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A Menina, o Cavalo e a Chuva: A arte de contar histórias e a cibercultura

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Academic year: 2017

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USP Universidade de São Paulo

ECA – Escola de Comunicação e Artes CAP Departamento de Artes Visuais

Cristiana Souza Ceschi

A Menina, o Cavalo e a Chuva

A arte de contar histórias e a cibercultura

São Paulo

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Cristiana Souza Ceschi

A Menina, o Cavalo e a Chuva

a arte de contar histórias e a cibercultura

Dissertação de mestrado apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Artes. Área de concentração: Artes Visuais. Orientadora: Regina Stela Barcelos Machado.

São Paulo

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Cristiana Souza Ceschi

A Menina, o Cavalo e a Chuva: A arte de contar histórias e a

cibercultura

Dissertação apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Artes Visuais.

Aprovada em: ____________________________________________________________

Banca Examinadora

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Agradecimentos

Primeiro agradeço ao Fernando de Almeida, meu fiel companheiro de tantas aventuras. Junto com o Martim, meu filho, fonte de inspiração, alegria e amor.

Agradeço especialmente à minha mãe Alba Estela, a Estrela Dalva que trouxe poesia para minha vida e que adora brincar.

Agradeço à Maria das Neves e Paulo Ceschi, silenciosamente generosos.

Agradeço à minha irmã Patricia, companheira desde sempre e cúmplice nas descobertas mais secretas da vida.

Agradeço à Regina Machado, minha orientadora, com quem aprendo o verdadeiro sentido da busca e sobretudo a confiar.

Agradeço ao Professor Marcos e à Fabiana Rubira, que me ajudaram a ampliar meus horizontes de escuta para perceber, sentir e aprender.

Agradeço à Beatriz Carvalho, minha companheira de saltos e voos, parceira de investigação poética que tem a chave para o que me falta.

Agradeço a todos os entrevistados que em muito contribuíram para ampliar e aprofundar esse trabalho.

Agradecimento especial à minha encantadora amiga Julia Grillo, por toda a ajuda que não posso jamais mensurar, somente reverenciar.

Agradeço também ao amigo Josias Padilha, que compartilha o que sabe com tamanha generosidade, e aos amigos do grupo de estudos do Encantamento.

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Pôs na boca, provou, cuspiu.

É amargo, não sabe o que perdeu

Tem o gosto de fel, raiz amarga

Quem não vem no cordel da banda larga

Vai viver sem saber que mundo é o seu

É amarga a missão, raiz amarga Quem vai soltar balão na banda larga É alguém que ainda não nasceu

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RESUMO

Este trabalho é uma reflexão acerca da Arte de Contar Histórias como uma importante

ferramenta artística e educativa na formação do ser humano de todas as épocas, vista

especialmente em suas relações com as questões trazidas pelo universo contemporâneo

da cibercultura. Ao problematizar e dialogar com a emergência e complexidade desse

universo, a função social do contador de histórias, sua arte e seu papel formador

encontram visões divergentes, antagônicas e polêmicas trazendo assim discussões

pertinentes para seu lugar e importância na vida atual. O que é importante saber para

contar histórias no mundo de hoje? Qual a relevância da arte de contar histórias em um

mundo mediado por telas? Qual o impacto da cibercultura no universo do contador de

histórias e o impacto do trabalho do contador de histórias na Era Digital? Tais questões

foram discutidas partindo de imagens significativas que serviram de metáforas para o

aprofundamento dos problemas bem como do depoimento de contadores e ouvintes de

histórias, teóricos da comunicação, antropólogos, filósofos, poetas e educadores.

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ABSTRACT

This work is a reflection about the Art of Storytelling as a major artistic and educational

tool in the educational process of human beings of all ages, especially seen in its

relations with the questions raised by the contemporary universe of cyberculture. When

discussing and questioning the emergence and complexity of this universe, the social

role of storyteller, his art and his educational role, we came across different, antagonistic

and controversial sights bringing relevant discussions to his place and importance in the

present life. What is important to know in order to tell stories in today's world? What is

the relevance of storytelling in a world mediated by screens? What is the impact of

cyberculture in the storytelling universe and the impact of the storyteller s work in the Digital Age? Such issues were discussed starting from meaningful images that served as

metaphors for the deepening of the problems as well as the testimony of storytellers and

listeners, communication theorists, anthropologists, philosophers, poets and educators.

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SUMÁRIO

Introdução ……… p. 14

Apresentação ………. p. 18

0.1 A descoberta do Pharmakon ……… p. 0.2 O trabalho do coletivo As Rutes ……… p. 20 0.3 O encontro com Medusa ……… p.

0.4 Na estrada ……… p. 24

0.5 Um relâmpago anuncia a chuva: A Menina, o Cavalo e a Chuva ……… p.

Capítulo I – A Menina ……… p.

Capítulo II – O Cavalo ……… p.

2.1 O Cavalo que pode voar: as histórias de tradição oral ……… p.

2.2 O Cavalo de carrossel: Os meios digitais ……… p. 2.2.1 Relato de experiência ……… p.

2.2.2 A caverna de Medusa ……… p.

2.2.3 O reflexo de Medusa no escudo de bronze ……… p.

Capítulo III – A Chuva ……… p.

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Capítulo IV – O Cavalo Mágico ……… p.

Considerações Finais ……… p.

Bibliografia ……… p.

Anexo

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INTRODUÇÃO

O desejo de realizar esta pesquisa é fruto da minha experiência como contadora e ouvinte de histórias.

Desde 2001 dedico-me a esse ofício em espaços diversos como livrarias, escolas, hospitais, teatros, praças e saraus, onde quer que existam pessoas interessadas em mergulhar no universo dos contos que significam e encantam o mundo, dando forma e sentido às nossas experiências.

Pretendo com o presente trabalho investigar a arte de contar histórias no tempo presente, tendo como principais referências a figura e função do narrador tradicional, a transmissão do saber nas sociedades tradicionais, o conceito de experiência e o universo do Imaginário como fundação de saberes, práticas e representações sociais.

Onde está situado, qual a sua importância e como atua o narrador – no sentido de sua arte e seu papel formador na contemporaneidade, e mais especificamente em contato com a cibercultura?

Partindo da minha experiência como contadora de histórias e do que aprendi com as formulações de Regina Machado venho observando que tanto contar como ouvir histórias pressupõe um diálogo com (e entre) as nossas imagens internas, estejam elas na superfície do nosso ser – as imagens prontas, os estereótipos, construídas para o consumo imediato – ou quando a experiência poética de ouvir e contar é mais profunda, dialogando com imagens singulares, com a nossa intimidade, com uma essência que transforma e organiza o sentido da existência.

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Desejo, com esta pesquisa, abrir um caminho de diálogo para educadores-artistas que se desafiam a conciliar a busca do conhecimento ancestral e a lucidez dos tempos passados à emergência e complexidade do novo , com enfoque nos multimeios da Cultura Digital.

Não se trata, porém, de encontrar fórmulas ou manuais em que a função do contador de histórias seja inserida, modernizada no mundo da cibercultura, e sim de rever, repensar o lugar e a função do contador de histórias em diálogo com o mundo de hoje. Por vê-lo situado nessa problemática, surge o desejo e a necessidade de um aprofundamento no diálogo entre o conhecimento ancestral e o mundo contemporâneo, não apresentando uma solução ou resposta para os conflitos, mas criando espaço para uma reflexão sobre o assunto.

