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Tornarse médico de família e comunidade : um movimento para além de paradigmas médicos vigentes

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ DEPARTAMENTO DE SAÚDE COMUNITÁRIA

CURSO DE MESTRADO EM SAÚDE PÚBLICA

EMILIO ROSSETTI PACHECO

TORNAR-SE MÉDICO DE FAMÍLIA E COMUNIDADE: UM MOVIMENTO PARA ALÉM DE PARADIGMAS MÉDICOS VIGENTES

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EMILIO ROSSETTI PACHECO

TORNAR-SE MÉDICO DE FAMÍLIA E COMUNIDADE: UM MOVIMENTO PARA ALÉM DE PARADIGMAS MÉDICOS VIGENTES

Dissertação submetida à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Saúde Pública.Área de concentração: Saúde Coletiva

Orientação de Prof. Dr. Francisco Ursino da Silva Neto

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências da Saúde

P118t Pacheco, Emílio Rossetti.

Tornar-se médico de família e comunidade: um movimento para além de paradigmas médicos vigentes./ Emílio Rossetti Pacheco. – 2013.

120 f.: il. color., enc. ; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Medicina,

Departamento de Saúde Comunitária, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Mestrado em Saúde Pública, Fortaleza, 2013.

Área de Concentração: Saúde Coletiva.

Orientação: Prof. Dr. Francisco Ursino da Silva Neto.

1. Medicina Comunitária. 2. Cuidados Médicos. 3. Saúde da Família. 4. Ética Médica I. Título.

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EMILIO ROSSETTI PACHECO

TORNAR-SE MÉDICO DE FAMÍLIA E COMUNIDADE: UM MOVIMENTO PARA ALÉM DE PARADIGMAS MÉDICOS VIGENTES

Dissertação submetida à Coordenação do Curso de Pós-graduação em Saúde Coletiva, da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Saúde Pública. Área de concentração: Saúde Coletiva.

Aprovada em 28/08/2013

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________ Prof. Dr. Francisco Ursino da Silva Neto (Orientador) - UFC

__________________________________________ Profª Drª Cristiane Maria Marinho - UECE

___________________________________________ Prof. Dr. Francisco Silva Cavalcante Júnior - UFC

___________________________________________ Profa. Ms. Maria do Socorro de Sousa (convidada) - UFC

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Francisco Ursino da Silva Neto, fundamental paraeu realizar um trabalho adequado às minhas características.

Aos professores das bancas de qualificação e defesa Maria do Socorro de Sousa, Francisco Silva Cavalcante Júnior, Cristiane Maria Marinho e Marco Túlio Aguiar Mourão Ribeiro pelas contribuições para o aprimoramento desta pesquisa.

À minha irmã Marcela Rossetti Pacheco, pela contribuição na tradução do resumo para a língua inglesa e das referências em catalão para o português.

Ao amigo Pablo Araújo Alves, fundamental para minha decisão emrealizar Mestrado.

À minha analista Grace Azevedo Simões.

Aomeu primeiro orientador Professor Ricardo José Soares Pontes, que respeitouo tempo de busca de minha temática.

Aos amigos da diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, gestão 2010-12 e 2012-14, pensadores e militantes incessantes desta especialidade no Brasil, pela participação direta em minha qualificação, por meio de suas reflexões.

Aos amigos Frederico Fernando Esteche, Marco Túlio Aguiar Mourão Ribeiro e André Luís Benevides Bomfim, pela fraternidadedurante minha caminhada como médico de família.

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A educação […]não é a preparação para a vida, é a própria vida.

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RESUMO

A pesquisa interpreta um percurso singular de nomear-se médico de família e comunidade concomitante ao encontro dos tempos pessoal e institucional de formação. A temática surge durante o Mestrado em Saúde Pública da UFC por intermédio da desconstrução do modo de ser médico tradicional para promover um movimento de ultrapassagem existencial pautado na concepção de ética-da-vida. Esse processo rompe com o modelo biomédico de formação em saúde, iniciado durante o curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) sob a influência de uma crítica psicanalítica, e afirma o modelo de Medicina de Família e Comunidade. Estabelece a hermenêutica como base interpretativa que conduz a investigação e utiliza a narrativa de formação como meio de ampliar as possibilidades de compreensão e de construção de pontes para a reinvenção de si. O objetivo geral é compreender o sentido do tornar-se médico de família e comunidade como um deslocamento para além dos paradigmas médicos vigentes. O trabalho aponta características do modelo biomédico e da Medicina de Família e Comunidade, contextualizadas por elaborações advindas das vivências nesses cenários de prática.

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ABSTRACT

This research interprets a singular pathway of becoming a family and community doctor concomitant of the encounter of the personal and institutional times of its training. The subject emerges during my Master in Public Health, at the Federal University of Ceará, through the deconstruction of the doctors’ traditonal way of practising, in order to promote a movement of existential growth based on the conception of ethics-of-life. This decision is the result of a breaking with the biomedical model of health training, undertaken during my times at the University of Medicine of the Federal University of Ceará, under the influence of psychoanalysis, which for me has contributed to the establishment of the Family and Community Medicine model. This work has hermeneutics as the interpretative basis which conducts the research, and uses the narrative of formation as a means of broadening the possibilities of comprehension and the construction of new ways for the reinvention of ourselves. The general objective is to understand the sense of becoming a family and community doctor as a movement that goes beyond the current medical paradigms. The features of the biomedical and the Family and Community Medicine models, in the context of the experiences acquired in these scenarios of practice, are also described.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABRASCO - Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva

ACS – Agente Comunitário de Saúde

AKT - Applied Knowledge Test

APS – Atenção Primária à Saúde

CNRM – Comissão Nacional de Residência Médica

CSA-Clinical Skills Assessment

CSF– Centro de Saúde da Família

DCN –Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de Graduação em Medicina

ESF – Estratégia Saúde da Família

IAM Infarto Agudo do Miocárdio

INAMPS Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social

IMC – Índice de Massa Corpórea

MCCP Método Clínico Centrado na Pessoa

MEC – Ministério da Educação e Cultura

MFC – Médico de Família e Comunidade/Medicina de Família e Comunidade

MGC– Medicina Geral e Comunitária

MS– Ministério da Saúde do Brasil

OMS – Organização Mundial de Saúde

PROVAB – Programa de Valorização do Profissional de Atenção Básica

PSF –Programa de Saúde da Família

RCGP - Royal College of General Pactitioners

RSB –Reforma Sanitária Brasileira

SUS –Sistema Único de Saúde

SBMFC – Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade

SBMGC – Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitária

TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade

UBS– Unidade Básica de Saúde

UECE– Universidade Estadual do Ceará

UFC –Universidade Federal do Ceará

WBA– Workplace Based Assessment

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...12

2 O MÉTODO COMO QUESTÃO...17

3 NARRATIVA DE FORMAÇÃO...20

4 O MODELO BIOMÉDICO...50

4.1 Origens e características...50

4.2 Método clínico convencional...52

4.2.1 Problemas do método clínico convencional...54

4.3 Flexner e suas contribuições para a consolidação do Modelo Biomédico...58

4.4 Repercussões da divisão mente e corpo para a pessoa...60

4.5 Biomedicina, excesso de prevenção e produção de doenças...65

4.6 Necessidade de um novo perfil de médico no Brasil...71

5 A MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE...73

5.1 Breve histórico...73

5.2 O novo paradigma e a teoria geral de sistemas...75

5.3 Definições de médico de família e comunidade...76

5.4 Princípios da Medicina de Família e Comunidade...78

5.5 Perfil da prática do médico de família e comunidade e suas diferenças com a prática hospitalar...93

5.5.1 Sintomas indiferenciados e as dificuldades da prática da medicina de família e comunidade...93

5.5.2 Aspectos importantes da comunicação clínica na prática da medicina de família...97

5.5.3 Problemas de se transferir médicos sem formação para a Atenção Primária...100

5.5.4 Doenças mais comumente vistas na Medicina de Família e Comunidade...103

5.6 O método clínico centrado na pessoa...105

5.7 Processo de Titulação em MFC no Brasil e na Inglaterra...110

5.8 Prevenção Quaternária...111

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...113

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1 INTRODUÇÃO

O tema desse trabalho diz respeito a uma investigação do meu modo de vida de ser médico. Eu escolhi investigaresta dimensão de minha vidadevido ao desejo de escrever sobre os meus movimentos individuais e coletivos, mais precisamente sobre as vivências e experiênciasque construíramo caminho para o meu tornar-se médico de família e comunidade (MFC), minha especialidade médica.

