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O entre-lugar de um pensamento próprio: Filosofia da história na obra do intelectual índio boliviano Fausto Reinaga (1940-1991)

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Academic year: 2021

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Marcos Luã Almeida de Freitas

O ENTRE-LUGAR DE UM PENSAMENTO PRÓPRIO. FILOSOFIA DA HISTÓRIA NA OBRA DO INTELECTUAL

ÍNDIO BOLIVIANO FAUSTO REINAGA (1940-1991)

Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Doutor em História.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Bernardete Ramos Flores

Florianópolis 2018

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

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Dedico este trabalho a Fausto Reinaga, que teve a força de buscar produzir um pensamento autônomo, assumindo os riscos inerentes a essa empreitada.

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AGRADECIMENTOS

Ainda que este trabalho tenha sido pensado e desenvolvido por mim, não quer dizer que ele seja fruto de um trabalho simplesmente individual. Solitária em alguns momentos, a caminhada da tese só se revelou menos árdua na medida em que tive ao meu redor pessoas que dedicaram seu apoio, sua atenção, seu tempo e suas palavras. Assim, quero aqui agradecer àquelas que, de uma maneira ou de outra, contribuíram para este trabalho.

Primeiramente, gostaria de agradecer à professora Maria Bernardete Ramos Flores por ter aceitado meu projeto e por ter contribuído com as leituras que criaram a base sobre a qual pude construir minhas reflexões apresentadas nesta tese e que levarei para o resto da minha carreira. Espero ter conseguido chegar, com esta tese, a um ponto que faça jus às suas contribuições. Muito obrigado.

Meu muito obrigado aos professores Ricardo Machado e Mariana Joffily pela leitura atenta e pelas contribuições oferecidas na banca de qualificação. Busquei contemplar ao máximo as sugestões, o que penso ter feito crescer esta tese. Muito obrigado pelo apoio e pelas palavras de incentivo. Agradeço ainda mais por se disporem a avaliar o trabalho também no momento da defesa. Agradeço também à professora Nashla Dahas por aceitar participar da banca de defesa em tempo tão curto e pela leitura atenta e pelas contribuições feitas. Agradeço à professora Fátima Piazza pela leitura atenta do trabalho. Muito obrigado!

Deixo meu agradecimento aos professores Adelaide Gonçalves e Eurípedes Funes pelo apoio desde a graduação e por serem inspirações enquanto profissionais da história.

Agradeço aos amigos bolivianos Cris Machicado e Daniela Guzmán pela ajuda dispensada nas diversas viagens de pesquisa e especialmente a Sthefany Tania por seu tempo dedicado na busca por bibliografia e pela descoberta de La Paz.

Agradeço à senhora Hilda Reinaga por ter aberto as portas da Fundação Fausto Reinaga, disponibilizando o material disponível e pela conversa franca sobre Fausto Reinaga. Sou grato pela ajuda dispensada!

Agradeço aos amigos Leandro Maciel e Roberta França pela companhia e pelo apoio nesses anos em Floripa e no retorno à Fortaleza. A sensação de segurança que tive ao chegar e ter a recepção e o apoio de vocês foi fundamental na reta final desta tese. Agradeço muito a parceria e a amizade.

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Agradeço também aos muitos amigos de Florianópolis, Gabriela Marques, Ju Silvestrin, Fernanda Ozório, Juliano Pfutzenreuter, Jefferson Lima, Natália Cadore, Cintia Lima, Tauana Olívia, Kelly Teixeira, Scheyla Tizatto, Antônio José, Maurício Gomes e Marco Antônio pela amizade, pelos dias de descanso, pelas palavras de apoio e incentivo e pela presteza. Agradeço especialmente à Tamy Amorim que ajudou além da conta nesses últimos meses. Meu muito obrigado pela força!

Agradeço aos amigos Rafael Parente e Camila Maia pela forma acolhedora que me receberam em Fortaleza e por toda a ajuda dispensada no processo da mudança. Vocês foram fundamentais nesse retorno. Meu muito obrigado!

Agradeço à minha sogra Maria das Graças que mesmo longe, e agora perto, sempre teve um palavra de incentivo e uma comidinha caseira pra ajudar nesse processo tão angustiante e delicado que é a pós-graduação. Muito obrigado!

Por fim, gostaria de agradecer à minha companheira Gleidiane de Sousa, pessoa que divide comigo seus dias, sua vida, suas angústias e seus sorrisos. Sem suas críticas, suas palavras de apoio e sua presença este trabalho não teria sido possível. Amo muito você!

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São as imagens mais que as proposições, as metáforas mais que as afirmações que determinam a maior parte de nossas convicções filosóficas. A imagem que mantém cativa a filosofia tradicional é a da mente como um grande espelho, contendo variadas representações – algumas exatas, outras não – e capaz de ser estudado por meio de métodos puros, não-empíricos. Sem a noção da mente como espelho, a noção de conhecimento como exatidão de representação não se teria sugerido.

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RESUMO

Este trabalho examina, problematiza e constrói uma história intelectual sobre o pensamento do índio boliviano José Félix Reinaga Chavarría, mais conhecido como Fausto Reinaga. Nascido em 1906 em Macha, no departamento boliviano de Potosí, este intelectual teve uma vida política intensa e suas obras influenciaram desde então os grupos índios que afluíram para a cena política daquele país. Ainda hoje a obra do autor é referência para diversos grupos políticos e vem sendo estudada pela academia boliviana e internacional. Nesta tese, busco refletir sobre o pensamento de Reinaga a partir da maneira como ele narra a história, observando sua forma de descrever os sujeitos, explicar o passado, apresentar o presente e projetar o futuro. A partir disso, é possível perceber um padrão que se mantém em sua obra, apesar das mudanças ideológicas que marcam as três etapas do seu pensamento. O resultado da interação entre a manutenção desse padrão e as mudanças ideológicas do autor, no sentido de rejeitar a herança intelectual europeia e de construir um pensamento próprio, a partir do índio, produziu conflitos internos que só podem ser entendidos quando se leva em consideração a ação da filosofia da história e a sua importância na construção do pensamento deste intelectual. Por isso, não busco enquadrar o pensamento de Reinaga em formulações externas a ele, parto dos marcos que o autor criou e tento entender quais as implicações que essas escolhas (ou não) tiveram para a produção do seu pensamento de forma geral, qual o seu alcance e como impactaram novas escolhas ou novas formulações ao longo da sua produção intelectual. A hipótese central desta tese é a de que os caminhos explicativos e narrativos do discurso de Reinaga estão moldados e direcionados por uma concepção específica sobre o sentido da história, mais precisamente, por uma filosofia da história. Assim, o conflito existente no pensamento do autor está em buscar construir um pensamento próprio, negando o pensamento europeu/ocidental, mas sem conseguir fugir da força organizadora e modeladora da filosofia da história de matriz moderna e ocidental, condição que o deixou num lugar entre o ocidental e o índio. Foi na tensão criada por essa posição que o autor desenvolveu seu pensamento e é sobre ela que este trabalho se desenvolve.

Palavras-chave: História Intelectual. Filosofia da História. Fausto Reinaga. Índio. Bolívia.

