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Entrelaçamento do amor e do pensamento na infância em Theodor W. Adorno: um estudo sobre mimese, imaginação e memória

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Academic year: 2021

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Mara Salgado

ENTRELAÇAMENTO DO AMOR E DO PENSAMENTO NA INFÂNCIA

EM THEODOR W.ADORNO:

UM ESTUDO SOBRE MIMESE, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIA

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção do Grau de Doutora em Educação.

Área de Concentração: Educação

Linha de Pesquisa: Sociologia e História da Educação

Orientador: Prof. Dr. Alexandre Fernandez Vaz

Florianópolis 2017

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Para Clara Lua,

a criança-luz que acarinha e salva minha infância perdida!

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AGRADECIMENTOS

Ao orientador deste trabalho Prof. Alexandre Fernandez Vaz pela aposta de que o salto seria possível, pelo aprendizado, compreensão e generosidade nos momentos de digressões da vida e dos pensamentos tateantes.

Aos professores da banca que contribuíram com a pesquisa no momento da qualificação: Ana C. Richter, Franciele B. Petry, Jaison J. Bassani, Jordi Maiso Blasco e também pela disponibilidade em participar na banca avaliadora desta tese juntamente com os professores, aos quais também agradeço a disposição e contribuições, Bruno Pucci, Christian Muleka Mwewa e Alex Sander da Silva.

À CAPES pelo financiamento imprescindível ao desenvolvimento do conhecimento produzido no meio acadêmico e à realização do estágio sanduíche no Consejo Superior de Investigaciones Científicas / Instituto de Filosofía (CCHS-Madrid).

Aos pesquisadores Jordi Maiso e José Antonio Zamora pela oportunidade de aprendizados e pela disponibilidade sempre amável no período do estágio em Madrid.

À Danielle Torri, Lisandra Invernizzi, Priscilla Stuart, Emilly Joyce e Renato F. de Mendonça Bellomo pelo auxílio afetuoso nos momentos necessários. Às professoras e professores do Programa de Pós-Gradução em Educação da UFSC pelos aprendizados compartilhados desde a realização do mestrado neste programa.

À Clara Lua, minha filha companheira de jornada, pela compreensão nas ausências, pelo apoio esperançoso nos momentos mais frágeis e pelo o amor manifesto com generosidade e alegria.

Aos queridos Bernadette Witthinrich Bez e Ludiz Bez pela amizade, auxílio impagável e cuidados generosos.

Aos amigos: Simone Bellomo, Kety, Cristiane, Wagner e Pollyanna, que há muitos anos e percursos me oferecem as mãos e compartilham comigo alegrias, desejos, fragilidades, enfrentamentos, desvarios e curas. Junto a cada um aprendo a querer o melhor de mim em retribuição ao melhor de vocês.

À oportunidade feliz de encontrar amigos que marcam minha vida com amor e vontade de novos encontros: Sandra, Egmilson, Cynthia, Indianara, Peta, tia Wanda e, especialmente, às queridas companheiras de recomeços: Renata, Carla e Anne (las chicas amables de Lavapiés).

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A todos os meus familiares pela torcida e incentivos, em especial, meus pais Iranilda e Mauro, meus irmãos Maurinho e Anderson, minhas tias: Nete, Vanda, Cilda, Ilda.

Foram tempos de crescimento, pela dor e pelo amor, e me sinto imensamente grata por tantas pessoas inspiradoras que cruzei neste caminho. Obrigada a todas pelos exemplos generosos, pela disposição a bons momentos e às palavras de incentivo!

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Não se sabe tudo, nunca se sabe tudo, mas há horas em que somos capazes de acreditar que sim, talvez porque nesse momento nada mais nos podia caber na alma, na consciência, na mente, naquilo que se queira chamar ao que nos vai fazendo mais ou menos humanos. Olho de cima da ribanceira a corrente mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje a longa e úmida vara ou os sonoros remos de antanho, e impelir, sobre a lisa pele da água, o barco rústico que conduziu até as fronteiras do sonho um certo ser que fui e que deixei encalhado algures no tempo”.

(José Saramago - As pequenas memórias, 2006).

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RESUMO

O objetivo central deste trabalho é a investigação dos aspectos do amor e do pensamento na infância que configuram as relações afetivas estabelecidas socialmente. Tal objetivo fundamenta a tese de que a partir dos escritos de Theodor W. Adorno é possível compreender que o pensamento capaz de conservar algo da mimese, da imaginação e da memória, faculdades que compõem de modo mais proeminente o pensamento na infância, pode encontrar brechas no enrijecimento da racionalidade esclarecida para a realização de seu potencial intelectual-sensível, ou seja, entrelaçar-se à base pulsional que possibilita o movimento do amor. Privilegiou-se como método da investigação teórica a análise dos conceitos de mimese, de imaginação e de memória, com foco em suas relações com a infância, apresentados por Adorno e seus interlocutores da Teoria Crítica da Sociedade. Destaca-se também que em diálogo com a metapsicologia freudiana buscou-se os aspectos da dinâmica pulsional que remetem à configuração psíquica na infância e fundamentam o caráter repressivo da cultura. A infância é retratada na obra de Adorno por um lado como um lugar das primeiras utopias, a pátria ansiada e, desde sempre inabitada, que se torna falsa a qualquer tentativa de resgate, mas ilumina o desejo outrora experimentado num jogo com o corpo e o pensamento, o sonho e a realidade, a experiência de outra ordem da razão – mimética, imaginativa, que alimenta a memória da natureza no humano –, contudo, sem isentar-se das forças históricas coercivas, em especial as referentes ao domínio da técnica, que incidem nos processos de subjetivação. Por outro lado, e tirando proveito dessa razão que não abandonou sua intimidade com a natureza, a infância é reconhecida por Adorno como o espaço e o tempo propícios para as tentativas de combater a barbárie desde seus primeiros indícios.

PALAVRAS-CHAVE: Theodor W. Adorno. Infância. Corpo. Faculdades do pensamento. Amor.

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INTERWINING LOVE AND THINKING IN CHILDHOOD IN THEODOR W. ADORNO: A STUDY ON MIMESIS, IMAGINATION AND MEMORY

ABSTRACT

The main goal of this work is the investigation of love and thinking aspects in childhood which set affective relations socially established. This goal supports the thesis which accordingly to Theodor W. Adorno writings it’s possible to comprehend that thought which is able to preserve something from mimesis, imagination and memory, which are the faculties that compound prominently childhood thought can find flows in stiffening the clarified rationality in order to achieve its sensitive-intellectual potential, that is, linking to the basic pulse which makes it possible the movement of love. As theoretical investigation method the conceptual mimesis conceptual analysis, imagination and memory were prioritized focusing in its relations to childhood, as presented by Adorno and its interlocutors from Critical Theory Society. It is also emphasized that in dialogue with Freudian metapsychology it was searched aspects from dynamic pulse which relate to childhood psychic configuration and support the repressive nature of culture. Childhood is portrayed in the work of Adorno on the one hand as a place of the first utopias, the longed for and always uninhabited homeland that becomes false to any rescue attempt, but illuminates the desire once experienced in a game with the body and the thought, dream and reality, the experience of another order of reason – mimetic, imaginative, which feeds the memory of nature in the human - yet without exempting itself from the coercive historical forces, especially those referring to the field of technique, which affect the processes of subjectivation. On the other hand, and taking advantage of this reason, which has not abandoned its intimacy with the nature, the childhood is recognized by Adorno like the space and the propitious time for the attempts to fight the barbarism from its first evidences.

KEYWORDS: Theodor W. Adorno. Childhood. Body. Faculties of thought. Love.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO SOBRE O PENSAMENTO DE THEODOR W.

