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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Paulo Souza Genestreti

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Academic year: 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Paulo Souza Genestreti

Visungo e Catopês: a comunicação local e seu relacionamento

com a comunidade de Milho Verde, Minas Gerais.

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

SÃO PAULO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Paulo Souza Genestreti

Visungo e Catopês: a comunicação local e seu relacionamento

com a comunidade de Milho Verde, Minas Gerais.

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de MESTRE emComunicação e Semiótica (Signo e Significação das Mídias/ Cultura e Ambientes Midiáticos), sob a

orientação do Prof. Dr. José Amalio de Pinheiro Branco

SÃO PAULO

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ii

Dedico este trabalho a todas as pessoas que me incentivaram neste processo, em especial aos meus queridos companheiros Cássio Gusson, Fábio Chauh, Filipe Mantovan, Hilário Pereira e Lucas Terra.

Para minha mãe Elza, para Maria Regina, minha amada eterna, e para meus filhos Guilherme e Gustavo, que são a razão da minha luta.

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“Viver significa descer ao logo da corrente do rio, enquanto

das bordas das margens íngremes observa-nos, calada, a

vida que deixamos para trás”.

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Agradeço a todos que me incentivaram nesta empreitada, em especial a Nelson Gentil da Faccamp. Agradeço também ao Nando e Bruno do Instituto Milho Verde, a Elcione da Serrotur, a Zara e Paulo Sérgio da Secretaria Municipal de Cultura do Serro.

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BANCA EXAMINADORA

_________________________

_________________________

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RESUMO

Tendo como cenário de pesquisa a festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na comunidade de Milho Verde da cidade do Serro, Minas Gerais, o presente trabalho avalia aspectos culturais do vissungo, representado aqui pela linguagem e cantos entoados pelos escravos das lavras da região diamantinense, e sua interação junto aos catopês, grupo dançante que se responsabiliza pela condução da imagem da santa em todo o percurso da festa. Neste trabalho, são pontuados os impactos na área da comunicação oral e visual, envolvendo os aromas e a elaboração dos alimentos, as cores de toda ornamentação utilizada e a entonação dos cantos apresentados durante a festa. Uma pesquisa de campo aprofundada, com captação de imagens, e a leitura e interpretação de textos que remetam ao tema e seus recortes de comunicação, fizeram parte da metodologia empregada. Desta maneira, a pesquisa analisa os aspectos apresentados nos documentários “Alforria da Percepção” e “Ausência”, produções audiovisuais do autor dadissertação, que abordam os temas apresentados acima, além do cotidiano dos dançantes, cujas análises contemplam aspectos da linha da semiótica da cultura, especialmente quanto aos textos de Mikhail Bakhtin e Eleazar Meletínski e seus desdobramentos. O grande foco estabelecido no trabalho passa pelas discussões do sagrado e o profano, bem como suas formas de comunicação com as comunidades que participam da festa. Além disto, as teses de Boaventura de Sousa Santos são parte importante na composição e análise das questões que envolvem as relações sociais e políticas em contraponto às polifonias presentes, principalmente quanto aos aspectos que interferem diretamente no andamento do grupo catopê durante o evento. Como complemento, os detalhes da liturgia e da comunicação empreendida pela religiosidade dos participantes sãoconsiderados no tocante à reverência da santa padroeira como elemento de unidade neste processo, assim como o do comércio e outros eventos paralelos. Para isto, quanto ao panorama da cultura e do folclore regionais, os estudos de Aires da Mata Machado Filho e Luís da Câmara Cascudo são as referências bibliográficas do presente estudo.

PALAVRAS-CHAVE

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ABSTRACT

Having as a background of research the fest ofRosário dos HomensPretos in the community of Milho Verde, in the Serrocity, Minas Gerais, this study assesses the cultural aspects of vissungo, represented here by the language and songs sung by slaves in the mines of Diamantina region, and its interaction with the catopês, dance group that is responsible for conducting the image of the saint in the whole course of the party. In this work, the impacts are ranked in the area of oral and visual communication, involving the preparation of foods and flavors, colors of all ornamentation and intonation used the songs presented during the festival. A thorough field research, with shooting photos and videos, reading and interpretation of texts that relate to its theme and fragments of communication were part of the methodology. Thus, this work examines the issues presented in the documentaries Alforria da Percepção and

Ausência, audiovisual productions of the author of the dissertation, which the issues presented above, beyond the routine of dancing, whose analysis of the aspects of the semiotics of culture, especially on texts by Mikhail Bakhtin and EleazarMeletínski and its expansions. The big focus at research is established by the discussions of the sacred and the profane, as well as their forms of communication with the communities who join the party. Moreover, the arguments of Boaventura de Sousa Santos is an important part in the composition and analysis of issues involving the social and political relations as opposed to polyphony, mainly that one directly interfere with the progress of the group catopês during the event. As a complement, the details of the liturgy and communication undertaken by the religiosity of the participants are considered in terms of reverence as the patron saint of the unit element in this process, as well as trade and other parallel events. For this, as the panorama of culture and folklore regional studies Aires da Mata Machado Filho and Luis da CamaraCascudo are the references to this study.

KEYWORDS

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SUMÁRIO

Introdução... 1

1. A Primeira Noite do Rosário no Serro... 2

1.1 Os caminhos de Minas ...2

1.2 A noite encantada... 11

1.3 O comércio e o baile...22

1.4 Nelson Catopê...31

1.5 A matança dos bois...35

1.6 Nos arredores do Serro...40

2. A Matina... 44

2.1 A adoração e a cegueira...46

2.2 Seu Jadir... 49

2.3 A consagração noturna...51

3. O Domingo do Rosário no Serro...59

3.1 A votação...80

4. Ausência e a Festa Devota em Milho Verde ... 83

4.1 O curta ... 88

4.2 Mendanha...94

4.3 Festa em Milho Verde ...96

4.4 Reinado e Devoção em Milho Verde... 101

Considerações Finais ... 105

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INTRODUÇÃO

Estive na região de Diamantina no final de 1998 pela primeira vez, a passeio. Ao passar pela cidade do Serro, tive a oportunidade de visitar seu museu, onde uma peça em especial me chamou a atenção: nos fundos da grande casa colonial haviam encontradouma estatueta de madeira inacabada enterrada no jardim, com as marcas das ferramentas ainda visíveis na madeira bruta. Não sabiam quem seria o autor que estava trabalhando na peça inacabada com uma idade aproximada de duzentos anos. Na conversa que tive com a pessoa responsável pelo museu na época, fiquei sabendo da festa de Nossa Senhora do Rosário e seus grupos dançantes: “Se você vier para a festa, nunca mais vai se esquecer”. Guardei a informação com a certeza de que algum dia iria voltar para ser testemunha daquele acontecimento.

Anos mais tarde, em 2006, promovia, como extensão de uma das disciplinas do curso de Comunicação Socialem que leciono, sarais culturais com alunos para discutir cinema, temas relacionados à comunicação e poesia. Num destes, externei minha vontade de retornar ao Serro para acompanhar aquela festa. Logo, fui surpreendido pela vontade de seis deles em me acompanhar e registrar o evento com fotografias, desenhos e, quem sabe, produção de um documentário. Como resultado, após três anos de intenso trabalho, realizamos dois curtas, uma exposição de fotografias, ilustrações e instalações,bem como a participação, com algumas premiações, em diversos festivais de cinema pelo Brasil.

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1. A PRIMEIRA NOITE DO ROSÁRIO

NO SERRO

1.1 OS CAMINHOS DE MINAS

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as paisagens estáticas, em quadros emoldurados pelas borrachas de janelas e vidros transparentes. Os próximos duzentos quilômetros serão de odores de estrume, da coloração pálida, de formatos geométricos com intervenções de setas cortantes, dos sons do vento que dará o ritmo da estrada infinda.