Este desejo de escrever sobre esse tema manifestou-seem janeiro deste ano, quando recém-chegado de um período de férias em Barcelona, tive uma forte convicção após um turno de atendimento, de que meus tempos pessoal e institucional de formação haviam se encontrado.Com isso, nomeei-me médico de família e comunidade.

Esta minha afirmação como especialista nesta área ocorreu no contexto de algumas desconstruções vividas durante os dois anos do Mestrado em Saúde Pública da Universidade Federal do Ceará (UFC). Essa temática tem origem, no entanto, quinze anos antes,na angústia que senti durante o curso de Medicina (UFC), por não me adaptar ao modelo biomédico de formação médica.

Filho de pais psicanalistas lacanianos, antes e durante a faculdade ouvia deles interpretações sobre os acontecimentos da vida baseadas nas sutilezas e metáforas da linguagem. Desde novo, escutava falas sobre o inconsciente e os nomes deFreud e Lacan

eram corriqueiramente pronunciados durante o dia a dia de minha família.

No entanto, devido ao desejo de meus pais e estímulo de professores que viam em minhas notas escolares uma ótima justificativa para que eu fosse médico, além de não me colocar neste período de escolha da minha profissão, entrei para a faculdade de Medicina aos dezoito anos, em 1998. A partir daí, comecei a sofrer pelas diferentes interpretações do corpo que ouvia em casa e na faculdade. Nesta, presenciava avisão do corpo-máquina cartesiano, em que as doenças ocorrem como um desequilíbrio bioquímico verificável.Em casa, ouvia que o corpo físico adoece por conta do deslocamento de significantes inconscientes que não passaram pela consciência e tomaram lugar no real (corpo).

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Após esses movimentos, conheci a Medicina de Família e Comunidade (MFC) por meio de meu melhor amigo, que se formara comigo. Esta é uma especialidade baseada nos relacionamentos com os pacientes que está ancorada em um paradigma com o qual me identifiquei, que transcende a visão dualística entre mente e corpo, diferentemente do paradigma biomédico de formação médica. Após ter realizado a Residência nesta área por dois anos e ter sido preceptor de Residentes por um ano, entrei para o Mestrado em Saúde Pública da UFC no início de 2011.

Durante o Mestrado, as idéiasde estudar temas como ensino ambulatorial e avaliação do internato médico não evoluíram. A primeira, porque o projeto não se justificava, já que a idéia de comparar modelos de ensino em ambulatório não traria grandes benefícios à prática da preceptoria, pois o melhor para esta é conhecer os modelos e usá-los conforme as demandas de ensino e assistência da clínica. A segunda, porque a idéia não surgia do meu desejo, o que julgava, pela minha óptica psicanalítica, não ser a melhor forma do pesquisador encontrar-se com sua temática.Comecei então a disciplina opcional de “Bioética e Cidadania” em outubro de 2012, prestes a terminar o meu período de mestrado e já sem esperanças de achar um tema de estudo.

Nesta disciplina, aprendemos o conceito de ética como ética-da-vida, um movimento dinâmico que deve ser vivido no contexto das relações e não como ética que se tem ou se é.Com isso, realizei uma análise ética deminhas práticas pessoais e enquanto médico, com meus pacientes e no meu trabalho. No contexto da ética-da-vida e das desconstruções com as práticas capitalistas e de biopodertambém propostas no Mestrado, ocorreu um movimento de afirmação do meu tornar-se médico de família e comunidade e o surgimento do desejo de escrever sobre os caminhos que levaram a nomear-me especialista nesta área.

Na pesquisa, o movimento metodológico escolhido confutao discurso do pensamento clássico e se filia ao projeto da hermenêutica existencial em que se compreende a singularidade como uma potência capaz de expressar as possibilidades que cada um tem de ser, no contexto do mundo vital onde cada um de nós existe. A compreensão, sendo coetânea à nossa existência, é base de toda interpretação e chave primordial para uma aprendizagem promotora da invenção de si.

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A seguir, enfoco alguns pontos do modelo biomédico de formação, intercalando elaborações minhas sobre características deste modelo. No tópico “Biomedicina, excesso de prevenção e fabricação de doenças”, comento o caso recente da cirurgia de retirada de mamas da atriz Angelina Jolie e descrevo outros pontos em que a Medicina perde a sua função benéfica e transforma-se num risco para as pessoas.

Destaco também asrepercussões da divisão mente-corpo para a pessoa, em que descrevo o que o sistema de “fatiamento” de especialidades médicas pode causar para uma pessoa que não tem um médico de família para coordenador seu cuidado, assim como alguns questionamentossobre a cirurgia bariátrica.O item “Problemas do método clínico convencional” traz contribuições para entendermos os problemas do modelo biomédico.Baseia-se,dentre outras coisas, em relatos de pessoas que descreveram suas experiências como pacientes. Por último, destaco o curta metragem francês La surconsommation, que faz uma crítica sobre a cirurgia bariátrica e o modo de produção e de consumo de alimentos atualmente.

Prosseguindo, defino a Medicina de Família e Comunidade como especialidade com sua epistemologia própria e faço um apanhado dos principais pontos sobre esta disciplina que achei mais interessantes para a minha formação enquanto especialista nesta área, ilustrando comexperiências e vivências colecionadas durante o meu processo formativo. Destaco os tópicos “Sintomas indiferenciados e as dificuldades da prática da medicina de família”, “Aspectos importantes da comunicação clínica”, “Problemas de se transferir médicos sem formação para a Atenção Primária”e “Prevenção quaternária”.

Esta dissertação temcomo fio condutor uma problemática baseada nas cinco perguntas seguintes, cujas respostas serão buscadas, daqui para a frente, com o desenrolar desta pesquisa: por que não me identifiquei com o modelo biomédico de formação? Quais experiências pessoais foram enfrentadas para romper com o pensamento ancorado no paradigma biomédico? Por que me identifiqueicom o paradigma da medicina de família e comunidade? Que movimentos realizei para compreender esse paradigma, para afirmar-me como médico de família e comunidade? Que movimentos eu experienciei para ir além desses dois paradigmas de formação médica?

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médica com sua epistemologia e formação próprias, não é ainda adequadamentereconhecida pelo Governo brasileiro.

Este não exige pós-graduação (Residência) para o médico trabalhar em um Posto de Saúde. Com esta postura, admite que a faculdade, com sua formação ainda massivamente voltada para o hospital acadêmico terciário, é capaz de formar um médico de família e comunidade. Isto pode ser perigoso para os pacientes, já que a experiência de muitos países mostra que a Residência médica deveria ser a única maneira para a formação deste especialista.No Brasil, ela tem duração de dois anos, o que ainda é considerado pouco tempoquandoconstatamos que este treinamento dura três anos no Canadá e Inglaterra e quatro anos na Espanha e Portugal.

Os tempos institucionais de formação, entretanto, podem não coincidir com os tempos individuais. Eu nãome achava pronto para ser médico após os seis anos de graduação ou para ser médico de família (ou preceptor) após meus dois anos de Residência. No contexto do curso de ética-da-vida, finalmente percebi que meu tempo havia, após 5 anos de prática em Medicina de Família, igualado-se ao meu tempo institucional, ao título de Residência que recebera 3 anos antes. Após esse período, finalmentepudenomear-me médico de família e comunidade.

Avalio que essa dissertação poderá contribuir para aprimoramentos no processo de titulação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), por trazer questionamentos sobre o perfil do médico de família.

