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ANÁLISE DO ABORTO COMO DIREITO DA MULHER

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Academic year: 2021

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ANÁLISE DO ABORTO COMO DIREITO DA MULHER

Ana Flávia Alves Canuto1 Resumo: O presente trabalho discute a interrupção voluntária da gravidez, considerada como um direito à liberdade e privacidade da mulher, contraposto aos direitos e interesses do nascituro. A análise do tema envolve a discussão sobre o direito que a mulher tem sobre o próprio corpo e os limites do mesmo, questões que já foram discutidas em outros países, e cujas conclusões devem ser consideradas para se construir um entendimento no Brasil, que se mostra bastante conservador sobre o assunto. Apesar do conservadorismo e das proibições legais, o aborto foi recentemente discutido pelo Supremo Tribunal Federal, ao decidir, de maneira ativista, a questão da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, permitindo-a. No entanto, percebe-se que a questão do aborto ainda está pouco amadurecida na sociedade e no Legislativo brasileiros, que são os ambientes onde este debate deve ocorrer inicialmente. A adoção de posturas ativistas por parte do Judiciário, bem como a liberação do aborto imotivado, não parecem apontar o caminho mais razoável. A solução pode estar mais ligada à revisão das políticas públicas voltadas à gravidez e seu acompanhamento, sobretudo no tocante às mulheres de baixa renda, e ao tratamento do problema como tema de saúde pública.

Palavras-chave: aborto, direito da mulher, Brasil

Sumário: Introdução. 1. Linhas preliminares – o direito da mulher sobre seu corpo e a discussão do aborto. 2. O aborto nos EUA. 3. O aborto na França. 4. O aborto na Itália. 5. O aborto na Alemanha. 6. O aborto em Portugal. 7. O aborto na Espanha. 8. O aborto no Brasil. 9. A atuação do STF na análise da ADPF 54 e o ativismo judicial. 10. Ponderações sobre a necessidade de alteração da lei brasileira e a responsabilidade da mulher pela gravidez indesejada. Considerações finais. Referências.

Introdução

O presente trabalho discute a interrupção voluntária da gravidez, considerada como um direito à liberdade e privacidade da mulher, contrapondo o seu exercício aos direitos e interesses do nascituro.

Para isto, faz uma contextualização do exercício do direito da mulher sobre o próprio corpo e as discussões que o assunto envolve. E se utiliza das experiências e orientações de outros ordenamentos, especialmente o estadunidense, o francês, o italiano, o alemão, o português e o espanhol,

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analisando, por fim, o estágio atual da legislação e da discussão do tema no Brasil.

Em virtude do debate recente que ganhou corpo no Judiciário brasileiro, adentra também na questão do aborto de fetos anencéfalos e da postura do STF ao tratar do tema de maneira ativista, para ao final avaliar se realmente existe ou deve existir um direito à interrupção da gravidez ou se a gravidez indesejada deve ser suportada como ônus por seu responsável.

1. Linhas preliminares – o direito da mulher sobre seu corpo e a discussão do aborto

O direito das mulheres sobre seu próprio corpo é tema ainda hoje polêmico e sua discussão veio sendo pautada, historicamente, mais em argumentos religiosos, morais, classistas2, estratégicos3 e até econômicos do que propriamente na análise jurídica dos direitos e interesses das mulheres e dos filhos gerados por elas. E, quase sempre, sem a sua participação.

A necessidade de manter o poder e de preservar as classes dominantes como tais nas sociedades burguesas deu origem à cultura da subordinação feminina que até hoje se perpetua. A auto-afirmação de uma classe dominante e o intuito de manter seus objetivos hegemônicos são apontados como os motivadores do controle da sexualidade das mulheres, utilizado como técnica de dominação a garantir que a reprodução ocorresse dentro das mesmas classes sociais, preservando-se, assim, as características biológicas próprias dos grupos dominantes, que os tornavam superiores, as quais, até então, se acreditava existirem (BARROSO, 2010, p. 107-108).

Mas, como o momento apregoava uma ideologia sócio-política incompatível com a subordinação das mulheres (igualdade, liberdade,

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Na falta de melhor expressão, este termo é utilizado para indicar a discussão do interesse de classes, sobretudo a manutenção do interesse de classes dominantes, como melhor explanado adiante.

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A ideia de dominação de um grupo, em guerras e invasões, por meio do estupro das mulheres do grupo dominado pelos homens do grupo dominante, dentre outras estratégias. Tudo, para dissipar as características originárias do grupo dominado, a começar pela herança

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fraternidade), a maternidade foi posta como um dom natural, resumindo-se o papel social da mulher à de mãe, procriadora (BARROSO, 2010, p. 108).

Certamente, a estabilização desta postura foi auxiliada pela religião, já que praticamente todas as religiões conhecidas no mundo ocidental tratam a sexualidade feminina como algo a ser exercido de forma comedida e classificam a maternidade como divina, milagrosa e dadivosa.

Consolidou-se, assim, a ideia da mulher-mãe, que não dispunha de seu corpo ou não podia dispor dele, pois este era o único local apto a alojar a prole desejada pela sociedade (BARROSO, 2010, p. 108).

Esta ideia passou a integrar a cultura ocidental e, associada ao nobre princípio jurídico de proteção da vida, abriu espaço para a criminalização do aborto em diversos ordenamentos, inclusive o brasileiro. Não se pode olvidar a influência religiosa sobre este posicionamento, haja vista que as religiões ocidentais no geral não aceitam a interrupção voluntária da gravidez. Nas palavras de Marcela Giorgi Barroso (2010, p. 112):

O direito fundamental ao próprio corpo foi suprimido das mulheres quando institucionalizou-se a ideia de que a maternidade por ser um dom natural é obrigatória para as mulheres.