ADORNO E SUA REIVINDICAÇÃO DE AMOR NA INFÂNCIA ... 11

Notas de apresentação do pensamento na Teoria Crítica Da Sociedade – Uma inspiração metodológica...17

1. CAPÍTULO 1 FORMAÇÃO CULTURAL E DINÂMICA PULSIONAL: OU QUANDO O AMOR E O PENSAMENTO ENCONTRAM O MEDO ... 25

1.1 Formação Cultural: entre a natureza e a cultura ... 26

1.2 Sobre o caráter repressivo na dinâmica pulsional...34

1.3 Da adaptação à obediência: a busca por objetos de amor na infância e o autoritarismo na família ... 44

2. CAPÍTULO 2 TEMAS SOBRE AMOR E PENSAMENTO À LUZ DE ADORNO ... 59

2.1 Amor, afetividade e autonomia...59

2.2 Notas sobre a falsa consciência: indústria cultural e a degradação da diferença...69

2.3 A educação das crianças entre a amizade e o preconceito...75

3. CAPÍTULO 3AS FACULDADES DA INFÂNCIA E A TÉCNICA – MIMESE, IMAGINAÇÃO E MEMÓRIA E O CORPO QUE BRINCA ... 85

3.1 Corpo, pensamento e técnica na infância ...85

3.2 Mimese: a primeira faculdade do amor ...98

3.2.1 Mimese – ou: a linguagem como convite para um labirinto benjaminiano...104

3.3 Imaginação: a faculdade da resistência...110

3.3.1 Imaginação e jogo na infância – tempo da repetição...114

3.3.1.2 O sagrado do jogo e a tecnologia consagrada – o exemplo do jogo eletrônico...119

3.4 A faculdade da memória: esperança e risco na lembrança e no esquecimento...124

3.4.1 Memória na infância: o relampejar de portais de segurança...129

4. NOTAS FINAIS...137

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INTRODUÇÃO SOBRE O PENSAMENTO DE THEODOR W. ADORNO E SUA REIVINDICAÇÃO DO AMOR NA INFÂNCIA

O símbolo da inteligência é a antena do caracol “com visão tateante”, graças à qual, a acreditar em Mefistófeles, ele é também capaz de cheirar. Diante de um obstáculo, a antena é imediatamente retirada para o abrigo protetor do corpo, ela se identifica de novo com o todo e só muito hesitantemente ousará sair de novo como um órgão independente. Se o perigo estiver presente, ela desaparecerá de novo, e a distância até a repetição da tentativa aumentará. Em seus começos, a vida intelectual é infinitamente delicada. O sentido do caracol depende do músculo, e os músculos ficam frouxos quando se prejudica seu funcionamento. O corpo é paralisado pelo ferimento físico, o espírito pelo medo. Na origem, as duas coisas são inseparáveis. (ADORNO; HORKHEIMER, 1947/19851, p. 210). A metáfora da antena do caracol utilizada por Adorno e Horkheimer (1947/1985) na citação acima foi extraída da obra Dialética do Esclarecimento fragmentos filosóficos, da seção Notas e Esboços, cujo título é Sobre a gênese da burrice. Nesse fragmento Adorno e Horkheimer (1947/1985) fazem uso não do desenvolvimento sistematizado de uma teoria ou de conceitos, mas de um estilo que lhes é próprio, de um pensamento que sabe o preço de ser tateante para dizer que a burrice da espécie humana, a cegueira do pensamento, a impotência frente às dificuldades, resguarda marcas de um lugar em que um músculo foi atrofiado quando se deparou com um perigo iminente.

“A burrice é uma cicatriz” (ADORNO; HORKHEIMER, 1947/1985, p. 210). Cicatrizes deixadas no corpo e no espírito como resultado da violência desnecessária contra a boa vontade e a frágil esperança que a criança sinaliza em suas primeiras experiências, seus primeiros movimentos tateantes para conhecer o mundo. Tal violência é desnecessária, porque

1 Neste trabalho optou-se por utilizar nas referências a data da publicação original e em seguida a consultada. Em especial, nas referências à obra Dialética do Esclarecimento, faz-se necessário chamar a atenção para o fato de que foi utilizada para estudo a edição brasileira de 1985 reimpressa em 2006, cuja ficha catalográfica distingue-se da publicação original e das impressões anteriores, ao apresentar na ordem dos autores primeiro Theodor W. Adorno, seguido de Max Horkheimer.

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advém de um processo de socialização cujas forças são empreendidas contra quem não tem como se defender, visto que o músculo inibido estava em seu movimento de despertar. A cada inibição violenta desse movimento, cresce uma cicatriz insensível a novo contato, deformando aquilo que poderia fazer sentido nas relações humanas – o amor, o tato, o contato de uns com os outros, a comunicação do humano com o meio.

A violência sofrida na infância, capaz de provocar cicatrizes e exemplificada por Adorno e Horkheimer (1947/1985) como as recorrentes condenações da imitação, do choro, das excessivas perguntas e das brincadeiras arriscadas, se relaciona a momentos de intensa repressão2 presentes nas relações afetivas da primeira infância, conforme identificou a Psicanálise de Freud. Tais comportamentos tão reprimidos pelos adultos, ao ponto de não serem identificados como violência, compõem a infância em seu jogo de socialização e aparecem, em momentos e dimensões distintas, como elementos das faculdades da mimese, da imaginação e da memória da criança, nas obras de autores da Teoria Crítica da Sociedade, como Walter Benjamin, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno.

Contudo, a repressão não pode ser considerada somente em seu caráter que pareceria ontológico ou como parte de um processo no desenvolvimento de um indivíduo. Ela está presente no âmago do processo de formação humana como conteúdo indispensável à constituição dos indivíduos e suas correspondentes posições na organização social. Significa dizer que refletir sobre a repressão incidente sobre os humanos exige buscar suas bases na relação entre o indivíduo, a natureza e a cultura. Tal relação compõe o fragmento filosófico, cuja metáfora do caracol mutilado serve de exemplo para as mutilações dos indivíduos, mais especificamente, para as cicatrizes de momentos repressivos empreendidos no processo de dominação da natureza que culminou e alimenta o processo de formação cultural.

Nesse sentido, a partir do que suscitam os esforços empreendidos por autores da Teoria Crítica da Sociedade em compreender a cultura de seu tempo e as interdições à autonomia do pensamento, esta pesquisa, com base nas contribuições de Theodor W. Adorno e alguns de seus interlocutores, tem como objetivo investigar aspectos do amor e do pensamento na infância que

2 De modo geral, os termos repressão e repressivo serão mais bem compreendidos neste trabalho, segundo a utilização adotada e explicada por Marcuse (1951/1982) na introdução de sua obra Eros e Civilização: “"Repressão" e "repressivo" são empregados na acepção não-técnica para designar os processos conscientes e inconscientes, externos e internos, de restrição, coerção e supressão” (MARCUSE, 1951/1982, p. 30, aspas no original).

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configuram relações afetivas estabelecidas socialmente. Tal objetivo fundamenta a tese de que, a partir dos escritos de Theodor W. Adorno é possível compreender que o pensamento capaz de conservar algo da mimese, da imaginação e da memória, faculdades que compõem de modo mais proeminente a forma de operar do pensamento na infância, pode encontrar brechas nas condições repressivas da cultura para a realização de seu potencial intelectual-sensível, ou seja, entrelaçar-se ao amor.

No que concerne ao campo da Educação, parece imprescindível a atenção aos limites e potencialidades que as faculdades do pensamento podem apresentar no curso do desenvolvimento histórico-cultural, sobretudo, naqueles cuja expressão depende de condições ofertadas nas relações estabelecidas no âmbito da transmissão cultural, principalmente, o escolar.