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ABSTRACT

This work examines, problematizes and builds an intellectual history on the thinking of the Bolivian Indian José Félix Reinaga Chavarría, better known as Fausto Reinaga. Born in 1906 in Macha, in the Bolivian department of Potosí, this intellectual had an intense political life and his works have since influenced the Indian groups that emerged in the political scene of that country. Even today the work of the author is a reference for various political groups and has been studied by the Bolivian and international academy. In this thesis, I try to reflect on Reinaga's thinking from the way he narrates history, observing his way of describing subjects, explaining the past, presenting the present, and projecting the future. From this, it is possible to perceive a pattern that remains in his work, despite the ideological changes that mark the three stages of his thought. The result of the interaction between the maintenance of this pattern and the ideological changes of the author, in order to reject the European intellectual heritage and to construct his own thought, from the Indian, produced internal conflicts that can only be understood when one takes into account the action of the philosophy of history and its importance in the construction of the thought of this intellectual. Therefore, I do not seek to frame the thought of Reinaga in formulations external to him, starting from the milestones that the author created and I try to understand the implications that these choices (or not) had for the production of his thought in general, what his reach and how they impacted new choices or new formulations throughout their intellectual production. The central hypothesis of this thesis is that the explanatory and narrative paths of Reinaga's discourse are shaped and directed by a specific conception of the meaning of history, more precisely by a philosophy of history. Thus, the existing conflict in the author's thinking lies in seeking to construct his own thinking, denying European/Western thought, but without being able to escape from the organizing and shaping force of the philosophy of modern and western matrix history, a condition that left him in a place between the West and the Indian. It was in the tension created by this position that the author developed his thought and it is on it that this work develops.

Key-words: Intellectual History. Philosophy of History. Fausto Reinaga. Indian. Bolivia.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...17

2 CAPÍTULO 1 – CONTANDO A HISTÓRIA BOLIVIANA E ÍNDIA...49

2.1 UMA HISTÓRIA EXEMPLAR: DA PRÉ-AMÉRICA AO PERÍODO COLONIAL...52

2.2 OS GRANDES TEMAS: DA INDEPENDÊNCIA À REVOLUÇÃO DE 1952...84

2.3 QUESTÕES DO TEMPO PRESENTE: DESDE A REVOLUÇÃO DE 1952...104

3 CAPÍTULO 2 – DO ÍNDIO AO AMAUTA...125

3.1 ÍNDIOS, BRANCOS (Q’ARAS) E MESTIÇOS (CHOLOS)...130

3.2 PENSAMENTO (DO) ÍNDIO...147

3.3 O INTELECTUAL: “UM ÍNDIO QUE PENSA”...168

4 CAPÍTULO 3 – HISTÓRIA E SUJEITOS HISTÓRICOS. .185 4.1 SUJEITOS HISTÓRICOS...190

4.2 O FAUSTO DE REINAGA...221

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...241

5.1 SOBRE HISTÓRIA IDEOLÓGICA...243

5.2 SOBRE FILOSOFIA DA HISTÓRIA...244

REFERÊNCIAS...253

APÊNDICES...259

MAPA DA BOLÍVIA...259

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1 INTRODUÇÃO

Ora, essa distinção entre a “história ideológica” e a “história propriamente dita” é interessante porque implica, e é esta sua intenção, que certas histórias (em geral as dominantes) não são de modo algum ideológicas, nem expressam visões do passado que sejam alheias ao tema. Mas já vimos que os significados dados às histórias de todo tipo são necessariamente isso mesmo – significados que vêm de fora. Não significados intrínsecos do passado […], mas significados dados ao passado por agentes externos. A história nunca se basta; ela sempre se destina a alguém. (JENKINS, 2007, p. 40)

Todo processo de produção da História, com agá maiúsculo, é exatamente isso: uma produção. Enquanto os acontecimentos cotidianos se amontoam no passado e nas memórias quase que naturalmente, a História precisa de um processo de produção e muitas vezes, de invenção. Esse processo não é neutro, pois é realizado por agentes que possuem sua própria historicidade e que dela não podem fugir, o que mostra que esse é um processo eminentemente ideológico1. Assim como todo produto, a História tem seus objetivos, seus usos e seus/suas usuários/as, portanto, está direcionada a alguém, como defende Jenkins.

Ainda que controversa, essa visão sobre a História é bem compreendida quando tratamos daquelas contadas por não historiadores/ as ou quando alguém faz uso de um discurso historicamente informado para criar determinados efeitos ou defender determinadas posições. 1 A ideologia, nesta tese, é vista como o conjunto de valores, ideias e concepções sobre o mundo, a sociedade e as pessoas, que os indivíduos adquirem em sua historicidade, enquanto sujeitos culturais, e que organiza a forma que os indivíduos agem. Ideologia é uma espécie de base cultural-filosófica que dá forma à “visão de mundo” que cada indivíduo tem e que pode (e geralmente é) ser compartilhada. Nesse sentido, sigo parcialmente a visão de Marilena Chauí quando afirma que: “[…] a ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer.[…] (CHAUÍ, 1983, p. 113)

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Ainda que nesses casos pareça evidente a História como produto, o que Jenkins faz questão de expor é que a história dos/as historiadores/as também se enquadra na mesma condição.

Essas reflexões iniciais sobre a marca ideológica do conhecimento histórico e sua condição de produto, me permitem apresentar a hipótese central deste trabalho, qual seja: a de que uma determinada concepção sobre o sentido e o funcionamento da historia (algo decididamente ideológico), que aqui categorizo como “Filosofia da Historia”, molda a produção intelectual de um índio boliviano onde a História tem grande centralidade discursiva. Neste trabalho, essas reflexões estão direcionadas especificamente à produção intelectual de José Félix Reinaga Chavarría, um índio boliviano que teve grande preocupação em reescrever a história, mesmo não querendo fazê-la no sentido historiográfico.

O autor, mais conhecido como Fausto Reinaga, nome que adotou em sua juventude a partir do impacto que suas leituras do Fausto de Goethe teve sobre si e que utilizou ao longo de toda sua vida, nasceu em Macha, localidade do Departamento de Potosí na Bolívia no ano de 1906 e faleceu no ano de 1994 na cidade de La Paz, para onde se mudou nos anos 1940 em meio à intensa mobilização política daqueles anos. Nasceu numa família índia quechua-aimará, tendo aprendido o castelhano apenas aos seus 16 anos quando mudou-se para a cidade de Oruro, capital do departamento boliviano de mesmo nome, por intermédio do patrão de sua irmã adotiva (putativa). Graduou-se em Direito em 1936 e publicou parte de sua monografia em 1940 depois de ganhar o Primeiro Prêmio Municipal de Oruro naquele mesmo ano.

Reinaga se envolveu com a política nacional desde jovem ainda em Oruro e, principalmente em Sucre quando realizava seus estudos de graduação e La Paz onde viveu a maior parte de sua vida. O intelectual foi atuante nos principais acontecimentos políticos bolivianos do século XX, principalmente na Revolução de 52 quando organizou um grupo armado no bairro onde vivia. Desde os anos 1930 Reinaga começou a se envolver com a política boliviana, já em Sucre. Em 1932, fez um discurso público em que defendia o pacifismo e o marxismo contra a possibilidade da Guerra do Chaco que estava a poucos dias de seu início. Por esse fato, acabou sendo preso logo após a multidão tê-lo aplaudido por sua posição. Nos anos 1940, passou sua fase de militância política mais intensa, no ano de 1940 foi um dos fundadores do Partido