Esse assunto somente passou a ser questionado a partir dos movimentos contracultura que ganharam corpo na década de 1960. Inserido neste contexto, o movimento feminista, difundindo a ideia da liberdade sexual e da igualdade de gêneros, apresentou novas possibilidades de inserção da mulher na sociedade, novos papeis sociais e novos paradigmas para sua sexualidade.

A dignidade da pessoa humana ganhou novos contornos na discussão do direito da mulher sobre seu próprio corpo:

Neste sentido, em 1960 a ideia de que os próprios corpos pertencem a cada ser humano e que, portanto, a mulher tem o direito de decidir sobre maternidade e procriação começa a ser difundida.

É pressuposto da dignidade de todo ser humano o direito de não ser meio, mas fim, ter direito de decidir sobre o próprio

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corpo, e não usado para atingir um fim outro que não si mesmo. É por esta razão que são considerados pessoas, e não coisas, pois sua natureza os distingue como fins em si mesmos. (BARROSO, 2010, p. 112)

Assim, a discussão sobre o direito da mulher sobre seu próprio corpo, a liberdade sexual possibilitada, sobretudo, pela pílula anticoncepcional e o seu direito sobre interromper ou não a gravidez por ela indesejada, considerando-se, pela primeira vez, prioritariamente o seu desejo, passou a ser possível.

E, por consequência, a questão, que era praticamente pacificada na legislação e nos ordenamentos jurídicos ocidentais, definitivamente criminalizando o aborto e abrindo poucas exceções, como as brasileiras, para os casos de perigo de saúde da gestante e de concepção oriunda de relação não consentida (estupro), passou a ser debatida no âmbito legislativo e também no judiciário.

2. O aborto nos EUA

Os EUA foram um dos primeiros países a discutir a interrupção voluntária da gravidez, admitindo-a como um direito fundamental da mulher.

Lá, não houve criação legislativa reconhecendo este direito, mas um avanço jurisdicional neste sentido, caracterizado por um ativismo judicial progressista.

A Suprema Corte, em 1973, julgando o caso Roe vs. Wade, entendeu que a mulher tinha o direito de decidir sobre a continuidade ou não de sua gestação, em virtude do direito à privacidade garantido a todos e reconhecido pelo mesmo Tribunal no julgamento do caso Griswold vs. Connecticut, em 1965 (SARMENTO, 2010, p. 99).

O resultado do julgamento foi de 7 votos a 2 e declarou a inconstitucionalidade de uma lei do estado do Texas, que tipificou toda prática de aborto que não tivesse como objetivo salvar a vida da gestante (SARMENTO, 2010, p. 99). Ou seja, o aborto somente não seria crime, se a gravidez estivesse colocando a vida da grávida em risco.

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Para a Suprema Corte, cuja decisão foi redigida pelo juiz Harry Blackmun, a maternidade indesejada poderia impor à mulher um futuro infeliz, trazendo-lhe angústia e prejudicando sua saúde física e mental. Além disto, haveria que se considerar o problema, para a criança indesejada, de ser trazida a uma família despreparada para recebê-la e criá-la, além do estigma da maternidade fora do casamento (SARMENTO, 2010, p. 99).

De forma notoriamente ativista, a Suprema Corte, além de reconhecer o direito da mulher ao aborto e garantir-lhe com exclusividade o direito de decidir sobre realizá-lo – o mesmo Tribunal declarou inconstitucional lei que exigia o consentimento do pai do nascituro para a decisão e realização do aborto, em 1976, no caso Planned Parenthood of Central Missouri vs. Danforth – ainda estabeleceu parâmetros para o estabelecimento de legislação sobre o aborto. Até o primeiro trimestre de gestação, ele seria livre. No segundo trimestre, continuaria sendo permitido, mas os Estados poderiam regulamentar seu exercício com vistas a proteger a saúde da gestante. E, somente no último trimestre, os Estados poderiam proibir o aborto, objetivando proteger a vida potencial do nascituro, pois aí já existiria viabilidade da vida fetal fora do útero, a menos, é claro, que o aborto fosse necessário para proteger a vida ou a saúde da mãe (SARMENTO, 2010, p. 100-101).

Apesar desta ampla liberdade reconhecida às mulheres e aos Estados para legislarem sobre a interrupção voluntária da gravidez, a qual, logicamente gerou grande polêmica nos EUA, inclusive por conta do questionamento acerca da legitimidade democrática de um tribunal não eleito para definir questão tão controversa, o direito à realização do aborto não foi reconhecido como um direito positivo. Ou seja, as mulheres podiam realizá-lo, tendo, com isso, uma proteção contra a atuação, sobretudo proibitiva, do Estado, mas isto não lhes garantia o direito de exigir qualquer prestação estatal no sentido de viabilizar a concretização deste direito. Na se impôs, portanto, o ônus ao Estado e à rede pública de saúde de realizar os procedimentos médicos necessários para as mulheres que não tinham condição de custeá-los (SARMENTO, 2010, p. 101).

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Na França, assim como nos demais países europeus a serem aqui analisados, a discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez, sua criminalização e as exceções possíveis não seguiu o modelo estadunidense. Ao contrário, se deu, inicialmente, no âmbito legislativo, aprovando-se uma lei sobre o assunto, a qual, na maior parte das vezes, posteriormente se tornou objeto de análise e discussão nos órgãos de jurisdição constitucional.

Em 1975, o Legislativo francês aprovou a Lei nº 75-17, de 17 de janeiro de 1975, que garantia, inicialmente, o respeito a todo ser humano desde o começo da vida, não sendo permitido qualquer atentado a este princípio, senão em caso de necessidade e atendendo as condições nela definidas (MIRANDA, s/d, p. 172-173).