Indagar sobre esse caminho, que mira o presente no enfrentamento de sua própria história, talvez permita à cultura, um dia, encontrar passagens para que seus indivíduos enfrentem e superem o ressentimento, a frieza e a violência fixados nas relações sociais. Neste intento, elegemos como método da investigação teórica a análise dos conceitos de mimese, de imaginação e de memória, apresentados por Adorno e alguns de seus interlocutores da Teoria Crítica da Sociedade, com foco em suas relações com a infância. Tais conceitos se referem às faculdades intelectuais e sensíveis e parecem se constituir como base do entrelaçar do amor e do pensamento.

Pretende-se contribuir para a reflexão acerca das tensões que perpassam as relações de amizade/ressentimento, de identificação/preconceito e de infância/tecnologia que se cruzam nos processos sociais quando as crianças precisam responder, perguntar, brincar, lidar com suas cicatrizes a partir de reações disponíveis num repertório compartilhado – processo no qual particularidade e universalidade encontram-se amalgamadas por ambiguidades que carregam junto com o seu progresso comportamentos regressivos de violência e frieza.

Quanto aos objetivos específicos desta pesquisa procurou-se:

a) realizar estudos acerca dos temas do amor e do pensamento, cujo amor é compreendido segundo a indicação de Adorno (1951/1992) (1971/1995) como relação libidinal imprescindível para que haja formação cultural. O amor aparece como algo distinto do sentimentalismo moral, mas que se apoia na esperança de um dia abrir mão da dominação de si mesmo e do outro, condição para que seja possível opor-se à barbárie por meio da reflexão;

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b) levantar, selecionar e sistematizar nas obras de Theodor W. Adorno e outros autores que o influenciaram e dialogaram acerca dos aspectos que indicam que o entrelaçamento das faculdades da mimese, da imaginação e da memória pode constituir a base necessária para o processo de desenvolvimento do amor e do pensamento que se inicia na infância, bem como esclarecer algo sobre as obstruções neste processo;

c) buscar elementos que indicam a relação dos conceitos de mimese, imaginação e memória com aspectos materiais e sensíveis que permeiam o campo da infância na atualidade, e que fundamentam as relações de amizade – ressentimento, identificação – preconceito em tempos da racionalidade tecnológica, tal como indicado na Dialética do Esclarecimento por Adorno e Horkheimer (1947/1985), em Adorno (1951/1992) e em Benjamin (1969/1984; 2012). Neste intento, tomou-se como modelo exemplar de análise alguns aspectos das imbricações entre infância e técnica, a partir de estudos que permitiram o confronto entre o caráter “sagrado” do jogo na infância e os jogos eletrônicos nas mídias digitais.

Considera-se que a base para o desenvolvimento do amor e do pensamento parte de experiências que se iniciam com os sentidos corporais na infância em suas relações de socialização, quando a criança experimenta seus desejos, diferencia-se do objeto amado, representa-os, coloca-os em jogo e, nisso, pode iniciar o processo de reconhecimento sobre si mesmo e o mundo. É desse modo que a mimese, a imaginação e a memória – faculdades intelectuais e sensíveis do pensamento – podem ser compreendidas como os elementos que se entrelaçam ao amor. Como pode ser lido em Adorno (1951/1992):

Não é a memória inseparável do amor, que pretende conservar o que passa? Não é cada impulso da fantasia engendrado pelo desejo, que, deslocando os elementos do existente, transcende-os sem traí-los? A mais simples das percepções não se forma no medo da coisa percebida ou no desejo desta última? (ADORNO, 1951/1992, p. 106-107).

Ou ainda em:

O que é humano está preso à imitação: um ser humano só se torna um ser humano na medida em que imita

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outros seres humanos. É nesse comportamento, a forma primitiva do amor, que os sacerdotes da autenticidade farejam pistas daquela utopia capaz de abalar a estrutura da dominação. (ADORNO, 1951/1992, p. 136).

Para pesquisar as três faculdades é necessário partir do estudo dos conceitos, que apenas referem-se às faculdades na medida em que não podem ser abarcadas em suas totalidades. O conceito captura uma parte, aquela que a teoria é capaz de sistematizar, mas, sobretudo, quando se trata de faculdades que encontram vazão para o seu desenvolvimento mais fortemente na infância, há de se considerar os espaços fugidios, oblíquos, de certo modo, anacrônicos, que a teoria deve se voltar se deseja alcançar os desvios de algo que escapa à fixação dos conceitos. Segundo Adorno (1951/1992), um movimento capaz de perceber os resíduos da história que a sociedade dominante não levou a cabo e, por isso, escapam à dialética e podem transcender o existente, tal como realizado pelo pensamento de Walter Benjamim, ao mesmo tempo dialético – ao se debruçar sobre “os enigmas intelectuais causadores de estranhamento” – e não-dialético – quando recupera “através do conceito o que não é intencional”. “Os escritos de Benjamin são a tentativa, numa abordagem sempre renovada, de tornar filosoficamente fecundo o que ainda não foi determinado pelas grandes intenções” (ADORNO, 1951/1992, p. 133-134).

É nesse sentido que se entende que os estudos da infância e dos elementos que esse tema oferece para a reflexão, como os destacados nos escritos de Benjamin (1969/1984; 2012) e de Adorno (1951/1992), a mimese, a imaginação e a memória povoam o campo do fugaz, das ambiguidades que são suscitadas ora para justificar a realidade ora para resistir a ela, desse modo, oferecem caminhos para um pensamento que busca reconhecer o que pode transcender na “sociedade dominante não é só a potencialidade desenvolvida por ela, mas também aquilo que não se enquadrou nas leis do movimento da história” (ADORNO, 1951/1992, p. 133).

Portanto, o estudo da infância ocupa um lugar privilegiado de abrir o prisma das contrariedades intensificadas a partir da modernidade, de “um tempo que pensa a si mesmo como transitoriedade e, assim, com insegurança (...)” (Vaz, 2010, p. 36). Por esse caminho, o lugar da criança é o da insistência nas potencialidades humanas, assim como, esse mesmo lugar já indica que algo lhe foi negado. Como pode ser lido no fragmento Sobre a gênese da burrice:

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As perguntas sem fim das crianças já são sinais de uma dor secreta, de uma primeira questão para a qual não encontrou resposta e que não sabe formular corretamente. A repetição lembra em parte a vontade lúdica, por exemplo do cão que salta sem parar em frente da porta que ainda não sabe abrir, para afinal desistir, quando o trinco está alto demais; em parte obedece a uma compulsão desesperada. (ADORNO; HORKHEIMER, 1947/1985, p.211).

Em posição propícia para tentar comunicar suas experiências, a infância guarda o momento de esperança frente à cultura, porque o investimento na vinculação sensorial do corpo com o mundo obedece ao movimento que lhe é próprio, o da repetição, o de tentar novamente por várias vezes reviver as experiências, sejam elas de prazer ou de terror, e não de camuflá-las sob as representações padronizadas, como aprendemos com o exceder das exigências sociais. Embora devamos perguntar se em condições de ameaça da sobrevivência ainda somos capazes de alguma representação, ou, se nos guiamos pela compulsão irrefletida e sem sentido já desde a infância.

O conceito benjaminiano de experiência (Erfahrung), com o qual Adorno compartilha, se depreende, antes de tudo, da possibilidade de se perder nos objetos do presente e, por isso, se conectar com a tradição, comunicando a história do geral que compõe o momento particular e, que na infância, se expressa na efemeridade do instante (SELIGMANN, 2010). A experiência que se encontra enfraquecida nos tempos modernos pelos impedimentos para a fruição entre o particular e o universal, bem como a narração deste momento, se torna possível para a criança quando o corpo (os sentidos) permite certa materialização do movimento mimético ao transformar brinquedos e brincadeiras num ritmo que conta com a repetição e “não se abrevia o tempo, mas dele se dispõe com intensidade” (VAZ, 2010, p. 39).