Escrevo também para contribuir com médicos Residentes emMFC, trazendo elementos que possam diminuir a angústia de estar em um Posto de Saúde, que possam facilitar a passagem do paradigma Biomédico para o paradigma da Medicina de Família, o paradigma da complexidade, ou biopsicossocial. E também, para contribuir com a formação de estudantes de Medicina, que quiserem adequar-se ao perfil do médico (bastante semelhante ao de um médico de família) que o país necessita, proposto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (DCN, 2001, p. 1) como:

Médico com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano.

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formados na porta de entrada do sistema de saúde. Esse trabalho contribuirá para que avaliem os riscospara a população de seus municípios provenientesda contratação de médicos sem formação específica em MFC.

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2 O MÉTODO COMO QUESTÃO

A existência é o movimento pelo qual o homem está no mundo e se modela ao modelar as coisas. Existir significa ser efetivamente. É fazer e, em fazendo, fazer-se. Para o filósofo Martin Heidegger (2008), é na própria vida concreta que se está ligado à questão do ser. O fato de me compreender em meu ser é a primeira e originária abertura da qual deve partir toda teoria sobre o ser. Não preciso buscar a minha transcendentalidade recorrendo a um eu superior e puro (como no idealismo), basta explicitar minha existência concreta em que, desde que sou, acontece compreensão de ser. Meu fatum (fado, destino) de ser homem repousa nesta compreensão ontológica.

Ele propôs uma “desconstrução” da história da metafísica mediante a superação do esquema sujeito-objeto. Foi deslocado o lugar da fundamentação que na filosofia era no sujeito e na consciência, para um outro campo, para a idéia de mundo, para a idéia de ser-no-mundo. Em outras palavras, houve uma passagem das teorias da consciência, da representação, das teorias do sujeito, para uma teoria do mundo prático, para uma teoria do modo de ser-no-mundo. Heidegger é o propositor de uma nova concepção de hermenêutica.

Hermenêutica designa uma corrente no campo do pensamento humano de longa tradição. Originariamente, ligada à interpretação teológica, depois ao jurídico, seguindo-se sua aplicação à história e finalmente à filosofia no século XX.

Para a nossa tradição cultural, a palavra hermenêutica foi derivada do verbo grego

hermeneúein. Este se liga ao substantivo hermeneús, associado ao nome do deus Hermês. Na mitologia, ele é o mensageiro dos deuses que tem a missão de dizer/interpretar a mensagem do destino. Assim, o sentido figurado de hermenêutica é o de trazer uma mensagem e comunicá-la.

Um discípulo de Heidegger, Hans-Georg Gadamer, avançando nessa perspectiva, elaborou uma crítica ao método estabelecido pela razão moderna. Em geral, no plano da ciência, há uma tendência para a universalização. Esta universalidade, a partir de Descartes, é a razão instauradora da aplicação de um método que, independente das variações de linguagem, cultura ou história, produz os mesmos resultados e soluções.

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No seu texto clássico, Verdadee Método, Gadamer (2003) buscou reintegrar aspectos daquilo que perdemos quando foram adotadas com extremismos as crenças pautadas na razão. O que se perdeu não foi somente o senso do mundo dividido pelo velho e o novo, o clássico e o moderno, mas, sobretudo, o que ele designou como sendo tradição. Esta tradição

não se reduz simplesmente a uma sequência de “esquemas conceituais”. Ela deve explicitar em sua própria base ontológica o que torna possível a nossa experiência de mundo com sentido.

Gadamer indica que o sentido da pergunta conduz o direcionamento da resposta. Esta pista nos faz perceber que o primeiro elemento com que se inicia a compreensão é o fato de que algo nos interpela. Daqui, segue-se que em toda experiência encontra-se pressuposta uma estrutura de pergunta. Em outras palavras, a essência da pergunta é colocar possibilidades e mantê-las em aberto.

O pensamento dele é uma referência para o nosso trabalho. De acordo com Lawn (2006), Gadamer rejeita a idéia de que o método dá acesso a um tipo definitivo de verdade, pois somos parte daquilo que buscamos entender e o que seria uma lacuna entre o conhecedor e o conhecer é, na realidade, muito mais uma fronteira móvel do que uma fenda propriamente dita.

Isso significa superar o projeto que na filosofia estabelecia um fundamento para o conhecimento a partir do discurso em que imperava a idéia de juízo, a idéia de síntese na subjetividade em que se fundaria o real.

A dimensão hermenêutica se expressa no mundo no qual estamos presentemente, este mundo no qual vivemos no sentido significativo, pois já está organizado assim. No mundo tudo é algo como algo; esta expressão é interpretada como “algo enquanto algo” e quer indicar o núcleo proposicional que cada sentença contém não do tipo empírico ou determinado, mas justamente de outro caráter, pois já o trazemos conosco enquantoseres-no-mundo.

A compreensão é o poder de captar as possibilidades que cada um tem de ser, no contexto do mundo vital em que cada um de nós existe. A compreensão é base de toda interpretação; é contemporânea da nossa existência e está presente em todo ato de interpretação (PALMER, 2006). De acordo com Coreth (1973, p. 45):

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O autor nos lembra que o sentido assim compreendido não se dá como sinônimo de “intuição teórica”, mas como condição da própria vida onde as relações de sentido e de valor se tornam compreensíveis em sua expressão prática e teórica.

Quando se determina e limita o sentido, por exemplo, em uma definição, há sempre uma referência a um contexto significativo da linguagem no qual este próprio sentido se expressa de várias formas. Em síntese, o pensamento do sentido se dá na linguagem.

Outra referência metodológica para o nosso trabalho foi Marie-Christine Josso (2010, p. 18-19) que escreveu em seu texto Caminhar para si:

A lógica existencial adota uma perspectiva individual sobre o processo de pesquisa na qual os saberes instituídos se apresentam como referenciais que têm lugar e sentido na singularidade do percurso de vida do pesquisador e que alimentaram, por sua vez, a dimensão formadora de suas experiências. Na lógica existencial, é a perspectiva individual que dá sentido e valor à problemática.

Na interpretação do pensamento da autora, destacamos que o saber teórico é elaborado relativamente a práticas singulares e, principalmente, que se elabora sobre situações concretas, sobre um conjunto de interações constitutivas do contexto experiencial, dessa forma tornando-se um conhecimento experiencial.

Josso (2010, p. 65), focando na dimensão da autocrítica e da auto-avaliação, a partir de sua leitura de Carl Rogers, escreveu:

o aprendente desenvolve a independência de espírito, a criatividade e a confiança em si; ele se forma em congruência consigo mesmo e dá prova de autenticidade. Essa

autenticidade implica ‘a aprendizagem de processos de aprendizagem’ e ‘a integração do processo de mudança’ a fim de que os projetos pessoais sejam atos de

autodeterminação e criadores de si.

Assim, a princípio, poderíamos dizer que em nossa pesquisa o “objeto” é uma forma de compreensão do pensamento do sentido que se molda em um campo do conhecimento científico que denominamos medicina.

Para o médico de família Ian McWhinney (2010, p. 92):

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3 NARRATIVA DE FORMAÇÃO

Nasci no Rio de Janeiro. Na época, meus pais, Francisco Pacheco e Maria Helena Rossetti Pacheco, tinham 50 e 35 anos, respectivamente. Eu soube depois que não fui planejado. Meu pai já dava-se satisfeito com quatro filhos, mas minha mãe ainda não. Fiquei quatro dias sem nome, eles queriam sentir qual se pareceria mais comigo. Um amigo deles tinha meu nome e acharam bonito e incomum. A primeira cena que tenho recordação é a de minha mãe sentada em um banco me assistindo jogar milho aos pombos em uma praça no Rio. Meus pais trabalhavam muito, o que motivava minha mãe a me acordar às vezes ao chegar do trabalho para me ver.

Fui desmamado com um mês de vida, pois “não conseguia dormir só com o leite do peito”. Talvez seja por isso que, ao contrário de alguns alunos e residentes meus, sou bastante tolerante com as mães que dão mingau aos filhos antes dos seis meses. Morei três anos no Rio. Parece pouco, mas se pensarmos bem, aprender a andar e a falar são coisas importantes. Por isso, e por causa de meu jeito descontraído, penso conservar algo de carioca. Luz foi a primeira palavra que disse, depois de pai e mãe.

