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Igreja, catolicismo popular e religião alternativa no sertão nordestino

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IGREJA,

CATOLICISMO

POPULAR

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-E R-ELIGIAO

ALTERNATIVA

-

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

NOS

E RTA O N O RD ES TI N O

D

e 1940 a 1970, nos

estudos da religião, predominou a

abor-dagem teórica da

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m o d e r n i-z a ç ã o

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f u r i c i o n a l i s t a , vista

nos trabalhos de Foster (972), Hoselitz (960), Kennedy (962), Nevaskar (1971) e Pie ris (969). Esta abordagem da religião foi inspirada sobretudo nas obras clássicas sociológicas de Durkheim 0964a, 1964b) e Weber (970). A religião foi estudada enfocando o s e u p a p e l n o p r o c e s s o d e d e s e n v o lv im e n to e c o n ô m ic o e s o -c ia l,ou seja, na passagem da

s o c ie d a d e a g r â r i a , s im p le s e

tr a d ic io n a l para a s o c ie d a -d e in -d u s tr ia l, c o m p le x a e m o d e r n a . Nesse processo evolutivo, sustenta-se que com o desenvolvimento a religião se firma como uma

in s titu iç ã o e s p e c ia liz a d a ,

como as demais, e cede à ciência seu papel maior de explicar as origens do uni-verso, do mundo e da socie-dade humana, restringindo-se a ritos coletivos que pro-movem a s o lid a r ie d a d e s o -c ia le que diminuem o po-tencial de conflito social.

Como mostra Long (977), nos países menos de-senvolvidos, o estudo funciona lista da religião se voltou ã questão de como diferentes religiões

não-européias facilitam, ou não, o surgimento de uma mentalidade científica e empresarial, mentalidade essa considerada essencial para livrar a iniciativa in-dividual do peso da tradição. a prática, os

funcionalistas enfatizaram o lado negativo da religião, considerando-a como uma barreira de crenças e supers-tições, apenas vendo de for-ma positiva religiões seme-lhantes ao protestantismo, como as dos jains, parsis e sikhs da Índia. Após 1967, tanto a teoria geral da moder-nização como as interpreta-ções funcionalistas da reli-gião, foram duramente criticadas por marxistas e es-truturalistas. Criticou-se, prin-cipalmente o etnocentrismo da teoria da modernização, que desconhece o papel que a religião e a ideologia po-dem ter em outros modelos de desenvolvimento, que não sejam a experiência histórica do surgimento do capitalismo europeu.

Na abordagem m a r x is ta ,

até 1980 a religião foi tratada como apenas um resíduo ide-ológico do passado, que fa-talmente seria substituído pe-la ciência. Apesar da conhe-cida observação de Marx de que "a religião é ópio do po-vo", na realidade, ele nunca se aprofundou no estudo da religião. Só deu atenção ao assunto no início de sua carreira, na obra Id e o lo g ia a le m ã . essa obra criticou os filósofos alemães por fundamentarem suas idéias em conceitos religiosos e não nas condições materiais e sociais da vida. Para Marx, a religião seria superada na evolução do capitalismo, seguindo uma seqüência de ideologi-as, refletida na passagem do catolicismo ao

protes-Scon

WllLlAM HOEFlE*

RESUM O

No presente estudoI, iv stc p ô e se o catoli-cism o form al do Igreja, com forte hierarquia interno e ênfase em dogm as, com o d iversi-d a iversi-d e d e visõ es relig io so s ca tó lico s p o p u la -res ea ltern a tivo s do presente e do passado no Sertão nordestino. A diversidade religio· sa é abordado por m eio de m ú ltip lo s crité-rio s cu ltu ra is, com o posição de classe, faixa etória, relação de gênero, grupo étnico e

lugar de origem ruralo u urbono que reco r-ta m o sociedade sertanejo vertica l e h o ri-zo n ta lm en te, gerando diferentes visões reli-giosos do indivíduo, tonto em relação 00 catolicism o popular quanto em relação às novos religiões que surgiram nos últim os

quarenta anos. A criatividade local do ca-tolicism o popular é resultado de longo

perí-odo, no qual o Sertão m antinha

caracterís-ticos de fronteira, que lhe perm item hoje sistir à penetração dos novos form os de re-ligiosidade. Assim sendo, este trabalho

segue o exem plo de Eade e Sallnow ( 19911, que fizeram um estudo antropológico de

rom aria religioso, utilizando o m étodo de

i nvestigação e os conceitos-chaves do Sociologia pós-moderno."

Professor do Departam ento de G eografia do Pontilicio Universidade Católico do Rio de Janeiro e do Universidade Federol do Rio de Janeiro.

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tantismo e à ciência, que é, finalmente, aperfeiçoa-da no socialismo (1952). Assim sendo, Marx se considerava um ateu, o que, para ele, era a ideolo-gia mais avançada, ao mesmo tempo em que a ide-ologia religiosa era a oposta, representando uma barreira ao desenvolvimento das forças produtivas (1974).

A interpretação evolucionista das ideologias de Marx, por sua vez, neste século, levou a maioria dos países socialistas a combater a prática religiosa. A pouca importância, ou mesmo a hostilidade, ao estudo da religião, também, foi mantida entre os neo-marxistas das décadas de 1960 e 1970, a julgar pela revisão teórica-conceitual desta escola apre-sentada por Foster-Carter (1974). Nesse trabalho que também aponta os temas de interesse dos marxistas, clássicos ou modernos, a religião nem sequer é mencionada.

Nos anos 80, porém, partindo do trabalho de Bourdieu (1977), Chevalier (1982), Muratorio (980) e Taussig (980) desenvolveram um mar-xismo simbólico mais sofisticado, elaborando

con-ceitos como

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a r tic u la ç ã o id e o ló g ic ae domínio por meio do controle de c a p ita l s im b ó lic o e e s p ir itu a l.

A evolução do pensamento de Taussig é

particularmente interessante. Em trabalho posterior (987), este autor resgata o marxismo das décadas de 1920 e 1930 de Benjamin e Gramsci que enfatizava a importância do estudo mais detalhado de ideologia e de cultura, chegando, assim, mais próximo da abordagem pós-moderna.

A abordagem s im b ó lic a dos anos 70 e 80, por sua vez, desenvolveu-se a partir dos estudos e s -tr u tu r a lis ta s clássicos sobre religião, mito e visão do mundo de Evans-Pritchard (956), Geertz (966), Horton 0%3), Lévi-Strauss (966), e Turner 0967; 1974). Nesta abordagem, a preocupação principal é com o significado da religião e não tanto com a função que ela exerce na vida social. Por meio do enfoque estruturalista produziram-se análises bem mais detalhadas e abrangentes da lógica interna de c o sm o lo g ia s e v is õ e s d o m u n d o de povos específicos, mostrando como as abordagens funcionalistas e marxistas são pobres, em comparação.

De outro modo, o enfoque estruturalista-simbóli-co tem sido bastante criticado por suas limitações

s in c r ô n ic a s , e, em resposta, alguns autores dessa corrente tentaram analisar processos de mudança na visão do mundo através do tempo (Werbner, 1984). Outra crítica freqüentemente levantada con-tra os estudos estruturalistas-simbólicos é de que são produtos rarefeitos da imaginação simbólica, ocasionalmente relacionados com a organização

social e pouquíssimas vezes com os domínios eco-lógicos ou econômicos da vida (Harris, 1968; Ingold, 1985). Uma última crítica que se faz a esse tipo de estudo é de que, com sua procura d e p r in c íp io s b á s ic o s e e s tr u tu r a s p r o fu n d a s da coletividade so-cial, ignora-se a variação interna da sociedade estu-dada. Em resposta a essa crítica, alguns estudos deste gênero têm tratado de princípios de diferenciação social, como as coletâneas de La Fontaine (978) e Urton (986). Contudo, os critérios de diferencia-ção são aqueles comuns às tribos, como idade, sexo, tipo de parentesco e não aqueles referentes às divisões por classe em formações camponesas e industriais, nem aos múltiplos critérios pós-modernos que recortam vertical e horizontalmente formações pós-industriais.

A abordagem p ó s -m o d e r n is ta e n e o -p o p u lis ta

tem, respectivamente, suas origens nop ó s e s tr u -tu r a lis m o e no m o v im e n to e c o ló g ic o e d a c o n tr a c u ltu r a dos fins dos anos 60 e início dos anos 70. Partindo da crítica radical à sociedade industrial e aos modelos intelectuais m o d e r n is ta s ,

ambas as correntes convergiram nos anos 80 em volta do conceito m o d o s d e v id a s u s te n tá v e is ,

no qual destacam a d iv e r s id a d e e p lu r a lid a d e c u l-tu r a l, a m o b iliz a ç ã o p o lític a d e g r u p o s anterior-mente m a r g in a liz a d o s , a a u to g e s tã o lo c a l e a a lia n ç a d e o r g a n iz a ç õ e s n ã o -g o v e r n a m e n ta is

desde o início local até internacional, visando modelos alternativos de desenvolvimento que promovem a sustentabilidade ecológica e social na escala global (Chambers e Conway, 1992; Friedman, 1992; Stohr, 1981; Lash, 1990; Rose,

1991; Kellner, 1989).

