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Geração ritalina: o boom das vendas do remédio tarja preta pelos olhos do jornalismo literário

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

JORNALISMO

“GERAÇÃO RITALINA”

O BOOM NAS VENDAS DO REMÉDIO TARJA PRETA PELOS OLHOS

DO JORNALISMO LITERÁRIO

MILLOS LANNES KAISER

Rio de Janeiro

2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

JORNALISMO

“GERAÇÃO RITALINA”

O BOOM NAS VENDAS DO REMÉDIO TARJA PRETA PELOS OLHOS

DO JORNALISMO LITERÁRIO

Monografia submetida à Banca de Graduação Como requisito para obtenção do diploma de Comunicação Social – Jornalismo.

MILLOS LANNES KAISER

Orientadora: Profa. Dra. Cristina Rego Monteiro da Luz

Rio de Janeiro

2011

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FICHA CATALOGRÁFICA

KAISER, Millos Lannes

“Geração Ritalina”: o boom nas vendas do remédio tarja preta pelos olhos do Jornalismo Literário. Rio de Janeiro, 2011

Monografia (Graduação em Comunicação Social – Jornalismo) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Escola de Comunicação – ECO.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

TERMO DE APROVAÇÃO

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, avalia a Monografia “Geração Ritalina”: o boom nas vendas do remédio tarja preta pelos olhos do Jornalismo Literário, elaborada por Millos Lannes Kaiser.

Monografia examinada:

Rio de Janeiro, no dia .../.../...

Comissão Examinadora:

Orientadora: Profa. Dra. Cristina Rego Monteiro da Luz Departamento de Comunicação – UFRJ

Prof. Augusto Gazir Martins Soares

Prof. Mario Feijó Borges Monteiro Departamento de Comunicação – UFRJ

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Rio de Janeiro

2011

KAISER, Millos Lannes. “Geração Ritalina”: o boom nas vendas do remédio tarja preta pelos olhos do Jornalismo Literário. Orientadora: Cristina Rego Monteiro da Luz. Rio de

Janeiro: UFRJ/ECO. Monografia em Jornalismo

RESUMO

Esta monografia foi desenvolvida como uma reportagem especial nos moldes do que convencionou-se ser o jornalismo literário. O tema abordado foi o crescimento polêmico dos casos de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) e o conseqüente aumento nas vendas da Ritalina, o medicamento mais receitado para o tratamento da doença. Tentando preencher lacunas que a cobertura jornalística convencional sobre o assunto deixara, o autor envolveu-se no campo pesquisado, consultando-se com um psiquiatra e vivendo uma semana sob os efeitos do remédio tarja preta. Antes, porém, de apresentar o produto, o trabalho faz um mapeamento do jornalismo literário, expondo a controvérsia em relação a sua nomenclatura, suas principais características, suas origens e seus momentos históricos mais emblemáticos. Ao fim, é feito um balanço geral da experiência prática, bem como uma defesa do gênero em questão como forma de se chegar onde o jornalismo imediatista, tão em voga hoje em dia, não chega.

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DEDICATÓRIA

Aos os meus pais, Monica e Beto Kaiser, sem os quais este trabalho jamais ganharia vida.

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“Facts are simple and facts are straight / Facts are lazy and facts are late / Facts all come with points of view / Facts don't do what I want them to / Facts just twist the truth around / Facts are living turned inside out / Facts are getting the best of them / Facts are nothing on the face of things / Facts don't stain the furniture / Facts go out and slam the door / Facts are written all over your face / Facts continue to change their shape”,

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, por me mostrarem desde cedo as coisas belas da vida; à minha irmã, muito melhor do que eu; à minha avó, exímia contadora de histórias; ao meu avô, pela inspiração intelectual e humorística; à minha companheira, dupla, cúmplice e também namorada Luara; aos meus amigos, por serem protagonistas das minhas melhores histórias; à minha orientadora Cristina Rego Monteiro da Luz, pelo incentivo, conhecimento e paciência.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 2. O JORNALISMO LITERÁRIO 2.1. Conceitualizando 2.2. Literário ou narrativo? 3. O GÊNERO NA PRÁTICA 3.1. Camponeses e marinheiros 3.2. Jornalismo com cheiro de novo 3.3. Sexo, drogas e Gonzo

3.4. O jeitinho brasileiro

4. REPORTAGEM “GERAÇÃO RITALINA”

4.1. “Doente, eu?”

5. RELATÓRIO DE PRODUÇÃO

6. CONCLUSÃO

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1. INTRODUÇÃO

“O ideal seria que a poesia fosse cada vez mais informativa e o jornalismo cada vez mais poético”, Gabriel Garcia Márquez

Definir gêneros no jornalismo nunca foi uma tarefa fácil, como bem observa o professor José Marques Melo:

“Classificar gêneros jornalísticos é o maior desafio do jornalismo, como campo do conhecimento, é, sem dúvida, a configuração da sua identidade enquanto objeto científico e o alcance da autonomia jornalística que passa inevitavelmente pela sistemática dos processos sociais e inerentes à captação, registro e difusão da informação da atualidade, ou seja, do seu discurso manifesto. Dos escritos, sons e imagens que representam e reproduzem a atualidade, tornando-se indiretamente perceptível” (MELO, 1994: 98)

Ainda assim, ela é de suma importância. Gêneros servem para orientar os leitores, permitindo-os identificar as formas e os conteúdos dos textos que estão lendo; auxiliam o jornalista na hora de optar pelo tipo de apuração e escrita a ser seguido; funcionam como um diálogo entre emissor e receptor da mensagem, como se um pacto de códigos comuns entre os dois lados fosse firmado; identificam qual é a intenção do autor – informar, opinar, interpretar, divertir ou, no caso do tipo de jornalismo que estudaremos a seguir, tudo isso ao mesmo tempo. Porém, se em 1985 José Marques Melo já ressaltava a complexidade da questão, hoje, vinte e seis anos depois, ela apresenta-se ainda mais embaralhada. E exatamente por isso merece ser vista com mais atenção.

A revolução digital permitiu a emersão de inúmeras mídias novas e com elas novos formatos para a prática jornalística. Blogs, Twitter e demais redes sociais transformaram qualquer usuário da rede em um produtor de conteúdo em potencial. Em meio à avalanche de informação criada e recriada, um estranho fenômeno se observa: o retorno do ser humano a sua tradição oral, quando o compartilhamento das experiências pessoais era feito através da fala, cada qual a sua maneira, de acordo com suas vivências e pontos de vista. Assim era a

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vida antes do advento da literatura romântica e da supervalorização da informação sepultarem a arte da narrativa (BENJAMIN, 1985). Mas, ao que tudo indica, ela renasceu. Ou melhor, reencarnou, na forma de imagem, vídeo, áudio, texto... as possibilidades são tão distintas quanto as combinações possíveis entre “zeros” e “uns” em um código binário. No cibermundo, todos querem ser narradores.

Na esteira deste movimento, um gênero jornalístico em particular, famoso justamente por seus textos autorais, que buscavam ser tão prazerosos e envolventes quanto ouvir uma boa história, está retomando seu espaço, depois de pelo menos três décadas relegado na imprensa brasileira. O jornalismo literário, independentemente da controvérsia existente sobre qual seria sua nomenclatura mais adequada, está na moda - e não faltam provas disso. Livros sobre o assunto e antologias de seus maiores baluartes inundam as estantes das livrarias. Nos cinemas, clássicos do gênero não param de ganhar adaptações, como é o caso do exitoso Capote (2005), inspirado no livro-reportagem A Sangue Frio, de Truman Capote (no momento, uma versão para Teste do Refresco do Ácido Elétrico, de Tom Wolfe, está sendo filmada). Cursos, seminários e workshops abordando a teoria e a prática do jornalismo literário não param de pulular por todo o país. Em 2005, foi criada a Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). E, por fim, desde 2006 o Brasil conta com uma publicação especialmente dedicada a esta modalidade de jornalismo: a piuaí, que atualmente tem tiragem mensal de 100 mil exemplares e alcançou tamanha relevância nacional que recentemente chegou a motivar a queda de Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa, com um perfil seu publicado.