Meu pai é de Campo Maior, cidade a oitenta quilômetros de Teresina, no Piauí. O pai dele, meu avô Ivon Pacheco, recebeu popularmente a alcunha de “capitão”, por ser um sujeito muito destemido. Um livro foi publicado depois com relatos dealgumas de suas lendárias histórias. Foi prefeito de Campo Maior e era dono deuma farmácia. Foi nela onde meu pai teve as amígdalas retiradas, aos onze anos, sem anestesia.Na época realizavam o procedimento como rotina, para profilaxia de infecções.

Na minha infância, tive muitas amigdalites. Bastava me expor ao sol em excesso que as desenvolvia. Felizmente não precisei ser operado, apesar da possibilidade ter sido cogitada. Anos depois, minha mãe me falou que achou bom o fato de eu não ter me operado. Isto porque interpretou que minhas amigdalites eram um “termômetro” que identificava quando eu não estava bem, e pensou que, sem elas, eu talvez pudesse adoecer de outro órgão mais vital para o corpo.

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Meu pai foi morar no Rio de Janeiro aos quinze anos com um tio paterno, Sigefredo Pacheco, que era médico e Senador pelo Piauí. Ficou no Rio trinta anos e se formou em Medicina na UFRJ. Sempre considerou esse tio como pai. Tio Sigefredo era clínico geral, como eu. Meu pai trabalhou como psiquiatra poralgum tempo depois da faculdade, mas é psicanalista há cinquenta e três anos. Ele lê todos os dias desde que tenho registro. Os autores que sempre o acompanharam foram James Joyce, Nelson Rodrigues, Freud, mas o preferido é

Shakespeare. Hamlet, em especial. Eleteve o sonho de ser diretor de teatro. Curioso é que anos depois, antes de saber desse desejo de meu pai (nem de sua admiração por essa peça), fiz um curso de teatro em Berlim em que fui designado para interpretarHamlet. Meu pai também é escritor de contos e poesias surrealistas. Veio dele o meu desejo pelas letras.

Minha mãe, formada em psicologia, também é psicanalista. Nasceu em Piracicaba (SP), mas foi para a capital paulista logo em seguida. Mesmo assim, ainda hoje se diz caipira, quando afirma: “a cidade em que nascemos marca a gente”. Talvez seja por isso que dei importância ao fato de ter nascido no Rio. Minha mãe também tem cidadania italiana, por causa de seu avô, nascido em Turim.

Minha mãe tem uma grande capacidade de escutar. Acompanha a fala das pessoas com mímicas no rosto, principalmente com os olhos, arregalando-os mais ou menos a medida que o assunto ganha ou perde intensidade. Por isso, muita gente gosta de conversar com ela. Penso que herdei essa característica, pois muitos pacientes que atendi me perguntavam se eu também era psicólogo.

Meu bisavô materno, Tomazzo Pozzo, de Turim, veio para São Paulo encarregado de fazer as vinícolas de São Roque. Sua esposa morreu de tuberculose em um navio a caminho do Brasil. Contam que era bonito, e que caiu nas graças de sua patroa, uma mulher muito rica de São Paulo, que lhe presenteou uma fazenda. Assim começou sua vida em terras brasileiras. Seu irmão era técnico de futebol, chegando a ganhar duas copas do mundo com a seleção italiana, em 1934 e 38. Quando quero conquistar a simpatia de um italiano, é só contar que o técnico Vittorio Pozzo era irmão de meu bisavô.

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Francisco Antônio viria 6 meses depois de nós, nas férias de julho. Infelizmente, algo terrível aconteceu. Depois de passar um final de semana em Petrópolis, uma zona endêmica para herpes zoster, contraiu uma infecção cerebral por esse vírus, que lhe tirou a vida aos 15 anos. Isto só foi descoberto na autópsia.

No contexto de sua morte, estavaa separação da mãe dele com meu pai.Eu ouvia em casaque isso teve influência em seu adoecimento, mas não entendia por quê. Eu de certa forma não compreendia bem algumas articulações de pensamento que meus pais faziam, principalmente com relação às doenças. Talvez porque na infância eu não participava tanto (fugia para ir brincar) das conversas familiares que ocorriam em minha casa. Ficava inquieto quando meus pais diziam que a família precisava conversar. Marcela participava mais que eu destas conversas. Talvez por isso tenha se formado em psicologia. Ela já foi psicanalista, mas hoje é professora de línguas em Barcelona.Nesta narrativa, vou me referir a ela por “minha irmã”.

O meu terceiro aniversário aconteceu um mês depois da chegada de minha família a Fortaleza. Por ter crescido no Ceará, digo que sou daqui quando me perguntam, apesar de sempre surgir uma dúvida antes de responder. Por ter influências do Piauí, de São Paulo, do Ceará, da Itália e por ter morado na Alemanha e na Inglaterra, ainda tenho dificuldade para precisar de onde sou.

Viemos pra cá porque minha avó paterna estava bastante idosa em Campo Maior e meu pai queria estar perto. Tão perto não deu para ficar. Pensavam que Teresina não seria o melhor lugar para praticar psicanálise, pois ainda bastante interiorana. Meu pai que já havia morado em Fortaleza como interno do Colégio Cearense, achava que a cidade seria mais propícia ao trabalho deles por ser mais desenvolvida. Uma tia materna de meu pai nos deu casa no início.

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Meu primeiro colégio chamava-se “Sítio do Pica Pau Amarelo”. A personagem “Emília”, de Monteiro Lobato, estava em muitas paredes da escola. Eu me irritava quando os colegas de turma trocavam trocavam meu nome pelo dela.

Para cursar a alfabetização, fui transferido para o Instituto Educacional José de Alencar, também chamado de “Escolinha”. Era uma escola tradicionalmente mais livre, para onde fomos por indicação de professores universitários amigos de meus pais. Lá estudavam também crianças com retardo mental ou físico.

Aos seis anos, ingressei no Colégio Geo Stúdio, de ensino mais exigente que a escola anterior. Meus pais o escolheram por não ser uma escola religiosa, para que eu ficasse livre para minhas escolhas nesse campo.

Eu morava perto do colégio, e íamos (eu e minha irmã) para a aula a pé. Minha babá Irene, minha segunda mãe, nos levava e trazia. Fora isso, meu transporte principal na infância e adolescênciafoi o táxi, pois meus pais sempre trabalharam muito e tinham medo que andássemos sozinhos de ônibus. Entendo que isso me privou um pouco de experienciar a vida que acontecia na cidade. Estudávamos no período da tarde. Em casa, televisão era bem restrito: minha mãe deixava-nos escolher dois desenhos por dia para assistir. Ela queria estimular a leitura, pois havia também, a exemplo de meu pai, lido muito na infância: a coleção de Monteiro Lobato, as aventuras do barão de Münchhausen, contos dos irmãos

Grimm, dentre muitos outros livros infantis.

No entanto, eu gostava mais de brincar do que de ler. Eu e minha irmã brincávamos muito. O quintal era grande, com trinta coqueiros, mangueira, cajueiro. Ajudávamos o jardineiro a carregar côcos, tomávamos banho de piscina, subíamos em árvores, brincávamos com os gatos de rua que terminavam adotados por mim e minha irmã. Os consultórios de meus pais eram em casa, e por isso minha mãe tinha sempre contato conosco no intervalode atendimento de seus pacientes.

Outro marco da minha infância foram as fazendas, de ambas as famílias. Aos cinco anos, caí a primeira das dezessete vezes de um cavalo, em uma das fazendas de meu avô, no Piauí. A empregada de minha avó, na garupa, fez um gesto brusco e o cavalo disparou conosco. A sela não estava tão apertada e eu caí por cima do braço. Viajamos quarenta quilômetros para chegar ao médico.

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tanto. A fratura do braçoocasionada pela queda de cavalo não se consolidou da melhor forma e o calo ósseo deixou o cotovelo defeituoso. Comecei a natação para corrigir esse problema, por recomendação médica. Depois virei atleta desse esporte e passei a competir. Apesar de ter feito bem ao corpo, achava natação monótona e solitária e a vida de atleta exigia treinos diários muito puxados. Tenderia a preferir os esportes com bola.