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À primeira vista, esse tipo de abordagem parece ter pouco a ver com o estudo da religião do Sertão nordestino, mas existe outro lado do pós-modernismo de grande relevância para o nosso caso. Ofu n d a m e n ta lis m o r e lig io s o e sua ênfase em missionalização internacional, desde a televangelização norte-americana à revolução ira-niana, é um fenômeno pós-moderno exemplar. Por um lado, o fundamentalismo religioso representa uma reação às mudanças sociais e à pobreza espiritual que a modernização deflagrou, mas, por outro, representa um movimento que se arma com os avanços nas telecomunicações e nas formas de organização em massa para difundir sua mensagem. Veremos que a religião alternativa do Sertão, no presente e no passado, surgiu da mesma forma, isto é, em reação às mudanças desencadeadas pelo processo de modernização no país, e, ao mesmo tempo, como parte integral desse processo.'

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A

PESQUISA

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Este estudo baseia-se em mais de dois anos de

pesquisa de campo realizada durante os anos de 1977 a 1981 e 1994, em três municípios sertanejos - Belém do São Francisco (Pernambuco), Parnamirim (Pernambuco) e Chorrochó (Bahia) - , que foram escolhidos visando abranger a variação ambiental, econômica, social e religiosa do Sertão. Belém do São Francisco e Chorrochó representam situações extremas no Sertão, enquanto Parnarnirim pode ser considerado um caso bem típico.

A situação agro-ambiental e socioeconômica des-sas comunidades varia desde a irrigação capitaliza-da nas margens do rio São Francisco, no município de Belém do São Francisco; à agropecuária de sequeiro associada à irrigação de pequena escala, em Parnamirim; até a pecuária extensiva de uma região quase árida, em Chorrochó. Da mesma ma-neira, também variam a densidade demográfica, o tamanho da sede municipal, a articulação com a economia regional e nacional e o contato com o modo de vida e a visão do mundo urbano-industrial, em geral. Com relação à religião, a área de estudo no passado sofreu a influência de todos os impor-tantes movimentos messiânicos e das várias formas de catolicismo popular alternativo do Sertão. Também no presente constata-se na área de estudo a variação espacial da penetração de novas formas de religião alternativa no Sertão, desde as várias igrejas protestantes e o centro de xangô, de relativa longa data em Belém do São Francisco, até uma ação missionária protestante incipiente em Chorrochó.

A pesquisa sobre religião sertaneja fez parte de um estudo maior de transformação cultural no Ser-tão, desenvolvido pelo autor e pela geógrafa Ana Maria Bicalho, permitindo a contextualização do fenômeno religioso nas mudanças globais do modo de vida sertanejo investigado tanto do ponto de vista masculino de um protestante norte-america-no, como do ponto de vista feminino de uma cató-lica brasileira. No estudo utilizaram-se métodos for-mais e inforfor-mais de pesquisa. Nos três municípios de estudo, e em municípios vizinhos a eles, foram aplicados 156 questionários entre a população do campo e 79 na das vilas e sedes municipais. Tam-bém realizaram-se entrevistas durante semanas e meses com um número menor de doze informan-tes de profissão, idade, sexo e classe social diferen-tes, a fim de entender em profundidade suas visões de mundo e cosmologias. Além disso, na longa estada de pesquisa participante no Sertão sempre surgiam valiosos comentários sobre a religião, desde piadas sobre o padre até atos de atrito entre católicos e protestantes. Finalmente, realizou-se um levantamento

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Revisto de Ciências Sociais v.26 n.1/2 1995

geral de 25 municípios distribuídos pelo Sertão, no qual foram feitas entrevistas com extensionistas e informantes possuidores de rico conhecimento da história local de cada município estudado.

RELIGIÃO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL NO SERTÃO

Apesar do fato de o Sertão nordestino ter sido uma das primeiras áreas de colonização do país, até 1930, por causa do clima semi-árido e do sub-desenvolvimento econômico, o Sertão permaneceu

uma zona de

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fr o n te ir a , caracterizada pela rarefa-ção demográfica, menor grau de capitalização das

atividades econômicas e virtual ausência de con-trole do governo central. A colonização antiga, os problemas econômicos-ambientais típicos das zo-nas semi-áridas e a relativa isolação do Sertão, por sua vez, propiciaram um rico campo para a manu-tenção de tradições do catolicismo popular que há muito tempo já tinham desaparecido dos centros que definiam a ortodoxia católica mundial e nacio-nal. Estas características também propiciaram terre-no fértil para o surgimento de transformações reli-giosas próprias que enfatizaram o lado rnessiânico."

Após 1890, esse quadro foi modificado em duas fases, acompanhando o processo de industrializa-ção tardia e da construindustrializa-ção de uma naindustrializa-ção brasileira. A primeira fase, de 1890 a 1930, foi marcada pela contestação nordestina à crescente hegemonia ur-bano-industrial da região Sudeste que, no caso de formações campesinas como o Sertão, freqüen-temente é expressa numa linguagem religiosa. Este foi o período dos grandes movimentos messiãnicos, revoltas e banditismo. Após 1930, o país entrou num processo de industrialização acelerada, levando a uma melhoria nos meios de transporte e de telecomunicação, que no Sertão provocara a relati-va estagnação econômica e maior dominação polí-tico-econômico e cultural dessa região pelos gran-des centros econômicos do país. O Sertão deixou de ser uma zona de fronteira, tornando-se uma re-gião periférica deprimida. Como resultado disso, os problemas de subdesenvolvimento do Sertão tornaram-se mais graves e o curso da religião alter-nativa foi transformado. As formas históricas de religião alternativa, na sua maioria, foram elimina-das, e, ao mesmo tempo, houve a penetração de novas religiões alternativas como parte do proces-so de maior articulação à proces-sociedade nacional.

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comerei-antes da classe média e os pobres das cidades. Os cultos afro-brasileiros e o espiritismo estão também crescendo em popularidade e interesse, especial-mente entre os pobres urbanos das comunidades

maiores. Como Camargo

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e t. a lli (973), Forman (975), Fry (978) e Willems (967) notaram em

todo o Brasil e Bastian (993), Martin (990) e Sto11 (990) na América Latina, o interesse de todas essas formas de religião alternativas é bem maior nos gran-des centros urbanos do país, e sua difusão no inte-rior faz parte e é parcela do processo de articulação cultural nacional. No Nordeste, poucos não-católi-cos são encontrados em lugares pequenos e afasta-dos, como as comunidades estudadas, e seu núme-ro cresce pnúme-roporcionalmente, de acordo com o ta-manho da comunidade e o grau de articulação à

economia e à vida nacional (Tabela

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1).

todo, a perseguição dos sacerdotes e do César por si só, nunca deteve a propagação de uma nova religião popular. O problema, então, é com a popularidade. Veremos que a religião alternativa - particularmente suas formas contemporâneas - simplesmente não combina com os valores fundamentais do modo de vida contemporânea do Sertão. Não se ajusta à cultura local, de forma que repele muito mais pessoas do que atrai. Como conseqüência, o catolicismo permanece a fé da grande maioria dos sertanejos.

Segue-se, assim, uma análise de impacto da intro-dução de novas religiões alternativas no contexto de uma economia camponesa deprimida, da urba-nização subdesenvolvida e do maior distanciamento social entre as classes. Dentro deste quadro, a religião alternativa difunde-se mais rapidamente entre as camadas sociais desfavorecidas, mas,

para-Chorrochó* 869 99,8 0,2 O O O 10.229 100

Parnam irim * 3.604 98,6 1,2 O O 0,2 15.240 100

Belém S. Francisco * 8.284 97) 1,6 O 0,2 0,5 23.975 100

Petrolina/Juazeiro 134.376 96,1 2,4 0,4 0,3 0,8 222.028 100

Coruaru 137.636 92,4 4,6 0,5 0,7 1,8 172.322 100

G rande Recife 2.069.745 85,6 8,6 1,5 0,8 3,5 2.262.124 100

Fonte de dodos: Fundoção IBGE 11981, 1983) • comunidode de estudo.