A repetição, que para Benjamin (2012) pode ser compreendida como a grande lei que rege a infância, representa a memória filogenética da compulsão, mas, também, a tentativa de voltar por meio da mimese e da imaginação, quantas vezes forem necessárias, à passagem do estágio em que o medo petrificou a esperança e reivindicar caminhos em que o pensamento encontre seus fundamentos no amor. Repetindo os desejos encobertos por mecanismos psíquicos de defesa ainda frágeis, a criança procura os caminhos para lidar com os sentimentos de angústia que a perturba e, assim, quem sabe, encontrar os meios nos processos de transmissão da cultura para o

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aprendizado do discernimento entre o que causa prazer e desprazer, amor e ódio.

É no âmbito das possibilidades de reflexão acerca de quais são as condições objetivas e subjetivas inscritas nos processos de transmissão da cultura, que interessa os entrelaçamentos de ordem filogenética e ontogenética entre o amor e o pensamento na infância. Trata-se de não perder os aspectos da origem dos fenômenos para compreender os desdobramentos do processo da formação cultural. Segundo estudos dos autores da Teoria Crítica da Sociedade, mas também da Psicanálise freudiana, além dos de Huizinga (1938/1999), as faculdades da mimese, da imaginação e da memória se encontram, de alguma forma, na raiz da relação entre o indivíduo e a cultura, da formação cultural.

NOTAS DE APRESENTAÇÃO DO PENSAMENTO NA TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE – UMA INSPIRAÇÃO METODOLÓGICA

“Pensar é um agir (...).” (ADORNO, 1969/1995b, p. 204). Os elementos que mobilizam essa ação se depreendem da experiência na qual o sujeito não pode ser substituído por qualquer outro, pois exige o esforço corporal para pensar, a concentração e a paciência no objeto, forças advindas do material dos sentidos pré-formados na consciência desde a infância, mas que podem encontrar suas vias de exposição a partir das representações que o pensamento acompanha de forma não consciente, na manifestação da dor, da alegria, no movimento do corpo ou na brincadeira, por exemplo.

Não cabe a ingenuidade de desconsiderar que no âmago da esfera mais particular dos sujeitos residem as tramas do todo, nisso incide a constituição social dos sujeitos, mas antes, o reconhecimento de que a esfera íntima, em que será produzida a atividade do pensamento – na tensão entre os momentos de passividade e de atividade – exige que o sujeito enfrente a coisa pensada e busque possibilidades particulares de encarar as cicatrizes que, embora estejam cravadas na psicologia de cada indivíduo, não escapam da lei do mundo. Ao contrário, é diante das tensões entre os interesses individuais e os da cultura que a psique aprende a acomodar, a cada época, as cicatrizes dos processos de socialização.

Podemos dizer que um dos interesses centrais no pensamento de Adorno reside em abarcar essas tensões entre cultura, sociedade e psique humana. Notadamente, a explicitação de tais tensões é o que mais caracteriza Adorno como crítico das teorias tradicionais. Por meio de uma teoria sobre sujeito e objeto, em que a mediação social é indispensável para a

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compreensão das ideologias que obstruem o pensamento, Adorno insistiu na reflexão acerca dos antagonismos entre universal e particular, considerando na coerção social sofrida pelo indivíduo, um momento em que a dimensão psicológica apresente resistências à sua total obliteração, possibilitando ao indivíduo o direito a alguma gratificação corporal (JAY, 1944/1988). Trata-se de considerar que:

A defesa filosófica do sujeito contingente, sofredor, empírico, [...] levou Adorno a alegar que a psicologia (mas não o psicologismo, em suas formas redutoras) era uma trincheira legítima de defesa contra essa supressão do sujeito, feita em nome de um sujeito pretensamente mais elevado ou mais geral. (JAY, 1944/1988, p. 80).

No texto Acerca de la relación entre Sociología y Psicología, Adorno (1955/2004) esclarece que ante o fascismo é necessário completar a teoria da sociedade com uma psicologia social orientada analiticamente, uma vez que os falsos valores difundidos pela propaganda e amparados por ameaças e violências, não poderiam enganar as massas se nelas as dinâmicas pulsionais não estivessem preparadas para responder com o medo e a violência outrora conhecidos. Contudo, tal relação entre as crenças que habitam a psique dos sujeitos e as ideologias que determinam a sociedade não estão facilmente disponíveis à consciência dos sujeitos, pois na sociedade de massas a consciência encontra-se coisificada. Ou seja, quando as relações sociais se apresentam de forma reificadas, em que sujeito vivente e objetividade permanecem dissociados em polos opostos, o que prevalece é uma segunda natureza dos indivíduos, uma falsa aparência absoluta que obstrui a consciência sobre a realidade, já que “los hombres no consiguen reconocerse a sí mismos en la sociedad, ni esta tampoco en ellos, porque se encuentran alienados entre ellos y frente al todo. Sus relaciones sociales reificadas se les presentan necesariamente con un ser en sí” (ADORNO, 1955/2004, p. 38).

Foi nesse sentido que os autores da Teoria Crítica da Sociedade, identificados com a primeira formação da Escola de Frankfurt, reuniram seus esforços para uma crítica radical à cultura de seu tempo, traduzindo a desilusão de grande parte dos intelectuais com relação às mudanças ocorridas no mundo contemporâneo, principalmente, quanto às interdições políticas à autonomia do pensamento (MATOS, 1993).

De modo geral, autores como Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse e Walter Benjamin, encontram pontos de divergências entre si, mas que, ao serem confrontados em suas particularidades, contribuem para o diálogo entre os diferentes campos do conhecimento – da Filosofia, da

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Arte, das Ciências e da Política, e suas disciplinas parcelares, por exemplo, a Educação, a Sociologia e a Psicologia.

As análises empreendidas pelos autores da Teoria Crítica da Sociedade têm origem num contexto específico do século XX da Europa Ocidental, cujas contradições explicitadas pelo desenvolvimento da indústria, pelas mudanças políticas e econômicas passaram a movimentar teoricamente a intelectualidade, em especial, a alemã a respeito de quais eram as condições objetivas que impossibilitavam as classes trabalhadoras de reverter a situação de dominação imposta naquela organização industrial. Pois, apesar da existência de uma classe trabalhadora organizada, com certa consciência, a revolução proletária esperada por Marx não se anunciava no panorama da história.

Há, então, por parte desses pensadores da Escola de Frankfurt um esforço em desenvolver uma teoria que se debruçasse sobre si mesma colocando em questão suas bases racionais e, nisso, ser capaz de contemplar os novos sujeitos em transformação, suas relações sociais e suas instituições de mediação social. Em última instância, tais autores buscaram compreender os impedimentos à capacidade de autorreflexão presentes no progresso do pensamento, que permitiram a ascensão da barbárie por meio do fascismo na Alemanha esclarecida.

No texto Teoria Tradicional e Teoria Crítica, escrito em 1937, Horkheimer (1937/1980) mostra que a atividade científica ocorre ao lado de todas as atividades sociais no quadro de divisão de trabalho, portanto, não havendo autonomia entre as esferas da teoria e da práxis social. Nesse sentido, a primeira oposição entre a Teoria Crítica e a Teoria Tradicional é uma questão de método de exposição do pensamento – ou do entendimento da mediação social entre sujeito e objeto. A Teoria Crítica tem como ancoragem o entendimento da reunificação entre razão e sensibilidade, que nas teorias tradicionais do conhecimento se encontravam em oposição pelo pensamento dualista que separa sujeito e objeto de conhecimento (MATOS, 1993).