Nos feriados prolongados do primeiro semestre do ano, período de inverno, quando o clima em Campo Maior era agradável, íamos para o Piauí. A fazenda herdada por meu pai tinha o nome de Furnas, nome dadoao lugar onde as onças dormem. Tinha uma casa centenária, de paredes de pedra, teto sem forro, com os crânios e respectivos chifres enormes de bois da época de meu avô, pendurados em colunas de carnaúba que davam sustentação à casa rudimentar. Não tinha energia (esta chegaria muito tempo depois), e de noite um lampião e algumas lamparinas nos davam os contornos das coisas, por vezes deturpados pela minha imaginação tomada pelas histórias de assombração que cercavam a antiga fazenda.

A casa ficava assim assustadora à noite e o medo acabava por espantar o sono. Dormíamos de rede, e, mesmo se estivesse calor, o lençol cobria o corpo do pescoço aos pés. O risco de receber algum toque indesejado parecia enorme se ficasse alguma parte descoberta. Raiva grande eu tinha quando “Perereca” dormia antes e me deixava acordado sozinho. Aí o jeito era cobrir o rosto também. Para piorar, essa casa exacerbava meu sonambulismo. Por três vezes, fui acordado à noite tateando a parede da sala dos potes, por nós a mais temida, pois eram lá que ocorriam as aparições narradas nas histórias.

O dia era curto para o tanto de atividade que podíamos fazer: andar a cavalo, ajudar a tirar leite no curral, tomar banho de açude, plantar roça de milho e feijão, tocar e aboiar gado. Gostava tanto das tarefas que minha primeira profissão que desejei ser foi a de vaqueiro. Queria passar as férias na fazenda, sem os pais. Na primeira tentativa, não consegui ficar muito tempo. Depois de dois dias que meus pais haviam ido embora, cortei a mão ao puxar uma faca enfiada no guidão de uma bicicleta, que cortou a bainha e a mão juntas. Novamente, viajei quarenta quilômetros para ir ao médico. Desta vez, na garupa de uma bicicleta, da fazenda até a estrada de asfalto. De lá, de carona em um caminhão, até a cidade. Estava muito impressionado com o corte, era fundo e o osso aparecia. O médico chegou com um olhar firme, sério, e assim ficou depois de ter visto o ferimento. Isto foi bom, pois me fez pensar que não era grave.

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prato após a refeição. Falava o linguajar caboclo, mesmo que “errado”. Sempre fui bom imitador, por isso tive facilidade para aprender sotaques e línguas estrangeiras. Foi lá também que emagreci. Estava com sobrepeso aos treze anos, pois havia parado a natação. Depois de minhas últimas férias nesta fazenda, por conta dasconstantes atividades, perdi mais ou menos oito quilos. Os amigos do colégio se impressionaram em minha volta às aulas e brincavam dizendo que eu havia passado as férias “no banheiro”.

Para a fazenda (Cassinha) de meus avós maternos, Paulo e Helena, em Monte Mor (SP), íamos uma vez por ano, nas férias de julho. Meu avô, agrônomo, morava lá com minha avó. Ele vivia da plantação e venda de laranja. A fazenda tinha uma estrutura mais moderna que a do Piauí. Casa de máquinas, casa de ração, sala de arreios, fonte de água mineral, horta e diversas frutas. Tinha também açude, cachorro, cavalo, um laboratório com cobras conservadas em formol e um lugar onde sabíamos haver escorpiões e aranhas, embaixo de umas pedras. Divertíamo-nos colocando-os para se enfrentar. Havia ainda um grande amigo, Roberto, o filho do agrônomo que a administrava. Não lembro de outros momentos de felicidade tão plena como a que senti nesse lugar. Passava o ano esperando o momento de ir para lá.

Na Cassinha eu também não conseguia dormir, desta vez pela excitação em querer que chegasse logo o outro dia. Minha avó só abria a porta de casa às nove, mas Roberto batia em minha janela às seis da manhã, para aproveitarmos ao máximo o dia. Quando ele me chamava, já estava pronto há algum tempo.

Lá tive contato com o tipo caipira de São Paulo. Tinha também grande amizade com o vaqueiro e sua esposa. Tinham um sotaque típico do interior paulista, com exagero no som do “r”. Eu e minha irmã sempre nos divertimos ao imitar os sotaques de São Paulo. Tinha também contato com meu avô Paulo, que contava histórias em francês, italiano e alemão. Ele morreu anos depois no Ceará, vítima de iatrogenia. Passou os últimos meses de sua vida internado e, por não terem feito uma radiografia de controle após a troca de sua sonda gástrica, não perceberam que ela não havia sido posicionada no lugar correto. O alimento foi para o peritônio e uma peritonite grave o tirou a vida.

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de visões políticas ou de classe, me possibilitava essa entrada num mundo que tanto admirava. O contato com minha segunda mãe (minha babá na infância) também foi importante para isso. Ela trabalhou durante trinta anos em minha casa.

Meu pai também me levava a um evento que gostava muito, as caçadas, que vinham de gerações no Piauí. Fui a três. Nos encontrávamos em Teresina na casa de meu tio e partíamos em comboio de carros rumo ao sul do Estado. No grupo, tinha também amigos de meu pai e um sujeito que ia com finalidade exclusiva de contar histórias. Era um sujeito simples, mas de humor refinadíssimo. Devo a ele minha primeira orientação sexual, com uma técnica de dar prazer a uma mulher que segundo ele era infalível. Meu pai diz que “aprendi” a comer em uma caçada, quando ficamos um dia sem comida. Dizia que antes desse dia eu não tinha gosto por comida. A culinária e a alimentação viriam a ser uma questão fundamental em minha vida.

Fui transferido ao Colégio Geo Stúdio aos sete anos. Neste mesmo ano, havíamos nos mudado da casa que morávamos, que estava ficando perigosa pelo aumento da criminalidade, para um apartamento na mesma rua, dez quarteirões mais abaixo. Sempre fui bom aluno durante o colégio, mas aos dez anos conheci um amigo que mudaria minha forma de estudar, o que teria alguma influência para eu me tornar médico. Ele era bastante pressionado pelo pai para ser o número um da classe (que naquela época recebia bolsa de estudos) e estudava por memorização.

Ficamos muito amigos e começamos a estudar juntos. Passei então a adotar a mesma técnica de estudo. Decorávamos tudo, com bastante obsessão. Muitas vezes acordávamos às cinco da manhã para retomar o que havíamos memorizado na tarde anterior. O problema era que usávamos esse método para todas as matérias. Penso que isso atrasou a minha iniciação às áreas Humanas. Lembro de decorarmos parágrafo por parágrafo os capítulos para as provas de história, mesmo sem entender o que continham. Não foi por acaso que esta seria a matéria que eu teria mais dificuldade no vestibular, anos depois.

Com a técnica de memorização, tirava notas boas e estava sempre entre os melhores alunos. Isso me estimulou a competitividade, pois também passei a vislumbrar a tal bolsa, para receber uma parte do dinheiro que meu pai não mais destinaria à escola. Nunca consegui. Tinha que ser o primeiro colocado geral de todas as séries e o máximo que atingiaera o primeiro posto de minha turma.

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convencendo de que iria ser médico, sem nunca ter questionado de fato, antes da faculdade, se era isso que queria.

Lembro de ter participado de um teste de aptidão na escola, acho que por não querer questionaro meu futuro, que já estava traçado. Não respondi às perguntas de acordo com o que gostava, e induzi o teste para que apontasse uma aptidão para a Medicina. Penso que minha escolha em ser médico deu-se muito porque sentia que era um desejo de meus pais e professores e por não saber direito o que queria para mim. O confrontamento não era uma de minhas características na época e aceitava muito o que me era sugerido. Isso me remete ao fato de ter escrito antes que era um bom “imitador”, pois repeti a profissão de formação de meu pai, que repetiu a de seu tio pai.