De forma cautelosa e antenada às reações e aos anseios populares, o artigo 2º da mesma lei suspendeu por um período de 5 anos a criminalização do aborto, prevista nas quatro primeiras alíneas do artigo 317º do Código Penal, quando o mesmo fosse praticado antes da 10ª semana de gestação por um médico num estabelecimento hospitalar público ou outro que satisfizesse as previsões do art. 176º do Código da Saúde Pública. Desta forma, fixou-se, ainda que temporariamente e a título de um teste ou uma tentativa, as condições em que se podia praticar licitamente a interrupção voluntária da gravidez (MIRANDA, s/d, p. 173).

Além desta previsão genérica, que autorizava a mulher a realizar o aborto quando a gravidez estivesse lhe trazendo angústia (détresse), a lei também possuía dispositivo específico, que permitia o aborto por motivos terapêuticos, durante todo o tempo da gestação, se dois médicos atestassem que a continuidade da mesma colocava em perigo grave a saúde da mulher ou havia grande probabilidade de a criança nascer com doença grave e reconhecida como incurável no momento do diagnóstico (MIRANDA, s/d, p. 173).

Como protegia, primeiramente, o respeito a todo ser humano desde o início da vida, a lei francesa tipificava a prática do aborto fora das condições nela impostas e determinava que a interrupção voluntária da gravidez não

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seria, em nenhum caso, utilizada como meio de regulação de nascimentos (MIRANDA, s/d, p. 174). Além disto, previa também que a gestante, antes do aborto, deveria submeter-se a consultas em estabelecimentos específicos que lhe dessem a assistência e o aconselhamento necessários para resolver eventuais problemas sociais que a estivessem induzindo a interromper a gravidez (SARMENTO, 2010, p. 101-102).

Chamado a se manifestar preventivamente sobre a constitucionalidade desta norma, isto é, antes de ela iniciar sua vigência, o Conselho Constitucional francês (Conseil Constitutionnel), ele a considerou constitucional, o que permitiu a sua promulgação e entrada em vigor (MIRANDA, s/d, p. 178).

O Conselho de Estado, que é a última instância da jurisdição administrativa da França, também analisou a norma, mas confrontando-a com a Convenção Europeia de Direitos Humanos, e reconheceu a sua conformidade ao direito à vida, proclamado no art. 2º da Convenção, vez que o direito à vida não pode ser considerado absoluto (SARMENTO, 2010, p. 102).

Posteriormente, em 1979, transcorrido o prazo imposto pelo art. 2º, a norma tornou-se definitiva. Em 1982, foi editada outra lei a respeito do assunto, mas que não modificou a questão da tipicidade da conduta. Cuidou apenas de impor à Seguridade Social francesa a obrigação de arcar com 70% dos gastos médicos e hospitalares com a realização do aborto, feito nas condições impostas pela lei (SARMENTO, 2010, p. 102).

Finalmente, em 2001, foi promulgada a Lei 2001-588, que ampliou o prazo de possibilidade de interrupção da gravidez, de 10 para 12 semanas, e tornou facultativa a antes obrigatória consulta de mulheres adultas a instituições de aconselhamento e assistência social. Instado a se pronunciar novamente, o Conselho Constitucional francês também reconheceu a constitucionalidade desta norma, sob o argumento de que a lei acompanhou o avanço dos conhecimentos e técnicas e não rompeu o equilíbrio imposto pela Constituição, entre a salvaguarda da pessoa humana contra a degradação e a liberdade da mulher, derivada da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (SARMENTO, 2010, p. 102-103).

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4. O aborto na Itália

Em 18 de fevereiro de 1975, a Corte Constitucional italiana (Corte Costituzionale) declarou o art. 546 do Código Penal de 1930 parcialmente inconstitucional, pois punia o aborto sem excetuar a hipótese em que a gravidez gerasse dano ou risco à saúde da gestante, o qual só se podia evitar pelo aborto. Esta hipótese deveria ser descriminalizada, pois a salvaguarda da saúde e da vida da mãe era mais relevante do que a preservação do embrião (SARMENTO, 2010, p. 103 e MIRANDA, s/d, p. 178).

Em decorrência disto, promulgou-se a lei nº 194 em 22 de maio de 1978, regulamentando o aborto e suas possibilidades. Inicialmente, a lei declara que o Estado garante o direito à procriação consciente e responsável e tutela a vida humana desde seu início, observando que a interrupção da gravidez, a exemplo da França, não é meio para regulação dos nascimentos. Garante também a manutenção de serviços sócio-sanitários e consultórios familiares para assistência às mulheres grávidas (MIRANDA, s/d, p. 174).

O art. 4º da lei permite a interrupção voluntária da gravidez nos seus primeiros 90 dias, para a mulher cuja gravidez, parto ou maternidade tragam sério perigo a sua saúde física ou psíquica, motivadas pelo seu estado de saúde, suas condições econômicas, sociais ou familiares, pelas circunstâncias em que surgiu à concepção, ou pela previsão de anomalias ou más-formações no nascituro (MIRANDA, s/d, p. 174-175).

Nestas hipóteses, antes da efetivação do aborto, as autoridades sociais e de saúde devem discutir com a gestante e, se ela permitir, também com o pai do nascituro, sobre possíveis soluções para o problema que torna a gravidez indesejada, com vistas a evitar sua interrupção. Além disto, afora os casos urgentes, foi estabelecido um prazo mínimo de sete dias entre a solicitação do aborto e sua realização, para que a gestante possa refletir a respeito (SARMENTO, 2010, p. 103-104).