Antes da penetração do protestantismo e de cultos afro-brasileiros nos últimos tempos, existiram outros tipos de atividades religiosas alternativas no passado, alguns dos quais ainda são praticados em escala menor hoje em dia. Membros e participantes de irmandades de flageladores, danças de São Gonçalo e movimentos milenaristas foram - e ainda são - recrutados entre os pobres da zona rural e da cidade. Assim, não estamos tratando de uma população católica única, que só foi dividida recentemente pelo processo de articulação nacional, mas, sim, de uma história de predomínio re-ligioso de catolicismo ortodoxo sob a liderança da clas-se alta agrária e comercial, repreclas-sentada pelo padre e leigos proeminentes envolvidos nas atividades da Igre-ja, acompanhado por vários tipos de religião alternativa praticada por alguns membros da população carente. Historicamente, os membros das classes dominan-tes foram hostis às várias formas de religião alternativas e houve ocasiões em que as reprimiram de forma violenta, sobretudo quando a dissidência en-volvia mais do que apenas religião. Contudo, no mundo

doxalmente, as novas seitas dão grande ênfase a valores sociais do passado em oposição a valores mais novos, produzindo uma visão do mundo que não desafia a ordem social, como o fizeram os movimentos alternativos.

CATOLICISMO POPULAR

OS sertanejos típicos são católicos. Para essas pessoas, os membros de outros grupos religiosos são considerados como excêntricos, sendo os mais estranhos os protestantes. A despeito de um interessante sincretismo, eis o que distingue o catoli-cismo do protestantismo e outros cultos: 1)o com-portamento convencional dos católicos e a prática de profissões tradicionais; 2) a atuação centralizadora do padre e a participação passiva do leigo nos ritos celebrados; 3) a estrutura hierárquica da Igreja e do mundo espiritual; 4) a natureza cíclica do fervor religioso; 5) o papel importante da Igreja num ciclo da vida bem definido; e 6) alguns pontos básicos de discórdia, referentes à doutrina teológica.

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o

COMPORTAMENTO CONVENOONAL E OS PADRES AMBÍGUOS O pOVOdo campo, de qualquer classe ou sexo, é católico praticante fiel, que vai à missa sempre que pode. A grande maioria de pessoas das cidades é

também de praticantes ou de católicos de

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n o m e .

As mulheres, em geral, são católicas mais fervorosas, particularmente se são mais velhas ou viúvas, de modo que, dependendo da importância da missa, a maior parte das congregações tem de 60% a 85% de freqüência feminina. Os homens, por sua vez, não demonstram muito entusiasmo pelas solenidades da Igreja, pois não as consideram do domínio de atividades masculinas.

Tal comportamento pode ser interpretado em re-lação à divisão do trabalho entre os sexos e as gera-ções. Faz parte do papel da mulher procurar o bem-estar espiritual de sua família e as viúvas mais velhas, com o tempo disponível ao seu alcance, podem, deste modo, se tornar úteis. É comum ouvir as mulheres idosas, ao regressarem da missa, declarar que haviam rezado pelas pessoas de sua família e às vezes até mesmo pelo pesquisador. Os homens justificam o fato de não irem à missa mais freqüentemente, porque seu trabalho árduo já é considerado por eles mesmos, penitência bastante. Isto podia fazer sentido para os agricultores e os pobres trabalhadores da cidade, mas é difícil de aplicar a numerosos funcionários que têm bastante tempo disponível e que o gastam em mexericos ou jogando cartas. Assim, vemos mesmo quando alguns homens tem mais tempo para lazer e seu

trabalho não inclui tanto

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s a c r i f i c i o , a atitude que se espera de seu sexo faz com que eles freqüentem a

missa e outras reuniões religiosas menos assidua-mente que as mulheres.

Uma outra atitude esperada da parte dos homens é ahostilidade para com os padres. Primeiro de tudo porque julgam os padres homens muito estranhos e, em segundo lugar, porque tomam muito tempo de suas mulheres e dispensam-Ihes excessiva atenção. No passado, algumas comunidades ficaram célebres por p in ta r e m padres. Os homens afugentavam os padres com tiros de espingarda e em algumas ocasiões profanavam as igrejas. Essa hostilidade às claras para com o clero no Sertão é rara, onde a maioria dos homens respeita-o por fé e reverência. Se não por alguns desses motivos, eles o fazem por receio, pois a m a ld iç ã o d e u m p a d r e é considerada a mais poderosa existente e traz uma infelicidade total àquele a quem se destina.

Os padres são considerados peculiares na vida sertaneja porque não são h o m e n s d e v e r d a d e , sen-do alvo de grande número de piadas. Poucos deles são sertanejos, porque, como as pessoas admitem

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claramente, "os brasileiros não servem para ser pa-dres", referindo-se, naturalmente, aos homens nati-vos da região. O que se espera do procedimento dos homens é exatamente o oposto das obrigações de abstinência do sacerdócio.

A maior barreira ao sacerdócio é o voto de celi-bato, ao qual poucos homens estão dispostos a se submeter. As perspectivas a respeito do compor-tamento sexual são tais, que a maior parte das pes-soas pensa que poucos são os padres realmente capazes de perseverar em seus votos, e que pro-vavelmente devem manter ligações ilegítimas. Circulam casos a respeito da licenciosidade de certos padres no passado, e alguns indivíduos são lembrados como sendo filh o s (ilegítimos) d e p a d r e .

Mas manter relações de sexo ilícito não fará do padre um h o m e m de verdade. Um homem só adquire esse s ta tu s com casamento e família, e isto é proibido aos padres. Com o casamento, o homem mantém uma relação legítima e duradoura com uma mulher, com a qual procria filhos e alcança a maturidade social e econômica. O padre, ou é

c a p a d o (castrado, i.e., não é viril), ou tem relações com mulheres casadas e moças solteiras, o que é o caso da vingança mortal no Sertão. Além disso, é esperar demais dos sertanejos de hoje em dia que tenham uma vida de temperança. Espera-se daqueles homens que se fazem respeitar, que cometam periodicamente excessos de bebida, danças, andem com prostitutas e joguem. Finalmente, no passado, havia o problema da batina, que, para muitos, se parecia, em demasia, com vestido de mulher.

Também há o fato de que os padres geralmente são estrangeiros, o que lhes acrescenta ainda uma outra dimensão de singularidade. Alguns falam português bem, depois de anos de residência no Brasil; outros, pelo contrário, mesmo

a

missa reza-da por eles torna-se difícil para o povo entender, situação semelhante ao que Pierson (1972) obser-vou trinta anos atrás. Um problema ainda mais sério é a dificuldade que os padres estrangeiros têm de compreender uma maneira de viver tão diferente daquela na qual eles passaram a maior parte de sua vida. A pronúncia das palavras e a gramática podem ser impecáveis, mas as idéias acabam por se tornar muito abstratas, imbuídas demais de uma outra realidade para que a população possa entender a sua mensagem.

(6)

do local, mesmo quando se trata de assunto diferen-te à questão de justiça social. Isto não significa que os padres brasileiros não sejam jamais uma provo-cação às classes sociais mais altas. O trabalho deles de ajuda aos pobres nas zonas litorâneas do Nordeste muitas vezes é um verdadeiro incômodo para os grupos econômicos aí dominantes, mas o padre nascido na região sabe ser mais diplomático, de modo que não caia sobre ele a cólera das autorida-des locais constituídas.5

ANATIJREZA DA IDERARQUIA NA IGREJA E

o

RITO

O maior ponto de discórdia entre os católicos e protestantes do Sertão é a natureza hierárquica da Igreja Católica. Os protestantes fazem objeção ao papel exercido pelos padres, bispos, cardeais e, por último, pelo papa, neste mundo, e santos, no Outro Mundo, como intermediários entre Deus e os fiéis. Este modo de conceituar estrutura cosmológica reflete uma estrutura política e social neste mundo, onde a hierarquia de protetores atua em favor de indivíduos abaixo deles, quase da mesma maneira que Foster (979) e Wolf (966) observaram em diversos lugares, na América Latina." Embora os pro-testantes do local nunca pensassem assim, pode-se interpretar sua objeção aos mediadores espirituais como uma tentativa no plano religioso de sobrepu-jar o domínio dos poderosos deste mundo. Eles também podem implorar a intervenção divina para vencerem os problemas de doença ou perseguição

injusta por parte de pessoas

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m á s da comunidade, mas têm grande orgulho do fato de o fazerem

diretamente a Deus, sem a intervenção de um padre. O desempenho do padre na missa, principal rito religioso, é que distingue em especial o catolicismo de outros grupos religiosos. Existem líderes entre os últimos, mas estes não têm a situação formal de um especialista que se posiciona entre o mundo espiritual e este nosso mundo. Conquanto haja uma tendência contemporânea no sentido de os leigos católicos participarem das diversas partes da missa, é bem pequena a sua participação, praticamente se restringindo à leitura de um ou outro trecho prede-terminado da Bíblia, realizada por um leigo da classe alta local. As outras religiões aceitam uma colabora-ção muito maior de seus membros, qualquer que seja sua classe social, e seus líderes meramente ori-entam as cerimônias, nunca assumindo uma posição de mediador espiritual ou dirigente do culto.