Será que o contato intenso com as mídias eletrônicas e o bomardeio de imagens frenéticas a que estamos expostos diariamente têm efeitos na predisposição dos indivíduos para entrar em contato com sua interioridade e mergulhar em experiências

significativas1, nos campos simbólicos em que as histórias e mitos mobilizam nossa

imaginação? Que elementos diferenciais esses suportes próprios do universo da cibercultura podem oferecer à arte da narrativa, aos contadores de histórias e educadores do nosso tempo? Qual o lugar, o papel do contador de histórias/educador nesse contexto em que o conhecimento, a informação rápida e instantaneamente disseminada pelos multimeios da cultura digital pertencem a todos e a ninguém? O que é essencial saber/conhecer/ viver para contar histórias no mundo em que vivemos?

A fim de compreender e discorrer sobre o tema central desta pesquisa – a função e as possibilidades do narrador contemporâneo principalmente no que diz respeito ao despertar de um aprendizado imaginativo proporcionado pela arte da palavra, tomo como base e inspiração professores, contadores de histórias, filósofos e antropólogos, dentre os quais os mais significativos para mim são Hampatê Bá, Gaston Bachelard, Georges Gusdorf, Giorgio Agamben, Mircea Eliade, John Dewey, Jeanne Marie Gagnebin e Joseph Campbell, tomando como elementos norteadores, minhas estrelas-guia , a convivência, o trabalho, as histórias e os textos dos professores Regina Machado e Marcos Ferreira Santos.

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Outra referência de fundamental importância para a pesquisa foi o trabalho do contador de histórias Dan Yashinsky, que além de ser uma fonte de inspiração como contador de histórias é um artista e escritor que pesquisa em profundidade o que ele chama de mito contemporâneo , tratando assim de um aspecto importante do assunto que me propus a investigar – o lugar do contador de histórias na contemporaneidade.

Para investigar como o contato com as mídias e o uso intenso de aparatos tecnológicos atua, modificando a nossa maneira de pensar, sentir e imaginar, busquei conversar com alguns autores que problematizam e fundamentam essa investigação. São eles: Derricck de Kerkhove, Arlindo Machado, Lucia Leão, Mônica Fantin, Ciro Marcondes Filho, Gilka Girardelo e Sherry Turkle.

Todos esses autores me ajudaram a tecer, construir o diálogo entre a tradição e a contemporaneidade na arte de contar histórias.

A palavra tradição tem uma importância fundamental para a compreensão deste trabalho, uma vez que partimos do pressuposto de que a tradição não é algo rígido e dogmático, adormecido no passado, que só faz sentido para as pessoas que viveram em um determinado tempo e espaço. A tradição aqui está ligada à noção de ancestralidade:

... entendida como traço constitutivo do meu processo identitário que é herdado e que persiste para além da minha própria existência. Durante a pequena duração da minha existência, sou portador dessa ancestralidade (grande duração histórica). Somos portadores de algo muito mais amplo e mais profundo. Através da nossa voz, as vozes ancestrais reencontram o seu canto no mundo. (FERREIRA SANTOS; ALMEIDA, 2012, p. 60)

Dessa maneira, quando usamos o termo tradição ligado à ancestralidade referimo-nos a uma fonte dinâmica e inesgotável de conhecimento, atualizada em nossas criações e na consciência do nosso lugar e papel no mundo.

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A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. ... Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas. (1980, p. 183)

A noção de tradição é portanto um referencial teórico importante para essa pesquisa, e os autores de que nos valemos desenvolvem uma investigação enriquecedora, explicitando a maneira como as histórias, lendas, mitos e parábolas podem ser utilizados como material associável ao processo de formação das pessoas que vivem na contemporaneidade.

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APRESENTAÇÃO

Não há nada de quixotesco nem romântico em querer mudar o mundo.

É possível.

É o ofício ao qual a humanidade se dedicou desde sempre.

Não concebo melhor vida que uma dedicada às efervecências,

às ilusões, à teimosia que nega a inevitabilidade do caos e à esperança.

(Gioconda Belli, poetisa nicaraguense)2

A descoberta do Pharmakon

Comecei a trabalhar oficialmente como contadora de histórias na Editora Ática em um projeto chamado Planeta das Histórias em 2001. O projeto acontecia na sede da editora, no bairro da Liberdade, e recebia grupos de crianças e adolescentes de escolas particulares ou públicas para uma visita monitorada no show-room da editora. Os participantes eram convidados a ouvir uma história para em seguida comprar um livro da editora o passaporte para a visita .

Trabalhei no projeto por sete anos, primeiro como contadora de histórias e depois como formadora da equipe de contadores de histórias. Entrei em contato com esse universo sem nenhuma ideia do que era uma boa história e também não havia passado por qualquer formação específica que me ajudasse a aprofundar-me no escopo dessa arte; naquela época, aprendi fazendo.

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histórias da tradição oral e os mitos de diversas culturas. Entre os tantos livros cujas histórias poderia escolher para contar, acabava optando por aqueles com as histórias mais antigas – mitos, lendas e contos da tradição oral. Curiosamente, mas não por acaso, eram as que eu mais gostava de contar e que as crianças mais gostavam de ouvir. Lembro-me que naquela época, sem saber direito o porquê, quando eu contava uma dessas histórias, suspirava aliviada dizendo: Ah, isso sim é uma história de verdade.

Quando tive a oportunidade de me desvincular do trabalho em editoras comecei a me aprofundar nisto que estava chamando de história de verdade . Naquela época, uma história de verdade era para mim uma história que fizesse sentido, que me chacoalhasse por dentro, uma história que em sua graça, tristeza, aventura ou terror trouxesse uma transformação para quem estivesse ali comigo, vivendo aquele encontro.

Esse lugar do encontro em que algo significativo acontece era para mim como um remédio, uma vitamina, uma poção mágica que tinha que fazer parte do meu cotidiano como uma promessa de saúde, de espaço para caber no mundo, um Pharmakon que nutre a vontade de viver mais e melhor.3

Penso que essa foi a minha primeira importante descoberta sobre o quão amplo e profundo podia ser o trabalho com as histórias. Um caminho a ser trilhado, onde as histórias poderiam ser utilizadas para muito além de simples diversão ou entretenimento.

Como diz a contadora de histórias, poetisa e psicanalista Clarissa Pinkola Estés:

Nas duas tradições das quais me origino, hispano-mexicana por nascimento e de imigrantes húngaros por adoção, o relato de uma história é considerado uma prática espiritual básica. Histórias, fábulas, mitos e folclore são aprendidos, elaborados, numerados e conservados da mesma forma que se mantém uma farmacopeia. Uma coleção de histórias culturais, e especialmente de família é considerada tão necessária para uma vida longa e saudável quanto uma alimentação razoável, trabalho e relacionamento razoáveis. A vida de um

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guardião de histórias é uma combinação de pesquisador, curandeiro, especialista em linguagem simbólica, narrador de histórias, inspirador, interlocutor de Deus e viajante do tempo. (1998, p. 09)

Sigo em busca dessas histórias e, ainda que não consiga ler de cabo a rabo a bula desse remédio (letras pequenas que, ainda bem, guardam o mistério), sinto amplamente seu efeito e tenho grande prazer em compartilhar minha pequena botica com quem desejar.

O trabalho do coletivo As Rutes

mas somos muitos milhões de homens comuns

e podemos formar uma muralha

com nossos corpos de sonhos e margaridas4

( FERREIRA GULLAR)

Em 2007 formei junto com Beatriz Carvalho o coletivo As Rutes. Nosso trabalho começou com a criação de dispositivos diversos de escuta no espaço público para coletar histórias de vida, histórias do homem comum.. Também pesquisamos novas mídias para compartilhar e fazer proliferar as histórias.