Nos contrafortes dos maciços que se formam à distância, pequenas touceiras verdes se misturam a claras faixas, que por vezes se alargam, aumentando seus tentáculos por entre terrenos acidentados. Uma providencial parada faz com que se notem os aclives e declives castigados pelos milhões de anos de ventos escultores. A rudeza e a rusticidade do solo calejado denotam as agruras vivenciadas por seus primeiros exploradores que tentaram vencer os obstáculos naturais. Destes, no topo da imensidão de rochas escuras, no toque dos ventos que aterrorizam os ouvidos, apenas testemunhamos as mesmas paisagens imóveis e perpetuadas. Pedras de variados tamanhos, arredondadas e em cascalho, fazem nossos pés correrem mais rápidos do que o planejado. Neste ponto, cabe um pouco do texto destacado por Aires da Mata Machado Filho, versando a geografia da região diamantinense, citando os relatos de Spix e Martius:

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raios solares, refletem a claridade de seus vértices; recortados em formatos maravilhosos, ameaçam desmoronar, ou como terraços se amontoam uns sobre os outros, no azul etéreo do céu, ou escancaram profundos vales, patenteando abismos, onde alguma cachoeira da montanha abriu caminho com estrondo.(MACHADO FILHO, 1980, p.171).

De fato, passados longos anos deste relato, a experiência deste primeiro contato coincidiu de maneira profunda. Sem conhecimento anterior deste texto, quando de minha primeira viagem à região, pude perceber as sensações experimentadas porSpix e Martius, corroboradas por Aires Machado. A rudeza dos montes que se espraiam em longos vales, contrastantes com as singelas e pequenas vegetações, dão à geografia um pouco das diferenças que seriam, posteriormente, também observados na vida do lugar. As visões da amplitude, do terreno acidentado, das escarpas, das paredes que escondem formações desafiadoras, das noções de espaço que confundem ao mais incauto e dos odores peculiares, informam o grande divisor que ao mesmo tempo segrega e preserva.

Ao final de um platô arborizado do caminho, a localidade de Gouveia se apresenta. Pequena cidade de artesanato de bonecas feitas de cabaças, antecede Juscelino Kubitschek e Datas, duas últimas cidades antes do Serro. Pelo caminho, os isolados andarilhos, agora quase sempre negros, espreitam desconfiados os poucos carros que cruzam as fazendas com pastos de verde intenso pelas chuvas recentes. Nos que se fazem notar pelas fisionomias, olhares perdidos e tristes, olhares brilhantes e sorrisos simples exibem as contradições do povo que lá habita. Na mesma contradição de olhares exibida pelos habitantes da zona rural, Aires Machado destaca a paisagem que enfrenta a rudeza das formações rochosas quando cita que

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Azul, verde e branco serão cores dominantes deste ponto para frente. Coincidentemente ou não, esta prevalência de cores será constante nos ambientes de festa somados ao vermelho que aparecerá com força.

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edifícios se encarregam de dar uma visão desmesurada de seu comprimento pela sequência de portas que se abrem para estreitas calçadas elevadas. As linhas só não se perdem no infinito porque o movimento urbano impede este encontro.

Vale a pena examinar um pouco do texto de Saint-Hilaire sobre o Serro, em meados do século XIX, conforme citação de Aires Machado:

As ruas são pouco numerosas, e, na maioria, calçadas. As principais estendem-se de leste a oeste, paralelamente à base do morro; e cada uma delas acha-se assim traçada, em todo o comprimento, quase no mesmo plano. Só as ruas transversais seguem o declive do morro; tem, porém, pequena extensão. A maioria das casas é caiada, e os portais e caixilhos das janelas são, geralmente, pintados em cinzento imitando mármore. Algumas não tem mais que o rês do chão, outras possuem mais um andar. Na frente essas casas estão no mesmo nível da rua; como, porém, estão construídas em terreno inclinado, foi necessário procurar algum meio de conservar-lhes o nível, e nada se encontrou de mais prático do que apoiá-las pela parte traseira sobre algumas colunas muito elevadas. Do mesmo modo que em todo o resto da província, as telhas são de canal, e os telhados avançam menos sobre a rua que os de Vila Rica. As janelas não são tão aproximadas como no Rio de Janeiro; algumas possuem caixilhos de vidro; outras, em maior número, são simplesmente fechadas por postigos ou gelosias. As casas de sobrado tem pequenos balcões de madeira; em parte alguma, porém, encontrei varandas ou galerias. Cada casa possui um pequeno jardim em que se plantam, sem ordem, bananeiras, mamoeiros, laranjeiras, pés de café, e se cultivam, a mais couves e algumas espécies de cucurbitáceas. Das janelas que se abrem para o campo goza-se de agradável panorama: avistam-se as casas próximas entremeadas de massas espessas de verdura formada pelo arvoredo do jardim; mais além descortina-se o vale estreito que se estende ao pé da cidade e em cujo fundo corre o Quatro Vinténs; do outro lado do vale o olhar repousa em alturas quase que completamente cobertas de mais linda relva; finalmente, nos planos mais distantes algumas moitas de arvoredo se avistam entre os morros.(MACHADO FILHO, 1980, p.272)

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de meia-idade sentados em mesas diminutas de plástico tendo uma garrafa de cerveja como centro. Assuntos variados embalam o tom monocórdico que se altera em algumas inflexões. Poucas são as pessoas que caminham em passos rápidos característicos de centros maiores. A grande maioria experimenta o sabor de um tempo largo em consonância com as melodias explícitas das falas. Neste momento, em um banco sob uma das árvores da estreita Praça João Pinheiro, emoldurada pelos bustos de Teófilo Ottoni e de Floriano Peixoto (segundo alguns moradores, durante o regime militar, a prefeitura foi obrigada a colocar Floriano em maior altura frente à de Ottoni), nosso motorista, mineiro de Santana de Pirapama, munido de sua viola, entoa alguns trechos de modas sertanejas típicas. Quase instantaneamente, dois senhores, em seus largos chapéus de abas enroladas, acompanham as canções ditando ritmo com a ponta de suas botas castigadas pelo barro frequente da região. Embalado pelas canções que emanam em dueto, observamos a igreja de Santa Rita e, à esquerda, a rua principal fazer uma ligeira curva, escondendo seu final pelas dezenas de portas e janelas que diminuem pela distância.

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variados modelos que, quando encomendados, poderão ser solicitados pela loja junto a algum distribuidor regional. Na mesma rua, três únicas agências bancárias, estendem longas filas pelas calçadas. Procuro saber a razão destas e tenho como resposta a dificuldade de utilização, pela grande maioria da clientela, dos serviços dos poucos caixas eletrônicos. Desta maneira, um ou dois funcionários encontram-se constantemente ocupados, tornando assim um tormento para um desavisado, a simples operação de sacar uma quantia de dinheiro nestes estabelecimentos.

Um pouco à frente, na mesma rua, uma bifurcação projeta uma pequena rampa em declive. Nesta rampa, encontramos um pequeno e simples restaurante que serve uma refeição do dia, composta de macarrão, arroz, feijão e um pedaço de frango. O movimento é grande no espaço pequeno, em que mesas e cadeiras de madeira dividem-se entre fregueses sentados e outros que se aglomeram no balcão, tomando alguns goles de cachaça acompanhados pelos torresmos no costumeiro tom de conversa. Em uma mesa de canto, uma família composta por um homem, perto dos trinta anos, sua jovem esposa e uma criança de colo, termina sua refeição. Percebe-se que são pessoas que habitam a área rural, como grande parte das outras que circulam pelo centro. Sentado lateralmente na cadeira, com um par de botas desgastadas, camisa de flanela estampada e calça jeans com bastante tempo de uso, devora as carnes restantes dos ossos de frango que acompanham o prato, segurando-os pelos dedos engordurados. Na outra cadeira, a esposa em um simples vestido lilás, oferece o seio na amamentação do filho que parece adormecido, também termina seu prato de arroz, feijão e uma farofa. Seios, leite, farinha e grãos confundem nosso olhar. Ao lado do pequeno restaurante, compondo o mesmo espaço na descida da rua sem calçada, temos um açougue, do mesmo proprietário onde outros consumidores se abastecem.