A estrutura do rito católico é também formal e fixa, com apenas pequenas variações que ocorrem no rito básico da missa. Um homem católico, muito religioso, explicou por que não ia à missa comum ou a encontros de oração mais freqüentemente,

dizendo: "Você fica cansado de comer só feijão e arroz todos os dias". As religiões alternativas são mais espontâneas, permitindo cri atividade individual, conferindo assim um senso de valor também a outros membros menos importantes da comunidade.

O que os indivíduos dessas comunidades sabem sobre a estrutura formal da missa e o sentido da própria missa varia consideravelmente, sem falar nas diversas partes dela. Isso ocorre a respeito da distribuição de folhetos impressos das missas de cada domingo, de aulas de religião nos colégios e dos esforços de alguns padres em explicar paciente-mente a cerimônia, parte por parte. Primeiramen-te, poucas pessoas sabem ler e há menor número de pessoas ainda com capacidade suficiente para compreender a linguagem extremamente formal da liturgia semanalmente impressa. Além disso, pou-cos são os indivíduos que desejam entender o sig-nificados dos ritos religiosos abstratos. Como Radin (1957) e Reichel Dolmatoff (971) assinalam, em toda a sociedade a grande maioria das pessoas fica satisfeita em levar sua vida mecanicamente, no dia-a-dia, incluindo a atividade religiosa, sem pergun-tar por que as coisas são como são.

o

ANO REUGIOSO

Outro ponto de diferença entre a prática local do catolicismo e a de outros grupos religiosos é a na-tureza do ciclo anual do rito. Os protestantes se opõem aos ciclos anuais de altos e baixos no fervor religioso e, particularmente, a que os católicos dêem maior importância ao lado sagrado em algumas datas que em outras. Os sertanejos católicos consideram o ano pontilhado por ocorrências de um certo número de dias e períodos religiosos. Os dias santos e de festas religiosas interrompem o tempo comum de trabalho profano normal da maneira a que Leach (966) se refere a várias religiões do mundo. Esses dias, juntamente com os domingos e dias de feira, são considerados como de d e s c a n s o para o trabalhador rural e para grande número de pessoas da cidade. A maior parte da população rural não trabalha nos dias santos, pois, se o fizer, isto poderá ser considerado um desrespeito àquele santo, o que talvez traga infelicidade.

Por outro lado, muitos bodegueiros e donos de bares trabalham nos domingos e em vários dias santos. Poder-se-ia interpretar este fato comparando o comportamento tr a d ic io n a l dos agricultores ao

m o d e r n o dos comerciantes. Contudo, a realidade é mais complexa. No Sertão, a profissão de agri-cultor é de alto risco, o que por sua vez reforça o respeito aos santos. O castigo que eles podem so-frer é bem concreto e imediato. O mesmo santo

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ao qual se faz a promessa suplicando chuva também pode ignorar o apelo.

Nos dias de festas religiosas católicas, o sagrado e o profano não estão totalmente separados, o que é um ponto básico de discórdia por parte dos protes-tantes. No dizer do povo, muitos dos festejos

misturam o

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sa g ra d o e o so c ia l. A atmosfera de um acontecimento religioso específico varia,

dependen-do dependen-do quanto osa g ra d o é enfatizado na cerimônia. Quanto mais o sagrado predomina, mais sério e melancólico é o ambiente do acontecimento no Sertão. Isto ocorre mais evidentemente na Semana Santa, quando a comunidade deve ficar toda unida, deixando de lado as diferenças sociais e políticas. Deve haver silêncio e sobriedade de comportamen-to. Assim como no luto, usa-se roupa preta e não se deve beber, dançar ou dar qualquer outra demonstração de alegria e festa. Em suma, seu com-portamento toma-se semelhante ao dos protestan-tes locais na sua vida diária, comum, de temperan-ça. O oposto ocorre nas festas juninas, em que o

so c ia l predomina. A ênfase é dada ao beber e dan-çar, a tal ponto que o sa g ra d o é quase inexistente. A maior parte dos dias de festa, entretanto, é uma mistura de cerimônias religiosas sérias entre meadas de folia e somente os mais devotos enfatizam seus aspectos religiosos.

O ano religioso dos sertanejos católicos tem a seguinte seqüência de atividades: Novenas a Maria, em maio, seguidas pelas festas juninas; Novenas de Rosário, em outubro; Dia de Todos os Santos e Dia de Finados, em 12e 2 de novembro; Natal,

Car-naval, Quaresma e Semana Santa. Espalhados por diversas épocas do ano estão os dias dos santos padroeiros. Também ocorrem romarias locais e re-gionais, mas a maioria delas coincide com o Dia de Todos os Santos.

A Semana Santa é o ponto máximo do ciclo anual para o catolicismo popular do Sertão. Para quase todo mundo, a tônica dominante da Semana Santa é de pesar e as cerimônias se baseiam no sofrimento e na morte de Cristo. Isto reflete suas próprias vidas, as quais consideram cheias de dor e sofrimento, causados pela doença e pela seca.' A alegria pela Ressurreição de Cristo, que é evidente no fim da Semana Santa em outros lugares do Brasil, é quase ausente no Sertão. A salvação exige penitência, humildade e acima de tudo sofrimento pessoal, que são temas constantes simbolizados por meio da comemoração religiosa mais importante do ano.

Outro tema importante da Semana Santa é a união da comunidade. A morte de Cristo reúne as pesso-as, quase da mesma forma que os membros de uma

família pôem de lado temporariamente as

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30 Revistade CiênciasSociais v.26 n.1j2 1995

diferenças individuais, por ocasião da morte de al-gum parente próximo. Esta é uma diferença funda-mental entre o catolicismo e as outras religiões em que se vê simbolizada nas procissões, nas ruas. O catolicismo não separa a igreja da comunidade, em contraste com o protestantismo e os cultos afro-brasileiros, que se fecham em seus locais de adora-ção. Diversas cerimônias são do lado de fora da igreja e devem ter a participação de toda a comunidade, idealmente. Nas cidades pequenas, como a comuni-dade estudada de Chorrochó, as vias-sacras e procis-sões podem fazer exatamente isso e atravessam todas as ruas da comunidade. Numa cidade do ta-manho de Parnamirim não é possível passar a comu-nidade por todas as ruas, e numa tentativa de sobre-pujar o problema, as vias-sacras e novenas são re-zadas por diferentes grupos, em diversos pontos da cidade. Entretanto, nas cidades maiores, onde a divisão de classe é mais forte, as procissões das comunidades unidas acabam excluindo as áreas pobres, como ocorre em Belém de São Francisco.

AREliGIÃO NOS RITOS DE PASSAGEM

Outra característica marcante do catolicismo é o modo pelo qual a religião tem papel predominante em todos os ritos de passagem. Ao nascer, a pessoa já vai para a igreja. É um direito por nascimento, pois sua família faz parte dela, e é exatamente falta de escolha consciente que os protestantes criticam.

A maioria das cerimônias realizadas durante a vida de uma pessoa é religiosa por excelência, envol-vendo os seus diferentes estágios de desenvolvi-mento como membro da Igreja Católica. Outras, como a formatura de colégio, marcam mudanças essencialmente seculares, embora todo aconteci-mento social deva sempre ter uma missa, de modo que a bênção de Deus seja concedida a qualquer atividade da coletividade. Esse é outro aspecto da falta de separação entre a comunidade e a religião, que tanto surpreende o protestante oriundo de uma formação social industrializada, isto é, o pesquisa-dor, mas é só o que se pode esperar, haja vista o tipo de formação camponesa encontrada no Sertão." Se os protestantes do lugar fossem a maioria, eles também provavelmente não fariam uma separação.

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que geralmente é feito um ou duas vezes por ano, nos dias do Santo Padroeiro ou na Páscoa. Nessas oca-siões, as cerimõnias são realizadas em grupo, envol-vendo cinqüenta famílias, ou mais, numa só cerimónia.

ESTE MUNDO E O OUTRO MUNDO

Se, por um lado, no catolicismo popular do Ser-tão há pouco interesse em especular sobre a reali-dade do Outro Mundo, tendo apenas uma vaga idéia de que lá existem o Céu, o Inferno e, para alguns, o Purgatório, por outro, existe um rico corpo de

crença sobre o

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re la c io n a m e n to do Outro Mundo com este. Uma vez que este mundo é dos v iv o s e

o outro é das a lm a s, o ponto de contato entre os dois é a m o rte . Dessa forma, seria interessante explorar em maior detalhe conceitos sobre a passagem de um mundo para o outro antes de tra-tar de idéias sobre o Outro Mundo em si.?