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A primeira estratégia de atuação do coletivo As Rutes no espaço público é a de utilizar um repertório comum à cidade: placas, trânsito, passagem, postais e movimento, chamando atenção para as coisas em si mesmas e não para a sua finalidade. Como se desfuncionalizando esses elementos, convidássemos os transeuntes a perceberem, em primeiro lugar, que estão ali e fazem parte desse organismo vivo que é uma cidade, para em seguida penetrar no campo imaginário que ali se manifesta.

Como exemplo, quando fizemos a nossa residência artística em Brighton, Londres, caminhávamos pela cidade com uma placa que dizia: área de sonhar acordado . Com o objetivo de traçar uma cartografia sensível daquele espaço, saímos pelas ruas perguntando para as pessoas onde era o melhor lugar para se sonhar acordado naquela cidade e essa pergunta levava as pessoas a entrarem em contato com a sua maneira de sonhar acordado, com o que elas sonhavam e onde seria um espaço propício para esse estado de presença. Terminamos essa ação performática sentadas na beira da praia, acompanhadas de um grupo de pessoas que vieram sonhar acordadas com a gente. Fotografamos e filmamos esse percurso para registrar e proliferar o que vivemos ali.

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com nosso mundo interior, com os símbolos nele contidos, vivos e em diálogo com o mundo em que estamos imersos é o nosso grande desafio.

Realizamos a mesma ação performática em São Paulo, no centro da cidade, e na ocasião encontramos pessoas bem menos dispostas a sonhar acordadas. Em um determinado momento da ação, em que estávamos sentadas na escadaria do Teatro Municipal, um homem sentou-se ao nosso lado e pediu que contássemos uma história pois para ele (e também para nós!) as histórias eram boas para fazer sonhar.

Contei uma história e enquanto isso o homem subitamente organizou todo o seu corpo, todos os sentidos. Ficou ali um bom tempo em silêncio conosco, depois agradeceu e foi embora.

Naquela tarde, aquela história tão antiga, vinda de um tempo antes do tempo, viajou pelas eras e chegou como um presente, revigorando quem estava ali, um presente presentificado e que no momento seguinte, depois de matar a nossa sede, seguiu seu caminho naquele rio oculto, de águas cristalinas, que corre por debaixo daquelas escadarias, da cidade imensa, sempre em movimento e pronto para jorrar dentro da gente.

Descobrimos nas histórias uma grande aliada para nos conectar com a dimensão mítica da cidade. Descobrimos que elas nos ajudam a aproximarmo-nos da realidade e do presente, e ao mesmo tempo nos transportam para outras dimensões, tempos e espaços e para nossa história pessoal e coletiva. Percebemos em nossa prática que quando a nossa ação performática é guiada, alimentada por uma história, um conto da tradição oral, conseguimos acessar mais facilmente esse espaço de contato com as nossas imagens e possibilidades internas.

Ao mesmo tempo, temos prazer em registrar o acontecimento vivido e fazê-lo proliferar em uma outra narrativa. Esta deve, muito além de documentar o que vivemos, ser um novo produto artístico, que incorpore e potencialize as peculiaridades da linguagem, dos recursos que escolhemos para trabalhar artisticamente o vídeo e a animação, por exemplo.

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versão, em um único ponto de vista; desejamos um produto que, inspirado nas histórias que contamos e ouvimos, libere um espaço fértil para o outro sonhar, como um portal em que o outro entre na obra junto com a gente.

O encontro com Medusa

Certa vez, numa sessão de histórias para os alunos do quarto ano de um renomado colégio de São Paulo, com o tema mitos gregos , as crianças ligaram seus smartphones para ver uma imagem da Medusa no momento em que anunciei que iria começar a narrar esse mito. Interrompi a história, desci do palco e cheguei mais perto para ver o que elas viam nas telas dos smartphones: encontrei uma imagem da atriz Uma Thurman no filme Percy Jackson, o ladrão de raios .

Voltei a contar histórias, quando as crianças já não olhavam mais para a imagem da tela, e depois fui para casa cheia de perguntas:

– Quem é essa criança que lança mão das imagens do universo online para buscar o conhecimento?

– Que tipo de imagem, informação ou resposta ela encontra quando busca?

– Como ela imagina e dá sentido às imagens?

– Como eu, contadora de histórias, dialogo com essa criança? Qual o meu papel como contadora de histórias e educadora no mundo contemporâneo?

Essa experiência foi a porta de entrada para iniciar a minha busca, o lugar, a janela, o recorte de onde comecei a pesquisar o assunto que me proponho a investigar: a arte da narrativa na contemporaneidade.

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sociedade contemporânea apoiam, justificam e fundamentam esse caminho. Tomando como base a minha experiência como contadora de histórias e o pensamento desses autores, podemos levantar hipóteses sobre como os jovens, as crianças hoje chamadas de Nativos Digitais ,5 apresentam algumas peculiaridades em sua maneira de

mergulhar em situações simbólicas6, como as que emergem dos contos tradicionais. Ao

longo da dissertação irei discorrer sobre essas peculiaridades apresentando também estratégias, possibilidades de atuação artístico-pedagógicas que dialoguem com essa inquietante problemática: entrar em contato com a imaginação criadora que amplia o horizonte da experiência, proporcionada e alavancada pelo fazer artístico versus o consumo de imagens estéreis, feitas para o consumo imediato, que nos desviam do sonho e do despertar de nossa ação imaginante.

Na estrada

A estrada, todo o caminho que trilhei no presente trabalho foi saboreado, aprofundado e cheio de sentido porque as minhas estratégias de investigação estiveram sedimentadas nos exercícios de investigação teórico-poética desenvolvidos por minha orientadora Regina Machado.

Foi a abordagem teórico-poética apresentada por Regina que me ajudou a investigar e interagir com o tema da pesquisa de maneira criativa, significativa, teórica e ao mesmo tempo poética, o que permitiu um espaço para o exercício de recursos internos – perceptivos e intuitivos –para a aprendizagem . (MACHADO, R., 2008, p. 178) Com o intuito de aprofundar e trazer à tona os objetos de estudo dessa pesquisa,

5

O termo Nativo Digital encontra-se o The digital ati es de ate: A iti al e ie of the e ide e . B itish Journal of Educational Technology de Bennett, S., Maton, K. and Kervin, L. (2008) e diz respeito àqueles que nasceram e cresceram com as tecnologias digitais desde a década de 80, mas principalmente com as tecnologias do século 21.

6“ituações e ue o sí olo u a fo a de o he i e to

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utilizei os exercícios de investigação chamados de tiro ao alvo e mapas , desenvolvidos e apresentados pela professora Regina Machado na disciplina do Departamento de Pós-Graduação da ECA-USP, As narrativas de tradição oral e a formação de educadores artistas.

Um dos primeiros exercícios que realizei foi o do tiro ao alvo , que consiste em elaborar perguntas-guia (teóricas) e dispô-las em diálogo com um trabalho visual (poético), de maneira que a pergunta central (a mais significativa naquele momento) esteja posicionada no centro do alvo, irradiando para as outras perguntas em torno desse núcleo de investigação. As perguntas geram imagens, repousam nelas, e essas imagens por sua vez podem gerar outras perguntas.

O exercício de formular visualmente peguntas que formam um desenho de alvo é uma ferramenta eficaz para clarear as questões que direcionam a pesquisa, centrando, presentificando e abrindo espaço para o desenrolar das reflexões vivas e pertinentes em cada momento da construção teórica.

Como coloca Regina Machado no texto Rasas Razões: A posição de alguém que se dispõe a perguntar, para si mesmo e para outras fontes de conhecimento, é extremamente propícia. Pressupõe uma curiosidade que não focaliza o acerto ou erro, mas a possibilidade da descoberta. 2008, p.177).