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deles se aproximam. Em um alto-falante inaudível, um locutor esforça-se em dar ordem ao movimento pronunciado. No largo propriamente dito, caminhonetes de idade acentuada, caminhões descarregando suas mercadorias, carros diversos e cavaleiros com suas montarias circulam, dando um ar frenético ao ambiente. Neste espaço, a sensação que se tem é de que a velocidade das pessoas se altera frente ao movimento observado na rua principal, logo acima. Pessoas apressam-se em realizar as últimas compras no agitado comércio lateral, antes que se anunciem as partidas dos ônibus com destino a localidades perdidas como Três Barras, Milho Verde, Datas, Sabinópolis e Guanhães, entre outros. De alguma forma, aparentemente, o ônibus que se destina ou retorna a Diamantina, em melhores condições externas, segue mais lentamente seu processo de inchaço conforme as bagagens chegam. Nas plataformas, famílias inteiras formadas pelos que partem e os que se despedem, aglomeram-se, deixando rastro de crianças que correm em meio a sacolas de compras, cadelas curiosas e do cheiro de queijo curado e rapadura que se espalha pelo ambiente.

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1.2 A NOITE ENCANTADA

Lufadas de vento atravessam as ruas escurecidas tornando a espera mais tenebrosa. E que espera é esta?

Em um início da noite de sexta-feira, última de junho, nos posicionamos frente ao prédioda escola que nos foi indicado, aguardando a presença de um grupo. Era uma noite fria e estrelada, no final de uma rua mal iluminada, quando ouvimos batuques ao fundo entrecortados pelo espocar de fogos de artifício. Um alvoroço incontido estampa nos olhares da diminuta multidão que se aglomera junto à porta de entrada da escola que espalha sua luminosidade pela rua desnivelada. Silhuetas indefinidas surgem no horizonte do calçamento de pedras pequenas e arredondadas (conhecida por “cabeça de negro”), que remontam ao século XVIII, e se aproximam no compasso de tambores, caixas, reco-recos e outros instrumentos que possuem sons semelhantes a contas de afoxé. As figuras aproximam-se vagarosamente, confundindo as sombras das casas com os corpos que parecem estáticos. Uma melodia é puxada por um cantador que lidera o grupo e é respondido pelos outros componentes em murmúrios, na repetição das últimas frases. Este elemento responsável pela condução possui uma movimentação acentuada, flutuando entre o restante do grupo, exaltando e incentivando a participação dos demais. Conhecido como

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por couro em ambos os lados(chamada tamborim por alguns deles, mas diferindo do tamborim convencional por apresentar o formato quadricular) ao mesmo tempo em que, com gestos largos, define a temperatura da apresentação, ditando seu ritmo, entoando a melodia de forma pronunciada e alta, melodia esta respondida pelos demais em tom mais baixo, melancolicamente. Era o grupo que abria os festejos, o grupo dos catopês.

Quando falamos em catopês( catopés, segundo alguns autores ou

catupésconforme a região ), devemos nos aprofundar em seu significado para a festa e para a comunidade. Segundo Houaiss (2009, p.), a palavra catopê

remete a catupé, sendo “variedade de congo, antigamente ligado a festejos religiosos e, depois, ao carnaval, participante desta dança; dançante”. Segundo o mesmo autor, carnavalsignifica

período anual de festas profanas, originadas na Antiguidade e recuperadas pelo cristianismo, e que começava no dia de Reis (Epifania) e acabava na Quarta-Feira de Cinzas, às vésperas da Quaresma [Festejos populares provenientes de ritos e costumes pagãos, caracterizavam-se pela liberdade de expressão e movimento.](HOUAISS, 2009, p.)

Se pensarmos no ambiente carnavalesco, veremos a presença do profano dentro do sacro. De fato, todas as manifestações que se seguiram nos levaram a este caminho, do encontro e enfrentamento contínuos, às vezes explícitos, às vezes velados. De qualquer forma, abordarei um pouco mais detidamente este aspecto em capítulos posteriores.

Câmara Cascudo, no verbete catopé, destaca ser

“ modalidade de congo, geralmente sem enredo. É provável que, antigamente, estivesse ligado ao séquito dos festejos religiosos: novenário do orago, comemoração do Divino, de Nossa Senhora do Rosário e outros. Em Minas Gerais, é préstito dançante de negros, com função exibicional no carnaval.(CASCUDO, 2001, p.)

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dia o espaço de felicidade e liberdade, a distante África que, agora, torna-se o inatingível. Talvez seja por isto, que a santa, em sua suspensa e imóvel aparição, embora possua poderes onipresentes, não se desloque por si própria em busca dos desventurados, mas no aguardo de portadores que sejam dignos e merecedores de sua celestial compaixão.

Primeiramente, Nossa Senhora do Rosário foi cortejada pelos marujos, grupo que em alguns festejos é identificado pelos brancos, mas, em outros, pelos mouros que acabaram invadindo a Península Ibérica. Ainda de acordo com Câmara Cascudo, o termo se confunde com fandango, quando, neste verbete, afirma

No Brasil, Fandango é o folguedo dos marujos ou Marujada, e ainda Chegança dos Marujos ou Barca em alguns estados do Norte e Nordeste. É sempre um auto popular, já tradicional na primeira década do século XIX, convergência de cantigas brasileiras e de xácaras portuguesas, distinguindo-se da Nau Catarineta. O Fandango ou Marujada é representado no ciclo do Natal, com personagens vestindo fardas de oficiais da Marinha e marinheiros, cantando e dançando ao som de instrumentos de corda.(CASCUDO, 2001, p.)

Neste particular, possivelmente, a representação mourisca esteja ligada à influência da religião católica da região, uma vez que existe, neste auto, uma devoção fervorosa envolvida (no caso das festas do Serro e da comunidade de Milho Verde, subdistrito desta, a identificação mais usual é a dos brancos, embora algumas falas, em suas celebrações, façam referências aos mouros). Desta forma, apesar do convite para que se deslocasse ao continente em companhia destes, a santa recusa.

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Por fim, os catopês, representando os escravos sofridos, se oferecem para conduzi-la ao continente, no que são prontamente atendidos.

Este mito é conhecido e relatado pela quase totalidade dos membros ativos da festa, principalmente quando questionados sobre o que representa a devoção à santa. Mas no primeiro momento em que nos deparamos com os componentes dos catopês, não tínhamos tido, ainda, a oportunidade de ter acesso aos aspectos mais íntimos desta devoção. Na oportunidade em que observávamos o grupo pela primeira vez, o que chamava a atenção passava pelos aspectos físicos das vestimentas rotas, dos pés ornados por botinas com solados de borracha gasta pelo tempo, pelos dedos rachados e endurecidos denotando o árduo trabalho diurno, pelos chapéus que eram morada daquelas cabeças por anos, pelos olhares concentrados, expondo filetes avermelhados que teciam as córneas. Eram velhos, rapazes e meninos negros, todos negros, chacoalhando instrumentos inusitados, feitos de tampas metálicas de garrafa, reco-recos de madeira e tambores médios. O som permanecia, em batida dolente, acompanhado ao final pelos chocalhos, como seu próprio eco. O

mestre catopê percorria as duas fileiras formadas, pelo seu interior. Em gestos que faziam os braços se soltarem em direção ao céu clareado pelas estrelas, seu canto recheado de vogais era puro sentimento, tendo como resposta, o murmúrio tímido dos outros membros do grupo. Em um dado momento, a um comando do mestre, o grupo interrompe seu cântico. O mestre se aproxima dosaguão de entrada da escola, onde um altar, coberto por toalhas brancas de linho bordadas nas extremidades,é ladeado por dois tocheiros. Dos vasos de prata, flores amarelas se derramam pelo aparador. Atrás deste, uma longa e pesada cruz de prata está apoiada. Ao lado do altar, de forma austera, membros da irmandadedo Rosário se distribuem no espaço que resta.