Para a população do Sertão, seja católica ou pro-testante, a morte é vista como um processo no qual se esvaem as forças vitais, resultando na separação da parte espiritual - a a lm a - d o c o rp o d e c a rn e e o sso .Quando uma pessoa morre, o corpo é enter-rado no cemitério onde, normalmente, com o tem-po, a c a rn e se d e c o m p õ e , re sta n d o a o ssa d a no túmulo. Para o sertanejo, a morte não se dá por completo com a mera perda das funções vitais físi-cas, pois até a carne ser c o n su m id a p e la te rra , ain-da resta uma ligação entre o corpo e a alma do falecido. Nesse período, a alma fica vagando em torno do túmulo até completar o processo da carne degenerar e v ira r te rra ,quando, então, a alma passa completamente para o Outro Mundo. É importante enfatizar o termo c o m p le ta m e n te , porque se crê que durante este período a alma também está no Outro Mundo. Isso pode envolver a idéia clássica de que o espírito pode estar em dois lugares no mesmo momento [cf. Lévy-Bruhl, (971)), ou que a alma fica alternadamente lá e cá, progressivamente passando mais tempo no Outro Mundo até, por fim, que o processo de degeneração da carne se completa e a alma fica de vez por lá.

O cemitério pode ser considerado o portão para o Outro Mundo. Por isso, os mortais têm pavor do cemitério, pois as almas, se sentindo solitárias,

po-dem q u e re r le v a r a lg u é m e m b o ra consigo para

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f a

-ze r c o m p a n b ia . Conseqüentemente, as pessoas evi-tam o cemitério e só entram, de dia, para enterros e no Dia de Finados. Nessas ocasiões, tomam uma série de precauções para evitar contágio físico-es-piritual. Antes de entrar, deixam seus pertences no lado de fora do cemitério. No local, fazem os ritos o mais rápido possível, e, ao sair, vão diretamente para casa, trocam de roupa e tomam banho. A idéia

de contágio envolve mais do que apenas uma no-ção de que o cemitério é um lugar cheio de doen-ça. Também há uma vaga idéia de contágio espiri-tual que ocorre do conceito de que a vida é consti-tuída pela união do corpo e da alma.

As únicas pessoas que entram no cemitério com maior freqüência são os membros das irmandades de penitentes (tratadas abaixo). Estes mostram seu grande espírito de sa c rifíc io pessoal, rezando pe-los mortos no cemitério nas altas horas da noite, quando as almas e stã o so lta s. Contudo, os peniten-tes tomam a precaução de entrar no cemitério em grupo e carregando uma vela para manter as almas afastadas. Isso, mais o fato, que é comum, de dei-xar acesa uma lampadazinha em casa durante a noite, para afastar as almas, nos leva a concluir que as almas estão ativas apenas durante a noite, po-rém, não só no cemitério, mas em qualquer lugar. Como as almas são avessas à luz, uma pessoa me-nos corajosa pode entrar no cemitério de dia para enterros e no Dia dos Finados sem correr o perigo de encontrar-se com uma alma.

Mesmo assim, fora dessas ocasiões, o católico normal nem quer passar por perto do cemitério, que, idealmente, é localizado fora da cidade, num lugar de pouco trânsito. Contudo, como as cidades sertanejas estão crescendo, o cemitério pode pas-sar a ficar dentro dos limites do município mas, pelo menos, existe certo espaço entre ele e as residên-cias. Além disso, sendo localizado dentro ou fora do perímetro, o cemitério sempre tem um muro alto para separá-lo do espaço dos vivos.

Apesar do pavor a almas, normalmente, estas não aparecem na esfera dos vivos. Excepcionalmente, uma alma pode manifestar-se para os vivos quando está inquieta no túmulo e no momento da morte de um ente querido dela. No primeiro caso, a alma fica inquieta no túmulo quando, depois de enterrado seu corpo, a carne não degenerou. Como se trata de uma zona de clima semi-árido, com solos pedregosos, pode haver um processo de rnu-mificação dos mortos. Nesse caso, a alma se mani-festa para os parentes durante a noite em sonhos ou mesmo em aparições, o que é interpretado como inquietação. O corpo é desenterrado, exposto ao ar e reenterrado no mesmo lugar ou em outro dete rra m a is m a c iç a .10 O segundo caso, da aparição de uma

alma de cônjuge ou outro parente próximo para uma pessoa que está morrendo, é sinal para este e os outros presentes de que o momento de partir chegou, pois a alma do parente já falecido vem buscá-Io.

Mais uma vez se constata a importância do concei-to de c o m p a n h ia de parentes e amigos, sejam eles vivos ou já mortos. Idealmente, uma pessoa deveria

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ser cercada por estes na hora de sua morte, e, após a

morte, eles deveriam continuar

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v ig ia n d o o falecido a noite toda, de velas acesas, até o enterro, no dia

seguinte, quando o corpo vai para o seu lugar na terra santa do cemitério. Se ficar sozinho nesse momento de transição deste mundo para o outro, a alma pode perder-se no e sp a ç o , que é o Inferno para o sertanejo. Além disso, existe uma vaga idéia da alma desprotegida ser carregada por algo que possivelmente seja outra a lm a p e rd id a que deseja companhia, e, não necessariamente, carregada pelo Diabo. O uso de velas à noite antes do enterro, por sua vez, neste caso revela a importância da luz para afastar almas indesejáveis. 11

Também ficam vagando no espaço os infelizes que morrem de acidentes repentinos, por exem-plo, atingidos por raio ou afogados. Esses acidentes tradicionais, e os modernos como os de automóvel, não são encarados como divina vingança por algum pecado cometido. São vistos como m o rte s a n te s d o te m p o , que ocorrem rapidamente, e nas quais não se observa o processo normal de morte lenta em casa, que permite aos parentes e amigos se reunirem em sua volta para acompanhar o processo da morte. O fato de ter morrido antes do tempo não torna as almas perdidas invejosas dos vivos, como ocorre em outras partes do mundo (cf. Schneider, 1990). Vimos que, no Sertão, as almas levam os vivos embora porque querem companhia no espaço e não porque têm raiva dos vivos. Além disso, é comum no Sertâo colocar uma cruz no local de uma morte acidental, e os penitentes visitam estes lugares para rezar pela alma solitária que fica vagando por ali, fazendo-lhe companhia durante suas visitas. A cruz, por sua vez, marca o lugar como uma porta secundária para o Outro Mundo.

Em comparação, pouco se sabe sobre o Outro Mundo em si. Para a maioria da população sertaneja, há duas ou três esferas do Outro Mundo: 1) o Céu, 2) o Inferno e 3) o Purgatório. Essas esferas do Outro Mundo não são concebidas como fisicamente acima ou abaixo deste Mundo, e, sim, como outra dimensão, à parte, e se distingue uma esfera da outra, em luminosidade, estado térmico e solidão. A noção da organização social dos entes sobrenaturais presentes em cada esfera só é desenvolvida para o Céu.

No esquema cosmológico de católicos sertane-jos, o conceito de Limbo quase não existe. Em vez de irem para o Lirnbo, as crianças que morrem logo após nascer e que não foram batizadas, são consideradas a n jin h o s inocentes e como tal vão di-retamente para o Céu. Essa idéia está adaptada à falta de padres no Sertão, uma vez que pode

de-morar dias ou mesmo semanas e meses para bati-

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32 R evistode C iências Sociais v.26 n.l/2 1995

zar uma criança em lugares mais isolados. Contudo, existe bastante incerteza entre a população quanto ao penado de graça antes do batismo, podendo cau-sar dúvida para os pais em questão se sua criança falecida será sa lv a .

Também é pouco desenvolvida a noçào de um estágio de Purgatório como um lugar intermediá-rio, no qual se passa um tempo pagando os peca-dos menores, antes de, finalmente, subir para o Céu. Normalmente, para os sertanejos esses pecados são perdoados se o indivíduo confessá-Ios para o padre durante sua vida ou na última unção antes de morrer, tornando-se de s ne ce ssâr ia a existência do Purgatório.