Com isso, após oito anos no colégio Geo, mudei aos quinze para as “turmas especiais” da mesma escola, para cursar o científico e me preparar para o vestibular de Medicina. Minha turma de amigos mais próximos, composta por nerds, como eu, foi junto. Falávamos de futebol, jogos de computador, estudo e de mulheres. Estas últimas ainda eram para mim algo inatingível. Comecei a namorar somente depois de passar no vestibular. Nesta época, com quinze anos,ainda não tinha posição política, paixão por filosofia, ou desejo de realizar trabalhos sociais, o que desenvolvi tempos depois com a entrada para a Medicina de Família e com o Mestrado.

A leitura no período de colégio era restrita aos livros paradidáticos obrigatórios da escola. Os que mais gostei foram os livros de Graciliano Ramos (São Bernardo e Vidas Secas). Gostei também de José Lins do Rego (Menino de engenho), Lígia Fagundes Teles (Dizem que os cães vêem coisas), Jorge Amado (Capitães da areia) e Machado de Assis (Dom Casmurro e O alienista). Não gostava do estilo de escrita de José de Alencar, por isso não consegui ler “Senhora” até o fim. Achava descritivo demais. Fora isso, li inúmeros livros sobre animais: cachorros, cavalos, felinos, cobras, escorpiões e aranhas. Sabia muito sobre esses bichos.

Quando mudei para as “turmas especiais”, conheci um amigo, Sidney, que era vizinho de prédio. Ele era bem diferente de mim, havia repetido de ano várias vezes, era muito esperto e tinha grande facilidade de se relacionar com as mulheres, porser muito engraçado. Ficamos muito amigos durante muito tempo, e penso que me transmitiu algumas dessas características. Ele foi importante para mim principalmente nas questões do humor, da perda de timidez e porque me apresentou minha primeira namorada.

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de ensino. Sabia que a preparação do Geo seria boa, então a mudança não foi tanto por uma melhora de qualidade, mas sim uma tentativa de mudar de ares e fazer novas amizades. Conheci um grande amigo neste colégio, Liêvin Rebouças, que partilhava os gostos pelo tênis e pelo mesmo time de futebol, além do gosto musical. Ao contrário de minha irmã, que sempre teve grande interesse por música, minha cultura musical só foi iniciada durante o terceiro ano, quando as músicas de Djavan me consolavam por um amor não correspondido.

O ano de 1997 foi marcante em minha vida pelo investimento em passar no vestibular de Medicina. Não lembro de uma vez sequer neste ano em ter duvidado de minha escolha. Dez horas por dia de estudo, durante a semana, e a partir do segundo semestre, acompanhado de Liêvin, mantínhamos esse ritmo, a ainda as noites de sexta e sábado. A única distração era o tênis. Comecei a fazer aula uma vez por semana este ano.

Na época, dos aprovados no vestibular, a segunda metade dos candidatos na ordem de colocação, meu caso, só começaria a faculdade no segundo semestre do ano seguinte. Quando pensei que iria ter um semestre para descansar da empreitada do ano anterior, meus pais me deram a idéia de realizar um intercâmbio em um país de língua inglesa. Iria para os Estados Unidos, mas na época as moedas americana e inglesas tinham valor equiparável. Meus pais pensaram que Londres seria uma cidade mais interessante que a Filadélfia.

Ainda no ritmo do vestibular, ia para a escola um período e passava o outro estudando a língua, com a obsessão de sempre em memorizar. Meus pais me ofereceram a chance de ficar mais quatro meses por lá, pois a faculdade no Brasil estava em greve, o que atrasaria o início das aulas. Desta vez não escolhi o estudo. Queria voltar ao Brasil e ter um tempo livre para descansar, depois do investimento feito no vestibular. Com essa opção, aos dezoito anos, comecei um movimento para me colocar nas minhas decisões.

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No inconsciente, estão as coisas que não sabemos sobre nós. Para acessá-lo por intermédio de terapia, deve-se falar em associação livre (dizer o que vem à mente sem se preocupar com o sentido), o que propicia o surgimento de atos-falhos, quando “se diz uma coisa quando se quer dizer outra”. Além dos atos-falhos, os sonhos também são manifestações inconscientes, assim como a linguagem. Na terapia, o analista busca estas manifestações inconscientes que apontem para características importantes da pessoa, para que ela vá reconstituindo sua história, e fazendo suas interpretações e entendimentos sobre o que a faz sofrer.

Um analista faz metáforas acerca dos sintomas da pessoa. Conto um caso que Lacan (2005) atendeu, sobre uma jovem que tinha vitiligo, cuja família "não admitia manchas (na moral familiar)", o que o levou a pensar: “O que se escrevia com aquelas manchas em seu corpo?”, “O que dizia ela quando se referia às manchas?”, “A quais delas se referia, às corporais ou às "morais?". “E por que à medida que sua análise prosseguia, ela "piorava" em sua vida, sobretudo amorosa, mas as manchas se tornavam menos marcadas?”. Essa paciente também visitava um dermatologista, que lhe indicara a fazer análise, e usava um remédiocubano muito em voga à época.

Era muito difícil ouvir esse discurso todos os dias em casa e na faculdade ver uma visão do corpo interpretado como órgãos que se comunicam bioquimicamente. A tarefa de aprender um método clínico que só perguntava sobre alterações do corpo, alémde decorar características de doenças, era uma tarefa que não me despertava desejo, nem fazia sentido. As provas cobravam essas informações. Percebi que meu sistema de estudos, com base na memorização, se adequaria perfeitamente ao que me era cobrado, mas aquela forma de estudo não me contemplava mais.Assim, não tinha facilidade de guardar as informações que aprendia. Isso fez cair meu rendimento, o que também me inquietava, pois era bom aluno e eu tinha a sensação de estar-me “desperdiçando” alí. Inquietava-me ainda o fato de agrande maioria dos alunos se enquadrar muito bem naquele modelo, e eu me perguntava se havia algo de errado comigo.

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Entretanto, no geral, após três anos de análise, concluí que deveria deixar a terapia ou a Medicina. Não fazia sentido ir à terapia semanalmente falar que sofria por causa da faculdade e não tomar uma decisão. Mas abandonar a faculdade implicaria numa mudança de um lugar que eu achava que meus pais esperavam de mim. Também achava muito difícil ir contra a sociedade, que tanto valorizava a minha profissão. Por muito tempo, desloquei para os meus pais a culpa pelo meu sofrimento, o que só desconstruí muito tempo depois.

Não tive coragem edeixei a terapia. Apoiei-me nos grandes amigos de turma para continuar. Apoiava-me no meu interesse por cinema, principalmente por Woody Allen. Apoiava-me no tênis, que praticava quase diariamente. Apoiava-me no namoro que tive durante quase toda a faculdade, e também no estudo de francês na casa de cultura da Universidade. Apoiava-me também na amizade dos professores Armênio Santos e Hélio Rôla, que conseguiam dar tonshumanos, por meio depoesias e pinturas, ao ambiente estéril do curso.

Também me apoiava em um projeto de extensão universitária na comunidade Maravilha, em Fortaleza, com mais oito colegas de turma. Nosso objetivo era identificar as pessoas acima de vinte anos com hipertensão naquela comunidade, para depois realizarmos um trabalho educativo de alimentação junto a elas. Freqüentamos esse lugar por dois anos, uma vez por semana. Por causa de minhas vivências nas fazendas, o contato com as pessoas da comunidade me era familiar, pois muitos moradores eram do interior. Infelizmente, após termos coletado os dados que precisávamos para começar o trabalho educativo, um dos nossos integrantes perdeu a pasta com os dados de dois anos de projeto, um fato tragicômico que nos desencorajou a continuá-lo.

Enganei-me ao pensar que sair da terapia me faria sofrer menos. Busquei então alternativas para solucionaro meu problema.Pensava em meus tempos de colégioe o português era a coisa que mais gostava: gramática, redação e interpretação de textos.O fato de ter passado no vestibular principalmente por ter tirado nota máxima emredação me fez achar que isto era mais uma evidência de minha ligação com a língua.