Após os primeiros 90 dias de gestação, também é possível realizar o aborto, em qualquer tempo, mas aí, apenas com fins terapêuticos. O art. 6º prevê apenas duas hipóteses em que o mesmo será permitido: quando a

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gravidez ou o parto trouxerem grave risco para a vida da mulher ou se o nascituro tiver graves anomalias ou más-formações confirmadas, que representem grave perigo para a saúde física ou psíquica da mulher (MIRANDA, s/d, p. 175).

Convocada para pronunciar-se acerca da constitucionalidade desta lei, a Corte Constitucional italiana, segundo Daniel Sarmento (2010, p. 104), afirmou que a competência para descriminalizar certas condutas é do legislador, pelo que não lhe cabia conhecer das questões de constitucionalidade levantadas. Assim, até hoje, a jurisdição constitucional italiana não se posicionou a respeito da lei do aborto de 1978 (MIRANDA, s/d, p. 178).

5. O aborto na Alemanha

Em 18 de junho de 1974, editou-se a 5ª Lei de Reforma do Direito Penal alemão. Até então, o aborto era tipificado em termos genéricos, admitindo-se exceções como causas excludentes de ilicitude, somente quando pautadas nos princípios do estado de necessidade. Esta lei deu nova redação aos dispositivos § 218 a 220, descriminalizando o aborto praticado por quem quer que seja até o 13º dia após a concepção, já que somente após este prazo é que o ovo fecundado realizaria a nidificação no útero (SCHAWABE, s/d, p. 266 e MIRANDA, s/d, p. 176).

Além disto, a lei também inovava ao despenalizar o aborto praticado por médico e com a anuência da grávida, até 12 semanas de gestação. Ainda, a interrupção da gravidez praticada após este prazo, mas feita por médico e com a concordância da gestante, também não seria punida quando fosse indicada para evitar perigo para sua vida ou saúde e desde que não houvesse outro meio para afastar o risco, e quando houvesse sérias razões para crer que o filho nasceria com deficiência insanável e tão grave, que não permitisse exigir da mulher o prosseguimento da gravidez, tudo isto, desde que o aborto fosse praticado até 22 semanas após a concepção (SCHAWABE, s/d, p. 267).

Aquele que praticasse o aborto sem que a grávida tivesse se consultado em uma instituição pública de aconselhamento social e junto a um médico,

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seria punido. Da mesma forma, aquele que interrompesse uma gravidez depois da 12ª semana de gestação, sem que o órgão administrativo competente tivesse confirmado a existência dos pressupostos de indicação médica ou eugênica. Mas, em ambos os casos, a mulher não seria punida (SCHAWABE, s/d, p. 267).

Instado a controlar abstrativamente a constitucionalidade da norma, o Tribunal Constitucional Federal a declarou nula, reconhecendo que a proteção à vida do nascituro tem prevalência sobre o direito de autodeterminação da grávida durante toda a gestação, sendo inadmissível sua relativização por um período ou um prazo, como se houvesse “carência” para o início da proteção de sua vida. A lei foi considerada inapta para proteger a vida em desenvolvimento (SCHAWABE, s/d, p. 267-268).

Afirmou, também, que o legislador podia expressar de outras formas, diversas da tipificação penal, a desaprovação do aborto. E que o prosseguimento da gravidez somente era inexigível da mulher, quando esta estivesse colocando em risco sua saúde e sua vida e quando houvesse outros ônus extraordinários para a mulher, que seriam avaliados pelo legislador e isentariam o aborto de pena (SCHAWABE, s/d, p. 268). Como exemplo, estão as más-formações do feto e a gravidez resultante de violência sexual.

Em virtude desta decisão, a legislação foi alterada em 18 de maio de 1976 (15ª Lei de Mudança do Direito Penal), criminalizando o aborto como regra e contemplando algumas exceções, como o procedimento realizado dentro do prazo de doze semanas contados a partir da concepção no caso de um estado geral de necessidade da mulher (SCHAWABE, s/d, p. 273).

Mais tarde, por conta da unificação da Alemanha e da Alemanha Oriental possuir legislação que liberava o aborto no primeiro trimestre de gestação, foi promulgada nova lei a respeito, a Lei de Ajuda Familiar e à Gestante, de 27 de julho de 1992 (SARMENTO, 2010, p. 105 e SCHAWABE, s/d, p. 274).

Seguindo a orientação dada pelo Tribunal Constitucional Federal no julgamento da constitucionalidade da lei de 1974, de que a proteção do nascituro e a reprovação do aborto não precisavam ocorrer apenas por meio do

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Direito Penal, que é extremo, mas podiam se dar também por meio de outras formas ordenadas juridicamente, a nova legislação previu outros instrumentos para evitar o aborto, além da criminalização, “criando medidas de caráter educativo, de planejamento familiar, benefícios assistenciais, dentre outros, no afã de eliminar causas materiais que levam as mulheres a procurarem a interrupção da gravidez” (SARMENTO, 2010, p. 105).

Desta forma, a lei instituiu que o aborto realizado dentro das primeiras doze semanas de gestação não seria ilícito, nem punível, se a grávida provasse que tinha se aconselhado em órgão especializado e que a intervenção tinha sido feita por um médico (SCHAWABE, s/d, p. 275).

A nova lei também foi contestada junto ao Tribunal Constitucional Federal, que, em 1993, declarou nulo o dispositivo que abolia a antijuridicidade do aborto não indicado por estado de necessidade depois do aconselhamento. O Tribunal também declarou nula a parte referente ao aconselhamento, por considerar que ele, da forma como prevista, não perseguia suficientemente o objetivo de encorajar a mulher a dar continuidade à gravidez (SCHAWABE, s/d, p. 275).