Mesmo as idéias sobre o Inferno são relativamen-te simples. Não se fala num Inferno de castigo onde as almas se queimam por eternidade ou habitado por demônios que espetam os pecadores com tridentes. A solidão em si é o castigo máximo para o sertanejo e as a lm a s p e rd id a s têm uma existên-cia vista como profundamente triste, de v a g a rso

li-tariamente no e sp a ç o ,uma dimensão vazia, fria, sem som e escura. Vê-se nisso uma herança do passado, do Sertão como zona de fronteira, na qual se tem uma aversão total à isolação da vida no e sc u ro

campo, que não tem o movimento social das vilas e cidades. Além disso, como um povo extremamen-te sociável, é raro alguém ficar só e, de fato, há verdadeiro pavor, principalmente à noite e no es-curo, pois isso possibilita a aproximação de uma alma perdida, que pode levar consigo a pessoa sozinha para o espaço.

O conceito de pecado no Sertâo também reflete seu passado de fronteira no qual se vingavam, e ainda se vingam, as injustiças desse mundo, aqui e agora, matando o adversário. Dessa forma, não se considera o assassinato justificado como pecado. Pecador é aquele que éc a c h a c e iro v a g a b u n d o , que não trabalha e deixa sua fanúlia na penúria. Outros delitos também têm castigo imediato no Sertão. Relações pré e extramaritais são resolvidas com o casamento forçado ou com vingança mortal. Quem não batiza o filho, abandona sua mulher para casar com outra ou junta-se com um padre vira lobisomem ou mula-junta-sem-cabeça (cf. Hoefle, 1990). Além disso, nem é preciso ter co-metido pecado para acabar no espaço, como vimos ser o caso de pessoas que morrem de acidentes ou que são carregadas por uma alma penada.

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Ortodoxa européia.

O Céu, por sua vez, é um lugar alegre, de muita luz e companhia social, onde ninguém sente o so-frimento da terra. Em comparação com as outras esferas do Outro Mundo, existe no Céu uma orga-nização social complexa, desde a figura máxima de Deus, aos santos mais importantes, aos santos me-nores e, finalmente, às almas comuns. Existe, as-sim, uma hierarquia dos entes do Outro Mundo, semelhante àquela deste mundo. Porém, no Céu, a hierarquia é definida por perfeição do espírito e não pela acumulação de riquezas e poder político. O Deus é perfeito e todo-poderoso, uma figura explicitamente comparada a um pai de família, sa-bendo o que é melhor para seus filhos. Os santos, por sua vez, tiveram na terra uma vida exemplar, colocam-se mais próximos ao Senhor e têm acesso mais direto ao Seu ouvido, e, por isso, são os mais procurados com pedidos e promessas feitos pelos vivos deste mundo. Muitas pessoas acreditam que os próprios santos atendem aos pedidos, sem inter-ferência de Deus, e assim são, por si mesmos, quase que divindades. Em teoria, as almas comuns tam-bém têm acesso ao Senhor mas ninguém faz pro-messas a elas, pois "santo de casa não faz milagres", seja a imagem de um santo que se tem em casa, seja a alma de um parente falecido que era da família.

Depois de rezar no contexto da missa, o pedido de intervenção divina de santos, mediante promessa, nos problemas deste mundo, é uma das formas de contato mais comuns com o Outro Mundo para os sertanejos, sendo, também, o maior ponto de atrito com os protestantes. A comunicação de promessas dos vivos deste mundo para os santos no outro, porém, se dá num sentido só, pois o santo não entra em contato com o pleiteante, dando-lhe uma resposta verbal. Se a doença for curada, o casamento realizado, a chuva vier a tempo, isso em si é a resposta do santo, e o pleiteante cumpre a promessa.

A promessa geralmente envolve a realização de atos de

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sa c rifíc io , como vestir uma túnica fran-ciscana ou não cortar o cabelo durante longo perío-do. Estes atos que, em outro contexto, seriam ridi-cularizados e considerados socialmente estranhos, passam a ser admirados como um sinal de fé. Além disso, como é comum não dizer que se está cum-prindo promessa, quando uma pessoa adota uma vestimenta ou aparência de religiosos arcaicos, a comunidade já sabe que deve ser por causa de pro-messa. Também para cumprir promessa é comum fazer uma romaria até um santuário distante do santo a quem foi feita a promessa, visando colocar um ex-voto representando a moléstia curada ou uma quantia de dinheiro ao pé da imagem. A viagem

em si é considerada um sacrifício, mas também é possível acrescentar sofrimento físico ao ato da ro-maria, andando toda a distância a pé, carregando uma cruz pesada durante a viagem ou andando ajoelhado o último quilômetro até o santuário. 12

No caso do não-atendimento da promessa, sem-pre há a possibilidade de que o santo não tenha escutado o pedido, pois não se tem a confirmação imediata por parte dele. Suspeitando disso, o pleiteante pode ro u b a r osa n to ouju d ia r d o sa n to

para chamar sua atenção. R o u b a r osa n to é literal-mente seqüestrar a imagem, tirando-a de seu lugar devido, e,

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j u d i a r d o sa n to é virar a imagem de cabeça para baixo, ambos atos feitos na esperança

de que o santo, querendo voltar a seu lugar ou posição correta, atenderá ao pedido. Parece que o santo não se irrita com esses atos, nem se vinga não atendendo ao pedido e muito menos fazendo mal ao pleiteante.

Além do corpo de crença em volta das almas e dos santos no Sertão, também encontra-se até hoje a crença em espíritos do mato, tais como a caipora e os animais encantados. São espíritos animistas típicos deste mundo, que, em troco do usufruto dos produtos do mato, são aplacados com fumo e outras oferendas. Como Schneider (1990) observa na Europa antes da ocupação das últimas fronteiras internas por meio da Agricultura Científica, no Sertão os espíritos do mato vivem em lugares distantes da habitação humana e são mestres dos animais silvestres. São encontrados raras vezes e normalmente no contexto da caça, quando devem ser tratados com respeito e espírito de reciprocida-de (cf. Hoefle, 1990).

Dessa forma, identificam-se no Sertão os três ele-mentos típicos do cristianismo animista pré-Refor-ma: 1) a crença em espíritos do mato, 2) a crença em almas e 3) o culto dos santos (cf. Schneider, 1990). Ao contrário do que se passou nas zonas mais habitadas do país durante a Inquisição no período colonial (Souza, 1987), na ausência de pa-dres numa zona com características de fronteira, o catolicismo popular do Sertão nunca passou pelo processo de d e se n c a n ta m e n to . Schneider relata que após 1200, na Europa, este processo acompanhou o surgimento do capitalismo e visou apagar a cren-ça na interferência das almas e dos espíritos do mato na vida dos humanos vivos, separando, assim, este mundo do outro. Particularmente no período da Reforma e Contra-Reforma, iniciou-se uma grande caça às bruxas, na qual os duendes e fadas passaram a ser vistos como demônios e quem se comunicava com eles ou com as almas era acusado de bruxaria e condenado à fogueira. Além disso, o culto de santos

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foi desenfatizado ou mesmo banido, particularmente para aqueles santos com traços animistas. o Sertão, contudo, nunca se instalou este tipo de visão da separação radical deste mundo em relação ao outro.

RELIGIÃO AlTERNATIVA DO PASSADO

Historicamente, a falta de padres e o poder das classes mais altas em cargos da Igreja levaram à formação de movimentos populares religiosos que se desviaram da ortodoxia católica, muito antes dos cultos afro-brasileiros e do protestantismo. O que os movimentos milenaristas, as irmandades de flageladores e a dança de São Gonçalo tinham em comum era certa atração pelos pobres, e, portanto, um questionamento à ordem social. Isso, por sua vez, gerava uma hostilidade da elite local que, às vezes, podia até empregar a força na sua supres-são. Além disso, a falta de supervisão de um padre significava que era comum serem banidos ou desfavorecidos pela Igreja.

MOVIMENTOS MnENARISTAS

Os mais famosos movimentos milenaristas do Sertão foram os dos Sebastianistas do Reino Encan-tado, de 1830 a 1838; o movimento de Antônio Conselheiro, nas últimas décadas do século XIX, que culminou com a Revolta de Canudos; as peregrina-ções que recebiam aconselhamento .do Padre Cícero, de 1890 a 1932; as Comunas do Beato Zé Lourenço, durante as décadas de 1930 e de 1940; as obras do santo homem Pedro Velho, em Santa Brígida, de 1940 até sua morte em 1963; e a romaria ambulante do Frei Damião, dos anos 1950 até recentemente. 13

Para a população contemporânea do Sertão, os movimentos mais antigos do século passado foram esquecidos, na sua maior parte. Os indivíduos dire-tamente envolvidos ou afetados por eles, de algu-ma foralgu-ma, passaram suas lembranças para seus filhos e netos. Depois disso, os movimentos foram se apagando na memória coletiva. Assim, pouca coisa se sabe hoje sobre os Sebastianistas.

