escravo, dos direitos nas democracias contemporâneas e, também, dos processos eleitorais. Por último, a discussão sobre o conhecimento, seu acesso e importância não para um mundo de eruditos, mas para a vida cotidiana. Ao mesmo tempo, revisitar Martineau reacende a discussão sobre qual(is) conhecimento(s) nós elegemos e por qual motivo. Ajuda-nos a desconstruir o mito da fundação da sociologia e da própria história da disciplina, chamando a atenção para a necessi- dade de traduzirmos e lermos as clássicas.

Por incrível que possa parecer, 200 anos de- pois, a temática de gênero ainda é extrema- mente atual e permanece não fazendo sentido a realidade de desigualdade e opressão. Para Martineau, a crença de que existiam trabalhos que supostamente seriam masculinos e outros femininos, era uma falácia, pois homens não ne- cessariamente eram tão corajosos, nem dariam conta de “virtudes resistentes”, e mulheres não tão gentis, nem possuíam “virtudes delicadas”. Além disso, de acordo com Martineau, textualmente, os indivíduos de uma dada categoria precisavam se esforçar para garantir o progresso ou eman- cipação de sua classe.

Considerações finais

Expostos os fatos, as obras, os temas e a re- lação com o cânone sociológico, resta claro que ainda pouco sabemos sobre a obra de Martineau.

Em alguns momentos ainda no século XIX e no

XX ocorreram tentativas de resgatar e popularizar

seu legado, sendo hoje identificados trabalhos

esparsos de comentadores sobre sua obra ou

englobando Martineau e outras clássicas. Esse

esforço não foi levado adiante e ficou concen-

trado em algumas iniciativas.

(16)

Todavia, enquanto suas obras não forem tradu- zidas para outras línguas dificilmente se tornarão acessíveis, até mesmo para o público acadêmico.

Acredito que a existência de diversos comen- tadores auxilia o acesso, porém, também pode estimular a não leitura das obras em si, deixando ao largo o que os autores de fato falaram, como, quando e onde, optando-se pela leitura do que alguém alega que foi dito. Por isso, é fundamental voltar aos clássicos e ouvi-los atentamente para reescrevermos a história da sociologia a partir dos fatos e não dos recortes dos fatos feitos pelos primeiros e, às vezes, preguiçosos e apressados leitores. De um modo geral, os comentadores são bastante repetitivos quanto a somente alguns aspectos da obra de Martineau e, por vezes, descritivos, faltando uma análise da obra e um estudo sistemático desta. Usar os comentadores é fundamental, mas a visão deles é apenas uma das muitas possíveis, sendo que a sociologia não pode se render aos “discursos de autoridade”, o que seria contrário à própria perspectiva socio- lógica. Assim, o estabelecimento de uma agenda de pesquisa persistente e sólida sobre a obra de Martineau é uma demanda real e urgente.

Inobstante, os dados apresentados revelam que a história da sociologia precisa ser reescrita dando visibilidade aos agentes que contribuíram para o seu surgimento e institucionalização. Es- tranho constatar que existe uma lacuna a ser preenchida que requer pesquisa sociológica sólida e atenta às omissões e aos apagamentos da qual foi vítima a história da sociologia em seus quase 200 anos de existência, que serão completados em 2030. Preparar-se para esse momento requer uma reflexão sobre o cânone e a inclusão das clássicas no ensino de sociologia.

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