Em contrapartida à forma operacional da teoria tradicional, que se estruturava na organização das proposições segundo a hierarquia lógica dos fatos e do material do saber, tal qual a teoria na ciência natural, a Teoria Crítica ressaltava que uma organização segundo estes critérios metodológicos somente faria sentido se estivesse entrelaçada aos processos sociais reais (HORKHEIMER, 1937/1980). Em última instância, significa dizer que a cisão entre sujeito cognoscente e objeto conhecido é verdadeira e aparente. É verdadeira, pois eles estão cindidos na realidade, uma vez que:

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A totalidade do mundo perceptível, tal como existe para o membro da sociedade burguesa e tal como é interpretado em sua reciprocidade com ela, dentro da concepção tradicional do mundo, é para seu sujeito uma sinopse de facticidades; esse mundo existe e deve ser aceito. (HORKHEIMER, 1937/1980, p. 125). O lado aparente da separação entre sujeito e objeto reside no fato de que um depende, indubitavelmente, da mediação do outro para que a separação não se torne ideologia (ADORNO, 1969/1995a).

A essa relação de mediação social entre sujeito e objeto de conhecimento, em que “nem um nem outro são meramente naturais, mas enformados pela atividade humana” Horkheimer (1937/1980, p. 125) atribui à dualidade entre sensibilidade e entendimento que se apresenta desproporcional para a sociedade e para seus membros, os indivíduos. Se do lado dos indivíduos, o pensamento organizador segue as tendências de ajustamento às reações sociais, de modo mais adequado possível, a percepção experimentada é daquele que percebe e que parece estar passivo, portanto, depende das relações sociais que fornecem as percepções. Por outro lado, a sociedade ganha estatuto de sujeito ativo, sendo que sua verdade reside em ser composta por indivíduos. Nisso se prolonga ao longo dos tempos o caráter de inautenticidade da cisão entre a sociedade e seus indivíduos constituintes (HORKHEIMER, 1937/1980).

Manter falseada a separação entre sujeito e objeto de conhecimento corrobora o enrijecimento das condições de existência de um pensamento filosófico, pode-se dizer herdeiro de Aristóteles, que considera que o propósito político de uma sociedade não é apenas viver juntos, mas viver “bem” juntos.

Este é o ponto em que Horkheimer (1937/1980) pensa as condições para a produção de um conhecimento que busque superar a perda que se tem, quando a especialização das ciências abre mão da totalidade em nome da realidade que se encontra cindida. O que está em jogo aí é criar as condições para um pensamento dialético, assumido também por Adorno, com a finalidade de produzir um conhecimento que consiga abarcar o reconhecimento da ambígua relação de identidade, por parte da estrutura social, entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido. Entretanto, não para se conformar com tal identidade, mas para identificar as pré-conformações estabelecidas na realidade – os seus condicionamentos – e indicar as brechas possíveis de superação do existente. Nesses termos, significa dizer que todo conhecimento produzido é condicionado. Assim, é do reconhecimento e da reflexão acerca dos próprios condicionamentos entrelaçados às estruturas das

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relações sociais e às funções sociais, que estabelecem a divisão do trabalho e, nisso, os modos de produção do conhecimento, que depende a força valorativa de uma teoria. Não é demais a ressalva, inclusive, de uma teoria crítica.

Tais questões se contrapõem, de fato, à questão central que embasa as teorias tradicionais, a saber: a da neutralidade dos conhecimentos produzidos no campo da ciência no que se refere à organização social. A partir do entendimento de que todo conhecimento é produzido num campo de forças condicionantes, que tornam sujeito e objeto condicionados, a questão não está em como alcançar uma ciência neutra, mas em compreender quais são os interesses que movimentam a produção do conhecimento científico numa determinada realidade histórica.

Parece possível dizer que o problema do obscurecimento acerca do conhecimento condicionado inscreve a cisão entre sujeito e objeto de conhecimento como exercício de poder, na medida em que legitima as outras cisões históricas correlativas: cultura – civilização; indivíduo – sociedade; trabalho manual (corpo) – trabalho intelectual (espírito).

Desse modo, pretender uma teoria com valores neutros politicamente é a que os autores da Teoria Crítica da Sociedade se contrapuseram, por entenderem que a própria organização social é parte constitutiva da relação entre sujeito e objeto – condicionante – dos meios para a produção de conhecimento no campo das Ciências, da Filosofia e da Política. O que de modo algum aponta para uma ação política partidária ou militante. Seu caráter de crítica à neutralidade da ciência reside no reconhecimento de que sujeito e objeto estão mediados reciprocamente.

Somente submisso a uma lógica do sujeito é que se pode ter a pretensão da neutralidade do sujeito cognoscente sobre o objeto conhecido, bem como dos valores sociais e políticos que condicionam toda a esfera de produção do conhecimento, e, assim, garantir a posição de superioridade da razão subjetiva sobre o objeto. Vale a pena trazer o trecho do texto Sobre o sujeito e objeto de Adorno (1969/1995a):

Esta contradição na separação entre sujeito e objeto comunica-se à teoria do conhecimento. É verdade que não se pode prescindir de pensa-los como separados; mas o pseudos (a falsidade) da separação manifesta-se em que ambos encontram-se mediados reciprocamente: o objeto, mediante o sujeito, e, mais ainda e de outro modo, o sujeito, mediante o objeto. A separação torna-se ideologia, exatamente sua forma habitual, assim que é fixada sem mediação. O espírito usurpa então o lugar

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do absolutamente subsistente em si, que ele não é: na pretensão de sua independência anuncia-se o senhoril. Uma vez radicalmente separado do objeto, o sujeito já reduz este a si; o sujeito devora o objeto ao esquecer o quanto ele mesmo é objeto [...]. (ADORNO, 1969/1995a, p. 183, grifos no original).

Como é possível compreender, para a Teoria Crítica não se trata apenas de inverter a posição metodológica de análises categóricas de sujeito e objeto, tratando a questão da identidade entre um e outro, sem considerar “que o indivíduo não está menos cativo dentro de si que dentro da universalidade da sociedade” (ADORNO, 1969/1995a, p. 192). Em outras palavras, em uma sociedade não livre, não é possível a produção de uma teoria de conhecimento, cuja liberdade e a felicidade consigam lugares seguros de expressão. Contudo, uma teoria crítica, tal qual aquela que os autores frankfurtianos se empenharam em desenvolver, lança mão da reivindicação de que a utopia seja reposta na teoria, com suas forças orientadas para o futuro de uma humanidade feliz, já que a liberdade não vem sendo inscrita nas práticas sociais.

A chave metodológica utilizada por Adorno para não abrir mão da utopia, em suas rigorosas análises dos processos sociais é, antes de tudo, a expressão da forma de operar de seu pensamento e costuma ser atribuída ao recurso composicional da constelação de conceitos. A compreensão deste recurso metodológico requer mais do que a aproximação com o termo constelação, como um conjunto de conceitos, teorias ou objetos podem oferecer.

Compreende-se constelação como uma categoria modelar sociológica, que faz parte do núcleo do pensamento interpretativo e dialético de Adorno, por coordenar os elementos da realidade em tensão num campo de forças, em que sujeito e objeto mantêm uma dupla relação entre o conceito e a utopia (SILVA, 2006).

Embora possa ser dito que ao expor o objeto a um campo de forças em tensão, Adorno apresentava seu pensamento de forma assistemática, seu método de exposição nada tem a ver com o desprezo em relação com os conceitos.

Antes, Adorno acredita que é através da abertura destes ao transitório que eles podem se manter fieis à realidade. Adorno também construiu “imagens do pensamento” que desempenham um papel fundamental neste trabalho de estruturação de campos de força tensos. (SELIGMANN-SILVA, 2010, p. 84, aspas no original).