Pessoalmente, o jornalismo literário sempre me seduziu, por representar uma alternativa aos textos frios e metódicos produzidos por parte considerável do jornalismo convencional. Desde que optei pela carreira jornalística, sempre procurei manter uma preocupação estética com os meus textos, acreditando que, além de informar, a leitura deve ser uma experiência saborosa.

Mas o que vem a ser, afinal, o jornalismo literário? Esta é a pergunta central que este trabalho tentará responder no Capítulo 2. Para tal, em Conceitualizando, começaremos esmiuçando uma das diversas definições para o gênero, apoiando-se no livro Jornalismo

Literário, do jornalista Fabio Pena. Em seguida, ouviremos o que teóricos e profissionais da

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“literário”, em Literário ou narrativo? Para recontar as origens do gênero, em Camponeses e

marinheiros, no Capítulo 3, iremos nos basear na versão de Monica Martinez e Walter

Benjamin, que defendem que a prática de se contar uma história com um pé na realidade dos fatos e o outro na experiência pessoal é anterior ao próprio jornalismo. Corroborando as opiniões dos dois autores, o trabalho pincelará momentos das obras de Daniel Dafoe, Honoré de Balzac e Charles Dickens, três escritores do movimento realista que já nos séculos 18 e 19 lançavam mão de técnicas bastante similares às empregadas pelos jornalistas ditos literários anos depois.

Em Jornalismo com cheiro de novo, falaremos do New Journalism, a quem geralmente atribui-se a criação do jornalismo literário. Apesar deste trabalho descordar desta crença, não poderíamos deixar de tratar o movimento norte-americano, dada sua inegável importância histórica, ressonante até hoje. Será feito um resgate do contexto sócio-cultural que permitiu seu aparecimento, além de uma descrição de suas características estilísticas mais marcantes, de acordo com o próprio Tom Wolfe, possivelmente o maior representante do movimento.

Depois, em Sexo, Drogas e Gonzo, será dada atenção ao Gonzo Journalism, espécie de filho bastardo do New Journalism,. Personificado na figura do excêntrico jornalista Hunter Thompson, o Gonzo levou às últimas conseqüências a filosofia de sentir na pele uma experiência para melhor descrevê-la, um princípio que foi levado a cabo na parte prática deste trabalho. As pesquisas da jornalista Cecília Gianetti sobre o tema foram as fontes mais utilizadas nesta parte.

Em seguida, em O jeitinho brasileiro, o foco desviará para o Brasil, revelando aquela que podemos considerar como uma das obras pioneiras do jornalismo literário no país – Os

Sertões, de Euclides da Cunha – e a primeira incursão formal de um meio de comunicação

brasileiro na seara, com a revista Realidade, que alcançou enorme sucesso na década de 60 e que muito bebeu na fonte do New Journalism e sua maneira inventiva de contar histórias.

Finda a explicação sobre o que é – ou, pelo menos, o que não é – o jornalismo literário, apresentaremos a parte principal deste trabalho. Trata-se de uma reportagem, intitulada “Geração Ritalina”, onde tentaremos colocar em prática grande parte das técnicas e métodos do gênero investigado no capítulo anterior. A pauta escolhida é o surto nos diagnósticos de

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TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) e o aumento vertiginoso das vendas de Ritalina. A apuração consistirá, basicamente, em pesquisas bibliográficas e entrevistas. A fim de averiguar a flexibilidade e a subjetividade do diagnóstico do transtorno, o autor irá consultar-se com um psiquiatra. Para comprovar a efervescência do mercado negro, irá tentar comprar o remédio ilegalmente. E, para melhor entender o efeitos do remédio tarja preta no organismo humano, se medicará e durante uma semana.

O Capítulo 5 irá conter um roteiro de produção da reportagem. Serão desvendados os bastidores de todo o trabalho jornalístico realizado: como se deu a escolha da pauta, quais foram os métodos de apuração usados, como foram escolhidos os personagens e quais foram as maiores dificuldades encontradas pelo caminho. Finalmente, na Conclusão, faremos um quadro dos resultados da experiência, expondo seus erros e acertos, baseando-se na repercussão que a publicação da matéria provocou (uma versão reduzida foi publicada na revista Trip, em outubro de 2011), além de ensaiar uma perspectiva da capacidade mutante de atualização do jornalismo literário frente à convergência de plataformas e conteúdos produzidos midiaticamente na atualidade.

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2. O JORNALISMO LITERÁRIO

“Há, sim, uma fronteira entre jornalismo e ficção. Mas é uma fronteira permeável, que permite uma útil e amável convivência. No passado, grandes escritores foram grandes jornalistas. Nada impede que esta tradição tenha continuidade. Jornalismo e literatura, uma fértil convivência”, Moacyr Scliar

2. 1. Conceitualizando

Não podemos desvincular os gêneros jornalísticos do modo de produção dos meios de comunicação de massa e das manifestações culturais de cada sociedade onde as empresas jornalísticas estão inseridas. Eles precisam, portanto, serem estudados como um fenômeno histórico. Tentar realizar uma classificação universal, veremos a seguir, é quase impossível, para não dizer irresponsável. Os gêneros estão em constante transformação. O que é um gênero hoje, amanhã não será mais ou o que pode ser um gênero em um determinado país não é em outra sociedade. Gêneros aparecem, crescem, mudam e desaparecem conforme o desenvolvimento tecnológico e cultural de cada nação.

Se os gêneros são determinados pelo estilo e se este depende de uma relação dialógica que o jornalista deve manter com o seu público, apreendendo seus modos de expressão (linguagem) e suas expectativas (temáticas), é evidente que a sua classificação restringe-se a universos culturais delimitados. Por mais que as empresas jornalísticas assumam hoje uma dimensão transnacional em sua estrutura operativa, permanecem contudo as especificidades nacionais ou regionais que ordenam o processo de recodificação das mensagens importadas. Tais especificidades não excluem as articulações interculturais que muitas vezes subsistem através das línguas e são prolongamentos do colonialismo (MELO, 1985: 14)

Exemplificando a ideia fora do mundo do jornalismo, talvez ela fique mais clara. Recorramos ao cinema: filmes cult podem ser um gênero em certas locadoras ou em certas salas de exibição, mas com certeza não o serão em outras, até porque um filme cult pode

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também ser comédia, drama, aventura ou suspense. Em alguns meios, o rótulo se faz necessário, faz sentido; em outros, é completamente dispensável. Para a realização deste trabalho, agrupar o jornalismo em gêneros foi pertinente. E é sobre um desses gêneros em particular que vamos nos debruçar.

No livro Jornalismo Literário, o jornalista Felipe Pena postula que o gênero se sustenta em sete pilares principais, o que ele chama de “teoria da estrela de sete pontas, já que são sete diferentes itens, todos imprescindíveis, formando um conjunto harmônico e retoricamente místico, como a famosa estrela” (PENA, 2006: 13). O primeiro deles: potencializar os recursos do jornalismo. O jornalista literário não ignora o que aprendeu no jornalismo diário, tampouco joga suas técnicas narrativas no lixo. O que ele faz é desenvolvê-las de uma maneira que acaba gerando novas estratégias, permitindo-o alcançar outros resultados. Mas os princípios básicos de toda redação que se preze – apuração rigorosa, observação atenta, abordagem ética, clareza etc – são mantidos.

A segunda ponta da estrela é o rompimento com duas preocupações básicas do jornalismo contemporâneo: a periodicidade e a atualidade. O jornalismo literário não é, ou pelo menos não deveria ser, ameaçado pelo deadline, a famigerada hora de fechamento das edições. Ele tampouco é refém da novidade, do desejo do leitor em consumir os fatos o mais imediatamente possível, sendo essa a terceira característica.