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de la Izquierda Revolucionaria (PIR)2 de onde saiu pouco tempo depois para entrar em 1943 no partido Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR)3 devido a sua posição fortemente nacionalista. Foi pelo MNR que se elegeu deputado no ano de 1944, participando da base do governo do então major Gualberto Villarroel que chegou ao poder por meio de um golpe militar apoiado pela aliança entre dois grupos nacionalista o MNR e a RADEPA4. Em 1945 o governo de Villarroel convoca uma constituinte e organiza o Primeiro Congresso 2 O PIR, junto com o Partido Obrero Revolucionario (POR) foram os primeiros partidos de tendência marxista da Bolívia e surgiram como consequência, segundo MERCADO (2013a[1977], p. 52) do processo de crise do aparato repressivo do estado oligárquico no período da Guerra do Chaco. Segundo ZEGADA C.: “[…] as consequências políticas internas da guerra del Chaco (1932-1935), entre outros fatores, provocaram o desenvolvimento da consciência nacional junto aos discursos nacionalistas que tenderam a se generalizar, assim como a fundação dos primeiros partidos políticos marxistas na Bolívia como o Partido Operário Revolucionário (POR) de tendência trotskista e o Partido da Esquerda Revolucionária (PIR) inspirado na linha do partido comunista soviético, que posicionaram o proletariado como a vanguarda da revolução, encarnado, neste caso, nos trabalhadores mineiros do estanho, em um momento em que este era um setor estratégico da economia capitalista boliviana.” (2012, p. 124-125) (Tradução minha)

3 Sobre o MNR, Andrade informa: “Durante os governos de Toto [1936-1937] e Busch [1937-1939], um grupo de profissionais liberais e burocratas identificados com o nacionalismo moderado se agrupou dando origem, em 1941, ao Movimento Nacionalista Revolucionária (MNR). Entre seus principais dirigentes destacavam-se Augusto Céspedes, Victor Paz Estenssoro, Carlos Montenegro e Hernan Siles Suazo. Esse partido, que em futuro próximo assumiria importante papel, estava, no entanto, profundamente ligado por laços econômicos e política à elite política burguesa e possuía uma prática política elitista baseada no personalismo. Sua plataforma nacionalista era ampla o suficiente para abrigar diferentes componentes do nacionalismo. O fascismo contava com importantes simpatizantes, sendo visto por alguns líderes como uma ‘terceira via’ entre o capitalismo identificado com a oligarquia e o comunismo.” (ANDRADE, 2007, p. 40-41) Por ter esse caráter nacionalista abrangente, o MNR recebeu tanto militantes fascistas quanto militantes marxistas, como o próprio Reinaga daquele período. O MNR manteve seu caráter diversificado, mas teve sempre uma perspectiva personalista, notadamente em torno da figura de Paz Estenssoro.

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Indígena, onde Reinaga tomou parte da organização por sua condição de deputado da base do governo. Durante este governo, Reinaga viaja para congressos de movimentos sociais no México e nos Estado Unidos na condição de deputado boliviano. Com o assassinato de Villarroel em 1946, diversos políticos vinculados ao MNR foram exilados, incluindo Reinaga que foi para Buenos Aires junto com outros militantes e dirigentes do partido como Paz Estenssoro. Volta à Bolívia na clandestinidade e se instala finalmente em La Paz, na casa onde viveria o resto de sua vida. Retoma sua militância no MNR e participa da organização do partido para as eleições de 1951. Nesse momento, busca disputar o pensamento ideológico do partido e escreve um livro denunciando Paz Estenssoro como traidor, o que faz com que ele seja obrigado a escrever uma retratação sendo posteriormente expulso do partido. Após lutar na Revolução de 1952, Reinaga passa a atuar na vida política fora de partidos até que em 1960 ele funda, junto a outro militantes, o Partido Indio de Bolivia (PIB). Como dirigente do PIB, escreveu seus mais importantes livros e participou da oposição dos governos no MNR que se seguiram à 1952, buscando influenciar nas decisões dos diversos congressos indígenas apresentando teses para deliberação através do PIB. Em 1957, viajou à Alemanha para o IV Congresso Mundial de Sindicatos e foi convidado a visitar a União Soviética. Na volta, entrou em sua fase anticomunista. Com o golpe militar de Hugo Bánzer em 1971, Reinaga foi preso mais uma vez e acabou perdendo sua biblioteca pessoal, que foi confiscada e queimada pelo regime no momento de sua prisão em abril de 1972, que durou poucos dias. Nos anos seguintes, Reinaga sofreu de vários problemas de saúde que vinha acumulando há anos, muitos em decorrência do tratamento violento que recebeu quando de suas prisões, mas continuou

4 RADEPA (Razón de Patria): “Esta organização nasceu ao mesmo tempo

que transcorria a guerra [do Chaco], em um campo de prisioneiros. Seus membros pertenciam ao Exército e, como seus documentos sinalizam, era uma loja militar [associação similar às lojas maçônicas]. Em seus primeiros anos foi totalmente secreta, mais tarde fez parte do governo de Gualberto Villarroel e, mesmo não tendo sido conhecida publicamente por esse nome, elaborou vários documento e foi parte ativa nesse governo […]. A esta loja – pelas formas que o seu discurso tomou e pela atividade política que desempenhou, baseada no autoritarismo – pode-se colocar dentro da corrente do nacionalismo autoritário”. (LORINI, 2006, p. 166) (Tradução minha)

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buscando atuar na vida política através de seus livros e do aconselhamento de militantes dos diversos grupos índios que iam até sua casa, como os jovens do Movimiento 15 de Noviembre e Movimiento Julián Apaza (MUJA), precursores do influente movimento Katarista5.

Como foi possível ter uma ideia a partir do relato anterior, Reinaga teve uma vida militante e intelectual muito intensa, que pode ser observada pelo conjunto de sua extensa obra, composta por mais de 30 livros e tantos outros artigos para jornais. Essa produção6, marcada por uma escrita ácida (seu “verbo de fogo”), está baseada no amplo uso da história para construir um discurso sobre fenômenos, relações e sujeitos sociais. Fausto Reinaga preocupou-se por reinterpretar a história e, portanto, reconstituí-la, como forma de explicar as questões que foram se tornando centrais ao longo de sua vida e obra, construindo um discurso sobre si, sobre sua sociedade e sobre os sujeitos que dela fizeram parte. Um discurso no sentido definido por Foucault (2010), 5 […] os jovens do Movimento 15 de Novembro tiveram uma dupla influência. Por um lado, do Nacionalismo revolucionário, em especial da corrente de Carlos Montenegro que desde uma posição paternalista falou da ‘redenção do indígena’ e de sua ‘integração à vida nacional’ e a de dirigentes da juventude do MNR, como José María Centellas, que começaram a incursionar no campo com ideias relativamente renovadas frente aos velhos líderes. Por outro lado, tiveram influência do escritor Fausto Reinaga, precursor do atual indigenismo. Seus livros tiveram muita influência entre os aimarás. Apesar de algumas aberrações, teve o mérito de abrir a discussão sobre o problema índio, ainda que em termos raciais y demagógicos. (HURTADO, 1986, p. 32) (Tradução minha) Hurtado foi um reconhecido katarista e o primeiro a produzir um trabalho sobre a história desse movimento. Ao rivalizar com o Indianismo, muito fortemente ligado à Reinaga, ele não se furtou de reproduzir as críticas que o Katarismo tinha sobre o Indianismo, tido como radical e racista. Hurtado confunde o

Indianismo de Reinaga com o Indigenismo de forma proposital, de forma

desqualificadora. De toda forma, Hurtado reconhece a influência de Reinaga sobre o Katarismo. Para saber sobre os diversos movimentos políticos ocorridos na Bolívia durante a vida de Reinaga, ver: MERCADO (2013a[1977]), CUSICANQUI (2010b), ANDRADE (2007), LORINI (2006) e HURTADO (1986).

6 Uma breve biobibliografia de Fausto Reinaga foi escrita por sua sobrinha Hilda. REINAGA, Hilda. Fausto Reinaga. Su vida y sus obras. 2ª ed. La Paz: s.n, 2011. Para saber mais sobre a biografia do autor ver também CRUZ, G. R., 2013.

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como um conjunto de enunciados imbuídos de uma “vontade de verdade”, cujo poder de afirmação institui, cria e transforma sujeito e objeto. A busca do autor pela construção de um pensamento índio, fora dos marcos do pensamento ocidental, demonstra bem essa questão.