Célia Maia Borges, em seu trabalho sobre o tema, referindo-se à sua história, destaca

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introjetando nele novos valores e novas representações coletivas.

Eram estes membros atuais que ainda conduziam a celebração. Taciturnos, estes senhores de óculos de metal, bigodes ralos e olhares compenetrados, observam a aproximação do mestre, que se ajoelha em sinal de respeito e subordinação. Ao se levantar, pequenos apertos de mão e sorrisos disfarçados quebram um pouco da magia que envolve o ambiente. Lá fora, após os degraus que separam o altar da calçada estreita, o grupo catopê

ainda continua na formação de duas fileiras. Neste momento, conversas internas entre os mais velhos dos componentes parecem acertar detalhes para que possam tentar adivinhar percursos, ajustar instrumentos ou afinação de cantigas. Os mais jovens esboçam uma tentativa sutil de interação com o grupo de expectadores, curiosos pelo desenrolar. Embora permaneça em conversas reservadas com o restante dos membros da irmandade, o mestre ainda mantém o domínio sobre o grupo que permanece sob o seu comando. Olhares e sinais codificados são entendidos por alguns dos mais velhos, que estabelecem a coesão do grupo de uma maneira delegada pelo mestre

principal. Gestos e alguns comandos são os caminhos de comunicação entre os demais membros. O público externo vive a expectativa do desenrolar dos acontecimentos. De uma maneira, não se identifica um planejamento antecipado dos passos seguintes: pelos retalhos de conversas e manifestações entre os membros ativos, intui-se que estes próximos momentos são definidos, em seus detalhes, ao sabor do ambiente emocional. Mais algumas palavras trocadas entre os partícipes e o mestre se dirige ao seu grupo, dando as últimas instruções de ordem. Os componentes se enfileiram, batidas de tambores sem um compasso certo atestam que o movimento retomará seu espaço. A um comando vocal, o grupo, novamente, inicia em um ritmo mais cadenciado. Com uma linha melódica dolente, quase em súplica, o mestre

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que após um espaço de tempo não muito longo, segue o grupo catopêna cadência estabelecida pela percussão. Neste momento, o ritmo é mais forte, de marcha, de tal sorte que há dificuldade em acompanhar os passos largos e rápidos empreendido pelos participantes. Um pequeno grupo de pessoas e curiosos, principalmente crianças, segue rapidamente o trajeto. Fogos de artifício são novamente lançados, fazendo com que seu estrondo ecoe pelas montanhas e paredes que recobrem as ruas, disputando o alarde com o batuque que acelera.

No trajeto, ladeiras íngremes se apresentam, dificultando ainda mais o caminhar pelo calçamento irregular das minúsculas pedras escuras arredondadas. A iluminação fraca das ruas apertadas torna o cenário mágico e envolvente. De um determinado ângulo de visão do final da torrente humana que se forma, destaca-se a silhueta das pessoas que se misturam com suas próprias sombras, fazendo com que o sentimento seja de uma massa compacta formada por vultos, instrumentos, crianças, passos fortes e cães assustados. Uma manta que serve de leito a uma cruz escura no horizonte, conduzida ao sabor de sons reverberantes. Estes sons estalam nas paredes vizinhas, chamando pessoas que se debruçam nas janelas grossas de madeiras e vidro, fazendo da massa que acompanha um exército que caminha resoluto, com destino e propósito definidos. Nossos pés, embora sintam a dificuldade da topografia, aguentam e seguem o cortejo que vai arregimentando novos adeptos pelo caminho. Ao longe, no final de uma das ladeiras intermináveis, outros sons e batuques começam a despontar conforme vamos avançando. A igreja do Rosário do Serro se aproxima.

Do alto da colina, em vielas que se bifurcam e se se unem posteriormente, ladeadas por paredes de pedras sobrepostas de onde se veem olhares fortuitos que acompanham a subida, surge a imagem de uma igreja em tons claros. Sua aparência não é elaborada, aparentando traços rústicos e sem elementos de arquitetura rebuscada. Pingentes de lâmpadas brancas cruzam o espaço da praça que antecede sua entrada. Nesta praça, aglomeram-se pessoas, enquanto outros grupos de dançantes aguardam nossa chegada, produzindo ritmos e batuques diferenciados, misturados a sons de melodia emanada de sanfonas. Ao adentrar no espaço, catopês confundem-se com

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oportunidade. O vento do inverno das montanhas ao redor, faz com que o som e o bater das caixas reverberem por todo perímetro, unindo a massa humana que acompanha o desenrolar. As duas sacadas diminutas acima do frontão da igreja, carregam mais pessoas em seu lugar privilegiado como ponto de observação. Pernas e braços se confundem com as madeiras que se apoiam, dando ao conjunto um aspecto amorfo. Dentro da igreja, uma multidão se comprime, em braços e pernas de velhos em trajes simples, jovens de jaquetas e calças largas, senhoras penduradas em rosários que brilham ao sabor das luzes internas, formadas por alguns lustres de cristal que refletem em feixes. Crianças menores se misturam a pernas encostadas nos genuflexórios de madeira lisa. Há um movimento de expectativa formado pelo batuque que ecoa nas portas central e lateral. No cortejo externo, a cruz de prata caminha solene sobre a massa formada a seu redor, enquanto novos fogos de artifício anunciam a aproximação. Caminho para a parte interna da igreja, no meio do povo que se aglomera por todas as naves. No altar, membros da irmandade paramentados com suas opas brancas, posicionam-se junto ao pároco e à imagem de Nossa Senhora do Rosário que está assentada sobre um andor. Os olhares se direcionam ao som que penetra de fora, mas que agora caminha em direção à parte interna da igreja. Cabeças balançam buscando um melhor espaço para observar a entrada dos grupos que caminham até o meio da nave principal, entoando seu canto característico por um breve período, e se retiram na confusão das pessoas aglomeradas. O primeiro que executa este ritual é formado pelos marujos que, seguindo seu mestre armado com uma espada de metal reluzente, executa movimentos breves balançando o corpo que lembram o balanço do mar. É de impressionar que, no meio de tal confusão de pessoas, um grupo com um número considerável de componentes consiga adentrar, evoluir e se retirar de um espaço congestionado. Logo após, em um movimento ordenado, uma brecha se abre no meio da aglomeração e temos a entrada dos

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da irmandade e do clero aguardam pacientemente as apresentações dos grupos.

Chega o momento da entrada dos catopês, que dentre todos, possuem a missão de conduzir a cruz ao altar. Os elementos da irmandade que acompanham e carregam a cruz, estão concentrados na empreitada. Olhares centrados e fixos, sobrancelhas cerradas, lábios retos e fechados, acompanhados por movimentos da pele facial esporádicos, conduzem a tarefa determinada. O grupo formado pelos catopês é o que mais avança pela nave central, acompanhando de perto a cruz que é levada. Em seu ritmo mais cadenciado, o mestre se enche de júbilo quando se aproxima da imagem de Nossa Senhora do Rosário. Ao pé do altar, três elementos de chapéu de palha, calças azuis claras e camisas brancas estão perfilados com seus instrumentos formados por dois pífaros de madeira e uma caixa de percussão, aguardando respeitosamente a entrada do grupo dançante. Estes elementos fazem parte da

caixa de assovios, grupo importante na festa do Serro que acompanha, em muitas oportunidades, os catopês. Segundo Daniel Magalhães, em seu artigo sobre o grupo,

A Caixa de Assovios, dentro de suas atribuições, é o único grupo a atuar na manhã do sábado que abre os três dias principais de festividades, no Serro. É responsável pela condução da matina e dos cortejos e café da manhã nas seis casas de festeiros. (MAGALHÃES, 2008, p.)