O quarto item chama-se cidadania. O jornalista, quando o escolhe o tema de seu texto, deve pensar em como sua abordagem pode contribuir para a formação do cidadão, para o bem comum. Parece ingênuo dizer isso, mas o espírito público, tão fora de moda hoje em dia, deve, sim, ser lembrado sempre em todos os processos de confecção de uma matéria jornalística.

O quinto é o descarte das regras do lead (estratégia narrativa inventada por jornalistas americanos no começo do século XX com o intuito de conferir objetividade. Na introdução de uma matéria, o jornalista deveria responder a seis questões básicas: Quem? O quê? Como? Onde? Quando? Por quê?). A introdução da reportagem “Geração Ritalina”, por exemplo, inicia com um relato pessoal de uma visita ao psiquiatra. As respostas às perguntas do lead vão sendo pouco a pouco respondidas no decorrer da leitura. Não se trata de um desvio às regras do jornalismo tradicional pura e simplesmente ou de um problema de vaidade do autor. Mas sim de uma busca por um texto que informe e entretenha o leitor na mesma medida:

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Sem se afastar da trilha da informação, o jornalista literário busca torná-la também saborosa, enriquecendo-a com recursos da narrativa de ficção. Ao se valer desses instrumentos, ele, longe de querer embonitar seu texto, está empenhado numa indispensável empreitada de sedução – sem a qual corre o risco de simplesmente não ser lido” (WERNECK, 2004: 525)

A sexta ponta da estrela supõe, na hora da apuração, não se limitar aos famosos entrevistados de plantão, os indivíduos que ocupam algum cargo público ou função específica e sempre aparecem na imprensa, as ditas fontes oficiais. É preciso criar alternativas, ouvir o cidadão comum, a fonte anônima, as lacunas, os pontos de vista raramente abordados. A última é a perenidade. Diferentemente das reportagens do cotidiano, o objetivo aqui é a permanência. “No dia seguinte, o texto deve servir para algo mais do que simplesmente embrulhar o peixe na feira” (PENA, 2005: 13). A boa matéria deve ter o mesmo papel de um bom livro: seus efeitos devem reverberar por gerações, influenciando o imaginário coletivo e individual em diferentes contextos históricos. Para isso ocorrer, uma apuração extensa e criteriosa, seguida de um texto que consiga costurar os resultados da pesquisa da forma mais envolvente possível, é imprescindível. Terminada sua explanação acerca da teoria da estrela de sete pontas, o autor ensaia um resumo do que considera ser, afinal, o jornalismo literário:

Ao juntar os elementos presentes em dois gêneros diferentes, transformo-o permanentemente em seus domínios específicos, além de formar um terceiro gênero, que também segue pelo inevitável caminho da infinita metamorfose. Não se trata da dicotomia ficção ou verdade, mas sim de uma verossimilhança possível. Não se trata de uma oposição entre informar ou entreter, mas sim de uma atitude narrativa em que ambos estão misturados. (PENA, 2006: 21)

Vitor Necchi, na introdução de A (im)pertinência da denominação Jornalismo

Literário, também faz tentativa semelhante:

Mais do que uma escrita que flerta com técnicas típicas do labor literário e se propõe a instigar, seduzir, provocar sensações e despertar o interesse do leitor, o chamado

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jornalismo literário foge de olhares pré-formatados e rende textos – sejam reportagens ou perfis – que surpreendem a partir de uma pauta que rompe com visões óbvias ou hegemônicas sobre a realidade. Os autores, na hora de contar histórias não-ficcionais, principalmente nas páginas de revistas, valem-se de recursos típicos da literatura. Profunda observação, imersão na história a ser contada, fartura de detalhes e descrições, texto com traços autorais, reprodução de diálogos e uso de metáforas, digressões e fluxo de consciência – a gama de recursos é ampla para que a realidade seja expressa de maneira elaborada e sob os mais variados aspectos. Na linha dessa vertente, vigora um profundo humanismo e sepultam-se definitivamente alguns mitos do jornalismo, como impessoalidade, imparcialidade e a primazia do lead (NECCHI, 2009: 103)

2.2. Literário ou narrativo?

Parece unânime o fato de que existe um tipo de jornalismo mais aprofundado, feito com mais calma e mais requintes do que o praticado pela maioria da imprensa. A polêmica é a respeito de sua denominação mais adequada, e não sobre sua existência. Neste trabalho, apesar de expor o que profissionais e teóricos de renome pensam sobre o assunto, não chegaremos a nenhuma conclusão sobre qual seria a nomenclatura mais correta. Nossa maior preocupação aqui será mapear o gênero, apresentando suas principais características, sua origem e seus representantes. O nome jornalismo literário será adotado pura e simplesmente por ser mais amplamente utilizado.

Existe bom jornalismo e mau jornalismo. Só. Jornalismo literário é um nome pomposo, que quer se aproximar da eternidade da literatura. Tem a pretensão de ser algo maior que eu não acho maior. O que a piauí faz é contar bem uma história (PIAUÍ, 2006)

A declaração é de João Moreira Salles, jornalista, documentarista e fundador da revista

piauí. Apesar da publicação conter grande parte dos princípios do jornalismo literário, e ser

encarada por muitos como o veículo embaixador do gênero no Brasil, o próprio Moreira Salles refuta o termo e sua natureza, tendo declarado publicamente preferir o rótulo jornalismo

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narrativo. Abaixo, um texto seu em defesa de um jornalismo mais inventivo, livre e de olho no que acontece ao largo do radar da grande mídia, três atributos importantes do jornalismo literário:

O formato grande fará com que se encontre bastante coisa para ler e ver em piauí. Para que ela dure um mês nas mãos dos leitores. Para que as reportagens e narrativas terminem quando o assunto terminar, em vez de ficarem espremidas porque o espaço acabou. O tamanho maior favorecerá a inventividade, possibilitará a publicação de imagens reveladoras sem perda de nuances e detalhes. Ela dará importância ao que, por ignorado, é tido como insignificante. Tratará de achar novidades no que, por esquecido, parece velho ou ultrapassado. A revista não será ranzinza nem chata” (PIAUÍ, 2006)

A jornalista Eliane Brum, autora do livro A vida que ninguém vê – reunião de

reportagens-crônicas publicadas no jornal Zero Hora, também expressa preocupação sobre o

tema:

Receio que a classificação “jornalismo literário” possa levar a distorções. Por um lado, acho curiosa a necessidade de atribuir ao texto jornalístico qualidade “literárias”, como se, ao deparar com um bom texto jornalístico, fosse preciso promovê-lo a algo mais elevado. Por outro, ao classificarem um texto como literário podemos induzir à interpretação de que os detalhes da narrativa são ficcionais – resultando da imaginação e não de uma apuração exaustiva. Ou seja, me parece que ao colar o adjetivo “literário”, de um ou de outro modo, enfraquecemos o conteúdo do substantivo “jornalismo”. Em resumo: acho que é um dos muitos casos em que o adjetivo não acrescenta, só reduz. (BRUM, 2006: 42)

A relação entre criação literária e o fazer jornalístico sempre foi problemática. Parece que aquela se orienta para o importante, enquanto esta se orienta para o urgente. (MEDEL, 2004: 15). Se praticarmos um exercício, porém, de reduzir as duas práticas a suas fundações mais básicas, elas ficam mais próximas do que nunca, quase indissociáveis. O jornalista é um escritor, trabalha com palavras e pode fazê-lo com estilo ou não. Quando têm valor,

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jornalismo e literatura servem para o descobrimento de uma outra verdade, de um lado oculto, a partir da investigação e acompanhamento de um acontecimento.

Para o escritor jornalista ou o jornalista escritor a imaginação e a vontade de estilo são asas que dão valor a esse valor. Seja uma manchete que é um poema, uma reportagem que é um conto, ou uma coluna que é um fulgurante ensaio filosófico. Esse é o futuro. (MEDEL, 2004: 16)

Com efeito, este trabalho também acredita que esse é o futuro, ainda mais diante de um jornalismo de falsa retórica da objetividade, que em nada garante, em seu aparente estilo declarativo, ser o portador da verdade. Diante de um jornalismo que ainda não percebeu que a verdade transparente não existe e que inevitavelmente carregará a parcialidade e a subjetividade do informador. Não é fácil falar de literatura e de jornalismo abstratamente, pois ambos os campos comportam práticas muito distintas. Sem dúvidas, há dimensões da literatura que pouco ou nada têm a ver com o jornalismo e vice-versa. Mas certamente há um espaço compartido entre os dois – e os dois ramos só têm a ganhar com isso.