Os textos de Reinaga têm despertado muito interesse nas últimas décadas no seu país. Isso ocorre porque Reinaga foi um forte expoente do movimento político índio boliviano que se desenvolveu nas décadas de 1960-70, cujo constructo político mais importante foi o Indianismo, caracterizado pela centralidade do sujeito índio, como mostrarei nos capítulos adiante. No momento atual em que um índio está na presidência da Bolívia e busca se utilizar de um discurso em que esse sujeito é protagonista, ao mesmo tempo em que o movimento índio é cada vez mais forte, nada mais importante do que retomar a obra de um autor que coloca o índio na mais alta posição. No entanto, por ter sido Reinaga um intelectual controverso e, principalmente, polêmico, provocando opiniões e posições diversas e muitas vezes conflituosas entre si, mesmo hoje, sua obra demanda uma análise mais apurada, que fuja das leituras com intuitos práticos, forma em que ela foi escrita e como foi apropriada desde então.

Esse esforço intelectual de retomar o pensamento de Fausto Reinaga vem sendo desenvolvido mais fortemente a partir do início desta década (2010). Apontarei alguns dos trabalhos que vejo serem mais relevantes e demonstrativos da forma como o pensamento de Reinaga vem sendo tratado. Iniciarei do mais recente ao mais “antigo”. É importante destacar que dentro da Bolívia os debates tomam uma proporção mais acalorada politicamente, principalmente quando trata das questões do racismo, do anticomunismo (antimarxismo) e da posição fortemente antichola7 do autor.

O livro de Carlos Macusaya Cruz intitulado Del Indianismo al pensamiento amáutico: La decadencia de Fausto Reinaga (2015)

7 Cholo é o termo que designa os indivíduos mestiços de origem branca e

índia. Em geral, esses indivíduos têm as características físicas índias mais acentuadas. Cholo designa também os índios que adotam usos e costumes europeus. Cholaje é o termo usado por Reinaga para se referir a existência de um grupo de pessoas e um conjunto de práticas e atitudes de branqueamento compartilhadas pelos indivíduos cholos, além de denominar a ideologia que institui essas práticas e atitudes que são reforçadas pelos indivíduos brancos que a dominam.

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apresenta uma análise sobre as fases em que a obra de Reinaga é geralmente entendida. O autor analisa o chamado pensamento amáutico, que correspondeu às suas últimas publicações, em relação ao pensamento indianista, que foi um momento anterior ao amautismo. Carlos Cruz afirma que há uma “decadência” do pensamento do autor na passagem de um para o outro, negando a proposição de Hilda Reinaga (sobrinha de Reinaga) de que seu pensamento foi evoluindo ao longo do tempo e que, portanto, o amautismo seria sua posição mais bem acabada (posição esta que compartilho com o autor). Ao negar essa proposição, esse autor propõe que a fase indianista, ou o chamado indianismo, seria o pensamento mais bem acabado do intelectual, e que o amautismo seria resultado da luta de Reinaga contra os rumos que o movimento indianista tomava em meados dos anos 1970, distanciando-o da sua hegemonia. A mudança, segundo propõe Carlos Cruz no trabalho, foi um efeito da “egolatria” de Reinaga que não aceitava que o indianismo tomasse rumos que ele não conseguia influenciar e não propriamente um processo de evolução do seu pensamento.

A tese de doutorado de Gustavo Cruz intitulada Los senderos de Fausto Reinaga. Filosofía de un pensamiento indio (2013) é, a meu ver, a obra mais detida e pormenorizada sobre o seu pensamento. Ela foi escrita fora do âmbito boliviano, tendo sido defendida no México por um estudioso argentino, o que faz com ela fique virtualmente fora dos interesses mais diretos que estão em torno da figura e da obra de Reinaga. O livro de Gustavo Cruz aborda o pensamento do intelectual índio através da Filosofia, entendendo a construção de noções, conceitos e termos enquanto exercícios filosóficos de Reinaga, considerando que esse exercício não se separa das práticas políticas e da vida. A preocupação de Cruz esteve focada no processo de constituição do discurso do autor a partir das diversas concepções identificáveis no texto do boliviano e nas tradições da filosofia e da política ocidentais. A questão propriamente histórica, as formas narrativas, o papel dos sujeitos, a concepção de tempo e de história, presentes no pensamento de Reinaga, foi deixada de lado por Gustavo Cruz, que faz isso conscientemente e propõe que historiadores devem fazê-lo.

Outro trabalho produzido fora da Bolívia, este porém escrito por um boliviano, é a tese de Esteban Ticona Alejo intitulada El Indianismo de Fausto Reinaga: orígenes, desarrollo y experiencia en Qullasuyu-Bolivia (2013). Nesta tese, Alejo estuda o pensamento de Reinaga como

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sendo um pensamento decolonial, e a partir desse perspectiva teórica constrói suas reflexões. O pensamento de Reinaga costuma ser dividido em: Nacionalismo-Indigenismo, Indianismo e pensamento Amáutico ou Amaustimo8, e nesse marco, este autor está particularmente preocupado

com o percurso que vai do Indianismo (que ele chama de “Indianismo decolonial”) ao pensamento amáutico. Ticona busca demonstrar que Reinaga chegou a construir um pensamento decolonial a partir do Indianismo.

No livro “Intelectuales aymaras y nuevas mayorías mestizas. Una Perspectiva post 1952” (2012) organizado por Cecilia Salazar de la Torre, Reinaga aparece brevemente como um dos precursores da intelectualidade aimará surgida pós 1952, mas sob o signo de ter adotado “posturas racistas”. Esse livro reflete um tipo de análise acadêmica sobre o pensamento de Reinaga que não leva em consideração as particularidades do autor e do seu momento histórico, principalmente a questão do nacionalismo revolucionário e do surgimento de fortes movimentos índios, postura distinta da apresentada por Gustavo Cruz que busca complexificar a questão de raça e da que apresentarei nesta tese.

Outro livro recente e significativo dentro do debate atual sobre o pensamento de Reinaga é “Colonialismo y contribución en el indianismo” (2011) de Iván Apaza Calle, onde o autor discorre sobre as contribuições do pensamento de Reinaga, principalmente das duas últimas fases do seu pensamento, para o Indianismo enquanto ideologia política e para o movimento social. Nesse livro, o autor busca analisar a trajetória do Indianismo e do Amaustimo de Reinaga examinando suas obras uma por uma. A análise tem um caráter mais político e se preocupa em justificar ou explicar os desvios e as contradições apontadas pelos detratores de Reinaga.

Uma sexta contribuição sobre o pensamento do autor pode ser vista em “Fausto Reynaga. O la frustación del programa indio” (2011) onde o seu autor Juan Manuel Poma Laura busca apontar os erros do programa político construído por Reinaga a partir de um olhar marxista que privilegia o debate de classes. Esse posicionamento, fez com que o autor se detivesse em apresentar os problemas do pensamento de Reinaga em termos de faltas de análises da luta de classes, ou mesmo o abandono dessa posição. Esse livro, criticado por outros analistas (tido 8 Mais a frente tratarei dessa divisão.

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como anedótico por Carlos Cruz), diz mais a respeito de um debate político-prático do pensamento de Reinaga do que um debate acadêmico.