Em virtude disto, em 1995, foi editada nova lei, que estabeleceu as hipóteses do aborto legal e descriminalizou as interrupções da gravidez realizadas nas primeiras 12 semanas, estabelecendo que a mulher que queira praticar o aborto, deverá se consultar em um serviço de aconselhamento, que tentará convencê-la a dar prosseguimento à gravidez. Depois disto, ela deve esperar três dias após o requerimento, para só então, submeter-se à intervenção médica (SARMENTO, 2010. p. 106-107).

6. O aborto em Portugal

No início do ano de 1984, o Tribunal Constitucional português foi chamado a manifestar-se, preventivamente, acerca da constitucionalidade do artigo 1º do Decreto nº 41/III da Assembleia da República, que visava alterar a legislação para permitir o aborto em circunstâncias excepcionais (MIRANDA,

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s/d, p. 163, 185-186). A norma a ser alterada seria o art. 140º do Código Penal vigente, que passaria a ter a seguinte redação:

1. Não é punível o aborto efectuado por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:

a) Constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher grávida;

b) Se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher grávida e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez;

c) Haja seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação e seja realizado nas primeiras 16 semanas da gravidez;

d) Haja sérios indícios de que a gravidez resultou da violação da mulher e seja realizado nas primeiras 12 semanas da gravidez.

2. A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto deve ser certificada em atestado médico escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.

3. A verificação da circunstância referida na alínea d) do nº 1 depende ainda da existência de participação criminal da violação. (MIRANDA, s/d, p. 186-187)

A nova legislação portuguesa admitia como lícitos, portanto, apenas os abortos terapêutico (nº 1, alíneas a e b), eugênico (nº 1, alínea c) e criminológico (nº 1, alínea d), sendo duas as possibilidades para o primeiro, uma podendo ser realizada a qualquer tempo e a outra apenas nas primeiras 12 semanas de gestação. Não se regulamentou o aborto por causas sociais e econômicas, o qual, de acordo com Jorge Miranda (s/d, p. 187), é o mais frequente e praticado em grande escala.

Analisando a norma, o Tribunal Constitucional português entendeu por sua constitucionalidade, afirmando que a Constituição portuguesa tutela o direito à vida do feto, mas não com a mesma intensidade com que protege a vida de pessoas já nascidas. Por isso, entendeu que o sopesamento de

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interesses constitucionais feito pelo legislador, entre os direitos do nascituro e os da mãe, não deveria ser censurado (SARMENTO, 2010, p. 107).

O debate sobre o aborto e o direito do nascituro voltou à Corte Constitucional portuguesa por ocasião da prolação do Acórdão nº 85, de 1985, em que ela se manifestou no sentido de que, seja qual for o momento em que se inicia a vida, o feto ainda não é uma pessoa, não podendo, portanto, ser titular de direitos fundamentais (SARMENTO, 2010, p. 108).

Posteriormente, em 1998, a problemática foi reavivada na prolação do Acórdão nº 288, em que se pediu o controle preventivo de constitucionalidade de uma proposta de referendo popular, versando sobre a despenalização geral da interrupção voluntária da gravidez, realizada nas 10 primeiras semanas de gestação e em estabelecimento oficial de saúde. O Tribunal, mais uma vez, reiterou seu posicionamento sobre a proteção da vida do nascituro e a ponderação dos direitos das mulheres e declarou a proposta constitucional (SARMENTO, 2010, p. 108-109).

Porém, a proposta foi derrotada no referendo, que contou com o comparecimento de apenas 31,9% dos eleitores inscritos. E, embora a consulta popular não tivesse caráter vinculativo, o legislador português seguiu a orientação popular e rejeitou a proposta de alteração legislativa, mantendo a legalidade, apenas, dos abortos realizados nos casos específicos e excepcionais já previstos em lei (SARMENTO, 2010, p. 109).

7. O aborto na Espanha

Na Espanha, foi editada a Lei Orgânica 9, de 5 de julho de 1985, para reformar o artigo 417 do Código Penal e descriminalizar o aborto feito por médico e mediante o consentimento da mulher, em casos de risco grave para sua vida ou saúde física ou psíquica, a qualquer tempo, em caso de concepção decorrente de violência sexual, nas primeiras 12 semanas de gestação, e em hipótese de má-formação fetal, até a 22ª semana de gravidez, inclusive (MORI, s/d).4

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O projeto foi questionado junto à Corte Constitucional, a qual, exercendo controle preventivo de constitucionalidade, decidiu, no Acórdão 53, de 16 de abril de 1985, que o projeto era desconforme à Constituição, não por conta da legalização do aborto nas hipóteses previstas, as quais foram consideradas constitucionais, nem porque os pais dos nascituros não eram questionados sobre a decisão de interromper a gravidez, mas em função do descumprimento das exigências derivadas do art. 15 da Constituição. Isto é, o projeto falhara ao não exigir prévio diagnóstico, feito por médico diverso do responsável pelo abortamento, nos casos de aborto eugênico e por motivos terapêuticos (MORI, s/d).

A exemplo da motivação utilizada pelo Tribunal português, a Corte espanhola também reconheceu a vida do nascituro como bem constitucionalmente protegido, mas sem a mesma intensidade da tutela concedida à vida de pessoas já nascidas (SARMENTO, 2010, p. 109-110). Como não há um direito fundamental à vida do embrião nem do feto, é admissível a ponderação entre a vida deste e os direitos da mulher, como a sua privacidade e autodeterminação.

Após o julgamento, foi elaborada nova legislação, contemplando a correção indicada pela jurisdição constitucional e reiterando as mesmas hipóteses de aborto lícito. No entanto, Daniel Sarmento (2010, p. 110) afirma que, como na Espanha prevalece um conceito muito amplo de risco à saúde psíquica da mulher, as possibilidades de aborto legal são bastante amplas.