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3. O GÊNERO NA PRÁTICA

3.1. Camponeses e Marinheiros

A versão mais recorrente sobre as origens do jornalismo literário é a de que ele nasceu nos anos 60, a partir do New Journalism. Para Monica Martinez, todavia, sua essência antecede, e muito, o movimento norte-americano:

Como toda boa narrativa, o jornalismo literário presta muito mais atenção do que o jornalismo tradicional ao uso da oralidade, ou seja, à forma com que as pessoas expressam seus pensamentos, sentimentos e suas ações, enfim, sua forma de ver e de se relacionar com o mundo. Não seria incorreto, sob este ponto de vista, dizer que seus primórdios remontam à aurora da civilização. Tempo em que o ser humano se deu conta de que era finito e que, para lidar com o irremediável fato de sua mortalidade, começou a se questionar, pensar, simbolizar e, sobretudo, comunicar suas inquietações e descobertas sobre essas questões que continuam nos intrigando até hoje, como a origem da vida, de onde viemos, para onde vamos, quem somos... (MARTINEZ, 2009: 72)

Seguindo o raciocínio da autora, os jornalistas literários emulariam com palavras a mesma riqueza imagética dos primeiros contadores de histórias. Esses profissionais teriam a capacidade de tecer narrativas com símbolos, metáforas e imagens de fácil assimilação para todos. Para exemplificar na prática, podemos dizer que em vez de gastar linhas e linhas explicando que um determinado político é, digamos, inescrupuloso, poder-se-ia dizer simplesmente que o sujeito é uma raposa. O uso do adjetivo, vetado em grande parte dos manuais de redação em nome da imparcialidade, aproxima autor e leitor, a partir do compartilhamento de um mesmo código - raposa todo mundo sabe o que é.

Autores como o norte-americano Normam Sims, professor da Univerdade de Massachussets, sugere que o Jornalismo Literário é filho legítimo do realismo social, movimento aderido por escritores do séc. XVII e XVIII. O londrino Daniel Dafoe (1660-1731), famoso pela obra Robson Crusoé, é um exemplo. Em 1722, Dafoe publicou O

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segundo o escritor, vitimou 100 mil ingleses. “Nós não tínhamos jornais impressos naqueles dias para espalhar rumores e reportar coisas”, o autor explica logo no primeiro parágrafo da obra. “Mas relatos como este a seguir eram coletados a partir de cartas de mercadores, que por sua vez eram transmitidas oralmente apenas. Essas coisas não espalhavam-se por toda a nação, como agora”, completa.

Outro que merece destaque é Honoré de Balzac (1799 – 1850), escritor exímio na arte de caracterizar personagens. Além de produzir diversos renomados livros ficcionais, Balzac aventurou-se também pelo campo da não-ficção. Em Os Jornalistas, ele faz uma feroz crítica à imprensa de seu tempo. Partindo de dados reais, como estatísticas de crime, o autor francês descrevia com riqueza de detalhes cenas de crime e assassinatos. Hoje em dia, suas obras poderiam facilmente ser colocadas na estante do jornalismo literário.

Do outro lado do Canal da Mancha, outro escritor a mesclar realismo social com jornalismo e literatura foi o inglês Charles Dickens (1812 – 1870). Em pleno auge da revolução industrial, com o reino britânico na posição de maior império já visto no planeta, Dickens optou por abordar o povo que estava à margem de toda e qualquer abundância, como as crianças trabalhadoras da classe operária inglesa, caso da obra Oliver Twist.

Tanto Balzac quanto Dickens são exemplos de que mesmo obras que flutuam indecisas entre os campos do jornalismo e da literatura têm um valor jornalístico inegável, servindo como registros da época muito mais contundentes que grande parte do acervo deixado pela imprensa do mesmo período.

No texto O Narrador, Walter Benjamim defende que a arte de narrar uma história está quase extinta, uma vez que é cada vez mais raro encontrar pessoas que saibam fazê-la de forma correta. Intercambiar experiências é hoje uma tarefa difícil. E, para Benjamin, isso acontece devido ao surgimento da literatura romântica, onde o narrador não tem objetivo de descrever sua experiência. O romance distingue-se da narrativa por não proceder da tradição oral nem da escrita. Nele o indivíduo é isolado, não recebe conselhos muito menos os sabe dar.

Através de representações arcaicas, Benjamin apresenta dois grupos de narradores: o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. O camponês sedentário é aquele que possui tradições, está preso às suas raízes históricas. Já o marinheiro comerciante caracteriza-se por

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ser uma pessoa que viajou muito e, por isso, acumula histórias para contar – os dois teriam sido os primeiros mestres na arte de narrar.

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão - no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica. (BENJAMIN, 1985: 78)

Benjamin preocupa-se também com a supervalorização da informação. Para o autor, ela é tão estranha à narrativa quanto o romance, mas seria ainda mais ameaçadora. A informação seria responsável pelo declínio da narrativa, pois através dela os fatos chegam acompanhados de explicações e, a seu ver, uma das características mais marcantes da arte narrativa está justamente em evitar explicações. A informação precisa se explicar no momento em que é anunciada. Ao contrário, a narrativa não tem a necessidade de se explicar naquele dado instante, mas pode se desenvolver por um tempo indeterminado. Segundo Benjamin, a narrativa é uma forma artesanal de comunicação, que não tem o interesse em transmitir as coisas narradas como se fosse um Boletim de Ocorrência policial. E tampouco se preocupa em ficar datada.

A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. (BENJAMIN, 1985: 81)

Ou seja, de certa forma, podemos dizer que o que decidiu-se chamar de jornalismo literário nada mais é do que um resgate da tradição oral do ser humano. Um tempo em que as narrativas envolviam seus receptores, justamente por conter sempre um pouco de seus

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emissores. O jornalista literário de hoje em dia replica as tradições narrativas dos povos da aurora da civilização. Ele é o camponês sedentário, o marinheiro aventureiro, o herdeiro dos escritores do realismo social dos séculos passados, o artesão da informação – sem, no entanto, deixar-se tolher por ela.

3.2. Jornalismo com cheiro de novo

Vimos que as bases do jornalismo literário já existiam muito antes do surgimento do

New Journalism, embora não falte gente que pensa o contrário ou até mesmo confunda as

duas coisas. Ainda assim, não podemos reduzir a importância do movimento. Para melhor compreendê-lo, é vital rememorarmos o contexto histórico que permitiu sua emersão.

Estados Unidos, décadas de 60. O país estava dividido entre apoiadores e opositores da guerra do Vietnã. Ebulia em manifestações culturais, sociais e comportamentais. Questionamento e ruptura eram palavras de ordem, especialmente entre os jovens. A contracultura ganhava força. Os hippies pregavam paz e amor livre. Retorno ao primitivismo. Culto à espiritualidade e ao misticismo. Redescoberta dos escritores beatnicks – Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William Burroughs, dentre outros –, que na década anterior já pregavam ideais bem parecidos. Os ventos de mudança sopravam forte, chegando a todas as instituições – incluindo no próprio jornalismo.

Não se sabe ao certo quando ou quem usou pela primeira vez a expressão New

Journalism. Mas foi esse o nome dado o conjunto de reportagens que mergulhavam de corpo e

mente na realidade, captando não só seus aspectos objetivos, mas também os subjetivos, imateriais. Alguns jornalistas da época não se contentavam em interagir por apenas determinados minutos com seus personagens, chegando a conviver com os mesmos em seus ambientes de moradia, trabalho e lazer, fazendo parte de seu cotidiano. Do mesmo modo, também não se satisfaziam em escrever relatórios frios e impessoais, enquanto uma certa excitação artística se fazia presente em diversas outras profissões.