Esses livros são amostras do estado mais recente da discussão sobre o pensamento de Reinaga e apontam para o fato de que ele permanece um problema atual. É nesse contexto de debate que minha tese se insere. Busco refletir sobre o pensamento de Reinaga a partir da maneira como ele narra a história, descreve os sujeitos, explica o passado, apresenta o presente e projeta o futuro; entendo que as contradições, os problemas morais, éticos, políticos, raciais e sociais aparecem como elementos participantes do processo de construção discursiva e não como características estáticas. Não busco enquadrar o pensamento de Reinaga em formulações externas a ela, parto dos marcos que ele mesmo criou e tento entender quais as implicações que essas escolhas (ou não) tiveram para a produção do seu pensamento de forma geral, qual o alcance delas e como elas impactaram novas escolhas ou novas formulações ao longo da sua produção intelectual. Tampouco busco analisar as posições filosóficas do autor, meu foco é na influência de uma concepção filosófica específica, ligada à história, e a influência que ela têm na construção de um discurso historicamente informado. Tudo isso, me permite ver como a filosofia da história de matriz moderna e ocidental, enquanto uma concepção a priori de como a história se desenvolve, organiza a narrativa e o discurso do autor, apesar de sua busca por distanciar-se do pensamento ocidental, o que configura o entre-lugar em que se encontra a obra de Reinaga.

Concordando com Jenkins, não penso que a história que Reinaga busca narrar é mais ou menos ideológica do que a que apresento nesta tese ou qualquer outra. A história é um constructo ideológico, no sentido de que está envolta numa atitude em relação ao mundo que está baseada em posições sobre ele. Estas, por sua vez, envolvem a significação de ações e acontecimentos de acordo com ideias e motivações “alheias” ao que poderia ser visto como propriamente histórico (o conteúdo literal que apontarei mais a frente), e não o falseamento da realidade em prol de uma posição política, ética e/ou moral específica. Afirmar que a história é um constructo ideológico:

[…] significa que ela está sendo constantemente retrabalhada e reordenada por todos aqueles que,

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em diferentes graus, são afetados pelas relações de poder – pois os dominados, tanto quanto os dominantes, têm suas próprias versões do passado para legitimar suas respectivas práticas, versões que precisam ser tachadas de impróprias e assim excluídas de qualquer posição no projeto do discurso dominante. Nesse sentido, reordenar as mensagens a serem transmitidas […] é algo que precisa ser continuamente elaborado, pois as necessidades dos dominantes e/ou subordinados estão sempre sendo retrabalhadas no mundo real à medida que eles procuram mobilizar pessoas para apoiarem seus interesses. A história se forja em tal conflito, e está claro que essas necessidades conflitantes incidem sobre os debates (ou seja, a luta pela posse) do que é a história. (JENKINS, 2009, p. 40-41)

Ou seja, a história não tem como não ser ideológica, pois o seu fazer-se é em si resultado de um exercício em que uma posição ideológica está sempre presente. Por esses motivos, busco problematizar as questões da historiografia e da filosofia da história (entendida aqui como uma concepção sobre o sentido da história) para ambos os casos, tanto para Reinaga, enquanto intelectual índio em busca de produzir um discurso político, quanto para mim, o historiador que estuda seus textos e produz uma História sobre eles; ainda que a problematização com relação a mim enquanto historiador seja apenas de forma tangencial, sem a pretensão de aprofundá-la, uma vez que o foco da tese é o pensamento de Reinaga e não a historiografia. A ideia é de que a reflexão sobre os textos de Reinaga permitam ao/a leitor/a uma chave de leitura que pode funcionar para outros textos historicamente informados ou mesmo para textos produzidos por historiadores.

Para tanto, enfoco os textos de Reinaga da mesma maneira como enfocaria um texto estritamente historiográfico, produzido por um/a historiador/a profissional. Aqui, busco a produção de uma história intelectual de Reinaga, por isso, minhas perguntas e minha metodologia de análise estão baseadas na posição teórica da mais recente história intelectual. Desse modo, e por se tratarem de textos, sigo a proposta do historiador estadunidense Dominick LaCapra quanto a dois aspectos

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deles que penso serem fundamentais para entender os textos de Reinaga, o documental (conteúdo literal) e o ser-obra (conteúdo não-literal):

Lo documental sitúa el texto en términos de dimensiones fácticas o literales que implican la referencia a la realidad empírica y transmiten información sobre ella. El ser-obra complementa la realidad empírica con agregados y sustracciones. Implica por lo tanto dimensiones del texto no reductibles a lo documentario, que incluyen de manera preponderante los papeles del compromiso, la interpretación y la imaginación. El ser-obra es crítico y transformador, porque deconstruye y reconstruye lo dado, en un sentido repitiéndolo, pero también trayendo al mundo, en esa variación, modificación o transformación significativa, algo que no existía antes. Con engañosa simplicidad, podríamos decir que en tanto lo documentario señala una diferencia, el ser-obra constituye una diferencia, que compromete al lector en un diálogo recreativo con el texto y los problemas que plantea. (LACRAPA, 2012, p. 245-246)9

O aspecto ser-obra, então, é aquele composto pelas questões subjetivas que influenciam a produção de sentido de qualquer texto complexo, os sentimentos, as paixões políticas, etc., tudo aquilo que podemos colocar na conta da ideologia. O aspecto documental é aquele 9 O documental situa o texto em termos de dimensões fáticas ou literais que implicam a referência à realidade empírica e transmitem informações sobre ela. O ser-obra complementa a realidade empírica com agregados e subtrações. Implica, portanto, dimensões do texto não redutíveis ao documentário, que incluem de maneira preponderante os papéis do compromisso, da interpretação e da imaginação. O ser-obra é crítico e transformador, porque desconstrói e reconstrói o dado, em certo sentido, repetindo-o, mas também trazendo ao mundo, nessa variação, modificação ou transformação significativa, algo que não existia antes. Com enganosa simplicidade, poderíamos dizer que enquanto o documentário sinaliza uma diferença, o ser-obra constitui uma diferença, que compromete o leitor em um diálogo re-criativo com o texto e os problemas que aponta. (Tradução minha)

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composto pelos elementos empíricos, factuais, cronológicos, materiais que possuem uma referência externa ao texto, ainda que ele não tenha significado em si, dependendo justamente do aspecto ser-obra para vir a tê-lo. A referência à existência de um conflito armado em 1780 no Alto Peru, por exemplo, é o aspecto documental, enquanto que o ser-obra é aquele que permite explicar esse fenômeno.

Esses dois aspectos do texto me indicam um caminho teórico e metodológico a seguir. Sob essa perspectiva, busco problematizar especialmente o aspecto ser-obra que o texto apresenta, uma vez que, a partir dele, o aspecto documental vai sendo examinado. Esse aspecto ser-obra, que pode ser visto como o mais “ideológico”, vejo como o mais importante do texto de Reinaga, já que o autor procura transformar e reconstruir os dados históricos, informar de outra maneira sobre o passado, principalmente o passado índio; e é justamente nesse processo de ressignificação que se pode observar as concepções e posições do autor em relação ao passado, aos sujeitos, à história. O objetivo de Reinaga não foi ser um estudioso do passado, porém, ao construir um pensamento índio em busca de uma revolução, como mostrarei adiante, ele utilizou um discurso que esteve fortemente baseado em acontecimentos do passado ou em explicações que levam em consideração a duração, os acontecimentos no tempo, as referências de transformações ocorridas no passado, seus efeitos no presente e suas implicações para o futuro.

Ao tratar de um pensamento fortemente baseado em explicações propriamente históricas, ou seja, explicações formuladas com base em acontecimentos do passado organizados e narrados sob uma perspectiva historicizante, busco analisar questões que são fundamentais nos discursos historiográficos e que aparecem nos textos de Fausto Reinaga, como a noção de tempo histórico, evolução, revolução, duração, sujeito histórico, etc. Essas noções estão presentes de diversas maneiras, muitas vezes apresentadas indiretamente, mas fazem parte do ser-obra que significa e por isso modifica o aspecto documental apresentado. O objetivo aqui não é o de indicar o nível de aproximação do discurso de Reinaga com a verdade, com o passado, mas de avaliar de que maneiras o aspecto ser-obra se configura em seus textos, seja em conjunto, seja individualmente.