8. O aborto no Brasil

Diferentemente dos países europeus, cujo ordenamento foi estudado, no Brasil não houve nenhuma lei específica regulamentando a interrupção voluntária da gravidez, nem mesmo para alterar os dispositivos penais gerais. Também não há menção sobre o tema na Constituição da República de 1988, nem no sentido de autorizar, nem no sentido de proibir o aborto voluntário. O dispositivo normativo que regula a questão é o Código Penal, em sua parte

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especial (Título I – DOS CRIMES CONTRA A PESSOA, Capítulo I – DOS CRIMES CONTRA A VIDA), o qual prevê o seguinte:

Aborto provocado pela gestante ou com seu

consentimento

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de um a três anos. Aborto provocado por terceiro

Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos.

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência

Forma qualificada

Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Como se nota, o aborto é criminalizado, abrindo-se apenas duas exceções como excludentes de ilicitude, que são o risco de vida da gestante, conjugado com a inexistência de outro meio para salvar-lhe além do aborto, e a concepção oriunda de relação não consentida, ou seja, do crime de estupro, sendo necessário, para a intervenção médica neste último caso, que a gestante ou seu representante legal consinta com a mesma.

Além de não permitir a realização do aborto imotivado em nenhuma fase da gestação, no Brasil também não se considera lícita a interrupção voluntária da gravidez motivada pela existência comprovada de más-formações do nascituro, capazes de inviabilizar sua vida extra-uterina, e nem por razões econômicas e sociais, que inviabilizem o cuidado e o sustento da criança pela

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família, após o nascimento, apesar de estas previsões serem bastante comuns em outros ordenamentos.

9. A atuação do STF na análise da ADPF 54 e o ativismo judicial

O rol de exceções à antijuridicidade do aborto na legislação brasileira é muito limitado e não engloba, nem mesmo, as situações em que o feto possui ínfima ou nenhuma chance de sobreviver após o nascimento, com é o caso da anencefalia. De acordo com Francisco Davi Fernandes Peixoto (2010), esta patologia fetal consiste no seguinte:

Entende-se por anencefalia uma malformação fetal congênita caracterizada pela ausência de grande parte de ambos os hemisférios cerebrais, do córtex, dos ossos que compõem a calota craniana (frontal, occipital e parietal) e da pele que a reveste, com a conseqüente exposição do tecido nervoso e fibrótico.

Em virtude disto, uma vida extra-uterina prolongada de fetos anencéfalos se mostra impossível, de acordo com a ciência médica, vez que, após o nascimento, eles não vivem senão por poucos minutos. Em mais de 50% dos casos, a morte ocorre ainda durante a gestação, dentro do útero materno.

Como a viabilidade do feto anencéfalo é mínima, as mães, as famílias e os próprios profissionais de saúde que as acompanham, entendem que obrigar a mãe a dar continuidade a uma gravidez, cujo filho não sobreviverá, é um sofrimento muito grande e injustificado para todos, impondo um ônus desarrazoado e capaz de gerar danos desmedidos à integridade moral e psicológica da mãe, e devendo, por isso, ser possível o aborto do mesmo, sem que a esta conduta seja cominada uma sanção penal.

Mas, como esta situação não é contemplada como caso de aborto lícito, as gestantes de fetos anencéfalos e os profissionais da saúde envolvidos, passaram a buscar no Judiciário a autorização para realizarem esta intervenção médica, em busca da tutela para o que entendem ser um direito da mulher.

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De acordo com Marcela Giorgi Barroso (2010, p. 36), baseada em dados da antropóloga Débora Diniz, 95% dos pedidos de autorização judicial para a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos eram concedidos na época da pesquisa (publicação em 2004) e apenas 5% eram negados, na maior parte por conta de razões éticas pessoais do julgador. Assim, ainda que majoritariamente reconhecido pelo Judiciário como um direito da mulher, o aborto de feto anencéfalo não era autorizado homogeneamente a todas as mulheres que requeriam a sua realização, causando desconforto e desigualdade.

Some-se a isto, o fato de que não havia, e não há até hoje, qualquer sinalização legislativa no sentido de alterar o Código Penal para incorporar esta possibilidade como uma das exceções à criminalização do aborto.

Diante disto, em junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), propôs, sob o patrocínio do jurista e advogado Luís Roberto Barroso, uma arguição de descumprimento de preceito fundamental, junto ao Supremo Tribunal Federal, requerendo o reconhecimento do direito da gestante de feto anencéfalo de submeter-se à interrupção voluntária da gravidez, a partir da apresentação de laudo médico atestando a anomalia que atingiu o feto, pugnando também pela suspensão dos processos e decisões não transitadas em julgado em que se processavam mulheres e profissionais de saúde por terem realizado o procedimento abortivo nos mesmos termos.

Formalmente, o pedido foi feito para que se declarasse a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticado por médico habilitado, ou se buscasse a interpretação conforme a Constituição dos dispositivos penais, sem redução de texto.

A ADPF, registrada com o nº 54, foi distribuída ao relator Ministro Marco Aurélio de Melo, que, analisando as razões da petição inicial, restou convencido dos argumentos de que, como o feto anencéfalo não possui potencialidade de vida extra-uterina, não se está diante da violação de uma vida viável, razão pela qual não se pode, nem mesmo tratar a questão como

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realização de aborto. Isto o motivou a conceder a liminar, a qual foi cassada posteriormente, ao ser analisada pelo Pleno, mas mais com base em motivações técnicas e de cautela, vez que não havia certeza sobre a manutenção da decisão no julgamento definitivo, do que em convencimentos contrários sobre o tema.