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Na UECE, tive aulas de lingüística, sobre os significantes de Saussure que escutava em casa. Tive também uma disciplina de Latim, e de introdução à gramática. Tinha facilidade de assimilar aqueles assuntos e consegui bom desempenho neste período. No entanto, faltou-me a coragem de ruptura, e novamenteoptei pela Medicina, deixando este curso após seis meses.

Dois semestres depois, aos vinte e dois anos, entrei para Direito na Universidade de Fortaleza, por achar que seria uma área possível dentro das Humanas. No entanto, percebi logo que ainda estava preso na idéia das profissões clássicas, e com isso sobrepujando o prestígio social ao meu desejo novamente. Também tinha pressa para conhecer a área com profundidade, para ver se tinha afinidade. Queria logo ir para o quinto semestre, pois me diziam que só a esta altura do curso teria contato de fato com o Direito. Mas no primeiro semestre, os alunos, na maioria mais novos que eu, estavam a combinar churrascos e comemorações. O ritmo das aulas era lento ena sexta-feira da quarta semana de faculdade, ao ver a professora acabar mais cedo a aula por causa da “cervejinha”, foi meu último dia neste curso.

A minha angústia com a Medicina piorou muito a partir do primeiro dia de internato, no dia dez de março de 2003. Este é o período final do curso em que o aluno depara-se diariamente com a prática. Tinha duração de um ano e meio, e era dividido em estágios nas áreas básicas: Gineco-Obstetrícia, Pediatria, Clínica Médica e Cirurgia Geral. Não havia Medicina de Família em minha grade curricular. A transição do curso médico nos moldes “aula e prova” para o cuidado intensivo e diário de pacientes muitas vezes em estado grave foi súbita e sem instruções prévias.

Meu primeiro rodízio foi na enfermaria de Hematologia do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC), por muitos internos considerada a mais “pesada” de todas. Tive a chance de não escolher esse estágio no sorteio do internato, mas achei importante porque queria aprender a interpretar um hemograma, um exame básico em medicina que eu não dominava. No entanto, havia na enfermaria somente pacientes em estado muito grave, a maioria com câncer, realizando quimioterapia. A morte fez-se presente pela primeira em meu percurso formativo e com freqüência maior que em toda a graduação, levando três pacientes que eu cuidava.

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instruções no primeiro dia. À tarde, entendi que “evoluir” era conversar com os pacientes para saber como se sentiam desde o dia anterior, examiná-los e escrever os resultados desta interaçãono prontuário. Neste dia, quis discutir detalhes de exame físico com os Residentes que me supervisionavam. No entanto, os dois estavam em seu primeiro dia de Residência em Clínica Médica, e não tinham tempo para estas discussões, pois eram responsáveis por todos os pacientes da enfermaria.

Depois vim a entender que o exame físico não era tão importante naquele estágio. O essencial era checar os hemogramas dos pacientescom câncer duas vezes por dia, para avaliar se estavam “respondendo” à quimioterapia.A função do hemograma ali era então somente a de acompanhar a quantidade de células cancerígenas e meu objetivo de aprendizagem não foi cumprido. Ainda no primeiro dia, às nove da noite, após terminarmos o trabalho, fui ao quarto de repouso dos internos, ao banheiro. Para minha surpresa, minha urina estava vermelha e eu pensei de súbito que estava com hepatite, pois já havia tido. Parei um pouco para pensar e me aliviei quando percebi que não haviabebido água o dia inteiro.

Nesse contexto, as angústias ganharam voz em meu corpo. Ainda no primeiro dia de internato, comecei a sentir uma estranha falta de ar. Ela desaparecia quando bocejava, mas somente por alguns minutos. Passei então a tentar provocar os bocejos, o que exigia esforços constantes e mímicas constrangedoras. Sabia que esse sintoma tinha relação comminha angústia, por isso não procurei um médico.

A rotina do internato eraintensa. Tínhamos que diariamente registrar as notas de evolução de quatro pacientes em média pelos quais éramos responsáveis. Transmitíamos então as informações aos Residentes, nossos supervisores diretos, para que tomássemos as condutas e fizéssemos as prescrições. Além disso, tínhamos que fazer os resumos de alta hospitalar, admitir novos pacientes e ir para os plantões. Os piores momentos ocorriam duas vezes por semana, nas visitas, em que o mestre percorria a enfermaria proferindo mini-aulas sobre as doenças de cada paciente, ao mesmo tempo em queargüia os alunos. Os pacientes eram ali objetos de estudo, pois não entendiam a linguagem dos médicos.

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interno, o trabalho passou a ser menos ruim, mas porque passei a desempenhá-las de modo automatizado.

Em 2004, a dois meses da formatura, conheci uma estudante de Medicina alemã. O relacionamento e o desejo de conhecer a prática médica na Europa me impulsionaram a ir para Berlim realizar os dois últimos meses de internato. Tinha esperanças de encontrar outra prática de Medicina por lá. Estando próximo de me formar e de me sustentar pela primeira vez, fiquei com vergonha de pedir a meus pais que financiassem a viagem. Quis propor a eles que eu trabalharia e pagaria a eles o investimento quando voltasse de lá.

No entanto, eles ficaram muito felizes com minha oportunidade e me presentearam a viagem. O passaporte italiano que minha mãe batalhara treze anos para nos proporcionar facilitou a minha ida, por não precisar de visto. Quando decidi ir para Berlim, nunca havia tido contato com a língua. Fiz então aula particular diariamente por três semanas com uma professora suíça, memorizei um texto de apresentação em alemão para minha chegada no hospital e parti.

Os dois meses de internato aconteceram em um hospital da periferia de Berlim, o

HELIOS Klinikum Berlin-Buch.Percebi logo no início que a maioria dos médicos e dos internos alemães tinha uma prática mais humana do que a que estava acostumado a ver aqui. Tratavam as crianças com muita delicadeza e humor.A maioria dos médicos que conheci não tinham carro, indo para o trabalho de bicicleta e metrô. Não tinham o discurso que via aqui, de “viver para trabalhar”. Tinha a impressão de que eram médicos mais “normais” que os de aqui, o que me agradou muito.

O investimento hospitalar em atividades lúdicas também me impressionou. Na enfermaria de reumatologia infantil, o momento mais esperado pelas crianças acontecia semanalmente quando tinham a possibilidade de montar um cavalo e um pônei que eram trazidos para o jardim. Com a mesma freqüência, eram levadas a uma piscina próxima e na enfermaria havia umasala com os mais variados jogos.

A primeira passagem por Berlim durou quatro meses. Poderia ter durado só dois se tivesse voltado para minha festa de formatura. Já havia participado de muitas festas durante a faculdade e não me incomodei em perder o que pensei ser mais uma comemoração. Meus amigos me representaram nas celebrações vestindo um boneco (manequim) com um paletó, colocando-lhe uma placa com meu nome. Depois brincaram comigo ao dizer que se divertiram mais com o boneco do quese estivesse presente.

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Também li os três livros do curso de alemão que minha irmã havia feito na casa de cultura. A língua alemã causa um estranhamento interessante. Por mudar a ordem das palavras na frase, causa choques com a língua materna, o que é um desafio a mais para a diferença na escrita das palavras. Minha capacidade de imitação me deu muita facilidade com a pronuncia. Tive muito prazer em aprender esta língua.

Voltei ao Brasil porque este já era o plano de minha namorada, que tinha que coletar os dados de sua pesquisa de doutorado. Eu achei pertinente porque eu precisava juntar dinheiro pra voltar para a Alemanha em definitivo. Tive então o meu primeiro emprego como médico, na Estratégia Saúde da Família (ESF), onde trabalhei sete meses. Durante este período, encaminhava muitos pacientes por inexperiência clínica e apesar de minhas influências psicanalíticas de casa, minhas práticas eram ainda bastante biomédicas. Como na faculdade, não sabia o que fazer com as informações subjetivas que coletava. Este período foi no entanto tranqüilo, porque sabia que seria curto.