A hipótese central que buscarei demonstrar no decorrer desta tese é a de que os caminhos explicativos e narrativos do discurso de Reinaga

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estão moldados e direcionados por uma concepção sobre o sentido da história, mais precisamente, por uma filosofia da história, que dá esse sentido. Quero dizer com isso que, ao analisar temas e sujeitos, ao escolher tipos de narrativas e formas de explicação, Reinaga construiu seu pensamento de acordo com uma concepção específica do que é a história, de como ela se desenvolve, qual o caminho que ela segue e qual o seu destino. Não quero dizer que Reinaga estava determinado a pensar de uma maneira específica, mas que a forma como ele escolheu desenvolver seu pensamento e expressá-lo está relacionada com essa filosofia da história e isso influenciou decisões narrativas e explicativas no decorrer do seu caminho intelectual.

A noção de filosofia da história que utilizo aqui, é um conceito histórico de valor heurístico10 formado pelo isolamento da reflexão inicial da filosofia da história como campo da Filosofia enquanto disciplina, ou seja, ela é aqui entendida como um conjunto de noções que dão um sentido para a história, exatamente aquilo que o campo da filosofia da história enquanto disciplina busca estudar. Como um conceito de valor heurístico, ela não diz respeito ao estudo filosófico sobre a história, mas sim ao entendimento de que a história pode possuir um sentido. Assim, orienta os procedimentos de análise em direção à pergunta da tese de que a concepção de um sentido para a história influencia diretamente na construção intelectual.

Vejamos o que diz Agnes Heller sobre as Filosofias da História e as questões que as envolvem:

Filosofias da história fazem perguntas simples, apesar de que, nem de longe, sejam simples as respostas a elas. Tais perguntas também são feitas pelo homem comum, praticamente por todos que refletem sobre sua experiência de vida em nosso mundo. Experimentamos mudança em valores e instituições, experimentamos nosso destino e o destino de outros, mesmo de povos distantes, como sendo tudo tecido junto. Novos eventos e 10 Segundo Rüsen: “Heurística é a operação metódica da pesquisa, que

relaciona questões históricas, intersubjetivas controláveis, a testemunhos empíricos do passado, que reúne, examina e classifica as

informações das fontes relevantes para responder às questões, e que avalia o conteúdo informativo das fontes.” (RÜSEN, 2007, p. 118) Grifos meus.

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experiências nos acontecem e nós participamos de novos empreendimentos ou sofremos, quando outros bem estabelecidos são sacudidos. Somos as vítimas das catástrofes mundiais e voltamos nossas faces para os primeiros bruxuleios da aurora. Acalentamos esperanças com relação aos anos vindouros e nos desesperamos quando frustram nossas expectativas. Perguntamos: qual

o sentido de tudo isto? Perguntamos se nossas vidas e lutas foram vãs e infrutíferas, ou não. Indagamos se nossos filhos hão de viver num mundo melhor ou pior do que o nosso. Interrogamos se é realmente possível um futuro melhor, em caso de respostas positivas, como podemos concorrer para isto, em caso de serem negativas, queremos saber quando e como "perdemos o trem". Estas são perguntas cotidianas feitas por qualquer um. E nós precisamos dar-lhes respostas. E exatamente por

responder a tais questões que a filosofia da história se faz tão necessária. Todas as filosofias se põem a pergunta sobre o sentido da existência humana, a qual, nos últimos duzentos anos, vem sendo experimentada como existência histórica. As filosofias da história respondem às interrogações sobre o sentido da existência

histórica e assim satisfazem as necessidades de

nossa época. Contudo, também reivindicam responder uma outra questão, aquela relativa ao

sentido da história. Nesta reivindicação reside a ambigüidade de todas as filosofias da história:

elas equiparam o sentido da existência histórica ao ”sentido de história" (HELLER, 1993, p. 260-261) Itálicos da autora. Negritos meus.

No trecho citado, Heller está expondo seus argumentos para defender a necessidade do campo da filosofia que trata da História. Trago essa citação porque entendo que os argumentos apresentados também dizem respeito ao conceito da maneira que o utilizo para minha reflexão. Como disse antes, utilizo filosofia da história como o conceito que designa justamente o conjunto de noções que dão sentido à história.

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Ele diz respeito às perguntas apontadas por Heller para as quais um campo da Filosofia tenta apresentar respostas, mas que são independentes dessa disciplina. É sobre a concepção produzida a partir dessas perguntas que estou me referindo quando uso o conceito filosofia da história no singular e não no plural, como faz Heller.

A filosofia da história que Fausto Reinaga apresenta direta ou indiretamente nos seus textos, esteve em diálogo com sua atuação política e com os contextos em que os escreveu, por esse motivo e pelo fato de que busco produzir uma história intelectual, sua obra será estudada não só a partir de dentro dela mesma, mas também, a partir de referências contextuais que me permitem inferir sobre questões dos textos e tomá-lo como um acontecimento dentro de uma rede de significados. Estou particularmente preocupado com a necessidade de lidar com os diversos contextos que envolvem os textos em questão. Por isso, pretendo seguir as observações de LaCapra com relação a eles:

[…] La apelación al contexto no responde en el acto todas las cuestiones de la lectura y la interpretación. Y una apelación a el contexto es engañosa: nunca tenemos – al menos en el caso de los textos complejos – un contexto. El supuesto de que sí lo tenemos se basa en una hipostatización de “contexto”, con frecuencia al servicio de equívocas analogías orgánicas u otras abiertamente reductivas. Lo que tenemos en el caso de los textos complejos es un conjunto de contextos interactuantes cuyas relaciones mutuas son variables y problemáticas, y cuya relación con el texto que se investiga plantea difíciles cuestiones de interpretación. En rigor de verdad, lo que tal vez sea más insistente en un texto moderno es la manera en que impugna uno o más de sus contextos. Además, la afirmación de que un contexto o subconjunto específico de contextos es especialmente significativo en un caso dado tiene que demostrarse y no simplemente suponerse o incorporarse subrepticiamente a un modelo o

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marco explicativo de análisis. (LACAPRA, 2012, p. 252) Itálicos do autor.11

LaCapra apresenta seis contextos resumidos da seguinte forma: as intenções, as motivações, a sociedade, a cultura, o corpus e a estrutura ou conceitos análogos (2012, p. 252). Essas noções apresentadas como resumos indicam que os contextos são relações entre os textos e coisas externas a eles. Ao tomar os contextos como relações é possível produzir reflexões que tratam de forma mais complexa os problemas centrais da história em geral e da história intelectual em particular, como as relações entre autor (com suas motivações, intenções e sua vida) e o texto, a influência da sociedade e da cultura no texto, a relação entre textos e textos e, finalmente, a relação entre os diversos modos de produção de discursos e o texto (LACAPRA, 2012, p. 253-280). Tratar os contextos como relações pressupõe um tratamento que faça dialogar texto e contexto sem que um explique por si mesmo o outro e vice-versa, ou seja, não é a vida do/a autor/a que explica o texto ou o contrário, mas a relação entre esses dois é que permite uma explicação complexa de ambos. Assim, não tratarei de contexto como um “momento”, um “plano de fundo”, um lugar no tempo no qual se pode criar relações entre o objeto estudado e outros objetos históricos que participaram naquele instante. Mais do que relacionar uma moda intelectual com o feito de Reinaga, por exemplo, tentarei observar quais as motivações que poderiam tê-lo levado a reproduzir tal ou qual ideia e/ou concepção 11 O apelo ao contexto não responde, nesse ato, todas as questões de leitura e interpretação. E, um apelo ao contexto é enganoso: nunca temos – ao menos no caso dos textos complexos – um contexto. A suposição de que temos sim, se baseia numa hipostatização do “contexto”, com frequência a serviço de equivocadas analogias orgânicas ou outras abertamente redutivas. O que temos, no caso dos textos complexos, é um conjunto de textos interatuantes, cujas relações mútuas são variáveis e problemáticas e cuja relação com o texto que se investiga aponta difíceis questões de interpretação. Na verdade, o que talvez seja o mais insistente em um texto moderno seja a maneira em que impugna um ou mais de seus contextos. Além disso, a afirmação de que um contexto ou subconjunto específico de contextos é especialmente significativo em um caso dado tem que ser demonstrado, e não simplesmente suposto ou incorporado sub-repticiamente a um modelo ou marco explicativo de análise. (Tradução minha)

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política a partir de seus próprios textos, do efeito desejado, da maneira de pensar do autor, etc.