Repentinamente, encerra-se a apresentação dos catopês, quando, na voz do mestre, ouve-se:“Viva Nossa Senhora do Rosário !”Seguido da resposta de todo grupo e assistentes:“Viva !”

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dentro da celebração da festa, ao menos de uma maneira velada. Neste momento, o grupo catopê perfilado, aceita passivamente a passagem desta condução para a instituição católica. Nesta época, era comentário geral de que haveria a substituição do pároco atual em um próximo ano por outro oriundo de Goa, na Índia. Posteriormente, quando perguntado informalmente como ficaria a relação entre a Igreja e a festa, por conta de um temor generalizado de que o novo pároco pudesse não aceitar esta união estabelecida entre Igreja e os grupos festeiros dentro do ambiente sacro, tivemos como resposta do

mestredos catopês“...nós trocamos o padre mas a festa continua.”

Estava claro, para nós, que o espaço da devoção não dependia de uma mediação humana, representada na figura do padre, entre a crença do povo da comunidade e a expressão do divino. O apego às questões deste zelo religioso penetrava em caminhos tortuosos de exemplos de graças atendidas, de curas milagrosas, de heranças seculares que eram maiores que qualquer alteração das tradições arraigadas, como vemos no estudo de Célia Maia Borges:

Em Minas, como no resto da Colônia, a força do santo na religiosidade dos crentes era abissal. Acreditavam no poder dos santos por eles terem passado pela terra e serem os mediadores entre o profano e o sagrado. À semelhança da Europa, havia uma hierarquia celeste: acima de todos Deus, o criador; abaixo, anjos e santos. Neste modelo, o papel de Nossa Senhora do Rosário para os confrades foi fundamental. Ainda que branca, assumia o papel de mediadora, pois era a protetora deles; por isso, integrava o universo católico dos negros. Em paralelo com os santos negros, ela compunha uma grande família na qual cada um detinha poderes diferenciados, solicitados em ocasiões distintas. (BORGES, 2005, p. 159)

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uma sociedade extremamente heterogênea e com códigos próprios, como veríamos posteriormente.

Em um dos intervalos da missa, ouvem-se batidas cadenciadas de um único tambor. Sons de pífaros melodicamente tristes invadem as paredes da igreja, tornando os olhares baixos, pensativos e compenetrados. A caixa de assovio iniciava sua participação nos festejos. De um mestre condutor do grupo, escondido por um chapéu de palha claro, olhar sisudo e sobrancelhas cerradas, ouvimos como gritos de pássaro em lamento, de um tom que pouco varia. Todos os três membros do grupo aparentam olhares complacentes, como se a melodia fosse algo que devesse fluir naturalmente, com gestos medidos e vagarosos. Do som, uma calma reflexiva invade a alma de todos que pode alcançar. A luz ambiente parece perder força fazendo com que o som agudo dos pífaros acompanhado do ritmar triste do tambor, faça do silêncio sua companhia. Por alguns momentos, os integrantes do grupo caminham em círculos, olhares voltados ao teto de tábuas desgastadas com pinturas descoradas da igreja.

Quando observamos o altar, percebemos que além dos membros da irmandade, outras figuras esguias ali se posicionaram, destaques da própria sociedade como políticos e patronos da festa. No restante da igreja, a grande massa formada pelos habitantes que muito ou pouco caminharam até aquele espaço. Após o andamento das habituais liturgias, os catopês e a caixa de assovios se posicionam para se retirar do interior da igreja, formando filas, tocando suas melodias características, acompanhados pela grande massa, indo de encontro aos marujos e caboclos, na parte externa.

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efervescência. Velas incandescentes iluminam o espaço habitado pelos grupos. Surge um mastro longo, de madeira, carregado nos ombros por boa parte dos presentes. Caminham para a área mais central do grande largo defronte. Uma multidão se forma em volta dos grupos da festa, quase abafando a enorme mescla dos diferentes sons e ritmos de pífaros, caixas, agogôs, acordeões somados a cantos de vozes envelhecidas e joviais. Aos poucos, o grande mastro vai sendo erguido, tendo, na extremidade que alcançará a maior altura, uma caixa triangular, recoberta com a figura de Nossa Senhora do Rosário. Um êxtase penetra na multidão. Percebe-se que, nesta exaltação, como potência de sentimentos, poderíamos ter a celebração do regozijo do devotamento ou da punição condenatória, em valores exatamente iguais.

Aqui, devemos dar espaço a Elias Canetti em suas reflexões sobre as massas:

A massa estanque ainda não está totalmente segura de sua unidade, razão pela qual se mantém quieta o maior tempo possível. Essa paciência, porém, tem seus limites. Uma descarga é, por fim, indispensável: sem ela, não se pode dizer se anteriormente havia ali, de fato, uma massa. O grito que, no passado, costumeiramente se ouvia nas execuções públicas, quando o carrasco erguia a cabeça do malfeitor, ou o grito como o que hoje se conhece das competições esportivas, é a voz da massa. De grande importância é a sua espontaneidade. Gritos ensaiados e repetidos a espaços regulares de tempo não constituem ainda um sinal de que a massa adquiriu vida própria. Eles deverão, por certo, conduzir a isto, mas podem ser exteriores, como os movimentos treinados de um destacamento militar. Já o grito espontâneo, impossível de ser previsto com exatidão pela massa, este é inequívoco, e seu efeito, gigantesco. Um tal grito pode dar expressão a afetos de toda sorte; que afetos são esses é algo que frequentemente importa menos do que sua força, diversidade e a liberdade de sua sucessão. São eles que conferem à massa o seu espaço psíquico.”iProfusão de braços negros, mulatos e uns poucos

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1.3 O COMÉRCIO E O BAILE

As barracas são todas, inevitavelmente amarelas escuras, quase alaranjadas. De seus tetos em formato de tendas, lampiões incandescentes com bujões pequenos quase incendeiam os plásticos impermeáveis de tão próximos que se encontram. Mas isto não espanta fregueses. Profusões de artigos eletrônicos, panelas, descascadores de legumes e abridores de latas se confundem a CD, fitas de vídeo, roupas masculinas e femininas para adultos e crianças, fazendo a alegria de uma população que enxerga nestas novidades algo que só é possível com a chegada da festa. Barracas de tiro ao alvo ofertam caramelos, carteiras de cigarros e pequenos bonecos de pelúcia como prenda aos que demonstram perícia com as armas. Grupos de rapazes disputam entre si os variados tiros que lhes são devidos. Pelas duas ruas paralelas, fechadas ao tráfego de automóveis momentaneamente, duas linhas de barracas se acotovelam oferecendo os produtos que, em muitos casos, irão abastecer famílias pelo próximo ano.

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decantada convivência pacífica entre o sagrado e o profano. Esta convivência é afiançada pela presença de apenas um posto de vigilância da polícia militar do estado, localizado poucos metros acima do conjunto deste comércio transitório, de tal forma que dois policiais ficam soberanos no cruzamento mais movimentado. Caminhamos por estas barracas, experimentando um burburinho que mistura famílias, jovens em alvoroço, solitários alucinados com o teor das novidades apresentadas por cada um dos estabelecimentos. As barracas, na sua grande maioria, encostam suas paredes traseiras nas fachadas de moradias que, com suas janelas escancaradas, exibem olhares curiosos de seus velhos moradores. De suas escadas que ascendem aos pequenos jardins nas entradas, portas das salas abertas são corredores para crianças incontroláveis que entram e saem. O movimento de pessoas e a aglomeração é algo que se torna fato marcante no calendário da cidade, que acaba medindo o sucesso da festa pelo número de pessoas que circula nestes corredores apinhados.