Em Radical Chique e o Jornalismo Literário, Tom Wolfe faz um apanhado das técnicas mais utilizadas pelo grupo:

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1. ponto de vista: centralização da narrativa sob a perspectiva de um dos personagens, incluindo o narrador, que de forma mais intensa conduz ao fluxo de consciência, uma espécie de penetração no pensamento do personagem com base no que este exterioriza;

2. símbolos do status de vida ou do cotidiano: elementos como gestos, hábitos,

vestuários, pertences, objetos, decorações, ambientes, enfim, tudo que sirva para ajudar a captar a realidade dos personagens e cenários relatados, situando-os próximos do leitor;

3. diálogos: devem ser soltos, envolventes, de modo mais natural possível para dar a sensação de verossimilhança

4. construção cena-a-cena: recurso que dinamiza o acontecimento, trazendo-o do seu momento passado de ocorrência para o presente, numa seqüência de ações que permite ao leitor acompanhar o encadeamento dos fatos à medida em que eles se desenvolvem.

Essas e outras artimanhas podem ser encontradas em abundância não só nas obras de Wolfe, como também de Truman Capote, Norman Mailer e Gay Talese – o “quarteto fantástico”, digamos assim, do New Journalism. Foram eles os principais propagadores do movimento, tanto pela força de suas narrativas e da peculiaridade de suas histórias e personagens quanto pelas suas próprias personalidades, tão ou mais extravagantes que as retratados em seus textos. Opondo-se aos textos pasteurizados dominantes no resto da imprensa, os “novos jornalistas” buscavam produzir textos que se aproximavam de obras de arte:

A reportagem realmente estilosa era algo com que ninguém sabia lidar, uma vez que ninguém costumava pensar que a reportagem tinha uma dimensão estética. (WOLFE, 2005: 22)

O que me interessava não era simplesmente a descoberta da possibilidade de escrever não-ficção apurada com técnicas em geral associadas ao romance e ao conto. Era isso e mais. Era a descoberta de que era possível na não-ficção, no jornalismo, usar qualquer recurso literário, dos dialogismos tradicionais do ensaio ao fluxo de consciência, e usar muitos tipos diferentes ao mesmo tempo, ou dentro de um espaço relativamente curto [...] para excitar tanto intelectual como emocionalmente o leitor. (WOLFE, 2005: 28)

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O New Journalism, porém, está longe de ser uma unanimidade. A jornalista norte-americana Lilian Ross, por exemplo, influência confessa de Truman Capote, refuta a importância do movimento e sua suposta inventividade. Ross sabe do que fala. Em 1952, ela já publicava livros-reportagens - como Filme, que narra os bastidores das filmagens de A

Glória de um covarde (1951), de John Huston - com formatos muito semelhantes aos que

Capote e sua turma alegavam ter inventado uma década depois. Em uma entrevista realizada na faculdade Cásper Libero, em São Paulo, ela afirmou:

Não existe nada disso. Há boa escrita e má escrita no jornalismo. Todo o barulho em torno do New Journalism foi promocional, e os esforços que nasceram ao redor dele são artificiais. Podem ajudar nas vendas, mas não a escrever. Não havia nada de novo nele além da irresponsabilidade de grande parte do material. (TURRER, 2006: 17)

3.3. Sexo, Drogas e Gonzo

Vimos que, comparando com o resto da imprensa da época, não havia muitas regras restringindo a prática do New Journalism. Na segunda metade da década de 60, porém, surgiu uma corrente que não seguia regra alguma – em certos casos, nem mesmo o compromisso com a verdade era respeitado. Tratava-se de uma interpretação extremada do movimento jornalístico surgido poucos anos antes, capitaneada pela figura excêntrica do doutor em jornalismo Hunter S. Thompson (1937-2005). A ela se deu o nome de Gonzo. Também chamada de jornalismo fora-da-lei, jornalismo alternativo e cubismo literário, o gênero desobedecia padrões e normas, focando sua atenção em quatro grandes temas: sexo, drogas, esporte e política.

Bill Cardoso, jornalista e amigo de Thompson foi quem cunhou o termo em uma carta sobre o artigo: "Eu não sei que porra você está fazendo, mas você mudou tudo. É totalmente gonzo" (GIANETTI, 200: 88). Segundo Cardoso, a palavra originou-se da gíria franco-canadense gonzeaux, que significaria algo como "caminho iluminado".

Não é que Thompson acreditasse que a ficção fosse um gênero superior ao jornalismo. Nada disso. Ele simplesmente achava que as duas categorias eram artificiais (GIANETTI,

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2002: 18) e que ambas, quando empregadas da melhor forma possível, eram caminhos diferentes e válidos para um mesmo fim: informar alguém sobre alguma coisa. Uma peça literária, seja ela de ficção ou não, cujo principal objetivo seja o de informar, necessita de um jeito ou de outro ser verossímil. Ou seja, precisa ser semelhante a verdade, precisa parecer ser verdadeiro.

A primeira e talvez mais importante reportagem Gonzo chama-se Hell´s Angels - Medo

e Delírio Sobre Duas Rodas, publicada em partes pela revista Nation, em 1965, e na forma de

livro no ano seguinte. Nela, Thompson exacerbou as técnicas de imersão de Charles Dickens descritas anteriormente, vivendo por dezoito meses infiltrado na temida gangue de motociclistas Hell`s Angels. Sua apuração prolongada acabou por derrubar uma série de mitos sobre o grupo, espalhados pelo então Secretário de Segurança da Califórnia, Thomas C. Lynch. Os relatórios oficiais traziam denúncias de estupro, vandalismo e brigas causadas pelos motoqueiros, muitas delas baseadas em evidências bastante questionáveis. "Trazia, por exemplo, uma denúncia de estupro que havia sido feita pela vítima às risadas, sem que o exame de corpo delito tivesse encontrado sinais de penetração forçada" (GIANETTI, 2002: 28).

Outro trabalho famoso de Thompson foi sua idiossincrática cobertura de uma corrida de motos no deserto de Nevada para a revista Sports Illustrated. Na companhia de um amigo advogado, ele partiu em direção a Las Vegas, mas logo deixou de lado a competição para mergulhar em uma profunda análise sociológica dos viciados em jogo, drogas e demais tipos degenerados que costumam rondar cassinos. O relato é alucinado, repleto de digressões e movido sob o efeito de todos os tipos de drogas imagináveis, que a dupla ia consumindo durante a viagem – o uso de entorpecentes, aliás, é uma constante nos textos de Thompson. O artigo foi recusado pela Sports Illustrated, mas ganhou destaque em duas edições da Rolling

Stone, sendo publicado em 1971. Mais tarde ele viraria o livro Medo e Delírio em Las Vegas

e, décadas depois, um filme homônimo, com o ator Johnny Depp no papel de Thompson.

3.4. O jeitinho brasileiro

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literatura para contar histórias reais data de 1902. Trata-se do pioneiro Os sertões, do engenheiro Euclides da Cunha (1866 – 1909), que conta a ação do exército na destruição do arraial de Canudos, no interior do nordeste brasileiro, publicado originalmente em 1897, em forma de reportagens no jornal O Estado de S. Paulo.

Republicano, Cunha partiu de São Paulo acreditando na versão oficial de que o movimento de insurreição na região pretendia restaurar a monarquia. Chegando lá, porém, descobriu uma realidade completamente diferente. Os perigosos insurgentes não passavam de humildes agricultores, parias sociais, tentando sobreviver em meio a latifúndios, desemprego endêmico e uma seca castigante. A salvação milagrosa residia na figura de Antônio Vicente Mendes Maciel, o messias Antonio Conselheiro. A ação do carismático líder não agradava à elites da região, formada pelo clero e pelos grandes fazendeiros, que organizaram quatro expedições militares até cumprir seu objetivo: matá-lo.