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Nesse sentido, é possível dizer, junto com Seligmann-Silva (2010), que Adorno, assim como também é dito sobre Walter Benjamin, ao pensar construindo imagens expressava a capacidade de realizar experiências com o pensamento. Um pensar sensível, que experimenta, tateia, joga com a possibilidade do erro, assim, preserva algo na consciência da genealogia do pensamento, a saber: que ele é filho do desejo (Adorno, 1951/1992).

Com base em tais entendimentos, buscou-se apresentar nesta pesquisa três movimentos de expressão do pensamento e diálogos de Adorno acerca do entrelaçamento do amor e do pensamento e suas imbricações com as faculdades da mimese, da imaginação e da memória. Movimentos de risco e, por certo, insuficientes diante da complexidade do tema e da genialidade de autores como Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse e Freud. Antes de tentar uma capturação do pensamento ou dos conceitos apresentados no marco teórico que embasa esta pesquisa, o que não está ao meu alcance, o esforço dirigiu-se para movimentar a compreensão dos aspectos que podem fundamentar a tese proposta. Cultivar a esperança de ser capaz, um dia, de tatear e desejar com o pensamento, romper com minha própria cegueira e dureza, eis as cicatrizes que intento enfrentar.

O primeiro capítulo apresenta o movimento de formação cultural, com foco na relação do indivíduo e da natureza. Tal relação fundamenta o que se constituiu como caráter de mediação social tanto no que se refere à participação do indivíduo na sociedade, quanto às determinações culturais que perpassam os processos (de) formativos dos indivíduos.

Nesse momento original do psiquismo humano, a partir do estabelecimento de uma específica dinâmica das pulsões, é possível encontrar operações do pensamento que contam com a mimese, a imaginação e a memória para a formação de mecanismos psíquicos que passam a orientar a afetividade nas relações do indivíduo consigo próprio, com o outro e com o mundo, em especial, tal dinâmica representa a relação entre o familiar e o estranho, a (im)possibilidade cultural para a realização da diferença. Nesse sentido, estão sistematizados no primeiro capítulo alguns aspectos do caráter repressivo da cultura que atuam na dinâmica pulsional obstruindo o prazer – a capacidade de amar –, e impulsionando um princípio autoritário e, consequentemente, narcísico para a adaptação e a obediência dos indivíduos às exigências irracionais da sociedade.

No segundo capítulo buscou-se a fundamentação dos temas do amor e do pensamento, tais como eles aparecem nas obras estudadas de Adorno, a partir das relações com a autonomia, segundo a qual o movimento do amor tem como potencialidade resistir à frieza e violência instauradas socialmente

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e, desse modo, ao aprendizado desde a infância da renúncia pulsional. Neste ponto, os esquemas da indústria cultural são compreendidos como a técnica de interiorização da dominação social na consciência, ao instituir a despersonalização das pessoas e o enfraquecimento do eu psíquico. Nesse caminho, buscou-se também refletir acerca dos processos educacionais das crianças em meio ao autoritarismo e à deformação cultural que marcam os limites e as potencialidades das relações de amizade e preconceito na infância.

O terceiro capítulo reúne os conceitos que compõem as faculdades da mimese, imaginação e memória, com foco em suas relações com as experiências da infância. Para tal, a relação do corpo – órgão privilegiado da experiência – do pensamento e da técnica introduz o capítulo.

Intentou-se destacar a tensão entre o pensamento esclarecido e os aspectos constituintes da razão outra que opera na infância, e cujas faculdades em questão ocupam centralidade ao resguardarem possibilidades para que o pensamento jogue, brinque e encontre gratificações com a realidade e a fantasia.

Da análise das faculdades estudadas se depreendem outros elementos que parecem compor o amor e o pensamento na infância por suas capacidades, de formas distintas, porém imbricadas, de abrirem passagens para a afetividade nas relações entre as crianças e entre elas e os objetos do mundo. São eles: a linguagem, a repetição, os aspectos que aproximam o jogo da esfera do sagrado – seu caráter lúdico –, bem como a contraposição com algumas características dos jogos eletrônicos que marcam a brincadeira atualmente.

Por fim, mais especificamente, acerca do funcionamento da faculdade da memória foi possível ressaltar a parceria das faculdades da mimese, da imaginação e da memória a favor do movimento que entrelaça o amor ao pensamento a partir dos elementos reincidentes na cultura, tanto nos aspectos particulares de seus indivíduos como nos universais das sociedades que o passado pode iluminar. Compreende-se que os resquícios de tais elementos reincidem como reivindicação de um passado que precisa ser superado, mas também como potencialidades que carregam junto a si possibilidades de enfrentamento da realidade e, nisso, de alterações do existente.

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CAPÍTULO 1FORMAÇÃO CULTURAL E DINÂMICA PULSIONAL: OU QUANDO O AMOR E O PENSAMENTO ENCONTRAM O MEDO

“[...] a educação precisa levar a sério o que já de há muito é do conhecimento da filosofia: que o medo não deve ser reprimido. Quando o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quanto esta realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá provavelmente grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido”.

(Theodor W. Adorno, 1971/1995) As reflexões norteadoras para a proposição desta tese têm sua origem nos estudos realizados na pesquisa de mestrado3 (SALGADO, 2013), em que foi possível uma sistematização sobre o processo de formação cultural a partir do diálogo estabelecido entre Adorno, Horkheimer e Marcuse e a dinâmica pulsional apresentada na metapsicologia4 de Freud.

Parte dos resultados da pesquisa mencionada, especificamente, sobre a dinâmica pulsional presente no processo de produção artesanal, bem como a própria permanência desta produção na atualidade, indicou uma relação de submissão e dependência dos artesãos e, em especial, das artesãs com a cultura, revelando uma tendência à infantilização. O que parece é que isto se deve a uma movimentação pulsional, que embora represente o desenvolvimento genérico do humano, também é específica, de um lado pela comunicação do trabalho da mão com o pensamento, requisito do ofício artesanal e por outro lado das condições adquiridas historicamente no resguardo da esfera doméstica onde é realizada a produção artesanal. Estas condições mantêm as artesãs mais próximas à ideia de razão tutelada destinada socialmente às mulheres, às crianças e aos homens considerados

3

Dissertação de mestrado intitulada: Corporalidade da mulher artesã: elementos da formação cultural entre o anacronismo e o desejo de vida. Defendida em março de 2013, sob a orientação do prof. Dr. Alexandre Fernandez Vaz, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina.

4

Em seu texto Além do princípio de prazer, Freud (1920/1976) cria o termo metapsicologia para distinguir suas formulações teóricas, que contam com a apresentação de conceitos para descrever os eventos mentais nas dimensões topográficas, dinâmicas e econômicas, dos seus estudos fundamentados, mais especificamente, nas experiências analíticas de seus pacientes.

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inaptos ao campo de batalha, no qual se inspira o mundo do trabalho. Se tais reflexões apontaram para condições sociais em que seus indivíduos manifestam uma aproximação com a infância de forma regredida, quando submetidos às demandas culturais, e progressiva, quando encontram brechas para resquícios da imaginação e da esperança, também abriram perguntas sobre os momentos de ambivalências que a infância resguarda em suas relações com sua genitora: a cultura.

Como base para o desenvolvimento dos limites e das potencialidades da razão intelectual e sensível, a infância é o lugar das primeiras dualidades que surgem na relação indivíduo-cultura, cujo agradecimento pela proteção da vida e o ressentimento pela repressão sofrida se desdobrarão em outros pares como, por exemplo, a esperança e o medo, a razão e a sensibilidade, o amor e o ódio.