Tanto a concessão, quanto a cassação da liminar, geraram bastante polêmica, dentro e fora do Tribunal. E, dentre os juristas contrários à liberação do aborto, inclusive no caso de anencéfalos, esteve o Ministro e professor Eros Roberto Grau, hoje aposentado. Em sua opinião, lançada em artigo recentemente publicado, o qual repete os argumentos expostos no voto apresentado durante o julgamento, o aborto de anencéfalos é inadmissível e sua defesa provavelmente tem justificativas mais relacionadas a interesses econômicos do que à real defesa dos direitos das mulheres:

Queiram ou não os que fazem praça do aborto de anencéfalos, o fato é que a frustração da sua existência fora do útero materno, por ato do homem, é inadmissível [mais do que inadmissível, criminosa] no quadro do direito positivo brasileiro. É certo que, salvo os casos em que há, comprovadamente, morte intrauterina, o feto é um ser vivo.

Tanto é assim que nenhum, entre a hierarquia dos juízes de nossa terra, nenhum deles em tese negaria aplicação do disposto no artigo 123 do Código Penal, que tipifica o crime de infanticídio, à mulher que matasse, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho anencéfalo, durante o parto ou logo após, sujeitando-a a pena de detenção, de dois a seis anos. Note-se bem que ao texto do tipo penal acrescentei unicamente o vocábulo anencéfalo!

Ora, se o filho anencéfalo morto pela mãe sob a influência do estado puerperal é ser vivo, por que não o seria o feto anencéfalo que – repito – pode receber doações, figurar em disposições testamentárias e mesmo ser adotado?

[...]

De mais a mais, a certeza do diagnóstico médico da anencefalia não é absoluta, de modo que a prevenção do erro, mesmo culposo, não será sempre possível. O que dizer, então, do erro doloso?

[...]

A mim causa espanto a ideia de que se esteja a postular abortos, e com tanto de ênfase, sem interesse econômico determinado. [...] (GRAU, 2011)

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A par da discussão sobre a existência ou não de direito da mulher de interromper sua gravidez em sendo o seu nascituro anencéfalo, está a questão de como tal discussão ganhou corpo no cenário jurídico brasileiro.

Isto é, será o âmbito judicial – já que no Brasil não há uma Corte Constitucional diferenciada do Judiciário – o ambiente mais adequado a uma discussão de tamanha importância e repercussão na sociedade e na saúde pública? Será o Judiciário legítimo para decidir esta questão, sendo ele um órgão aristocrático e não democrático?5

A postura ativista do Judiciário neste caso, assim como em vários outros, é merecedora de análise e críticas. Isto, porque se nota que, à exceção dos EUA, onde prevalece um ordenamento baseado nos precedentes judiciais, com o qual o brasileiro não se assemelha, todos os outros ordenamentos aqui analisados debateram a questão do aborto antes no âmbito legislativo e, depois, no judiciário.

O que motivou a criminalização ou não do aborto e a abertura ou não de exceções para a sua prática foi sempre uma norma legítima, produzida por processo democrático de discussão do assunto entre os representantes eleitos do povo. A sua repercussão política e social e a aceitação popular é que motivaram a inauguração da discussão na jurisdição constitucional.

No Brasil, nota-se que a possibilidade de alteração da penalização do aborto, admitindo nova hipótese de aborto legal, não foi sinalizada pelo Legislativo, mas sim pelo Judiciário, por meio do julgamento – ainda inacabado – da ADPF nº 54 e as questões incidentes.

Está-se diante de um ativismo judicial progressista, pois cria situações novas, sob a justificativa de se interpretar e aplicar os preceitos constitucionais. Mas, embora não se discuta a dignidade dos argumentos tecidos a favor da

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Opinião do professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho no dia 16 de março de 2011, na aula da Disciplina “A Democracia”, do curso de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – Largo de São Francisco. A aristocracia do Judiciário, segundo ele, se deve ao fato de que os membros deste Poder são os técnicos mais aptos, não eleitos, em contraposição ao que ocorre com o Legislativo e o Executivo, para cujos cargos são eleitos os escolhidos pelo povo, independentemente da competência e capacidade. Neste sentido, Legislativo e Executivo são mais democráticos do que o Judiciário, pois sua composição representa quem a escolheu, tendo, portanto, a legitimidade necessária para estabelecer

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descriminalização do aborto de fetos anencéfalos, este ativismo não pode ser aplaudido.

Isto, porque a questão é muito controversa e exige maturidade social e ampla discussão legislativa para ser decidida. Além disto, não se nota, neste caso, omissão legislativa que justifique a atuação progressista do Judiciário. O Legislativo não foi instado a se manifestar por ordem judicial, nem por mandamento constitucional pendente de regulamentação, permanecendo inerte. Ele, notoriamente, optou por não descriminalizar o aborto além das hipóteses de aborto lícito já previstas em lei.

A inexistência de proposta legislativa no sentido de ampliar as hipóteses de aborto lícito, incluindo o de feto anencéfalo, reflete a opinião, ou pelo menos a maioria da opinião social, a qual deve ser respeitada.

Ao ser instata a se manifestar sobre a constitucionalidade da norma relativa ao aborto, a Corte Constitucional italiana, como descrito no tópico nº 4 deste trabalho, reconheceu a impossibilidade da jurisdição constitucional se manifestar acerca do tema, atribuindo esta competência exclusivamente ao Legislativo.

Esta parece ser a posição mais coerente, não se julgando aqui a correção da proibição ou da liberação do aborto, sobretudo o eugênico, mas sim a forma pela qual esta discussão e suas definições adentram o ordenamento jurídico.