Há diversos pontos de encontro entre a obra de Cunha e o jornalismo literário. No lugar de entrevistar os heróis, confiar somente nas fontes oficiais, o autor deu voz às pessoas comuns, mesmo com todos seus problemas e limitações. Mais que isso, Cunha conviveu com seus personagens, passando quase um ano no sertão nordestino. Escrevia o que via e o que não via, recorrendo a versão de outrem quando necessário. Replicava longos diálogos e não tinha medo de imaginar certas situações que não presenciara em pessoa, acreditando que o recurso era válido quando o objetivo fosse fisgar o leitor e tornar mais prazerosa a leitura. Como exemplo, eis sua descrição do momento em que Beatinho é informado sobre a morte de seu mestre:

Antônio, o Beatinho

Um deles era Antônio, o Beatinho, acólito e auxiliar do Conselheiro. Mulato claro e alto, excessivamente pálido e magro, ereto o busto adelgaçado. Levantava, com altivez de resignado, a fronte. A barba rala e curta emoldurava-lhe o rosto pequeno animado de olhos inteligentes e límpidos. Vestia camisa de azulão e, a exemplo do chefe da grei, arrimava-se a um bordão a que se esteava, andando. Veio com outro companheiro, entre algumas praças, seguido de um séquito de curiosos.

Ao chegar à presença do general, tirou tranqüilamente o gorro azul, de listras e bordas brancas, de linho; e quedou,

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correto, esperando a primeira palavra do triunfador. Não foi perdida uma sílaba única do diálogo prontamente travado.

- Quem é você ?

- Saiba o seu doutor general que sou Antônio Beato e eu mesmo vim por meu pé me entregar porque a gente não tem mais opinião e não agüenta mais. E rodava lentamente o gorro nas mãos lançando sobre circunstantes um olhar sereno.

- Bem. E o Conselheiro ?. . .

- O nosso bom Conselheiro está no céu ... (CUNHA, 1963: 456-457)

Outra experiência brasileira dentro do jornalismo literário digna de menção foi a revista

Realidade, da Editora Abril. Com o primeiro número circulando em abril de 1966 e com o

objetivo de ser “a revista dos homens e das mulheres inteligentes que querem saber a respeito de tudo” a publicação se tornou uma das mais bem-sucedidas experiências comerciais na imprensa brasileira, chegando a vender 500 mil exemplares por mês. Apesar de ter sido comercializada até 1976, seus dois primeiros anos de vida são considerados os mais gloriosos.

Nesses tempos, a sociedade brasileira passava por profundas transformações. Tentava levantar-se do golpe militar de 1964. O êxodo rural, mais volumoso do que nunca, inflava os centros urbanos. A revolução sexual e as drogas apraziam a carne e a mente da juventude. A classe média se intelectualizava e se politizava, tinha fome de informação, queria saber o que se passava por debaixo dos panos camuflados do regime militar. A Realidade chegava no mercado editorial com o jogo ganho: seu conteúdo era tudo o que o leitor brasileiro buscava, porém não encontrava em outros veículos.

A publicação foi a experiência brasileira mais próxima do New Journalism que tivemos. Pode-se dizer que a equipe de Realidade, consciente ou inconscientemente, replicava aqui boa parte das ideias recém difundidas no país da América do Norte. José Hamilton Ribeiro, Sérgio de Souza (1935- 2008), Narciso Kalil, Luiz Fernando Mercadante e Roberto Freire são alguns dos membros da primeira equipe da revista, responsáveis por textos primorosos. A seguir, um excerto da reportagem A vida por um rim, produzida pelas mãos de José Hamilton Ribeiro, famoso por sua cobertura da Guerra do Vietnã, onde perdeu uma perna ao pisar em uma mina terrestre:

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Válter Mendes de Oliveira ia morrer: seus rins não funcionavam mais. Médicos do Hospital das Clínicas de São Paulo o submeteram então — era a primeira vez no Brasil — a uma das mais difíceis operações que cirurgiões do mundo inteiro vêm tentando. Válter Mendes de Oliveira, 41 anos, três filhos, sócio de uma torrefação em São Paulo, é bastante cuidadoso com a saúde. Ele já andou bem ruim e agora tem suas cautelas. Logo cedo, na hora do café, toma a sua pílula diária. É um remédio caro que vem do exterior e que só seis pessoas no Brasil usam. (RIBEIRO, 2006: 27-28)

Difícil não continuar a leitura de um texto que inicia com “Valter Mendes de Oliveira ia morrer...”. Mais difícil ainda encontrar um jornal ou revista semanal hoje em dia que permitisse uma introdução nos mesmos moldes. A criatividade e a autoralidade eram estimuladas na redação de Realidade. O objetivo era transformar cada reportagem em uma experiência sinestésica para o leitor, que deveria conseguir ver, ouvir e sentir o que o repórter presenciara. É o que comprova J.S. Faro:

A regra era a do estilo pessoal e da experimentação estética e sensorial. Nessa medida, o texto haveria de ser o literário com as possibilidades que ele permite; o texto que guarda a força expressiva da vivência. Mesclam-se pontos de vista, imagens, seqüências; as reportagens formam um caleidoscópio que dá às matérias elementos de vínculo com o sensorial do leitor. (FARO, 1999: 108)

O declínio da revista deu-se justamente quando sua liberdade editorial começou a ser podada pela mãos de ferro da ditadura e seus Atos Institucionais. Pesaram também o lançamento da revista Veja pela Abril e as mudanças na direção da revista impostas pelo dono da editora, Roberto Civita. Após a Realidade, o Brasil passou um bom tempo sem uma publicação assumidamente dedicada ao jornalismo literário.

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4. REPORTAGEM “GERAÇÃO RITALINA”

Falta de atenção e foco virou doença. O nome? Transtorno de déficit de atenção com hiperatividade – ou simplesmente TDAH. A suposta solução? O remédio tarja preta, do qual o Brasil é o segundo maior consumidor do mundo. Enquanto psiquiatras culpam o cérebro, outros especialistas culpam a sociedade. O presente repórter ouviu os dois lados e passou uma semana sob o efeito da “droga da obediência”

“Bom, é o seguinte: você tem sinais de déficit de atenção e de ansiedade. Vou te prescrever um medicamento”, sentenciou-me o psiquiatra. As notas que ele havia tomado durante a consulta não ocupavam mais do que meia página e o gravador escondido no meu bolso marcava exatos 23 min - tempo suficiente para ele me diagnosticar com TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade) e escorregar pela mesa uma receita para três caixas de Ritalina 10 Mg. Não menti ou exagerei meus sintomas. Em resumo, relatei que vez ou outra tenho dificuldade para me concentrar em assuntos que não me interessam, que prazos podem ser um problema e que faz tempo que não leio um livro até o fim. O que foi? Se identificou com alguma coisa?

Em um teste de internet realizado dias antes, eu já havia ganho o mesmo diagnóstico. Ainda assim, não imaginei sair da consulta com uma prescrição para um remédio tarja preta. Nunca achei que minha falta de atenção fosse uma doença que precisasse ser medicada. O visual do doutor - cabelos revoltos, camisa amarrotada aberta quase até o peito e calça jeans – e sua fala recheada de gírias me passaram a falsa ideia de que ele se tratava de um médico pouco afeito à alopatia, partidário de tratamentos alternativos. Seu consultório com toques New Age reforçava a impressão. Era uma mansão modernista próxima ao Parque Ibirapuera, em São Paulo, com um amplo e bem cuidado jardim na entrada e uma fonte d`água adornada com pedras coloridas e gnomos de argila. Pendurados na parede, quadros abstratos, estilo feira hippie de Ipanema, e uma matéria de jornal emoldurada, datada de 1984, dando conta de uma parceria musical sua com Vinícius de Moraes. CDs manufaturados com o médico-músico

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cantando e tocando piano encontravam-se à venda na bancada da secretária.