Nesse sentido, talvez seja possível fugir da dificuldade “contextualista” que François Dosse aponta para a história intelectual:

Uma das dificuldades da história intelectual consiste portanto em manter unida uma abordagem que se poderia chamar “contextualista”, abordagem visando se imergir na época, com o conjunto do contexto do objeto estudado, reconstituir as categorias "indígenas", como diria um antropólogo, do interior, os fatores da época, as polêmicas em torno ou nas quais se construiu o dito objeto. (2003, p. 44)

Em vez de analisar, como propõe Dosse, o “conjunto dos caminhos possíveis abertos a determinado momento do passado” (2003, p. 44), pretendo estudar, através da sua relação com os contextos, aquilo que foi efetivamente expresso, mas sem precisar quais seriam as outras possibilidades disponíveis para o sujeito da história, uma vez que é muito difícil (e provavelmente impossível) saber até que ponto a possibilidade de uma alternativa poderia ter interferido na escolha que efetivamente se fez, o que de todo não seria relevante para um trabalho historiográfico. Busco apresentar uma história possível e não as possibilidades presentes no passado do sujeito. Minha intenção é representar uma possibilidade do passado no presente, demonstrar a sua proximidade, a sua permanência incorporada no presente, a construção de uma representação sobre o passado que têm no momento presente seu polo organizador. Para tanto, o conceito de representação toma um lugar central.

Não entendo o conceito de representação simplesmente como um “reapresentar” ou como apresentar um ausente. Me aproprio das reflexões de Ankersmit (2004; 2011; 2012) sobre o conceito de representação histórica que busca na arte as referências de outras significações que são operativas nela e em outros campos mas que não nos veem à cabeça quando pensamos sobre a história. Comumente, ao pensarmos sobre o conceito de representação, lidamos com as noções de verdade e semelhança, uma vez que para sabermos se algo é a representação de outra coisa utilizamos a semelhança como medida.

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Quando não há semelhança, não existe representação, portanto, ela é falsa ou representa outra coisa. O problema para o caso da História é que não temos como medir a semelhança entre o relato historiográfico e o passado em si, o que nos leva a ter alguns problemas quanto ao uso do conceito.

Pode-se argumentar então que a história não representa o passado, mas o explica, o que nos impõe outra questão, visto que explicar o passado implica dizer que ele tem um significado e que as ações humanas têm um objetivo que pode ser descoberto e explicado.

Aunque el pasado consista en lo que hicieron, pensaron o escribieron los agentes humanos en el pasado, y el pasado no conozca agentes sobrehumanos, la perspectiva del historiador a menudo tanto crea como investiga un pasado desprovisto de significado intrínseco. La penetración hegeliana en las consecuencias no intencionadas de la acción humana intencional es paradigmática para esta perspectiva. (ANKERSMIT, 2004, p. 196)12

Diante desses problemas, Ankersmit expõe que a questão não está no uso do vocabulário da representação, mas na nossa concepção de representação histórica como “reapresentação” e uma noção de passado que pressupõe que ele tem um significado intrínseco e que pode ser comparado com a sua representação historiográfica. Para Ankersmit, devemos utilizar o vocabulário da representação, porém, aproximando a representação histórica à representação artística. Para fazer isso, entendo que se deva observar a existência de pelo menos dois tipos de representações: as representações miméticas e as não miméticas. Ou seja, aquelas em que semelhança e verdade são noções importantes e aquelas em que essas noções não se aplicam.

12 Ainda que o passado consista no que fizeram, pensaram ou escreveram os agentes humanos no passado, e o passado não conheça agentes sobre-humanos, a perspectiva do historiador frequentemente tanto cria quanto investiga um passado desprovido de significado intrínseco. A penetração hegeliana não consequências não intencionais da ação humana intencional é paradigmática para esta perspectiva. (Tradução minha)

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Arthur Danto, ao tentar definir o que é uma obra de arte, se depara com obras como as caixas de Brillo de Andy Warhol em que a obra não se diferencia da sua congênere não artística. As caixas de Brillo são representações miméticas tão perfeitas que pode-se tomá-las pelas caixas de Brillo dos supermercados. Danto se depara com o problema de que se as representações são apenas miméticas, não é possível diferenciar um objeto artístico de outro não artístico que lhe seja materialmente idêntico, porém, independente disso ainda persiste o problema de saber o que diferencia um objeto da arte de um objeto qualquer, ainda que idênticos. Na sua busca ele acaba por descobrir características não miméticas nas representações que permitem entender o que diferencia esses objetos, como por exemplo, nas teatrais:

Na ópera de Strauss […], O cavaleiro da rosa, a contralto representa um jovem travestido de mulher, apesar de não existir na realidade um tal jovem para que ela o represente, o que quer dizer que sua imitação não é “verdadeira”, pois não há nada que a torne verdadeira; mas em termos do conteúdo das ações representacionais da cantora ela está representando um jovem travestido. Pode-se distinguir então um Pode-sentido interno de representação, que tem a ver com o conteúdo de uma imitação, de uma imagem de uma ação, e um sentido externo, que tem a ver com o que a imitação, ou a imagem, ou a ação, denotam. (DANTO, 2005, p. 121-122)

Outro exemplo que se pode tomar para a representação, citado por Ankersmit, é o das obras sacras. Uma imagem de gesso, madeira, metal, ou qualquer outro material que representa uma determinada divindade é tomada por um/a crente como a própria divindade, não como uma imagem que apresenta uma divindade ausente, posto que a divindade está ali, e qualquer agressão àquele objeto é uma agressão à própria divindade. Ou seja, a representação, nesse sentido, toma o lugar do que deveria ser “reapresentado”, e mais, esse suposto representado não precisa existir ou ser conhecido, a representação tem valor por si mesma.

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Um último exemplo que eu poderia acrescentar para além dos exemplos que Ankersmit fornece, vem da política. A representação política lida com ambos significados de representação que estou expondo aqui, a diferença é que geralmente uma delas é vista como uma deturpação do sentido de representar. Nas democracias representativas os/as eleitos/as representam os/as eleitores/as no sentido de tomar o lugar dos/as representados/as nas assembleias e nos postos de decisão públicos. Idealmente, deveria existir uma relação direta entre representação (eleitos/as) e representado/a (eleitores/as), porém, frequentemente não é assim. A questão aqui é que esse problema não diz respeito ao caráter da representação, no sentido de que se não há essa relação não há representação. Os/as eleitos/as, ainda que tomem decisões contrárias aos desejos de seus/suas eleitores/as continuam, para todos os efeitos, representando-os/as. O problema dessa distorção não é de representação, mas de política. É por entender que a representação tem a característica de poder tomar o lugar e ser independente do representado, que pensamentos políticos como o anarquista rejeitam qualquer tipo de representação. É como a imagem do santo que toma o lugar do santo propriamente dito.