Embora os objetos investigados sejam distintos, retoma-se parte dessa sistematização teórica que contribui para o entendimento sobre a formação do indivíduo do ponto de vista da dinâmica pulsional, no que se refere ao funcionamento psíquico e, assim, delineia o caminho que fundamenta a participação das faculdades da mimese, da imaginação e da memória. Tal proposição psicanalítica perpassa o pensamento de Adorno acerca dos aspectos da formação do indivíduo na cultura, sobretudo os que dizem respeito às (im)possibilidades estabelecidas socialmente para o amor e o pensamento.

1.1 FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO: ENTRE A NATUREZA E A CULTURA

Entende-se que o processo de formação cultural consiste na apropriação da cultura pelo indivíduo, nas palavras de Adorno (1966/1996, p. 399), “[...] a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva.” Tal apropriação da cultura encontra certa correspondência com o momento de adaptação do indivíduo ao meio ambiente desconhecido, em que a projeção mimética é ativada como mecanismo interno/corporal para a sobrevivência frente aos perigos da vida na natureza.

Como parte das funções dos reflexos dos animais superiores, de ataque e de proteção, a projeção mimética foi automatizada nos homens e é o que constitui o sistema de coisas do mundo objetivo, como “produto inconsciente do instrumento que o animal usa na luta pela vida, isto é, daquela projeção espontânea” (ADORNO; HORKHEIMER, 1947/1985, p. 155), quando o humano dissolve-se “na imobilidade do espaço sem tempo e

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sem história”, como mecanismo corpóreo de defesa e autoconservação (VAZ, 2007, p. 190). Contudo, como o homem é natureza transformada pela capacidade de ser racional – na tensão entre suas potencialidades sensíveis e intelectuais –, o momento de adaptação orgânica é confrontado pela formação do indivíduo. Ao indivíduo, cuja vida intelectual e afetiva se distingue da de outro indivíduo, é exigido o controle e o aprimoramento da projeção mimética para a diferenciação entre seus próprios pensamentos e sentimentos e os alheios, surgindo a possibilidade de distinção entre o meio externo e o interno como sinal de um movimento de evolução da espécie. Nesse movimento, de uma mimese originária em seu processo de formação, o indivíduo tem a possibilidade da apreensão subjetiva daquilo que o meio ambiente lhe apresenta (ADORNO; HORKHEIMER, 1947/1985). Ou seja, uma forma particular de transformar o estranho em familiar e, na distinção destes, realizar o processo de sua diferenciação na cultura, tornar-se indivíduo (FRANCISCATTI, 2005).

A relação entre indivíduo e sociedade tem como marca ancestral a relação entre a natureza e a cultura, pois provêm das marcas da violência e da dor empreendidas pelos homens no trabalho de dominação da natureza externa e interna, e de uns sobre os outros, as possibilidades de formação do indivíduo, que só pode ser compreendida na cultura. Ou seja, um processo cultural decorrente de condições históricas, cujos “membros particulares de uma coletividade que percebem a diferenciação de um espaço interno, que recebem o choque proveniente das pressões externas e internas” podem distinguir-se entre si e o outro ao superar o momento da adaptação biológica e instaurar a própria natureza humana, por princípio, uma natureza histórica (FRANCISCATTI, 2005, p. 43).

Se por um lado Horkheimer e Adorno (1956/1973) argumentam que a uma sociologia crítica não cabe sobrepor a natureza social do indivíduo à biológica, à custa de ideologizar tanto a comunidade social como a objetividade biológica individual, por outro lado, a capacidade de tornar-se indivíduo não pode ser dissociada das condições estabelecidas socialmente para a diferenciação ou a autoconsciência. “Só é indivíduo aquele que se diferencia a si mesmo dos interesses e pontos de vista dos outros, faz-se substância de si mesmo, estabelece como norma a autopreservação e o desenvolvimento próprio”, como pode ser lido nos Temas Básicos da Sociologia (HORKHEIMER; ADORNO, 1956/1973, p. 52).

Tal concepção de indivíduo localiza-o como categoria social referente ao homem singular por volta do século XVIII. Contudo, não se pode esquecer que a singularidade individual, a autoconsciência, só é possível a

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partir da mediação social, da qual o indivíduo também assume a forma. É a mediação social como convivência entre os humanos nos processos de produção e circulação dos bens culturais (intelectuais e sensíveis), a forma capaz de superar a abstração dos conceitos de indivíduo e autoconsciência (HORKHEIMER; ADORNO, 1956/1973).

Dizem esses autores:

A própria forma do indivíduo é a forma de uma sociedade que se mantém viva em virtude da mediação do mercado livre, no qual se encontram sujeitos econômicos livres e independentes. Quanto mais o indivíduo é reforçado, mais cresce a força da sociedade, graças à relação de troca em que o indivíduo se forma. Ambos os conceitos são recíprocos. (HORKHEIMER; ADORNO, 1956/1973, p. 53).

É por isso que, de modo análogo ao indivíduo a cultura é compreendida como representação dinâmica e de caráter duplo da mediação social. Sua ambiguidade se configura tanto pelas capacidades adquiridas para o controle da natureza e satisfação das necessidades humanas quanto, por outro lado, pelas regras que passaram a normatizar as relações entre os homens. Assim, Horkheimer e Adorno (1956/1973), referenciando Freud de O Mal-estar na civilização e de O Futuro de uma ilusão, referem-se à cultura (espírito) não como algo sagrado, ou natural ao homem, mas àquilo que não se separa da civilização (bens materiais), ou seja, como toda produção humana que distingue o homem dos outros animais:

A cultura humana – entendendo por isto toda a ascensão ocorrida na vida humana desde as suas condições animais e pela qual se distingue da vida dos animais, e abstendo-me da insípida distinção entre cultura e civilização – mostra claramente dois aspectos a quem a observa. Por um lado, abrange todo o saber e capacidade que os homens adquiriram para dominar as forças da natureza e obter os bens que satisfazem as necessidades humanas; e, por outro lado, todas as instituições necessárias para reger as relações dos homens entre si e, mormente, a distribuição dos bens obtidos. Estes dois sentidos da cultura não são mutuamente independentes, primeiro, porque as relações recíprocas dos homens se modificam profundamente, na medida em que a satisfação dos impulsos se torna possível através dos bens disponíveis; segundo, porque o próprio indivíduo humano pode estabelecer com outro uma relação de

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homem a coisa, quando o outro utiliza sua força de trabalho ou é adotado como objeto sexual; terceiro, porque cada indivíduo é, potencialmente, um inimigo virtual dessa cultura que, entretanto, há de ser um interesse humano universal (FREUD, 1927/1974a, p. 14).

Desse modo, a cultura não é só espírito, como quer fazer acreditar seu conceito fetichizado (ADORNO, 1971/1995), é também bem material. Então, tudo que o homem produziu e produz é cultura, de forma que estabelecer uma dissociação entre cultura e civilização é manter a alienação acerca dos elementos da dominação inscritos no processo histórico. Tanto no que se refere à suposta superioridade espiritual da cultura, quanto na oposição estabelecida entre bens espirituais (trabalho intelectual) e bens materiais (trabalho manual), reafirmar tal cisão colabora com as justificativas para uma forma de organização social que busca o poder de uns sobre os outros e mascara o caráter de mediação social dos indivíduos.

Tal separação constitui a base para uma tendência de aversão à civilização, como se não fosse por meio das produções materiais da cultura (civilização) que adviriam as possibilidades para uma vida com segurança e liberdade, com a barbárie efetivamente superada. “O que toda a cultura nada mais fez, até hoje, do que prometer, será realizado pela civilização quando esta for tão livre e ampla que não exista mais fome sobre a Terra” (HORKHEIMER, ADORNO, 1956/1973, p. 99).