Apesar de surpreso, não me preocupei com o veredicto do doutor. Afinal, estou longe de estar sozinho. Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde) e a Associação Americana de Psiquiatria, cerca de 4% dos adultos e de 5% a 8 % de crianças e adolescentes de todo o mundo sofrem de TDAH, “uma síndrome caracterizada por desatenção, hiperatividade e impulsividade”. Isso quer dizer que em uma sala de aula com 40 alunos, por exemplo, estima-se que pelo menos dois estima-sejam portadores da doença, comumente chamada apenas de DDA (distúrbio do déficit de atenção) – ou, pelos mais idosos, de fogo no rabo ou derivados. Determinados países, inclusive, mantém leis de proteção e assistência aos portadores e suas famílias. Os atores norte-americanos Whoopi Goldberg e Bill Cosby, o nadador Michael Phelps, os músicos Kurt Cobain e Lobão e o articulista Gilberto Dimenstein são alguns famosos notoriamente diagnosticados com a doença.

A Bíblia do TDAH

Grande parte da psiquiatria contemporânea vê o TDAH como uma doença neurobiológica, isto é, causada por um desequilíbrio químico no cérebro, tal qual a depressão, a bipolaridade e a esquizofrenia. O desequilíbrio ocorreria na região do lobo frontal do hemisfério direito do órgão, provocando uma baixa produção e/ou subutilização da noradrenalina e da dopamina, neurotransmissores responsáveis, respectivamente, pelas sensações de prazer e ansiedade, dentre outras funções.

Uma breve, porém importantíssima, lição de biologia: o cérebro contém bilhões de células nervosas, os neurônios, distribuídos em redes complexas, que se comunicam uns com os outros constantemente. O neurônio típico tem múltiplas extensões filamentosas (uma chamada axônio e as outras chamadas dendritos), por meio das quais ele envia e recebe sinais de outros neurônios. Para um neurônio se comunicar com outro, no entanto, o sinal deve ser transmitido através do minúsculo espaço que os separa, a sinapse. Para conseguir isso, o axônio do neurônio libera na sinapse uma substância química – justamente, o tal do neurotransmissor.

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“existem inúmeros estudos em todo o mundo, inclusive no Brasil, demonstrando que a prevalência do TDAH é semelhante em diferentes regiões, o que indica que o transtorno não é secundário a fatores culturais, ao modo como os pais educam os filhos ou resultado de conflitos psicológicos”. Apesar do senso comum taxar o TDAH como uma doença do século 21, fruto da vida frenética que levamos, pesquisadores afirmam que há mais de 10 mil estudos relatando os mesmos sintomas de hoje em dia, os primeiros datando dos anos 1700.

Seus portadores, prega ainda o livro, “são mais propensos à poligamia, à contrair doenças sexualmente transmissíveis, à gravidez precoce, a se envolver em acidentes de trânsito, ao fracasso no trabalho, ao abuso de drogas e ainda teriam quatro vezes mais chances de ter depressão do que uma pessoa normal”. Tamanho malogro seria justificado pela impulsividade a flor da pele de quem tem a doença.

Dr. Paulo Mattos e grande parte de seus colegas de profissão acreditam que a doença seja causada por uma suscetibilidade genética em interação direta com fatores ambientais. A herdabilidade estimada seria bastante alta: aproximadamente 70% dos gêmeos idênticos possuem o mesmo diagnóstico. Quando um dos pais tem TDAH, a chance dos filhos serem portadores dobra, e é multiplicada por oito quando ambos os pais apresentam a doença. Estudos recentes apontam relações do transtorno com problemas durante a gravidez ou no parto e/ou exposição à determinadas substâncias, como o chumbo.

O diagnóstico é feito a partir de entrevistas, tal qual a que eu me submeti. Ele é puramente clínico, assim como ocorre com grande parte das doenças psiquiátricas. Outros exames, como ressonância magnética e eletroencefalograma, servem apenas para excluir outros diagnósticos. O indivíduo deve apresentar pelo menos seis sintomas de desatenção e/ou seis sintomas de hiperatividade, que devem manifestar-se em pelo menos dois ambientes diferentes e por um período superior a seis meses.

Os sintomas são todos minuciosamente discriminados no questionário SNAP-IV, construído a partir do Manual de Diagnóstico e Estatística – IV (DSM-IV), editado pela Associação Americana de Psiquiatria. O compêndio, atualmente em sua quarta edição, é lançado de tempos e tempos e apresenta a listagem completa de todos os transtornos mentais, bem como os critérios para identificá-los. Além de profissionais da medicina, pesquisadores, companhias de seguro, executivos da indústria farmacêutica, donos de escolas e políticos

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também costumam balizar suas decisões de acordo com o manual. Sua segunda versão, publicada em 1968, trazia 134 páginas e 182 desordens (dentre elas, fetiches sexuais e comportamentos homossexuais). A edição mais recente e também a mais rechonchuda, a IV, foi publicada em 1994, elencando desta vez 297 transtornos, distribuídos em 886 páginas. Mais de um milhão de exemplares foram vendidos até o momento.

O DSM-V, estima-se, deverá sair em maio de 2014. Há propostas para a inclusão de distúrbios totalmente novos, como “transtorno hipersexual”, “síndrome das pernas inquietas” e “compulsão alimentar”. Allen Frances, presidente da força-tarefa que redigiu o DSM-IV, escreveu que a próxima edição será uma “mina de ouro para a indústria farmacêutica”.

Órfãos hiperativos

O tratamento para TDAH mais comum hoje em dia é multimodal, compreendendo uma combinação de medicamentos, orientações às pessoas que convivem com o portador e o aprendizado de técnicas específicas para que ele lide melhor com sua condição. Os remédios mais receitados são os psicoestimulantes, derivados da substância cloridrato de metilfenidato. São eles: Ritalina e Ritalina LA (versão com dosagem mais alta), fabricados pelo laboratório Novartis; Concerta, produzido pela Janssen Cilag; e o recém-lançado Venvanse, desenvolvido pela Shire.

No caso da Ritalina 10 Mg, o efeito de cada drágea dura em média quatro horas. Seu mecanismo de ação ainda não foi completamente elucidado, mas sabe-se que ela age parecida a outras “inas”, como a cocaína, a cafeína e anfetamina. Ela aumenta a produção e o reaproveitamento da dopamina e da noradrenalina, os neurotransmissores que supostamente apresentam comportamento irregular no cérebro de quem sofre de TDAH. A bula do remédio alerta para a dependência física ou psíquica, além de enumerar uma série de reações adversas como nervosismo, dificuldade em adormecer, diminuição no apetite, dor de cabeça, palpitações, boca seca e alterações cutâneas.

O primeiro estudo avaliando a eficácia dos psicostimulantes no tratamento da hiperatividade que se tem notícia é de 1937. Na época, o cientista norte-americano Charles Bradley dirigiu um estudo administrando anfetamina (benzadrina) a um grupo de crianças

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tidas como hiperativas, em um orfanato na Pensilvânia, nos Estados Unidos. As conclusões da experiência são controversas, tanto do ponto de vista ético (a pesquisa foi feita em um orfanato, de forma independente) quanto científico (os resultados não seguem os protocolos de pesquisas médicas).

Depois, durante a Segunda Guerra Mundial, experimentou-se com inúmeros variantes químicos da anfetamina em busca de moléculas análogas, mas com efeitos colaterais menos severos. Sintetizou-se então pela primeira vez o metilfenidato, que apresentou as reações adversas típicas (principalmente redução do apetite e insônia), porém com menor freqüência e mais facilmente toleráveis. Em 1955, a substância foi finalmente lançada ao mercado pela companhia Ciba (precursora da Novartis), com o nome de Ritalina (uma homenagem à mulher do dono da empresa, chamada Rita). Mas foi apenas no começo dos anos 60 que ela realmente popularizou-se no tratamento de crianças com TDAH. No mesma época, diversas reportagens circularam na mídia americana falando do uso do medicamento entre celebridades, incluindo o astronauta Buzz Aldrin e o matemático Paul Erdõs.

Falta de aspirina dá febre?