Desta maneira, penso que é possível usar esse vocabulário da representação para a história, pois com ele, nos vemos livres do problema da semelhança com o passado e com a necessidade de ele ter um significado intrínseco a ser descoberto. Ou seja, ainda que a história represente o passado, não é preciso saber exatamente como as coisas “realmente aconteceram” para que a representação historiográfica tenha valor e seja pertinente. Para Ankersmit, “la historiografia es un paradigma de representación mejor incluso que el arte mismo” (2004, p. 223) para entendermos o significado, que estou chamando de não mimético, da representação.

A lo que me refiero es, más bien, a que los vínculos entre representación y lo que se representa son mucho más frágiles en la historiografía que en el arte. La realidad histórica en sí no contradice tanto a las representaciones históricas, sino que otras representaciones históricas lo hacen; apelar a cómo es la realidad

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tiene mucho más fuerza en el arte que en la historia. (ANKERSMIT, 2004, p. 229)13

Ou seja, segundo Ankersmit o produto da historiografia é muito menos vinculado ao que ele representa do que o produto das artes. A representação é principalmente definição, “demarcação de contornos”, e nas obras de arte essa definição é muito mais clara dentro de si e em contraste com o mundo do que na historiografia que só apresenta maior definição no seu nível mais elementar, dos fatos históricos, do conteúdo fático da documentação.

Si tenemos esto en mente, no podemos dudar ni por un momento que la línea de demarcación entre, por ejemplo, el cielo y los árboles que plasmó el pintor es mucho más clara que la que existe entre, por ejemplo, Crise de la conscience

européene, de Hazard, y la Ilustración, o entre

aspectos distintos de la Ilustración. Aquí los contornos, y la representación, son lo que el debate histórico quiere que sean. (ANKERSMIT, 2004, p. 230) Itálicos do autor.14

O que quero deixar claro com toda essa reflexão teórica é que o trabalho desta tese é de representar, através da historiografia, acontecimentos passados que, estando em forma de produtos de pensamentos (textos), também estão implicados nos problemas de 13 Me refiro a que, melhor dizendo, os vínculos entre representação e o que se representa são muito mais frágeis na historiografia do que na arte. A realidade histórica em si não contradiz tanto as representações históricas, quanto outras representações históricas o fazem; apelar a como é a realidade tem muito mais força na arte do que na história. (Tradução minha)

14 Se temos isto em mente, não podemos duvidar nem por um momento que a linha de demarcação entre, por exemplo, o céu e as árvores que desenhou o pintor é muito mais clara que a existente entre, por exemplo, Crise da consciência europeia de Hazard e a Ilustração, ou entre aspectos distintos da Ilustração. Aqui, os contornos e a representação são o que o debate histórico quer que sejam. (Tradução minha)

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representação apresentados. Ou seja, o trabalho historiográfico desta tese envolve representar, historicamente, representações criadas textualmente por um sujeito específico. Defendo que a história produzida dentro dos textos de Reinaga apresenta questões que podem ser observadas em qualquer trabalho historiográfico, mesmo que a intenção dele não tenha sido a de produzir história, mas um discurso ideológico historicamente informado. Toda essa reflexão me permite voltar à Jenkins e sua afirmação de que a história apresenta visões sobre o passado e afirmar que, além disso, qualquer uso que se faça do conhecimento dela apresentará visões sobre o passado e sobre a história em si. Essas visões estão englobadas dentro do que estou entendendo como filosofia da história. Por esses motivos, penso que estudar a história ou pensamentos historicamente informados, é também estudar os problemas teóricos que envolvem a nossa relação com o passado e com a história não só nos âmbitos acadêmico e intelectual, mas na vida.

Penso que ao produzir um conhecimento que objetiva um agir político e social, como é o caso de Fausto Reinaga, expressa-se não só os desejos, mas também as diversas concepções filosóficas, éticas e morais pessoais e que são exercitadas cotidianamente. Ao pensar termos e conceitos centrais, como “revolução”, que tratarei no capítulo 2, Reinaga não só levou em consideração e expôs o que desejava que acontecesse, mas também mostrou como o passado influencia, ou pode influenciar, o presente e o futuro, demarcando as conexões entre os/as vivos/as e os/as mortos/as, entre a história e o devir presente e futuro, a partir de concepções e experiências pessoais. Ao fazer a escolha teórica apresentada, busco com ela imbricar autor e obra, vida e texto, realizando assim o caminho metodológico essencial para uma história intelectual.

Para realizar essa tarefa, estudei os diversos livros que Fausto Reinaga publicou desde 1940, ano da publicação do primeiro, até 1991, ano de publicação do último. Apesar do longo período de tempo e do grande número de livros publicados, mais de 30, a análise apresentada no decorrer da tese não terá um caráter exaustivo e detido em cada um desses livros, pois uma das características da obra de Reinaga é a reiteração de assuntos, formas narrativas e a repetição do direcionamento político, das intenções, e permitem a organização deles em grupos. Por isso, é possível detectar os textos mais e menos

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importantes em cada grupo de livros no que diz respeito à sua representatividade do conjunto e para o que pretendo demonstrar.

Uma maneira de agrupar os textos, e que me permitiu uma primeira abordagem do material foi proposta por Gustavo Cruz em seu estudo filosófico do pensamento de Reinaga, publicado em 2013. Escolhi utilizar a periodização de CRUZ, G. R. porque ela apresenta uma divisão mais ou menos consensual entre os analistas da obra de Reinaga, levando em consideração as periodizações já feitas antes e permitindo ampliar as possibilidades interpretativas a partir dela. Essa periodização cria um ambiente de trabalho cuja base já está consolidada e debatida, o que me ajuda a avançar em maneiras diferentes de pensar cada período ou de repensar determinados livros. Concordo com a divisão proposta por CRUZ, G. R. por entendê-la como didaticamente operativa para apreender o pensamento de Reinaga, com destaque para o fato de que ela demarca também a busca deste último em dar um sentido para o seu próprio pensamento, fato importante no estudo que esta tese realiza. Apesar disso, sei que a proposta divisão é apenas um dos pontos de partida possível para refletir sobre o pensamento do autor.

CRUZ, G. R. (2013) divide o pensamento de Reinaga em três etapas: 1) Etapa inicial: marxismo-leninismo, nacionalismo e indigenismo, 2) Etapa indianista e 3) Etapa amáutica. Na primeira etapa estão incluídos os livros: Mitayos y Yanaconas (1940), Víctor Paz Estenssoro (1949), Nacionalismo boliviano. Teoría y programa (1952), Tierra y libertad. La revolución nacional y el indio (1953), Belzu. Precursor de la revolución nacional (1953), Franz Tamayo y la revolución boliviana (1956), Revolución, cultura y crítica (1956), El sentimiento mesiánico del pueblo ruso (1960) e Alcides Arguedas (1960).

Na segunda, estão: “El Cuzco que he sentido” (1963), El indio y el cholaje boliviano. Proceso a Fernando Díez de Medina (1964), La ‘intelligentsia’ del cholaje boliviano (1967), El indio y los escritores de América (1968), La revolución india (1970), Manifiesto del Partido Indio de Bolivia (1970), Tesis India (1971) e América india y Occidente (1974).

Na terceira e última etapa estão: La razón y el indio (1978), El Pensamiento Amáutico (1978), Indianidad (1978), ¿Qué hacer? (1980), Bolivia y la revolución de las fuerzas armadas (1981), El hombre (1981), La revolución amáutica (1981), La era de Einstein (1981), La

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