“Este ano a Festa do Rosário está melhor” é frase proferida repetidamente pelos serranos orgulhosos da quantidade de ombros que se chocam nas vielas. Sem dúvida, nesta noite grande parte do pequeno volume da gente urbana está nas ruas acompanhando a grande massa da zona rural.“Você não vai na Festa?”Esta expressão será repetida por todos nas manhãs e tardes deste final de semana. Sem dúvida, a Festa do Rosário do Serro proporciona um espaço de convivência que aglutina tantos contatos comerciais, políticos, sociais, casos amorosos recentes, retomadas de pregressos, que acaba ultrapassando os limites religiosos. Durante este e o próximo ano, a festa atual terá validade em todas as rodas de conversas vindouras, na expectativa da próxima que se aproxima. De fato, pessoas autóctones que habitam outros municípios, por mais distante que sejam, retornam nesta época para exercitar este caldeirão de convivência.

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bairros do Brás e Pari, em São Paulo. Para as que não se sentem seguras da compra, provadores improvisados com cortinas de tecido barato as aguardam no fundo dos estabelecimentos, à direita ou à esquerda. Enquanto acontece este movimento de entra e sai de mães e filhas segurando nos braços profusão de blusas coloridas, calças de algodão em tons escuros e gorros de crochê mesclados, pais e maridos se posicionam na área central do calçamento de pedras, acompanhados de latas de cerveja em uma das mãos em rodas de conversas perdidas no tempo. Vendedores, em sua maioria formada por membros da família proprietária, nascem das montanhas de tecidos e acabamentos em overloque de variados padrões. A satisfação pelo movimento está estampada em seus rostos. Seguindo um pouco além, compreendemos uma das razões da mistura de sons e músicas que preenche toda atmosfera: barracas vizinhas apresentam a toda clientela os mais recentes lançamentos de versões sertanejas que se encontram fora do circuito tradicional, enquanto a concorrência aposta em axés, boleros eletrônicos e demais tendências. Em outras barracas, televisores de 14 polegadas exibem variados filmes e

videogames para deleite de um público específico. Crianças e jovens discutem e manipulam prateleiras formadas de caixas de papelão com envelopes plastificados de produtos pirateados. Meninas adolescentes, de braços dados, em grupos de três ou quatro, com suas pernas fortalecidas pelas ladeiras, desfilam rapidamente sob os olhares interessados de rapazes aglomerados.

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primeiro caminho. Lá dentro, uma atendente às vezes de sorriso estampado troca por dois, cinco ou dez reais, velhos papéis de cartolina desbotados com codificações próprias de cada proprietário. Em alguns, as cores variadas diferenciam os produtos, em outros, uma numeração corresponde às quantias necessárias. De posse destes passaportes, podemos nos acotovelar com adultos de dedos rachados, na espera dos pães encharcados, da lata de cerveja engordurada retirada da caixa de isopor amarela, dos pratinhos de plástico carregados de arroz e farofa escurecida pelo feijão. Come-se em pé, na rua, nas beiradas das calçadas, nos pés das árvores, no gramado inclinado. Quando a fome não é aplacada totalmente, novamente se repete o processo, agora na busca de um salgado frito na hora, de um pastel de carne ou de um cachorro-quente carregado com milho, pimenta caseira, batata palha industrializada e tudo o que couber no exíguo pedaço de pão que brota das embalagens abertas velozmente. Facas, chiados de gordura, fumaça, cheiro da carne de porco servem de cobertor à multidão insaciável. Para outros, a cachaça derramada em copos plásticos é consumida em vertentes. Sem ela, os paladares não são despertados. Com ela, as vozes aumentam de tom, as conversas se animam, as rodas se abrem e os grupos se aconchegam.

Com a fome dominada, voltamos ao cruzamento de maior movimento. Um pouco acima, barulhos de sirenes variadas evocam os carrinhos bate-bate e os brinquedos do parque de diversão itinerante. Caixas de metal de várias cores elevam os jovens habitantes da zona rural para alturas que não alcançariam tão facilmente em seu cotidiano. Embaixo, extasiados pela velocidade e os gritos que ecoam por todo o vale, velhos curiosos abrem suas bocas desdentadas em sorrisos de admiração pela coragem e a tecnologia que se apresenta. Giros estonteantes, subidas em expectativas e descidas alucinadas acompanham o vai e vem das famílias, das mães de longas saias e de suas comadres de rabos de cavalo, dos filhos em colos, dos bebês adormecidos em cobertores rosados, dos pais alterados pelo odor da cachaça, nos zumbidos que se somam, dos brilhos avermelhados das luzes piscantes, das crianças que disparam e dos cães que continuam à caça do descartado. O pequeno osso encontrado é disputado pela matilha moribunda, noite adentro.

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transitória. Fechada por tapumes que servem de parede, exala o som tecnode grandes centros. Silhuetas de palmeiras em negro, sol alaranjado e algumas folhagens verdes adornam a frente da edificação. Luzes de pistas de dança escapam pelas frestas dos tapumes enfileirados. Nestes limites, o som abafado da pista interna encobre o volume dos adjacentes. Uma multidão perfumada e de pele clara saudável disputa a fila de entrada da danceteria. Jeans

customizados, camisetas de estampas diversas, pares de tênis claros e acessórios brilhantes se espremem na diminuta porta de madeira ladeada por dois seguranças em trajes civis. Olhos claros e cabelos lisos se observam. Olhos escuros e cabelos enrolados observam, também, o que se observa a uma distância segura. A rua não possui obstáculos visíveis, mas códigos velados se interpõem ao redor da casa. Lá, a acessibilidade não é feita apenas pelo valor do ingresso, mas também por um conjunto de pressupostos. Nas rodas de conversa que se espalham por todas as direções, jovens das famílias mais abastadas da cidade acompanhados de outros que temporariamente habitam grandes centros em função da continuidade dos estudos, trocam olhares e palavras animadamente regados a latas de cerveja ou copos de bambu com cachaça e água de coco, misturadas. Músculos estampados por camisetas apertadas nos corpos de garotos se antepõem a calças justíssimas e minissaias das meninas, prazerosos por poderem exibir códigos reconhecidos pela juventude que exala. Alijados destes espaços e circulando timidamente, como tivessem adentrado por descuido em área demarcada, outros jovens portando roupas que não ostentam seus dotes físicos caminham apressados ou oferecem olhares curiosos. Nesta relação estabelecida, afastamentos ou aproximações nesta área delimitada impõem o jogo do pertencer ou não a uma esfera que demonstra permitir apenas o olhar de sua moda. Como afirma Lipovetsky,

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Naquele lugar da festa, a estética determinava os limites que iriam, de alguma maneira, balizar o encontro desta massa popular devota e esperançosa frente aos que seriam os futuros patronos da celebração.

Ao redor da danceteria, em uma rua estreita em descida, no escuro da curva que já era visível no platô ocupado pela juventude, uma quantidade grande de homens circula na companhia de um número menor de mulheres. Aos que tivessem certa curiosidade em saber o que representava aquele canto esquecido da grande festa, não poderiam saber o que lhes aguardava: na falta de banheiros disponíveis ou a urgência do uso, o improviso ganha força. Um pouco abaixo, mulheres a espera de seus companheiros aguardam pacientemente, em meio à escuridão, por seus pares que se aliviam por detrás de um tapume localizado nos fundos da danceteria. Um caminho aberto em uma vegetação densa formada por pequenas árvores e arbustos, emoldura a terra clareada pelo luar. Já da rua, o odor exalado indica o que está por vir. Dentro da vegetação, protegidos pelas placas de compensado que servem de muros improvisados, vultos diversos espalham-se por todas as direções, sem indicar qualquer princípio de ordem. O som que emana da construção que abriga a danceteria abafa os sons que poderiam ser percebidos por ouvidos atentos. Estes vultos voltados contra paredes, árvores e arbustos, lembram estátuas negras em um jardim abandonado. O desafio reflexivo que esta situação nos traz depara-se com o fato de parte da camada popular participante da festa protagonizar este momento escatológico na vizinhança mais próxima do templo exibicionista da classe dominante. Uma parede apenas separa estes dois momentos: de um lado, no escuro de luzes em movimento que mal definem corpos que se debatem e se exibem freneticamente ao som de músicas eletrônicas, com trajes de renomadas marcas, brilham por entre contatos carnais; no contíguo, com o escuro de luzes formadas pelo luar e as estrelas, corpos estáticos se isolam do convívio ao odor de cervejas e urinas, no ambiente mais calmo da festa. Nesta reflexão, lembramos Bakhtin ao afirmar que