Além de estabelecer um conjunto de diretrizes para o desenvolvimento de uma experiência que serve à produção do conhecimento, esse exercício é um caminho, um impulso para a investigação aberta ao imprevisível. Está mais ligado à noção de uma estratégia focada em ideias-problema do que na resolução ou explicação desses problemas.

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Outra estratégia teórico-poética que utilizei para a elaboração desta dissertação foi o mapa . O desenho poético de um mapa estabelece um lugar de partida, um percurso que organiza as ideias elencadas no texto e um fim que será um lugar de convergência dos caminhos trilhados, coroando a relação entre o sujeito que faz esse percurso e a criação do texto.

Também fez parte do trabalho a criação de cartas, textos poéticos que foram decisivos para caminhar pé ante pé nessa estrada. E foi assim que, de repente, encontrei no caminho ora sombrio e ora luminoso uma imagem-guia, um relâmpago doador de sentido, prenúncio de uma chuva boa, que apresento a seguir.

Um relâmpago: A Menina, o Cavalo e a Chuva

O contar histórias e trabalhar com elas como uma atividade em si possibilita um contato com constelações de imagens que revela para quem escuta ou lê a infinita variedade de imagens internas que temos dentro de nós como configurações de experiência. (MACHADO, R., 2004, p. 27)

Quando cursei a disciplina As Narrativas da Tradição Oral e a formação de educadores artistas ministrada por Regina Machado, logo no primeiro dia de aula, depois de uma sequência de exercícios em que fomos convidados a nos apresentar, conhecer os parceiros e, de uma maneira divertida, criativa e acolhedora dizer a que viemos, houve um momento em que Regina nos pediu que fizéssemos um desenho em uma folha de sulfite A4 a partir da seguinte pergunta: Como estou agora?

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ladeira de vegetação verde escura e atravessando uma forte chuva de verão, uma chuva com claridade, iluminada pelo sol. Vi a cena à distância, como teria visto em um quadro.

Conforme desenhava a imagem no papel fui tomada por sensações diversas: frio na barriga, vento nos cabelos, entrega, a ressonância do galope chegando no corpo, alegria, entusiasmo, certeza de um momento intenso e efêmero. Momento em que não podemos e nem queremos recuar.

A partir da concepção, percepção e concretização dessa imagem me arrisquei a desenvolver uma possível analogia com a arte de contar histórias, re-vendo e reinventando o meu fazer artístico.

Começo então a minha análise por um exercício de qualificar:

O Cavalo: forte, grande, sábio, o que move, desloca, transporta, segue como um rio.

A Menina: corajosa, porosa, entregue, de olhos fechados segura as rédeas sem ter total controle, confia no cavalo, sensação prazerosa e amedrontadora de seguir sem saber ao certo onde vai chegar.

A Chuva de Verão: intensa, presente, inevitável, um eixo vertical, um portal, o instante, um ritual de passagem – o que acontece antes do arco-íris?

Depois de qualificar, consigo pensar em possíveis analogias:

A Menina e o Contador de Histórias;

O Cavalo e o Conto;

A Chuva e o Encontro.

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No capítulo , A Menina , pretendo discorrer sobre o ofício do contador de histórias. Ao falar da Menina, darei ênfase à experiência de contar histórias do ponto de vista de quem vive ou busca viver experiências significativas.

O capítulo , O Cavalo, apresenta em seu primeiro subitem – O cavalo que pode voar – um aprofundamento no conto de tradição oral e em seu papel na formação dos indivíduos e na transmissão do conhecimento. Feito isso, iniciarei o segundo subitem do capítulo – O cavalo de carrossel – em que proponho uma reflexão sobre a utilização das histórias no universo da cibercultura, para depois me aprofundar na questão da disseminação de informação e imagens neste universo. Termino o capítulo com uma reflexão em que utilizo a imagem do carrossel como metáfora para a utilização dos multimeios da cultura digital na busca pelo conhecimento.

O terceiro capítulo da dissertação tomará a Chuva como o lugar do Encontro, Menina e Cavalo vivendo juntos uma experiência significativa, o instante que nos possibilita um contato com a imaginação criadora, com a sensação de pertencimento, com o universo do Sagrado, o eixo vertical que traz a reflexão sobre a dimensão espiritual que pode estar presente na Arte de Contar Histórias.

Será justamente esse elemento de contato com a chuva de verão que nos encaminhará para as reflexões finais, a que dei o nome de Caválo Mágico, onde coloco o mediador, condutor do cavalo, como presença fundamental que acompanha aqueles que ousam viajar rumo ao seu destino, ser o que se é e assim cumprir o seu papel no mundo.

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CAPÍTULO 1 - A MENINA

Um dia, na aldeia de Nasrudin, seus amigos lhe perguntaram como havia conseguido sua insuperável sabedoria. Ele respondeu, "Quando eu fico sabendo que uma pessoa sábia vai falar, eu chego perto e ouço seja lá o que for que ela disser. E quando eu noto que as pessoas estão me ouvindo... Eu pergunto depois, o que foi que eu acabei de dizer7 (YASHINSKY, 2004, p. 9)

Agora eu acredito que contar uma história é a coisa mais fácil do mundo, a mais difícil é ser um bom contador de histórias. (RUTH SAWYER citada por YASHINSKY, 2004, p.80)

Quem é a menina? De onde ela vem, onde ela está e para onde vai?

Na imagem descrita, consigo perceber onde ela está: montada num cavalo a galope, descendo uma ladeira embaixo de chuva.

Não é por acaso que a menina está ali. Mesmo com a chuva anunciada pelos raios e trovões ela montou no cavalo e saiu a galope por algum motivo. Veio e está indo para algum lugar, mesmo que esse lugar seja simplesmente ter a experiência de atravessar uma chuva de verão em cima de um cavalo em disparada.

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suspensão do tempo do relógio , consigo imaginar essa cena em câmera lenta, cheia de minúcias, repleta de sensações, densa e suave ao mesmo tempo.

Muitas vezes, ao contar uma história vivemos essa sensação de alargamento do presente , de imersão no espaço do inesperado, dos possíveis, da fantasia e do mistério. Como entrar, passear, sustentar e atravessar esse lugar de risco, em que temos um

controle descontrolado ?

Recorro ao pensamento de John Dewey quando afirma que ao vivermos uma experiência verdadeira, ao mesmo tempo em que fazemos algo, to do, algo nos acontece: undergo , que pode ser traduzido como sofrer algo. (1974, p.44). Na experiência reside um elemento de vivenciar, de sofrer, em sentido amplo, caso contrário não haveria interiorização do que ocorreu. Pois interiorizar (...) é mais do que colocar algo sobre a consciência do que já se sabia. Envolve reconstrução, que pode ser dolorosa ibid, p. 41).