Somente alguns poucos, mais velhos, morando no sul do município de Chorrochó, perto do local de Canudos, se lembram de fatos que se passaram com o movimento de Antônio Conselheiro. Consta-ta-se nas recordações um movimento bem mais complexo do que interpretações simplistas de fa-náticos devotos do imperador ou de Canudos como uma comuna. J4 O que mais se lembra do Conselheiro

é sua capacidade de mobilizar a população local para construir capelas e igrejas em localidades isoladas, onde não pisava padre. Canudos antes do sítio parecia mais uma comunidade de crescimento

rápido, prestando serviços a si mesma e a romeiros

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34 R evistade C iências Sociais v.26 n.1/2 1995

- como foi a ]uazeiro do Norte do Padre Cícero depois - do que uma comuna. Existiam feirantes que também faziam o circuito de feiras em outras vilas da área. Além disso, em uma situação típica de camponeses de fronteira, as roças disponíveis à comunidade eram exploradas por famílias distintas e não em regime comunal.

Recordações e lendas sobre o Padre Cícero estão ainda vivas, porque a atração do padre famoso foi difundida durante a sua longa vida, chegando a dar conselhos sobre problemas pessoais para muitos indivíduos ainda vivos, e continuando a auxiliar pessoas, mesmo morto, como um santo de fato no outro mundo. Na verdade, a romaria ao seu túmulo e às igrejas de ]uazeiro do Norte são consideradas pelos sertanejos do mesmo tipo de romaria a outros santuários da região que têm imagens milagrosas dos santos canonizados. A grande diferença entre o destino da comunidade que surgiu para atender os devotos de Padre Cícero e o de Canudos é que seus fiéis conseguiram repelir as forças legais que tentaram destruir o movimento, dando tempo para que este se acomodasse ao equilíbrio de forças políticas regionais.

Frei Damião ainda está vivo e tem uma influên-cia entre a população sertaneja semelhante à do Padre Cícero. Enquanto este recebia pessoas em ]uazeiro, Frei Damião até pouco viajava pelo or-deste, celebrando missas ao ar livre, ajudando as pessoas com problemas. Na fase final de sua carrei-ra como missionário, o homem que é seu braço direito, Frei Fernando, desviou o movimento da sua ênfase primitiva em tomo do estilo simples de vida do Frei Damião, que foi uma das principais atrações para os nordestinos. Uma missa ao ar livre a que o pesquisador assistiu na Paraíba em 1978 tinha o aspecto constrangedor de uma reunião evangélica do sul dos Estados Unidos. Havia até um ônibus especial com seu nome pintado ao lado. os anos 80, a Igreja resolveu restringir seus movimentos, para desencorajar essa tendência.

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não foi esse aspecto do movimento do Beato que alarmou as autoridades locais e estaduais, e, sim, a possibilidade de outro Canudos. O movimento foi combatido violentamente, primeiro, na chapada do Araripe, no Ceará, havendo até bombardeio aéreo, e, depois, numa outra área isolada do oeste da Bahia. Na última repressão à seita, como em Canudos e em Juazeiro do Norte, os membros da seita ofereceram uma resistência ferrenha, mas Zé Lou-renço escapou do cerco da polícia. Depois disso, nenhuma atitude mais foi tomada contra Zé Lou-renço, sob a condição de que ele cessasse suas atividades milenaristas. Terminou ele seus dias em Exu (Pernambuco), onde desfrutava certa fama.

Pedro Velho passou pela área de estudo em suas andanças e algumas pessoas se lembram dele, por ter sido um grande curandeiro. Quase no fim de sua vida ele fundou uma comunidade religiosa em Santa Brígida (Bahía), que foi tolerada pelas autori-dades, talvez porque não juntasse um grande nú-mero de adeptos e seu trabalho não constituísse uma séria divergência da vida local. De fato, Pessar (976) demonstra como, com o tempo, a comuni-dade deslocou-se da visão milenarista do mundo para a desenvolvimentista.

Todos esses movimentos messiânicos atraíram seguidores entre os pobres, geralmente aqueles dos lugares onde os padres ou políticos foram incapa-zes de resolver importantes problemas pessoais e familiares ou não lhes deram atenção. Como ocorre com os santos e centros de romaria no Sertão, quando as autoridades locais espirituais e seculares não podem resolver um problema, as pessoas tendem a procurar outros que são tidos como mais poderosos no seu contato íntimo com Deus. Desta forma, os peregrinos procuram homens santos para pedir conselhos sobre seus problemas específicos. Depois da consulta, geralmente voltam para casa. Alguns, na hora da romaria, ficam tão impressiona-dos com o que vêem que, tendo deixado pouca coisa atrás de si, decidem ficar, tornando-se assim parte da população permanente das comunidades que surgem em volta da peregrinação. Nesses lu-gares eles podem ter acesso às terras comunitárias ou encontrar trabalho em serviços prestados aos romeiros. A demanda para esses serviços nos gran-des centros de peregrinação pode ser tanta, que alguns indivíduos acabam sendo, de início, atraídos por razões materiais de maior oportunidade de trabalho, que sabiam existir nos locais.

O fato de passar por cima das autoridades locais nos seus problemas e a perda de trabalhadores le-varam à inveja, ao ressentimento e, finalmente, a uma reação dos políticos locais. Quando os

misti-cos têm origem na classe média ou baixa, e não possuem uma formação religiosa seminarista, como Antônio Conselheiro, Beato Zé Lourenço e Pedro Velho, ou ocupam posição inferior na hierarquia da Igreja, como Padre Cícero e Frei Damião, o antago-nismo com o clero e com os líderes políticos locais é inevitável. Quanto mais o movimento crescia e o comportamento social e religioso divergia da ortodoxia, ameaçando a ordem constituída, tanto mais violenta era a reação das autoridades locais. Quando estas não eram capazes de reprimir o movimento, os militares eram chamados para abafá-10, como ocorreu com Zé Lourenço, com Antônio Conselheiro e tentou-se fazer com o Padre Cícero. Muitas vezes houve massacres em grande escala e de forma covarde após a rendição dos adeptos.

Se os movimentos fossem capazes de sobrevi-ver, eventualmente, tinham que se conformar à ordem estabelecida e, muitas vezes, seus líderes tornaram-se donos de grandes propriedades e au-toridades políticas, como foram o Padre Cícero e Pedro Velho. Além disso, como Burridge (1969) e Worsley (968) mostram, nos movimentos milenaristas, pelo mundo todo, um organizador prático é geralmente necessário para dirigir o tra-balho do santo homem carismático, como foi o caso de João Abade em Canudos, Floro Bartolomeu em juazeíro e Frei Fernando junto com Frei Damião. Esta é a figura que leva o movimento à conformi-dade, na tentativa de salvaguardar sua

sobrevivên-cia e de expandir sua escala.

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PENrrENrEs

lnnandades de flageladores, cujos membros são chamados

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p e n ite n te s, podem ser ainda encontradas ao longo do rio São Francisco e em alguns poucos lugares da região do Cariri, no Ceará. St. Hilaire encontrou penitentes em 1817, Euclides da Cunha em 1859, Lourenço Filho no princípio deste século (citado em Pierson, 1972) e Pinheiro (1950) faz referência aos flageladores, de modo que essas seitas devem ser tão antigas quanto a colonização européia. Muitas de suas práticas e do que se conhece a respeito delas são semelhantes às irmandades flageladoras que foram comuns na Europa, no passado, e algumas que ainda existem no Novo Mundo (cf, Cohn, 1970; Christian, 1981;. Weigle 1976). Das comunidades estudadas, somente Belém do São Francisco tem um grupo dep e n ite n te s, que data deste século.

Alguns grupos ainda praticam a autoflagelação, enquanto outros observam a vontade da autorida-de papal para que esta prática seja abolida. Entre os penitentes de Belém do São Francisco,

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vou-se que somente os membros idosos têm as ci-catrizes típicas que resultam do corte do chicote e das lâminas de aço. Hoje em dia, a penitência con-siste de longas horas a entoar hinos e carregar uma pesada cruz em procissão, pela madrugada aden-tro. Os encontros de oração são realizados em ca-pela localizada apropriadamente na periferia da ci-dade, no cemitério ou no mato onde cruzes mar-cam a morte acidental de um indivíduo e em casas de pessoas pobres que consideram sua presença uma bênção para seus lares.

O objetivo declarado para suportar os sofrimen-tos é a expiação dos pecados. Crê-se que depois

de sete anos de

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s a c r i f i c i o , a salvação da pessoa está garantida. Apesar disso, muitas pessoas

inte-gram-se a esses grupos porque acham suas ativida-des

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b o n ita se só reparam as transgressões, quando ocorrem, como um fato comum a qualquer pessoa. É possível que eles achem suas atividades b o n ita s

porque revivem e redesempenham o sofrimento de Jesus Cristo, como Cohn (970) chama atenção

relativamente à flagelação européia da Idade Média. Embora nenhum dos informantes tenha jamais declarado isso, é interessante notar que a maior parte da atividades se dá durante a Páscoa e a Semana Santa, quando os penitentes e também os católicos comuns saem em procissões e desenvolvem outras cerimônias que descrevem o sofrimento de Cristo.