Retornei novamente à Alemanha, e fiquei trêsanos, até 2008. Lá tive quatro empregos. Primeiro fuibaby-sitter do filho de amigos alemães que eu havia conhecido em Fortaleza, que me convidarampor eu falar português,pois Kaspar Nilo havia nascido no Brasil e os pais queriam que ele mantivesse a língua.Foi uma experiência interessante, porque aprendi os cuidados com um bebê de seis meses, banhar, ninar, trocar fraldas, fazer papinhas. Algum tempo depois, inquietei-me com um email da lista eletrônica de minha turma de faculdade que articulava as comemorações de cinco anos de formatura, ao ler a mensagem de uma médica dizendo que o preço do Buffetera a metade para as babás, pois estas “mal comem” e “não bebem”. Não me lembro de ter deixado de fazer estas coisas quando era baby-sitter.

Paralelamente a esta atividade, exercia uma função parecida com a de um auxiliar de enfermagem, na Schlossparkklinik, em um departamento de pesquisa clínica que testava novas drogas em pessoas com problemas reumatológicos. Elas visitavam a clínica mensalmente e eu era responsável por administrar a medicação. É interessante lembrar disso porque hoje combato o poder destruidor da indústria farmacêutica em medicalizar a vida. Consegui por meio de um amigo de minha namorada, queera Residente de Reumatologia nesta clínica.

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(1979), “A vida de Brian” (1979), do grupo de comédia inglês Monty Python, “Fitzcarraldo” (1982), do diretor alemão Werner Herzog, dentre outros.

Mas um filme em especial me marcou fortemente: “O profissional” (1994), com

Jean Renoe Natalie Portman (ela fazia seu primeiro papel, aos onze anos). Ele interpretava um matador de aluguel implacável, mas ao mesmo tempo mostrava uma ingenuidade impressionante para cuidar destamenina que foi parar em seu apartamento por conta de uma tragédia ocorrida com sua família. A atuação dele me impressionou muito e fiquei com desejo de ser ator. Decidi então fazer um curso de teatro.

Era um curso para iniciantes, que durou três meses. Depois de terminado, me escrevi na Universität der Kunst (Universidade de Artes) de Berlim. Para o teste de admissão, eu deveria interpretar três peças, cantar uma música, e fazer uma performance de dança. Fui à casa do professor do curso lhe perguntar quais peças eu poderia interpretar com maior facilidade em alemão. Ele me emprestou uns livros, mas disse que a vida de ator em Berlim estava muito difícil. A concorrência desta Universidade era de mil candidatos para dez vagas. Eu não sabia cantar e nem dançar. Por todos esses motivos, acabei por desistir do teste.

Após algumas tentativas frustradas de largar a Medicina, com a Letras, o Direito e o Teatro, decidi tentar algo na área médica novamente. Já falava bem o alemão e me achei preparado para assumir um emprego de maior responsabilidade. Fui então assistente em um laboratório de pesquisa em uma clínica de Ginecologia, que tinha uma cooperação com uma clínica de Patologia. Consegui o emprego por meio de meu melhor amigo na Alemanha, que depois dividiu apartamento comigo e com uma amiga dele (nesta época,o meu relacionamento havia terminado). Entretanto, não havia vagas para Residentes nesta clínica, e eu apliquei para outra, no hospital Vivantes Klinikum am Urban, porque era perto de minha casa. A entrevista de emprego foi no dia de meu aniversário de 27 anos. Trabalhei nesta clínica por um ano.

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Percebi que muitos colegas da clínica haviam escolhido esta especialidade por meio de exclusão, assim como eu.

O período na Alemanha me foi muito valioso principalmente para experienciar uma prática de comunicação bastante direta, o fato principal para que tenham a fama de frios e distanciados. Habituado ao estilo de comunicação brasileira, cheia de arrodeios, no começo foi difícil me adaptar a esta parte da cultura deles. Os alemãesnão se furtam de conversar se algo na relação pessoal ou profissional estiver causando incômodo e isto é interessante porque há menos espaço para mal entendidos e também maior profundidade nas relações.

Por achar que já havia dado todas as chances possíveis à práticamédica, decidi tentar novamente estudar Letras. Eu pensei em ir para Lisboa, mas não quis começar uma vida novamente em outro país, sem conhecer ninguém. O plano então era terminara faculdade de Letras na UECE para ser professor de Português. Necessitava, no entanto, de um emprego que pudesse me sustentar nessa fase de transição. Com isso, o rompimento com a Medicina não foi completo.

Em janeiro de 2008, vim para Fortaleza planejar o retorno à UECE e conseguir um emprego como médico. Foi quando o melhor amigo e colega de turma, Pablo Alves, na época Residente de Medicina de Família e Comunidade, especialidade até então por mim desconhecida, convidou-me para conhecer o Posto de Saúde onde trabalhava, no bairro do Pirambú. Ele não me explicou o motivo da visita, mas nos entendíamos bem e pensei que quisesse me mostrar algo importante. Saímos do Posto e fomos até a praia, e ele foi me mostrando os barracos (apontando a discrepância de que quase todos tinham uma televisão moderna) e o lixo que era jogado a céu aberto, ou nos córregos perto da praia.

A desigualdade social que presenciei naquela visita me despertou um sentimento novo. Eu estava naquele momento aberto para experimentações, pois apesar de ter decidido estudar Letras, esta também seria uma tentativa. A experiência no Pirambú foi marcante, pois pensei queseria interessante realizar um trabalho social. A proposta de Medicina apresentada pelo Pablo também me deixou curioso, pois não era umaclínica biomédica. Penso que tive uma visão bastante romântica daquela prática médica aquele dia, e comecei a projetar como eu seria como médico de família. Não sei bem porque, mas pensei como seria bom fazer um grupo para pessoas com sobrepeso, em que elas pudessem compartilhar suas vivências.

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Na época, o salário do Residente de MFC era o mesmo de um médico da ESF, fruto de uma política municipal de atrair candidatos para essa Residência pouco procurada. Isto também foi um fator importante para eu optar pela Residência, pois eu pude me sustentar com o que ganhava. Ela também me daria a chance de me qualificar no trabalho, o que iria complementar minha formação médica, o que não ocorreria se fosse trabalhar na ESF. Coincidentemente, a Residência realizou prova de seleção na semana seguinte à visita ao Pirambú.

Voltei então para a Alemanha para cumprir um mês de trabalho, cláusula de meu contrato com o hospital Vivantes, retornando em seguida a Fortaleza para o início da Residência, em março de 2008, no Centro de Saúde da Família (CSF) Francisco Domingos da Silva, na Barra do Ceará.

Chegar depois de um longo período na Alemanha em um dia e começar o trabalho em um Posto de Saúde nodia seguinte foi um choque. O Posto parecia não terregras. Muitos entravam na sala enquanto eu estava atendendo: a coordenadora para buscar algo no armário, a enfermeira para eu carimbar uma receita, o próximo paciente para perguntar se eu ainda iria demorar muito. Estava também “enferrujado” por ter passado três anos e meio sem atender,e o fato de ter internos de medicina dentro do consultório me acompanhando foi delicado porque tinha vergonha em não saber resolver as queixas dos pacientes. Também me sentia testado pela enfermeira. Por esses motivos, o período inicial foi bastante difícil.

Mesmo sem entender a nova especialidade ainda, achei desafiador trabalharnum cenário de grandes adversidades sociais, assim como parecia grande o desafio de ter que aprender uma disciplina do início. Como na medicina de família podiam me procurar pessoas com qualquer problema, achava que o ideal seria fazer Residência em todas as áreas básicas antes de estar ali. Tentei retomar a faculdade de Letras no segundo mês de Residência, mas não pude por questões burocráticas da UECE. Não me abalei, pois já estava implicado com a nova especialidade.

Dentre as adversidades da Residência, tive uma grande aliada, a outra Residenteselecionada para o meu Posto. Ela havia sido camponesa durante toda a infância no interior de Santa Catarina, e foi aos dezenove anos para Porto Alegre, trabalhar como empregada doméstica. Aprendeu a ler com esta idade, com os filhos de sua patroa. Evoluiu rápido e realizou um supletivo para recuperar o tempo escolar. Pelo seu destaque, foi enviada para estudar Medicina em Cuba pelo Movimento dos Sem Terra (MST) o qual fazia parte.

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