Viver uma experiência verdadeira, nesse sentido, pressupõe uma disponibilidade interna, uma receptividade para o desconhecido e para ser transformado, como define Heidegger:

... fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em fazer significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo. (HEIDEGGER, 1987, p. 143)

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ainda, incorpora saberes. Como diz Georges Gusdorf, é nesse tipo de comunicação que se estabelece entre contador e ouvinte que se pode liberar o que estava adormecido:

Eu não comunico enquanto não fizer esforços para liberar os sentidos profundos do meu ser. A comunhão do amor, que representa um dos modos de entendimento mais completos, não se realiza sem um ajustamento da personalidade, pelo qual cada um se descobre no contato com o outro (...) A expressão mais pura, a afirmação do gênio da Arte, dá origem a uma nova comunhão, e a comunicação perfeita liberta em nós possibilidades de expressão que estavam adormecidas. (2010, pp. 57-58)

Desta maneira, quando apresentamos um conto, muito além de informar, situar historicamente, entreter, aquietar ou passar o tempo, a busca de quem monta um cavalo a galope é encontrar e liberar sentidos profundos de si para intercambiar experiências, corporificá-las, alargando nossas possibilidades de existir e nos conectando aos sentidos dessas experiências:

Este lá para onde a pessoa se transporta é o lugar da imaginação enquanto possibilidade integrativa do homem. Quando experimento estar dentro da história, experimento a integridade individual de alguém que não está nem no passado nem no futuro, mas no instante do agora onde encontro em mim não o que fui ou o que serei, mas a minha inteireza no lugar onde a norma e a regra enquanto coerção e

exterioridade do mundo – não chegam. Onde eu sou rei ou rainha do reino virtual das possibilidades, o reino da imaginação criadora. Nesse lugar encontro não o que devo, mas o que posso: portanto entro em contato com a possibilidade do poder criador humano, configurado em constelações de imagens. (MACHADO, R., 2004, p. 24)

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experimentamos, um caminho a ser percorrido como em todo processo de aprendizagem. Devemos ressaltar aqui a importância de percorrer ligada à importância do exercício, da prática, do fazer artístico embricado com o sentido daquilo que estamos fazendo, sentido este que está sintonizado com a busca pessoal de cada um, com seu projeto maior.

É preciso que o contador de histórias tenha verdadeiramente uma disponibilidade interna, somada a uma intenção genuína de passar pela experiência de montar o cavalo e descer a ladeira a galope. E é essa intenção, esse propósito norteador, somado à sua prática, seu treino (mergulhar no conto e exercitar a capacidade de narrá-lo) que o ajudará a ter coragem para atravessar a tempestade e compartilhar um conto em toda a sua potencialidade assumindo um estado de presença poroso em relação a si mesmo e a sua plateia.

Retomo o pensamento de Dewey quando coloca que viver uma experiência envolve uma reconstrução, que pode ser dolorosa e penso na minha prática como contadora de histórias e educadora: ao mesmo tempo que temos sede desses momentos de experiências significativas em nossas vidas, temos a princípio um medo de errar. Na esteira desse primeiro medo aparecem muitos outros: medo da entrega, do desconhecido, medo de profundizar e de entrar em lugares onde não somos no dia-a-dia autorizados a nos demorar, ou mesmo a entrar.

O tempo de contar e ouvir histórias pressupõe, apesar do medo, um mergulho nesse estado de interioridade lugar das digressões, do devaneio, onde entramos em contato com nosso centro e de onde ecoam imagens chamadas de dentro de nós, con -fiando e ampliando o horizonte da experiência. Dar o tempo certo de entrar , educar -se com devaneios para que as visões sejam despertadas:

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Os acontecimentos mais ricos ocorrem em nós muito antes que a alma se aperceba deles. E quando começamos a abrir os lhos para o visível, há muito que já estávamos aderentes ao invisível.

Essa adesão ao invisível, eis a poesia primordial, eis a poesia que nos permite tomar gosto por nosso destino íntimo. Ela nos dá uma impressão de juventude ou de rejuvenecimento a nos restituir ininterruptamente a faculdade de nos maravilharmos. A verdadeira poesia é uma função de despertar. (BACHELARD, 1989, p. 18)

Penso que o tempo para que as imagens florescam, para que o contador de histórias antes de tudo veja e mostre o que está sendo compartilhado com suas palavras, tem ligação com o tempo que ele dedica a debruçar-se sobre o conto compartilhado. Aqui, o sentido da visão compreende não apenas aquilo que nos chega pelas retinas mas o que nos invade por todos os sentidos do corpo, que mesmo com os olhos fechados conseguimos ouvir, provar, cheirar e sobretudo sentir.

Lembro-me agora da Emilie Andrade, do relato que essa contadora de histórias compartilhou comigo sobre uma experiência muito interessante de trabalho com o conto que ela teve, quando orientada pela contadora de histórias americana Laura Simms:

Conheci Laura Simms em 2012 durante o Encontro Internacional de Contadores de Histórias Boca do Céu. Neste encontro participei de uma oficina de três dias com ela e foi como encontrar minha própria voz fora de mim, como descobrir coisas que eu não sabia que eu sabia, como quando a gente lê um poema que consegue dizer aquilo que a gente sempre sentiu, mas nunca conseguiu organizar em palavras.

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Escolhi uma história muito difícil, violenta e repleta de símbolos. Ela narra a jornada de uma menina que perde a mãe muito cedo. Ao não ceder às ameaças de abuso do pai, este acaba por cortar-lhe os braços e abandoná-la no meio de uma floresta. Meu caminho junto a esse conto também foi difícil, sentia uma resistência em me aproximar e a Laura me ajudou muito ao me dizer que “é preciso ver além dos acontecimentos e de uma história”.

A última tarefa foi a mais difícil (a que mais adiei). Laura pediu que eu fizesse um exercício com a paisagem do conto, em linhas gerais um exercício de caminhar pelos espaços da história não como um personagem mas como o guia da história, o próprio contador de histórias, usando, movimentando o corpo para criar, visualizar essa paisagem com todos os elementos que lá estão. E, se em algum momento nesse caminhar eu ficasse confusa ou perdida, disse Laura que eu deitasse e procurasse sentir como era esse lugar que estava difícil de imaginar.

Foi nesse momento, quando eu já havia caminhado um pouco pela paisagem da história e em que estava sentindo as coisas indo embora, desaparecendo, que eu deitei, fechei os olhos e com meus olhos internos eu vi, como veria em um sonho: eu, na verdade,

metade eu e metade um enorme pássaro amarelo nadando rápido embaixo d’água, forte,

poderoso, e eu-pássaro nadava e nadava muito rápido naquela água de um azul bonito. De repente, eu saí voando da água e foi como me libertar, foi como uma explosão de força, como se no ar, no alto, voando, fosse o meu lugar (estar na água não era ruim, mas voar era melhor) e, depois disso, eu vi a menina. Tudo ficou silencioso, calmo. Ela estava lá parada, perto do rio, ela também era eu (eu não vi meu rosto nela, eu apenas senti que ela era eu, como acontece nos sonhos). O bebê dela estava em suas costas. O bebê não estava chorando. O pássaro fez com que os braços dela crescecem novamente e o bebê desapareceu. Na verdade o bebê se fundiu ao seu corpo e assim desapareceu.

Eu abri os olhos, levantei, olhei para o lago mais uma vez, caminhei de volta para o

limiar (a porta por onde entrei naquela paisagem) e deixei a história.

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Parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2002, p.9)

É quando aprendemos essa lentidão, essa escuta, e nos damos tempo e espaço no contato com as histórias, que abrimos nossos canais de percepção para que as imagens e experiências mais significativas nos aconteçam e nos transformem. Encontramos enfim outras possibilidades para que nos vejamos com outros olhos, como diz Regina Machado:

Somos nós os protagonistas, é a nossa própria história que contamos enquanto vivemos o relato exemplar. Enquanto estamos dentro do conto, experimentamos a certeza de valores humanos fundamentais como a dignidade, a beleza, o amor e a possibilidade simbólica de nos tornarmos reis permanecem vivos em algum lugar dentro de nós. (2004, p. 15)

Quando o contador de histórias se dispõe a estudar um conto, ele precisa se deixar levar por ele, ouvir, cheirar, provar suas imagens, reestabelecer uma ligação com valores de humanidade presentes nessas imagens que se articulam na narrativa, e não apenas se informar sobre o que acontece no conto, decorá-lo e passar adiante as informações.