10. Ponderações sobre a necessidade de alteração da lei brasileira e a responsabilidade da mulher pela gravidez indesejada

Nota-se que, nos ordenamentos estrangeiros analisados, o aborto continua sendo crime, mas não quando praticado até certa fase da gravidez e por certos motivos. O aborto eugênico, motivado pela existência de patologias graves e incuráveis do nascituro, dentre as quais se enquadra a anencefalia, é pacificamente autorizado. Neste sentido, a forma como a legislação brasileira trata o tema é considerada muito anacrônica, motivando polêmicas, várias críticas e movimentos pró-alteração da lei.

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Aos movimentos favoráveis à mudança da lei, somam-se os juristas e demais teóricos estudiosos do tema e igualmente convencidos da necessidade de mudanças. Estes apontam para os dados de morte de mulheres, sobretudo as de baixa renda, que, por conta da criminalização do aborto, acabam sendo vítimas de clínicas clandestinas, receitas caseiras e práticas arriscadas e mal sucedidas, engrossando as estatísticas de uma das maiores causas de morte de mulheres, tornando clara a pouca eficácia da tipicidade da conduta do aborto como forma de reprimir e desencorajar a sua prática.6

Há, ainda, as reflexões sobre a necessidade de ponderação dos interesses da mulher e do nascituro, o qual, embora seja vida, ainda não é pessoa e, portanto, não pode ser titular de direitos fundamentais tão protegidos como os de pessoas já nascidas (SARMENTO, 2010, p. 119-120).

Mas é certo que, além da ponderação dos direitos da mãe e do feto, para se decidir sobre o aborto, há que se considerar a responsabilidade pela situação criada. Isto é, é a mulher, no uso de seu direito à autodeterminação e privacidade, que se envolve, voluntária e conscientemente, em situação capaz de lhe levar à gravidez (aqui excluída, logicamente, a gestação oriunda de relação não consentida – estupro), assumindo todos os riscos do ato sexual e também da gravidez futura.

Neste sentido, não se deve considerar os direitos da mulher sobre o seu corpo apenas após a concepção, mas também antes e no momento da realização do ato que a possibilita. Atualmente, diante da enormidade de informações e conhecimentos à disposição de todos, não se pode desconsiderar a responsabilidade da mulher pela gravidez, ainda que indesejada.

Por isso, buscando apoio na doutrina da responsabilidade civil no Brasil, segundo a qual o responsável pelo dano deve suportar seus ônus, e aplicando-a de formaplicando-a aplicando-anaplicando-alógicaplicando-a, chegaplicando-a-se à conclusão de que aplicando-a responsável pelaplicando-a situação da gravidez deve suportar todas as consequências trazidas por ela, haja vista ter tido em suas mãos a capacidade exclusiva de evitar a gestação. Neste sentido, correta estaria a legislação brasileira ao permitir o aborto em

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casos de violência sexual e graves riscos à saúde da mãe, haja vista estas situações não terem sido causadas pela mulher, desonerando-a da obrigação e da responsabilidade de manter a gravidez e suportar suas consequências. Correta também estaria a alteração legislativa que comportasse como exceção à tipicidade do aborto, a possibilidade do aborto eugênico.

As leis de vários dos ordenamentos aqui estudados, como a lei italiana que regulamenta o aborto, antes de permitir a interrupção da gravidez, declara que o Estado garante o direito à procriação consciente e responsável e tutela a vida humana desde seu início. O direito à procriação é protegido e não se coloca como uma obrigação, mas deve ser exercido de forma consciente e responsável. Assim, as responsabilidades devem ser atribuídas a quem as mereça, sem sacrificar quem não contribuiu para as mesmas.

Não se trata de desconsiderar os dados a respeito do número de abortos clandestinos realizados e das mulheres mortas em decorrência disto. Também não se olvida o fato de que a criminalização do aborto não dissuade a maioria das mulheres de praticá-lo e que, nos países em que houve a legalização, o número de abortos não aumentou significativamente (SARMENTO, 2010, p. 95-96). Mas, pondera-se se a solução realmente encontra-se na liberalização do aborto ou se não está na melhor elaboração de políticas públicas e na análise do problema mais como uma questão de saúde pública do que como debate jurídico criminal, devendo se voltar não apenas para o aborto, mas também para a prevenção da gravidez indesejada de mulheres em idade fértil, casadas ou não, por meio de medidas educativas, de planejamento familiar e assistenciais, o que, além de mais seguro e saudável, pode se mostrar mais viável e eficiente, pois poderá ter um custo mais baixo.

Considerações Finais

Analisando o ordenamento brasileiro, os estrangeiros aqui trazidos e a realidade brasileira, conclui-se que a questão do aborto ainda está pouco amadurecida no seio social e no âmbito legislativo, que são os ambientes onde este debate deve ocorrer inicialmente.

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A adoção de posturas por parte do Judiciário, embora pautado em justificativas relevantes, não se mostra como a melhor solução para a questão do aborto e do atraso legislativo sobre o tema, em comparação com outros ordenamentos.

A própria liberação do aborto imotivado, apesar de parecer saudável, haja vista o grande número de mulheres que vêm a óbito por conta de condutas clandestinas e mal sucedidas de abortamento, não parece o caminho mais razoável. É indiscutível a ineficácia da penalização do aborto como forma de reprimir e diminuir sua prática. Mas a solução pode estar mais ligada à revisão das políticas públicas voltadas à gravidez e seu acompanhamento, sobretudo no tocante às mulheres de baixa renda, e à observação do problema como tema de saúde pública.

Referências

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BARROSO, Marcela Maria Gomes Giorgi. Aborto no Poder Judiciário: o caso da ADPF 54. Dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Largo de São Francisco, 2010.

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PEIXOTO, Francisco Davi Fernandes. DIREITO, ANENCEFALIA E ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO: UMA ANÁLISE DA REALIDADE BRASILEIRA. Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de

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http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/4003.pdf>. Acesso em: 04.12.2011.

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