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trás para a frente: tal é o movimento que marca todas essas formas. Elas se precipitam todas para baixo, viram-se e colocam-se sobre a cabeça, pondo o alto no lugar do baixo, o traseiro no da frente, tanto no plano do espaço real como na metáfora.( BAKHTIN, 1993. P.325)

Neste momento, o alto se revolvia para o baixo conscientemente, uma vez que era de conhecimento de todos que lá fora estivessem, que os de “dentro” se misturavam aos “vizinhos” de paredes, em seus aspectos reais e metafóricos. Pela frente, a predominância do afastamento; nos fundos, a proximidade permitida.

Na outra rua que desce sentido dos baixos da igreja do Rosário, uma multidão se aglomera. Nesta área, barracas de bebidas dominam o comércio. Apenas algumas delas possuem salgados embalados, pois o movimento maior gira em torno da multiplicidade de bebidas alcoólicas oferecidas. Garrafas de cachaça, de vodka, Martini e conhaque barato misturam-se a engradados e caixas de isopor carregadas de gelo e cerveja. Os atendentes não conseguem ser prestativos por toda demanda. Rapazes e moças, homens desdentados e rústicos em seus chapéus de aba larga e botinas empoeiradas acotovelam-se nas madeiras, sem lixamento, que fazem vezes de balcão improvisado. Copos de plástico e latas passam sobre cabeças, pingando água de gelo derretido e respingos do líquido interno.

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se espremem na tentativa de executar alguns ritmos. Olhos fechados, mãos entrecruzadas, pés que se movem lentamente. Neste espaço exíguo, é quase impossível observarmos os movimentos. Mas, com um pouco de esforço, podemos verificar que há uma tentativa de dança, de flerte, de espaço íntimo entre duas pessoas. Uma poeira leve se levanta pelos pés que se agitam. O romance, em sua forma mais pura, exala dos olhares, dos movimentos de mãos, dos braços que se tocam. Lá, namoros começam, casos terminam, famílias são planejadas e olhares se atraem. É o espaço em que o amor mais se pronuncia durante a festa. Há pessoas que aguardam este momento com ansiedade, durante o ano inteiro. A magia, apesar do tempo, insiste em aproximar ou afastar pessoas. Casais, casais e casais.

Afastado, olhar perdido, cabelos longos e lisos, fazem do rapaz um exemplo. Olhar pequeno e perdido, voz pastosa e calma, gestos diminutos, efeitos da bebida. Não me recordo seu nome, mas sei que faz parte daqueles que lá tentam viver. Depende da mãe, absorve amizades transitórias, lembra um hippie perdido no espaço e tempo. Aos goles de cerveja que faço questão de pagar, nos embriagamos em conjunto:

Você tem que entender que as pessoas aqui tem a cabeça muito pequena. Detesto a oligarquia, detesto os filhos deles. Sou um perdido neste universo de nulidades. Eu gosto da festa, mas das pessoas que freqüentam, não. Estes se aproveitam deste espaço para exercer a influência direta de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. Eu estudo aqui. Eu me esforço aqui, mas eles se retiram e tentam trazer de fora aquilo que não faz parte de nosso ambiente. Eu faço Direito aqui na PUC. Ainda serei a mosca na sopa deles.” Em volta, olhares curiosos de adultos e crianças que encontramos em nosso primeiro dia, mostram a importância que nos dão. “Vocês são da televisão, né? São do SBT?

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1.4 NÉLSON CATOPÊ

Nélson, ou simplesmente Nélson Catopê, não é tímido. Apesar da baixa estatura em um corpo extremamente forte, com músculos salientes nos braços, sua presença se faz notar quando assume a posição de grande mestre dos

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alguém, nosso guia assegurou que o dono se encontrava na propriedade, possivelmente escondido na mata que se erguia na parte de trás da pequena casa, assustado com as câmeras e microfones. Simplesmente estava com medo de dar entrevistas. Estávamos tendo nosso primeiro contato com uma população que sabia celebrar sua devoção para um grande público, mas que não permitia exposições perante a lente de um equipamento eletrônico. Este mistério iria nos perseguir por toda empreitada futura e teríamos que superar. Mas agora estávamos na casa de Nélson Catopê. Com o rosto envolvido por um largo sorriso de dentes brancos e olhos cerrados, nos recebe. Uma criança desnuda cintura abaixo é amparada por uma menina de não mais de catorze anos. Na parte de trás da residência, outras meninas e rapazes nos observam timidamente. São olhares de um misto de curiosidade com resignação. A um comando de Nélson, uma cadeira desgastada é fornecida como assento para a longa entrevista. Enquanto ajustamos equipamentos e colocamos o microfone de lapela, um dos rapazes, com boné invertido, casaco encardido de algodão grosso cinza, bermuda e sandália de dedo nos pergunta: “vocês são do SBT ?”

Sério e compenetrado, Nélson inicia seu depoimento com sua trajetória de vida pessoal. Funcionário de uma pousada, onde trabalha de serviços gerais, casou e teve muitos filhos. Em sua fala, sua voz grossa e potente corta o silêncio que se fez ao seu redor quando expõe as dificuldades que já teve na vida, como a do filho que “nasceu cego porque a luz da incubadora cozinhou seus olhos”. Segundo ele, a presença de Nossa Senhora do Rosário e sua manifestação ajudaram na plena recuperação da criança. Quando fala da padroeira, uma entonação diferente move as palavras e a cadência de seu discurso. Percebe-se que a emoção toma conta de seu pensamento. Ao final da entrevista, observada por uma dezena de curiosos posicionados no alto da rua que circunda a casa, fomos convidados a entrar na sala.

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região, localizava-se fora do ambiente da construção principal. Uma pia e um rústico fogão a lenha estavam abrigados por um puxado no telhado da residência. No fogão, panelas enegrecidas pelo tempo de uso e o carvão acumulado, exalavam fumaça do feijão que estava sendo preparado antecipadamente. Uma das filhas adolescentes acompanhava a mãe no comando da operação toda. Galinhas negras e avermelhadas, um galo altivo, pintinhos claros e dois cachorros, com a pelagem em desgaste e preguiçosos pareciam aguardar os acontecimentos. Para eles, tudo aquilo que para nós representa a experiência cotidiana, tornava-se um dos acontecimentos determinantes de seu dia: a senhora negra e sua filha entrando pela porta adentro, trazendo um pacote de feijão, escolhendo, mergulhando em água por um longo tempo, escolhendo o arroz, separando e agregando aquilo que compõem os ingredientes, cortando a cebola, o alho, a pimenta da boa, lavando e salgando os pedaços de frango. Esquentando a panela grande com bastante óleo e derrubando aromas pelo ar. Este é o sinal de que a rotina se alterará. Das árvores que se espalham logo após o galinheiro improvisado, as bananeiras, as laranjeiras e as mandiocas arrancadas do fundo completarão o repasto. A casinha do banheiro, com a privada localizada diretamente sobre a fossa não interfere na estética apresentada. De certa forma, é uma composição usual naquela geografia acidentada. A couve, que se multiplica, espalha seus domínios pela horta pequena. Arrancada e rasgada violentamente, ficará macia pela gordura do toucinho que lhe fará companhia.