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Depois de assistir a uma aula, ou a uma conferência, depois de ter lido um livro ou uma informação, depois de ter feito uma viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer que sabemos coisas que antes não sabíamos, que temos mais informação sobre alguma coisa; mas, ao mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo que aprendemos nada nos sucedeu ou nos aconteceu. (2002, p. 19)

Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo atravessa, tudo o excita, tudo o agita, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória, são também inimigas mortais da experiência. (p. 23)

Vivemos numa época em que a ausência da interioridade, de pausas e de silêncio é uma constante. O ritmo em que estamos acostumados a pulsar é outro, rápido e funcional. Precisamos fazer algo, produzir algo, realizar para sermos alguém no mundo. Não temos mais tempo para ficar quietos, deixar que algo nos aconteça, chamando e acordando as imagens de dentro de nós.

Para a contadora de histórias Gislayne Matos,8

Histórias não podem ser “fast food”, têm que marinar no tempero das esperas, têm

que ser cozidas em fogo brando, têm que cheirar no tempo certo de cozimento, têm que ser servidas acompanhadas de silêncios.

Você me pergunta como vejo a arte de contar histórias no mundo de hoje. Ora, elas precisam se adaptar senão desaparecem. Hoje temos muitos estímulos, muitas demandas, muita competição, o sentido da visão ocupa um lugar privilegiado, então temos que fazer um trabalho para estimular a audição e a visão, para termos quem queira nos ouvir.

Temos que criar boas, fortes e belas imagens para os olhos internos. E temos que ser verdadeiros quando mostramos essas imagens ao nosso ouvinte. Nem sempre conseguimos ter sucesso nisso, mas temos que tentar. Esse é um desafio.

8

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Estar ancorado em si mesmo, não se perder, estar presente, ao mesmo tempo se sentindo, se ouvindo e se assistindo contar. Esse é um desafio porque isso parece simples e o simples às vezes pode se confundir com o pouco.

Em minhas conversas com educadores e pais tenho ouvido que as crianças e jovens buscam constantemente as imagens do computador, disponíveis no universo online, como primeira referência para imaginar. Dentro dessa perpectiva o sentido de imaginar está reduzido a reconhecer, formar imagens mentais baseadas no real ou nos fatos da vida. No terceiro capítulo dessa dissertação pretendo discorrer sobre um outro sentido para o imaginar : como uma faculdade transformadora do real e criadora de vida por excelência.

Há pouco tempo ouvi um relato sobre um jovem estudante que se sentia muito frustrado em um trabalho que desenvolvia na aula de Filosofia da escola com as tragédias gregas. Ele não conseguiu imaginar o Édipo pois não encontrou no Google Images fotos, imagens com a cor da pele, do cabelo, estatura e traços deste

personagem .

A pergunta que me ocorre é: Como esses jovens estão se formando? Com tanta informação, estímulos visuais, uma enxurrada de dados e mais dados, há alguma maneira de se criar um espaço para entrarem em contato, receber e escutar, deixar ressoar as imagens dentro deles?

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Capítulo II - O CAVALO

2.1 O CAVALO QUE PODE VOAR: HISTÓRIAS DE TRADIÇÃO ORAL

Em uma visita ao requintado Museu Têxtil de Toronto, no Canadá, me peguei brincando com um tear, era um tipo de liço. Eu li que esse simples instrumento foi uma das maiores invenções na história da tecelagem. Passando os fios da teia pelo liço e fixando uma série de liços em uma única barra, o tecelão poderia criar padrões muito mais complexos do que se cada fio fosse puxado sozinho através da trama. Me ocorreu que as histórias de tradição oral operam de maneira muito parecida. Em uma história contada, a trama da experiência de vida está entrelaçada com os fios da urdidura da imaginação. Como um liço, as histórias nos permitem trazer a urdidura e a trama juntos criando uma variação de cor, textura e desenhos. Desse modo, o material tecido, seja de palavras ou fios, se torna um padrão complexo o bastante para refletir a própria vida. (YASHINSKY, 2004, pp. 9-10)

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para um outro lugar, quando saímos a galope, lendo, contando ou ouvindo essas histórias, deixamo-nos levar pelo tempo e esquecemos dele nesse mesmo galope, ou ainda, somos o tempo, arrebatados pela cadência, ritmo, densidade, certeza e alegria desse cavalo que pode voar.

Mas de onde vem o cavalo?

Como um rio que corre por debaixo da terra, as histórias da tradição oral residem na fonte de uma sabedoria ancestral, uma água cristalina que pode jorrar e matar nossa sede de sentido, se cavarmos espaços dentro e entre nós para o encontro com o outro.

Quer escutemos, com desinteressado deleite, a arenga (semelhante a um sonho) de algum feiticeiro de olhos avermelhados do Congo, ou leiamos, com enlevo cultivado, sutis traduções dos sonetos do místico Lao-Tse; quer decifremos o difícil sentido de um argumento de Santo Tomás de Aquino, quer ainda percebamos, num relance, o brilhante sentido de um bizarro conto de fadas esquimó, é sempre com a mesma história que muda de forma e não obstante é prodigiosamente constante que nos deparamos, aliada a uma desafiadora e persistente sugestão de que resta muito mais por ser experimentado do que será possível saber ou contar. Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos. Não seria demais considerar o mito a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas. As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito. (CAMPBELL, 2004, p.15)

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As histórias da tradição oral são metáforas das nossas experiências; permitem que aqueles que entram em contato com elas, entrem também em contato com suas próprias histórias por um novo prisma. Sobre isso, diz Regina Machado: ... a experiência de cada aluno, que agora vive a trajetória exemplar na pele do herói, do monstro, do sábio, do rei, da bruxa, possibilita que ele volte para o seu próprio tempo histórico revigorado por essa experiência, dando substância e dignidade à sua existência . (2004, p. 33)

Quando estudamos ou simplesmente ouvimos um conto da tradição oral somos capazes de ver nele a nossa própria história, pois essas histórias falam sobre a nossa condição humana, independente do tempo ou lugar. É isto que faz com que permaneçam, perdurem no tempo e nas mais diversas partes do mundo.

Como afirma Luis da Câmara Cascudo:

Os contos variam infinitamente mas os fios são os mesmos. A ciência popular vai dispondo-os diferentemente. E são incontestáveis e com a ilusão da originalidade. O conto, tanto mais tradicional, conhecido e querido numa região, mais universal seus elementos constitutivos. (1999, p. 20)

E como reconhecer um cavalo que pode voar? Entre tantas histórias que circulam pelos mais diferentes meios, pessoas, livros e telas, como saber que estamos diante de um cavalo que pode voar?

Como foi dito no ínicio do capítulo, as histórias de tradição oral não possuem um autor reconhecido; este fato, antes de causar desconforto ou dúvida sobre o valor dessas narrativas (pois se não sabemos de onde vieram não podemos medir, atestar o seu valor pelo valor da obra de um certo autor), traz consigo a beleza de um certo mistério.

Quando comecei a contar histórias, surpresa e encantada com aquelas palavras, às vezes me perguntava: mas quem será que inventou essa maravilha?