Em comparação com o catolicismo convencional, os papéis de classe e sexo são invertidos nas irmandades de flageladores. Quase todas as ativi-dades são executadas pelos homens e de todas as idades, menos crianças. A participação das mulhe-res é mulhe-restrita ao canto de hinos nos encontros de oração que fazem nas casas e, mesmo assim, elas ficam segregadas em outro aposento, com uma cortina evitando qualquer contato visual entre os dois sexos. Em vez de serem dominadas pela elite local, essas seitas são quase que exclusivamente constituídas e lideradas por pessoas pobres. Os membros dizem: "funcionário (rico) não agüenta su-portar as longas horas de oração e procissão", ou sofrimento físico, no passado. Isso reflete atitudes de classe, pois a elite local não "pega no pesado". O público, em geral, e particularmente a classe dominante, são hostis, têm receio ou se divertem com as irmandades, particularmente com suas pro-cissões estranhas, seus hinos melancólicos e suas características túnicas pretas e capuzes brancos. Muitas pessoas têm curiosidade em saber quem são os membros, uma vez que quase todos eles escon-dem sua identidade, cobrindo as faces e os corpos com aquelas vestimentas. Assim, com o uso de

rou-pas escuras, nas suas atividades noturnas tardias,

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36 R evistade C iências Sociais v.26 n.1j2 1995

em lugares assombrados, assustam a muitas pes-soas, pois isso envolve um possível contato com as almas.

DANÇA DE SÃO GONÇALO

A Igreja há muito tempo aboliu as cerimônias que incluíssem danças, assim como bebidas, festejos e o cântico de canções populares dentro da igreja, porque foram consideradas incompatíveis com a atmosfera de um Santuário (Christian, 1981). As danças de São Gonçalo desapareceram das cidades do Brasil onde os padres as desaprovavam, mas continuam a ser praticadas em cidadezinhas e fa-zendas do interior (Cascudo, 1962). Em lugares re-lativamente isolados do Sertão, onde há poucos padres, elas continuam até hoje. São especialmen-te populares no norte da Bahia e na parte oeste de Pernambuco, ao longo do rio São Francisco.

As danças de São Gonçalo geralmente são prati-cadas por pessoas mais pobres, embora alguns fa-zendeiros ricos e pessoas das cidades às vezes par-ticipem delas. Elas têm normalmente lugar no fim do ano e podem ser consideradas como uma forma de cumprimento de promessa. Uma promessa a São Gonçalo pode ser feita para solucionar qualquer problema, mas a razão mais comum é de pedir uma colheita promissora, ou, conforme a estação do ano, antes da época das chuvas, implorar que elas sejam regulares. Isso não pode ser considerado apenas relativamente à agricultura se sequeiro, pois há casos meeiros da irrigação capitalizada, receosos do risco do insucesso da colheita ou dos preços baixos do mercado, patrocinarem as danças. A apelação a meios sobrenaturais para controlar a natureza em momentos de grande perigo no ciclo da agricultura é um fenômeno comum no mundo todo e, no catolicismo popular, é uma antiga tradição. Christian (981) chama a atenção para a Espanha do século XVI, quando um grande número dessas procissões festivas e promessas se realizavam nessas momentos de incertezas.

EXPUCAÇÔES PARAoFANATISMO REUGIOSO DO SERTANEJO

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melhor para isso seria a natureza do modo de vida pastoril.

Da mesma forma, a pressão do aumento da po-pulação e da seca, que Della Cava (1970) dá como razão para a ascensão de Antônio Conselheiro e Padre Cícero, são explicaçôes deficientes por si mesmas. A pressão demográfica aumentou no Ser-tão desde a época dos grandes movimentos rnes-siânicos e as secas têm sido severas, do mesmo modo. A seca pode não resultar mais em fome amplamente espalhada e morte, mais ainda é ca-paz de causar miséria geral.

A nossa posição aqui é a de que a tensão entre L)a herança do passado de maior autonomia e criatividade religiosa em condiçôes de fronteira, 2) as relaçôes entre as classes locais e 3) o processo de subdesenvolvimento do Sertão após 1890 são mais importantes para explicar o ardor religioso do sertanejo e a existência de formas diferentes de religião alternativa. Não se pode negar que, nos ambientes áridos e semi-áridos, a agricultura envol-ve bastante risco e que o sistema agrário do serta-nejo não resiste bem à seca. Os períodos prolonga-dos de seca normalmente causam quebra na safra, a morte do gado e um sofrimento difundido; e isso, sem dúvida, pode levar as pessoas a pedirem um auxílio sobrenatural. Mas o catolicismo popular como visão do mundo pode explicar de forma adequada tais problemas quando um indivíduo pergunta: "Por que isso aconteceu aqui neste lugar específico, comigo e agora?"

Além disso, a manifestação de religião alternativa é mais forte em lugares pouco afetados por dificul-dades ambientais, onde a divisão de classes é mais acentuada. Os grupos de flageladores são en-contrados principalmente ao longo do rio São Fran-cisco, único rio perene do Sertão, e na região semi-úmida do Cariri, no Ceará, sendo ambos cenários favoráveis aos padrôes ambientais do Sertão. Com exceção de Canudos, a mesma situação é encon-trada para os movimentos milenaristas. Naqueles lugares, a lavoura, mais do que a criação de gado, é atividade predominante e as colheitas são compa-rativamente regulares. São mais densamente po-pulosos, sendo os agricultores pobres, de minifúndio ou sem terra em maior número, e as divisôes de classes bem mais nítidas do que em outros lugares do Sertão. Estas condiçôes facilitaram a mobilização horizontal de classe e permitiram aos pobres formar cultos coletivos de religiôes alternativas.

Facó (1976) está no caminho certo ao postular uma explicação clássica evolucionária marxista, mas seu uso da caracterização dualista de

socieda-de tradicional rural mística

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v e rsu s sociedade

mo-derna urbana secular invalida seus argumentos. Ele está certo na sua crítica a Cunha (1933), que ex-plica a ocorrência de cultos milenaristas em termos raciais, por meio dos quais os sertanejos são consi-derados como mentalmente retardados e pouco instruídos. Entretanto, Facó não está totalmente certo quando explica os movimentos, assim como o banditismo, como um resultado de a tra so da eco-nomia local. Do seu ponto de vista, os fanáticos e salteadores estariam protestando contra os vestí-gios remanescentes de uma estrutura social obso-leta, que foi desaparecendo gradualmente, com o passar dos anos. Ele acertadamente destaca ele-mentos de protesto, mas a estrutura social no Sertão não mudou tanto a ponto de justificar a sua asserção.

É importante notar que os movimentos mile-naristas, bem como o banditismo e as revoltas con-tra as novas forças políticas das capitais e do Su-deste, tiveram seu auge no período de 1890 a 1940, período em que o Sertão deixa de ser uma zona de fronteira, é praticamente dominado mili-tarmente e entra no caminha para o subdesenvol-vimento periférico. Facó está mais próximo do alvo quando diz que ocorreram mudanças que permiti-ram um maior controle político-econômico sobre o Sertão do que tinha havido no passado, e que o protesto tem sido deslocado do campo para as cidades."

Hoje em dia no Sertão, as irmandades de peni-tentes tornaram-se um fenômeno urbano, mas não cresceram. Os movimentos milenaristas, na sua maioria, foram desaparecendo desde a década de 1950. As danças de São Gonçalo diminuíram pelo Sertão todo, desde que Cascudo escreveu sobrementalistas, tais como presbiterianas ou me-todistas, podiam ter atração maior entre os pobres do local. Por outro lado, quanto à questão ideoló-gica da proposta de maior igualdade social, estas igrejas podem não ser suficientemente funda-mentalistas.

ESTRUTURA DO CULTO E DA IGREJA

A igreja, para os protestantes, separa o mundo do culto religioso do mundo dos pecados de fora, e todas as atividades religiosas se realizam dentro da igreja e nunca fora da comunidade, como ocorre nas procissões católicas. Pode-se até fechar a entrada com uma cortina para marcar esta separação. Por outro lado, a cortina ou porta também serve para evitar que alguém de fora jogue um objeto para dentro visando atrapalhar o culto, o que, de fato, às vezes acontece. As igrejas católicas do interior também têm uma porta na entrada, mas raramente

Referências

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