Tudo que foi relatado até aqui sobre o TDAH, incluindo suas causas, sintomas, diagnóstico e tratamento, são hipóteses. Não faltam profissionais, especialmente fora da área da psiquiatria, que questionam diversos aspectos do TDAH. Alguns, mais radicais, duvidam da própria existência do distúrbio. A teoria de que doenças mentais são causadas por um desequilíbrio químico no cérebro e por isso podem ser corrigidas pelo uso de medicamentos, por exemplo, até hoje não foi devidamente comprovada.

Para os críticos, essa crença é fruto de uma pirueta lógica. Como a Ritalina aumenta os níveis de dopamina e noradrenalina no cérebro, postulou-se que o TDAH é causado pelas ausências e/ou mal funcionamento dos dois neurotransmissores. Pensamento semelhante justifica a medicação da depressão: tendo em vista que alguns antidepressivos aumentam os níveis do neurotransmissor chamado serotonina, defendeu-se que a doença é causada pela escassez de serotonina. Desse modo, em vez de desenvolver um medicamento para tratar uma anormalidade, uma anormalidade foi postulada para se adequar a um medicamento. Por essa

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mesma lógica, se poderia argumentar que a causa de todos os estados de dor é uma deficiência de opiáceos, uma vez que analgésicos narcóticos ativam os receptores de opiáceos do cérebro. Ou, do mesmo modo, se poderia dizer que as febres são causadas pela escassez de aspirina.

Embora não tenha sido provada, a teoria segue ganhando espaço, em grande parte por conta da pressão da indústria farmacêutica. É o que defendem os opositores do TDAH. Para eles, os diagnósticos da psiquiatria são subjetivos e expansíveis. E não haveriam razões racionais para a escolha de um tratamento em detrimento a outro. Uma vez que não existem sinais ou exames objetivos para detectar o TDAH e o restante das doenças mentais, é possível expandir as fronteiras do diagnóstico ou até mesmo criar novas diagnoses, de uma forma que seria inviável, por exemplo, em um campo como a cardiologia.

Leon Eisenberg, professor da Universidade Johns Hopkins e da Escola de Medicina de Harvard, escreveu que a psiquiatria americana passou, no final do século XX, de uma fase “descerebrada” para uma “desmentalizada”. Ele quis dizer que, antes das drogas psicoativas, os psiquiatras tinham pouco interesse por neurotransmissores ou outros aspectos físicos do cérebro. Em vez disso, aceitavam a visão freudiana de que a doença mental tinha suas raízes em conflitos inconscientes, geralmente com origem na infância, que afetavam a mente como se ela fosse separada do cérebro. Agora, passaram para o extremo oposto, analisando o cérebro descolado do meio que o cerca.

Usuários recreativos

Mesmo com todas as controvérsias e dúvidas rodeando a questão, resolvi seguir as orientações do doutor. Durante uma semana, vivi sob o efeito do remédio tarja preta (leia o diário no fim do texto), apelidado por quem é contra ele de “droga da obediência”. Nem a Novartis, nem a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) revelam os números de vendas da Ritalina no país. Mas previsões do Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos (Idum) dizem que, em tese, nos últimos onze anos, elas galoparam cerca de 3.200%. O número coloca o Brasil como o segundo maior consumidor do medicamento do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos. Para chegar a este dado, o Idum teve de recorrer ao IMS/PBM, uma publicação de um instituto suíço que mantém atualizados todos os

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dados do mercado farmacêutico brasileiro.

O número impressiona, e olha que não entra na conta as transações ocorridas via mercado negro, que, ao que parece, ferve. Bastou meia hora de busca no Google para encontrar diversos anúncios de gente oferecendo o remédio “off label” (sem receita). Por telefone, acordei de encontrar um vendedor em uma estação de metrô na manhã do dia seguinte. Chegando lá, um motoboy me entregou em mãos um envelope pardo e pediu que eu conferisse o conteúdo: Ritalina 10 mg, 20 comprimidos, lacrada e dentro da validade. Valor: R$ 80. Nas farmácias, ela sai em média por um quarto do preço. Relativamente barata, fácil de conseguir e teoricamente segura, a “Rita” vem sendo usada também por estudantes e baladeiros que querem bombar a energia e/ou espantar o sono, uma moda que teria surgido nos clubs e colleges norte-americanos.

O estudante de medicina Thiago, 23, toma o comprimido esporadicamente há quatro anos. “Minha irmã tem TDAH e adora Ritalina, diz que salvou a vida dela. Eu comecei a roubar dela na época do vestibular. Uma noite de estudos rendia o equivalente a uma semana”, ele conta. Thiago revela que sentia uma leve taquicardia nas primeiras experiências com a droga, mas que logo acostumou-se aos efeitos. Já o designer gráfico Gabriel é daqueles que adotaram o metilfenidato para se esbaldar na noite. “Dá uma sensação de poder e um arrepio bom, como se você fosse ter um orgasmo. Você se sente gostoso, bonito”, ele descreve, massageando rapidamente o próprio dorso. Gabriel prefere esmigalhar o comprimido e cheirá-lo, “porque assim a onda bate mais rápido”. “Uma caixa de vinte (comprimidos) dá para quatro pessoas ficarem bem a festa toda”, ele conta. Quando ainda não conheciam a Ritalina, os dois jovens costumava recorrer ao ecstasy ou à cocaína. Tanto um quanto o outro confessaram adquirir suas doses ilegalmente.

No FDA, órgão governamental dos Estados Unidos responsável por controlar alimentos e medicamentos, há 186 registros de óbito citando o uso prolongado do metilfenidato. Um dos nomes é o do jovem Matthew Smith, falecido aos 14 anos - metade deles fazendo uso da substância – em março de 2001. Causa da morte: hipertrofia do miocárdio (seu coração pesava 402 gramas no momento do óbito; o coração de um homem adulto pesa, no máximo, 350 gramas). Depois do episódio, seus pais resolveram fundar o site Ritalindeath.com, cuja missão é “prover informações sobre a verdade oculta do TDAH e das

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drogas usadas em seu tratamento”.

“O assistente social da escola dele não parava de nos ligar querendo marcar uma reunião. A diretora disse que se nós nos recusássemos a levar Matthew ao médico e iniciar um tratamento com Ritalina, o serviço de proteção à criança poderia nos multar por negligenciar suas necessidades educacionais e emocionais. Minha esposa e eu ficamos intimidados. Realmente acreditamos que poderíamos perder nosso filho se não seguíssemos as recomendações da escola”, Jonathan e May rememoram, por e-mail.

Laboratórios é que bancam

A Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) foi fundada em 1999 pelo psiquiatra Dr. Paulo Mattos e um paciente. Ela é hoje o maior órgão de divulgação da causa do TDAH na América Latina, contando com cerca de 10 mil membros, dentre portadores, familiares e médicos – todos voluntários – e centros espalhados por todo o país. Seu site é o primeiro que aparece quando se faz uma busca virtual sobre o distúrbio no internet. Nele há diversos textos e vídeos sobre o assunto, bem como testes online para saber se você tem a doença e uma agenda de eventos com congressos e cursos, destinados a pais, família, parceiros e, principalmente, professores. Na home, um texto intitulado “TDAH é uma doença inventada?”, escrito pelo Dr. Paulo Mattos, rebate veementemente a pergunta levantada no título.

No site há também o cadastro de mais de trezentos médicos de todo o país especialistas em TDAH. Foi lá que encontrei o contato do psiquiatra que me atendeu. No rodapé da página, encontra-se os logotipos das empresas Novartis, Janssen Cilag e Shire. As três são patrocinadoras da associação e produzem, segundo a própria, “os remédios de primeira linha para o tratamento de TDAH”. Dr. Paulo Mattos, que além de criador é diretor da instituição, defende-se: “Somos uma organização sem fins lucrativos. Ninguém aqui recebe salário, exceto a secretária. Por isso precisamos de incentivos privados. Não há conflito de interesse, desde que, claro, você apresente a situação para as outras pessoas. Expomos sempre os potenciais conflitos de interesses. É tudo limpo e aberto. Isso é rotina em vários outros lugares”.

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