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Sem dúvida, nós contamos essas histórias das quais necessitamos, e elas nascem de uma ou de outra tal boca, surgidas de uma vibração quase sombria, onde a palavra imaginação não tem mais sentido. É porque as mais belas histórias não pertencem verdadeiramente a ninguém. Nenhum narrador pode afirmar: essa história é minha. A boca da obscuridade fala por todos nós. (CARRIÈRE, 2008, p.21)

Ainda assim, tenho prazer em tentar compreender as características fundamentais que dão forma e sentido a uma história de tradição oral. Não encontrei um manual, uma fórmula que me certifique delas, mas porque gosto de trabalhar com esse material já consigo minimamente identificar, pela própria experiência de pesquisar e contar, e principalmente com a ajuda de parceiros de estrada mais experientes, quando um conto é inventado por certo autor, quando ele vem ileso desse lugar misterioso, ou quando o autor é cúmplice de tal lugar e busca transmitir fielmente essa substância em seus escritos.

Este é verdadeiramente um caminho a ser trilhado, um tesouro a ser encontrado, um tipo de pesquisa para a qual não conseguimos respostas imediatas nos sites de busca. Como diz Dan Yashinsky: Na o podemos dar um duplo clique na sabedoria . , p. Quando encontramos um conto que nos desperta curiosidade, ou que nos fala como se a nossa pro pria histo ria estivesse sendo contada ali ou ainda quando a principio na o percebemos porque ele e ta o importante mas ao le -lo ou ouvi-lo novamente a histo ria se alarga, floresce em nosso espí rito, abre-se enta o espaço para um despertar que, sem du vida alguma, so conseguimos quando estamos caminhando, desejosos e abertos para esse despertar.

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está ali na primeira página do Google os top ten 9. Não têm ideia de como aqueles

links foram parar ali e ainda assim confiam em sua relevância e veracidade e, é claro, na utilidade daquela informação.

Sabemos que informação sem seleção não é informação. Muito se diz hoje sobre o grande desafio de formar jovens que saibam eleger, hierarquizar, selecionar o conhecimento, mas o que nós educadores estamos fazendo nesse sentido? Baseados em quê eles vão selecionar as informações? Qual é o seu chão? Se o que chega até as pessoas em primeiro lugar é a propaganda, que tem valor de mercadoria?

Os contos da tradição oral e os trajetos de aprendizagem neles contidos são um caminho para formar e empoderar aqueles que estão em busca do conhecimento.

Não se trata de um conhecimento superficial, de saber falar sobre determinado assunto, estar bem informado, mas sim de beber de uma fonte que possibilita conhecer-se e surpreender-conhecer-se consigo mesmo, e que alavanca as nossas (sábias) ações no mundo a partir de um conhecimento ancestral. Um tipo de conhecimento que não serve apenas para subir na empresa, passar no vestibular ou ter sucesso profissional, mas para viver bem, ser feliz, conhecer a sua própria verdade, ter algum sentido na vida além de ser bem sucedido em aspectos materiais.

O conto tradicional e a sabedoria ancestral ativam esse lugar de poder no sentido de encontrar o possível no que parece impossível dentro de nós.

Como trabalhar com esse material nos dias de hoje? Como acessar, penetrar, ter espaço efetivo com esse material no âmbito da cultura digital?

Nas culturas tradicionais, essas perguntas não fariam sentido porque o mundo simbólico é. Ele existe a partir de um conjunto de símbolos de uma certa tradição/grupo cultural onde os símbolos se instalam nos rituais, nas ações, na marcenaria, na arte, no cultivo das plantas, nas relações humanas, como manifestação de uma verdade que é de todos.

9Os ha ados top te do Google são os ite s ue apa e e a p i ei a pági a do esultado de u a us a.

Irão aparecer nesta primeira página os conteúdos\sites pagos ou ais li kados o u i e so o li e se ue isso inclua um julgamento humano sobre a qualidade destas informações.

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Como cultivar em nosso tempo esse espaço de silêncio, de contato com nossas imagens internas, o despertar de nossa humanidade em contato com o que não se explica facilmente, mas que se sente e que nos permite nos tornarmos o que realmente somos?

Dentro da formulação o cavalo que pode voar , busquei uma compreensão dos contos e mitos da Tradição Oral como um meio para acessar esse lugar, nublado pela lógica do fazer instrumental a que estamos expostos diariamente. O Cavalo guarda em si a possibilidade dos impossíveis, ele voa além do tempo e da morte, trazendo consigo a eternidade do ser humano, desaparece e depois aparece quando precisamos dele, pois é [guardião] de uma sabedoria intocada, que atravessa gerações e culturas , como diz Regina Machado. (2004, p. 15).

A jornalista Angela Pappiani, estudiosa e disseminadora da tradição dos povos indígenas no Brasil afirma em sua obra Histórias da Tradição:

Davi Kopenawa, grande sábio e líder de seu povo Yanomami, há muitos anos atrás, disse que a memória é imortal, pertence a Omama, o criador do povo Yanomami. Falou assim, com essa certeza, sem mais considerações. Assim é!

E se a memória pertence ao criador, é imortal como ele, tem poder, se manifesta de formas sutis e imprevisíveis, perambula por matas, rios, mares, cidades, circula entre todos os seres.

Sendo assim, as histórias podem sobreviver às pessoas e aos povos que as criaram. E surgir no sonho de um filho desgarrado, décadas, centenas de anos depois de ficar dormindo na memória do criador. Pode reaparecer no sonho e se materializar em palavras criadoras e poderosas, num idioma que já não existe, num canto que há muito deixou de ser cantado. Assim é! (PAPPIANI, 2014, p. 19)

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um porta-voz disposto verdadeiramente a entrar em contato com o mistério e que junto dele tome uma gostosa chuva de verão.

Mas, antes de adentrar a imagem da chuva de verão, buscaremos saber em seguida como os meios da cultura digital podem ser um cavalo para quem está à procura do conhecimento.

2.2 O CAVALO DE CARROSSEL: OS MEIOS DIGITAIS

2.2.1 Relato de Experiência

São Paulo, 24 de setembro de 2011

Cheguei ao teatro do colégio São Luis às 7:15h, estava tudo escuro.

Pedi que aumentassem um pouco a luz na plateia, precisava conseguir enxergar minimamente os cento e cinquenta alunos do quarto ano que iriam chegar em quinze minutos.

Respirei, me alonguei e lá vieram eles: a meninada toda, eufórica e barulhenta, e as professoras preocupadas:

– Pessoal! O que foi que combinamos lá em cima? Agora é silêncio absoluto. Quem

atrapalhar será levado para fora. Fulano, saia já do lado de Beltrano. Silêncio agora que a Cristiana vai começar a contar histórias.

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Contei o primeiro mito: Píramo e Tisbe. Alunos comportados, uma interação aqui, outra acolá, alguma piadinha, já começaram a perceber que aquela manhã poderia ser divertida para todos. Começaram enfim a desfrutar.

Tudo ia mais do que bem, contei mais dois mitos e anunciei o próximo e último

mito: ‘Medusa, o amor impossível’.

Notei um burburinho na plateia e algumas luzinhas ascendendo: eram os smartphones

brilhando nas mãos das crianças.

Eu parei a história assustada e perguntei: Ei pessoal, o que vocês estão fazendo?

– É pra ver a Medusa aqui na tela.

Cheguei perto para ver o que estava lá nas telas e em uma delas vi a atriz Uma

Thurman no filme “Percy Jackson e o ladrão de raios” .10

Respirei fundo, voltei para o palco e continuei.

Quando apareceu a Medusa na história, eles ficaram comigo, concentrados, curiosos.

Depois abrimos espaço para uma conversa e apareceram perguntas grandiosas, sobre o sentido do amor, da justiça e das escolhas da vida: Como proceder? O personagem fez certo ou errado? Ele é bom ou mau? Os superpoderes são um presente ou uma maldição?

Naquele momento, senti os meninos ávidos por um chão de valores, um lugar de segurança para poder escolher, saltar, voar.