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1.5 A MATANÇA DOS BOIS

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faz com que a multidão o persiga. Dominado, aos berros é conduzido à estaca fatídica. Um baque. Não cai. Outro baque e nada. Conferências são realizadas para definir a melhor forma. Boi teimoso. Sem aviso, outro carrasco, o jovem proprietário, desfere novo golpe. Pernas se abrem e derrubam a cabeça ao chão. Gritos, agora de êxtase e congratulações ecoam pela mata que nos rodeia. Era o último, o mais escuro, o que insistia em viver. A benevolência ganhará seu curso contínuo. Como lembrança, a cabeça deste último ficou exposta ao chão, em troféu.

De uma pequena edícula escura, Nélson está armado de um grande facão. O sangue está por todos os lados, pintado nas paredes caiadas, no balcão que empilha carnes, no fio do corte. Seu sorriso demonstra a felicidade pelo amanhã que se avizinha. O sol se foi e uma luz fraca da lâmpada pendurada por um fio escuro clareia preguiçosamente o quarto. Os pequenos olhos de Nélson, escondidos pela sombra do chapéu, faíscam como raios que brotam de uma caverna. Lá fora, as primeiras famílias começam a chegar e erguer tendas na tentativa de garantir todos os presentes. Nossa Senhora do Rosário será benevolente em mais um ano.

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se desgarram da organização formada e são contidas pelos pais compenetrados em não ceder o lugar. Mais próxima da porta a que todos se voltam, uma multidão se comprime, mas sem despertar nenhuma animosidade entre os participantes. Do lado de dentro, os voluntários se esforçam em planejar uma linha de produção para atender toda a demanda que comprime a porta fechada. Nélson parece consciente da responsabilidade que pesa sobre seus ombros. Compenetrado, comanda os jovens perfumados com o mesmo ímpeto do Nélson Catopê. Aquilo tudo é uma continuidade de sua função dentro da festa. Sob sua supervisão e comando, anuncia que a distribuição pode ser executada. Do lado de fora, no alto do grande terraço externo que caminha sobre a fila formada, surge o proprietário com um microfone, acompanhado por outros voluntários. Discurso feito sobre a origem daquele evento, iniciado pelo pai falecido, exalta a participação de todos em uma reza de agradecimento. Vozes de todos os lados, femininas, masculinas, cansadas e ansiosas repetem o Pai Nosso. É chegada a hora da distribuição das dádivas anunciadas.

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1.6 NOS ARREDORES DO SERRO

Saindo pelas estradas que margeiam a região periférica do Serro, temos contato com o modo de vida daqueles que fazem da festa o palco da celebração das coisas em que realmente creem. Caminhos de terra podem desembocar em encruzilhadas que possuem apenas uma choupana velha, sem luz ou água, rodeada por crianças descalças e rotas, mas com um sorriso que traduz a excitação da novidade. Em quase todasáreas externas, cães empoeirados são os únicos que não se agitam de curiosidade pela passagem dos veículos solitários. Vez ou outra, pequenas comunidades se abrem de surpresa no meio de arvoredos que margeiam as estradas cavadas pela erosão das estações chuvosas.

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do balcão, dois senhores de mãos castigadas por anos de enxada, mantém em seus respectivos copos de vidro canelado, o que restou dos goles de cachaça do garrafão escuro ao lado do vidro de doces sortidos embalados. De uma velha caixa de som, com seu único alto-falante pendurado no alto da prateleira, uma canção sertaneja perfuma o ambiente pelas vozes de alguma dupla regional. Pedimos garrafas de água e nos juntamos às crianças na porta de entrada. Somos crivados de perguntas sobre “como é São Paulo, se é maior que Guanhães, entre as várias feitas. Pacientemente, respondemos aos questionamentos enquanto fazemos outros. “Vocês estudam?”. Ao serem perguntadas onde fica a escola, dois deles nos levam ao interior da venda, onde dois pequenos aposentos sem portas, separados por uma parede feita de compensado, contém algumas carteiras e cadeiras consumidas pelo uso e o tempo. Na parede, uma lousa feita de uma prancha pintada de negro permanece com a última aula ainda anotada. Segundo os meninos, quando as aulas acontecem o proprietário abaixa o som da caixa, mas o comércio permanece aberto. Seguimos nossa viagem.

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entidade assistencial, da qual Sandra era acolhida, um terreno acidentado possibilitava pouco espaço para a prática do esporte. Improvisamos o campo de jogo no rústico estacionamento, em frente aos alojamentos. O calçamento era totalmente irregular e formado por pedras pontiagudas jogadas aleatoriamente. Com os times separados, Sandra era a única de todos que jogava descalça, disputando as bolas com dedicação, arrastando a sola de seus pés pelas pedras que se moviam conforme a disputa se acirrava. Fomos surpreendidos pelo fato de todos nós estarmos de tênis acolchoados, de marca, temerosos de expor nossas solas em terreno tão rude. Sandra nos mostrava o quanto de rusticidade e singeleza era a composição das alegrias infantis daquela região que parecia girar sob os pés das crianças impetuosas. Nossa vivência urbana ofuscava qualquer indício de nosso destemor pregresso.

Marquinhos, no entanto, era o mais tímido. Tal como Sandra, parecia adivinhar nossos trajetos e locações. Fosse uma praça afastada, uma rua sem movimento, uma igreja ou casa sem importância, Marquinhos aparecia sem alardes. Quando nos dávamos conta, uma mão pequenina com dedos miúdos segurava sacolas de equipamentos que estavam esperando a vez de serem embarcadas em nosso veículo de transporte. Dono de um sorriso lindo e olhar ingênuo, Marquinhos parecia ter uma família mais estruturada. Frequentemente nos contava que sua mãe se interessava em saber por onde andava, para onde iria na próxima noite. Quando se aproximava um início de noite, se despedia sempre perguntando a que horas começaríamos no dia seguinte. Com um aceno, sua pequena silhueta se perdia em um beco escuro.

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2A MATINA

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2.1 A ADORAÇÃO E A CEGUEIRA

PC é totalmente cego. Confesso que, em um primeiro momento, Paulo César me demonstrou uma arrogância pelo uso indiscriminado dos óculos escuros. Na noite anterior, sua figura altiva e dominante fazia com que sua atitude me parecesse puro exercício de desprezo pelas casas simples em que os festeiros passavam. Não sabia que uma destas era sua própria residência, muito menos que era totalmente cego. Tal situação pude apenas observar no dia seguinte, quando notei os esparadrapos fixando a armação em seu rosto arredondado. Pedi perdões aos céus e me aprumei. No momento em que antecedeu esta revelação, apenas pude ver PC dominando uma multidão que perseguia os catopês e uma enorme cruz de prata, deslizando pela escuridão de becos de pedra e mal iluminados. Casas simples em que a pequena sala se dividia com outros cômodos por cortinas coloridas, em que estranhos transitavam em seu interior como velhos conhecidos, que sofás e camas adornados por mantas de cores fortes, serviam de abrigo a romeiros transitórios em seu descanso compensatório. Lá dentro, imagens do rosário, oratórios iluminados, fotos de patriarcas emolduradas e descoloridas, ganhavam vida, apreciando o movimento repentino, experimentando a sensação perene de um sucesso efêmero, noite adentro. Assim sempre fora e assim era. Tivemos a oportunidade de entrevistar PC. Em um espaço afastado da rua, deu seu depoimento explicando a conjunção da tragédia que o vitimara e a adoração a Nossa Senhora do Rosário. Ex-policial civil, durante uma operação foi recebido por balas que acabaram por lhe cegar completamente. Achou que a vida terminara, mas a esperança na santa o ajudara a continuar a viver. Perguntado sobre o que sentia durante o momento dos festejos, em que seguia como mordomo nesta festa, disse que em todos os momentos, internamente, via a imagem, e que isto lhe confortava. Durante esta resposta, lágrimas e soluços emocionados nos obrigaram a encerrar o depoimento.

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2.2SEU JADIR

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