Vale lembrar que os meios de produção material da cultura, ou seja, o desenvolvimento da técnica como dominação da natureza foi o que tornou possível reivindicar a liberação da violência sobre o todo, por isso cultura e técnica referenciam-se uma a outra em nossa sociedade.

Em outras palavras, a crítica dialética à técnica em Adorno é inseparável da crítica dialética à cultura, na medida em que as ambiguidades daquela remetem às antinomias desta, portanto, ao seu próprio conceito, tal como Adorno o compreende: tanto como momento de redenção e contraposição ao existente, quanto como dimensão de manipulação e de justificação das injustiças sociais sob a forma de mercadoria da indústria cultural. (BASSANI, 2008, p. 115, grifos no original).

As considerações de Adorno querem lembrar que “a liberdade permanecerá uma promessa ambígua da cultura enquanto sua existência depender de uma realidade mistificada, com a razão instrumentalizada para a finalidade de manter a dominação entre os humanos, ou seja, em última

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instância, do poder de disposição sobre o trabalho dos outros” (ADORNO, 1971/1995, p. 12). Esse entendimento constitui o projeto da obra Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer que apresenta no prefácio uma preocupação dos autores que ainda não foi superada nos dias de hoje: “O que nos propuséramos era, de fato, nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (ADORNO; HORKHEIMER, 1947/1985, p. 11).

O esclarecimento ao tentar afastar de si as lembranças da vida ameaçadora na natureza, da qual tentou escapar por meio da repressão das pulsões sexuais e de sua submissão à força de trabalho, a humanidade recaiu naquilo que mais identifica os indivíduos com a natureza: a capacidade mimética. Contudo, trata-se de uma mimese pervertida, imitação da mimese originária recalcada pela formalização da razão que somente permite a identificação com a coisa morta, ao prescrever como norma social a reincidência na compulsão à repetição.

O recurso ao mimetismo, como manifestação regressiva de uma natureza desprovida de suas qualidades e do trabalho reflexivo, teria servido, em associação com a falsa projeção, para que se obedecesse aos propósitos da racionalização da barbárie. Estabelece-se uma nova forma de dominação, não apenas pelo domínio da natureza (aqui interna ao humano), mas pelo controle do seu descontrole. (VAZ, 2007, p. 194).

Desse modo, aprisionada pelo logro de que os comportamentos miméticos, míticos e metafísicos estavam superados, e da conquista de um poder absoluto sobre a natureza, a humanidade tem que lidar com as consequências de que

[...] o preço da dominação não é meramente a alienação dos homens com relação aos objetos dominados: com a coisificação do espírito, as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo. (ADORNO; HORKHEIMER, 1947/1985, p. 35).

Com o eu coisificado5 e com suas relações pautadas no padrão da autoconservação, a capacidade para mimese dirige-se para a objetividade que

5 Quando o trabalho passa a ter a forma da quantidade de valor de seu produto, converte-se ilusoriamente a relação entre pessoas, que revelam as inscrições sociais, em relações sociais entre os produtos, entre coisas (Marx, 1867/1988).

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lhe potencializa o medo: o mundo onde as criações humanas amedrontam não porque os objetos estão dotados de alma, mas porque os corpos e almas estão coisificados, equiparados, por meio da técnica e da adaptação, ao ritmo da máquina (ADORNO; HORKHEIMER, 1947/1985).

Nesse sentido, o caminho traçado pela humanidade em busca de mais segurança e liberdade considerou que seria necessário livrar o mundo daquilo que obscurecia a realidade, desencantá-lo a partir do pensamento esclarecido, capaz de “livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores” (ADORNO; HORKHEIMER, 1947/1985, p. 19). De fato, Adorno e Horkheimer (1947/1985, p. 13) reconheciam que “a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor”. Contudo, na tentativa de escapar dos elementos regressivos que se atrelam ao próprio pensamento, o que era regressivo (a violência e a alienação, por exemplo), livre da reflexão imanente, contribuiu para que o esclarecimento se mantivesse entrelaçado ao mito, resultando numa racionalidade que se movimenta não como o meio para uma vida livre e feliz, mas como a finalidade última da humanidade. Uma racionalidade que serve a si mesma ao imprimir nos homens as justificativas para a renúncia e o sacrifício, e que tem como uma das alavancas principais a ideologia6 que conserva tanto a cultura como seus bens produzidos (civilização) como esferas de valores independentes.

Nesse mesmo sentido, porém numa argumentação distinta, Marcuse (1937/1997, p. 96) diz que na separação entre cultura e civilização a noção de cultura aparece como uma exaltação de valores e crenças descolados da realidade, elevados acima da práxis, e dispostos contra o mundo da utilidade e dos meios. A essa ideia de cultura, esse autor denominou “cultura afirmativa”, que se caracterizava pela “práxis da vida e da visão de mundo da época burguesa” (MARCUSE 1937/1997, p. 96), e que está assim conceituada:

Adorno (1971/1995) em Educação após Auschiwitz refere-se à consciência coisificada como, “sobretudo uma consciência que se defende em relação a qualquer vir-a-ser, frente à qualquer apreensão do próprio condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado modo” (ADORNO, 1971/1995, p.132). Vale a lembrança de que tais características são precursoras do preconceito e do fascismo.

6

Segundo Horkheimer e Adorno (1956/1973), o conceito de ideologia foi, historicamente, sofrendo alterações tanto em sua função como em seu conteúdo, mas traz como fundamento ser justificação de dominação e, portanto, de desigualdades sociais.

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Cultura afirmativa é aquela cultura pertencente à época burguesa que no curso de seu próprio desenvolvimento levaria a distinguir e elevar o mundo espiritual-anímico, nos tempos de uma esfera de valores autônoma, em relação à civilização. Seu traço decisivo é a firmação de um mundo mais valioso, universalmente obrigatório, incondicionalmente confirmado, eternamente melhor, que é essencialmente diferente do mundo de fato da luta diária pela existência, mas que qualquer indivíduo pode realizar para si “a partir do interior”, sem transformar aquela realidade de fato. Somente nessa cultura as atividades e os objetos culturais adquirem sua solenidade elevada tanto acima do cotidiano: sua recepção se converte em ato de celebração e exaltação. (MARCUSE, 1937/1997, p. 96, aspas no original).

Entre os aspectos da ideologia burguesa está a característica de hipostasiar a satisfação das condições materiais dos indivíduos, transformando-as em uma ideia a ser perseguida no curso do progresso na esfera individual abstrata. Assim, o indivíduo não representaria mais os interesses universais, e deveria, em sua aventura existencial, tornar-se portador de uma nova exigência de felicidade, contudo, uma felicidade que não ameaçasse o domínio da riqueza social produzida. No plano da produção capitalista em expansão, diz-se de uma felicidade que possa ser supostamente satisfeita pelas mercadorias a serem consumidas. E num segundo momento, após a constatação de que não é possível a todos o acesso às mercadorias produzidas, refere-se à aparência de que a felicidade e a liberdade residem num futuro anunciado. Tal ideologia de caráter progressista, presente também nos dias de hoje, encontrava na cultura afirmativa as respostas apaziguadoras para as relações sociais antagônicas, que lançavam para o futuro as satisfações individuais e a busca por felicidade, e “com a estabilização da dominação burguesa, elas se colocavam crescentemente a serviço do controle das massas insatisfeitas e da mera autoexaltação legitimadora: elas ocultam a atrofia corporal e psíquica do indivíduo” (MARCUSE, 1937/1997, p. 99).

Aos questionamentos acusadores a burguesia dava uma resposta decisiva: a cultura afirmativa. Em seus traços fundamentais ela é idealista. Às necessidades do indivíduo isolado ela responde com a característica humanitária universal; à miséria do corpo, com a beleza da alma; à servidão exterior, com a liberdade interior;

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