Desde que vivi essa experie ncia, carrego em mim um desasossego e muitas perguntas disparadas por aquele encontro: sera que outros contadores de histo rias ou

10

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educadores ja viveram uma situaça o semelhante a minha? Uma situaça o em que as crianças busquem imagens no universo da www principalmente em sites de busca para imaginar elementos de uma histo ria, ou de qualquer outra situaça o em que sejam convidadas a chamar imagens de dentro delas mesmas? Qual e o nosso papel como artistas/educadores nesse contexto? Como podemos aliar se e que isto e possí vel o universo programado das telas, da linguagem da hipermí dia e dos jogos com uma aça o imaginante des-programada, com aço es que conduzam os indiví duos a entrarem em contato consigo, com suas singularidades e possibilidades internas, que proporcionem experie ncias significativas?

Minha perplexidade com a urge ncia daquelas crianças em buscar imagens no universo online, e tambe m o que elas encontraram nesse universo, foi com efeito uma faí sca catalisadora do meu desejo de compreender, de investigar sobretudo a minha pra tica como artista-educadora em dia logo com essas crianças, chamadas hoje de nativos digitais , que esta o imersas nesse mundo dominado pelas telas que encurta dista ncias e multiplica informaço es – ainda que na o altere as substa ncias simbo licas que, desde sempre, se movimentam, correm como um rio, circulando nas mais diversas comunidades humanas.

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2.2.2 A caverna de Medusa

A máscara monstruosa de Gorgó traduz a extrema alteridade, o temor apavorante do que é absolutamente outro. O indizível, o impensável, o puro caos: para o homem o confronto com a morte, esta morte que o olho de Gorgó impõe aos que cruzam o seu olhar. (VERNAND, 1988, p. 13)

Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p.64)

O mito que conta a história da Medusa será utilizado como metáfora auxiliadora na tentativa de aprofundamento nos temas-chave desta pesquisa. A começar pelo horror causado por algo que quando visto de frente se apodera de nós e nos faz conhecer a morte, ou ainda o puro caos , como diz Vernand.

A experiência vivida com as crianças naquele dia e o que ela representa em minha trajetória trouxe, a princípio, uma sensação de repulsa, insegurança e perda de controle. Como se minha intenção primeira, de compartilhar uma narrativa mítica em que as crianças pudessem mergulhar em seus símbolos, imagens e analogias, tivesse sido completamente despotencializada, diminuída mesmo, pelos celulares que brilhavam no escuro do teatro.

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Olhando para o que me parceria obscuro, sombrio – crianças interessadas em seus smartphones enquanto eu contava uma história – comecei a me perguntar o que é de fato importante para que a audiência veja a história, deixe-a fluir, acorde as imagens de dentro de si.

Segundo o filo sofo italiano Agamben, um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe, em todo os casos, que pertence a ele irrevogavelmente, sabe que na o pode fugir de seu tempo , p. .

Conversando sobre esse assunto com professores e educadores, muitos disseram que as crianças e o mundo de hoje esta o assim mesmo, as pessoas esta o com preguiça de imaginar, de pensar, pegam tudo pronto na internet, copiam e colam e por aí vai...

Como relata a professora de histo ria )vete Nunes Palermo:

As escolas, principalmente na faixa etária do sexto, sétimo ano começaram com uma atitude paternalista usando a informática para facilitar em demasia a vida do aluno, deixando tudo pronto, mastigado: a lição de casa, as anotações em sala de aula, a correção

da prova, estão todas “no sistema”, no site do colégio.

O aluno não pega o caderno para anotar mais nada. O conhecimento, a informação que for “útil” pra ele já está lá prontinha, mastigada para que ele assimile somente o necessário. Tudo é selecionado para eles antes de questionarem, antes que sintam a necessidade ou curiosidade por aprender alguma coisa, é o fast-food!

O aluno de hoje não é sujeito do próprio aprendizado. A tecnologia pode ser negativa porque dá uma acomodação para o aluno que não se organiza, não se prepara para o futuro com as suas ferramentas, ele nem sabe das suas habilidades, aptidões, acaba que todos seguem um mesmo padrão.

Também vejo que os alunos estão perdendo a escrita.

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O professor ainda é importante, a palavra do professor, a fala do professor; a interação professor-aluno é onde está o verdadeiro saber. Eu posso ter toda a tecnologia do mundo, mas se eu não transmitir pela linguagem falada, no corpo a corpo, o conhecimento, eu não acredito no saber.

Sinto nos alunos uma apatia, uma anestesia mesmo, para eles é tudo banal, é tudo simples e tem que ser tudo muito rápido. As crianças não imaginam mais. Parece que para elas se sentirem autorizadas a falar coisas que pensam ou imaginam têm que ter o computador na frente delas.

Encontrar a professora )vete e outros educadores, e conversar sobre essa questa o do processo de aprendizagem em contato com o universo da cibercultura me fez caminhar mais e mais pra dentro na Caverna de Medusa, o escuro do meu tempo, onde me parece que o trabalho do pensamento, da criaça o e dos espaços de na o-saber seguem obliterados pelas respostas dadas em um duplo clique .

Contudo, trabalhando com crianças, como contadora de histo rias, sinto que podemos tentar compreender melhor o escuro do nosso tempo com o objetivo de adentra -lo valendo-nos desse lugar vivo e pulsante da imaginaça o criadora, da vontade de contar, de se perguntar e investigar que, apesar de tudo, todos no s guardamos: basta ter um sentido, um propo sito orientador. Assim como diz a educadora e contadora de histo rias Regina Alfaia sobre o seu trabalho com contos no ambiente da escola:

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Quando Regina Alfaia afirma que a narração de histórias pertence a um plano mais elevado e amplo na formação humana e que focaliza suas ações em contribuir para que seus alunos entrem em contato com esse plano, percebo nela uma educadora que tenta ir além do pessimismo e da conformidade com que muitos de nós olhamos as bases do sistema escolar vigente.

Neste capí tulo, em que me proponho tambe m a compreender os meios por onde buscamos o conhecimento, antes de chegar propriamente a esse ponto gostaria de questionar mais sobre o que e a contemporaneidade, o que e ser contempora neo. Para Agamben,

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e aprender o seu tempo. (...)

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a sua época e a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter o olhar fixo sobre ela. (2009, p. 59)

Gosto da ideia de pensar, de olhar para o mundo de hoje como fez o hero i Perseu – segurando um escudo de bronze, vendo Medusa pelo reflexo do escudo sem precisar olhar fixamente dentro dos olhos dela.

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Calvino tem nos fatos da vida sua mate ria prima e neles se depara com o pesadume, a ine rcia, a opacidade do mundo , qualidades que ficavam grudadas em sua escrita quando na o encontrava um meio de fugir delas:

… às vezes, o mundo inteiro me parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação não poupava nenhum aspecto da vida: como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável de Medusa. (CALVINO, 2000, p. 16)

Quem vem ao socorro de Calvino e Perseu, o u nico hero i capaz de decepar a cabeça de Medusa, voando com suas sanda lias aladas, presente de (ermes. Tambe m so ve o monstro atrave s do seu escudo de bronze.

No mito, Perseu consegue decepar a cabeça da Go rgona se sustentando sobre o que ha de mais leve, as nuvens e o vento dirigindo seu olhar para o que so se pode revelar por uma visa o indireta, aquilo que aparece no espelho. E, depois de decepa -la, Perseu a guarda em um saco.

Perseu consegue dominar a pavorosa figura mantendo-a oculta, da mesma forma como antes a vencera contemplando-a no espelho. É sempre na recusa da visão direta que reside a força de Perseu, mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e assume como fardo pessoal. (CALVINO, 2000, p. 17)

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