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Visibilizar o desconhecido no conhecido: crônicas berlinenses de Siegfried Kracauer

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Academic year: 2021

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CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM JORNALISMO

Claudia Luciana Silveyra D’Avila

VISIBILIZAR O DESCONHECIDO NO CONHECIDO:

CRÔNICAS BERLINENSES DE SIEGFRIED KRACAUER

Florianópolis 2019

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Claudia Luciana Silveyra D’Avila

VISIBILIZAR O DESCONHECIDO NO CONHECIDO:

CRÔNICAS BERLINENSES DE SIEGFRIED KRACAUER

Dissertação submetida ao Programa de Pós-graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Cata-rina para a obtenção do título de Mestra em Jornalismo Orientadora: Profa. Dra. Daisi Irmgard Vogel

Florianópolis 2019

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Claudia Luciana Silveyra D’Avila

VISIBILIZAR O DESCONHECIDO NO CONHECIDO:

CRÔNICAS BERLINENSES DE SIEGFRIED KRACAUER

O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Profa. Dra. Daisi Irmgard Vogel (Orientadora) Universidade Federal de Santa Catarina

Profa. Dra. Maria Aparecida Barbosa Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Dr. Jorge Kanehide Ijuim Universidade Federal de Santa Catarina

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em jornalismo pelo programa de Pós-Gra-duação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina.

____________________________ Profa. Dra. Cárlida Emerim Coordenadora do Programa

____________________________ Profa. Dra. Daisi Irmgard Vogel

Orientadora

Florianópolis, 2019. Documento assinado digitalmente Daisi Irmgard Vogel

Data: 19/11/2019 16:13:12-0300 CPF: 715.826.149-20

Carlida

Emerim:52371735000

Assinado de forma digital por Carlida Emerim:52371735000 Dados: 2019.11.20 09:38:34 -02'00'

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Dedico este trabalho aos meus queridos pais, Yoly e Lito, irmãos, sobrinhos e a Berthold.

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AGRADECIMENTOS

Esta dissertação não teria chegado ao seu destino sem o apoio, acompanhamento, com-preensão e confiança de muitas pessoas e instituições. Cada um e cada uma sabem de seu aporte importante para a elaboração deste trabalho. Seria impossível citar todos os que ajudaram, mas todos estão presentes nas seguintes páginas e no meu agradecimento.

Agradeço especialmente à minha orientadora, professora Daisi Vogel, por ter instigado e iluminado este trabalho com sua experiência e competência nas interseções entre jornalismo e literatura, acompanhando-me sempre com um olhar instigador, crítico, encorajador, e apoi-ando-me, nas horas difíceis, com enorme compreensão, confiança e paciência.

À professora Maria Aparecida Barbosa, pelas enriquecedoras conversas, pelo entusi-asmo contagiante por literatura e artes em geral.

Ao professor Jorge Kanehide Ijuim, pelos estimulantes debates, assim como pelo olhar compreensivo, solidário e amigo para os seres humanos.

Ao Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC, aos professores, estudantes e funcionários administrativos pela contribuição científica, didática e organizatória, e pelo am-biente estimulante.

À Capes, pelo apoio que concedeu a esta pesquisa.

A Fran, pelas belas horas de trocas de ideias e sorrisos durante a travessia.

A Berthold, pelo amor e apoio incondicional, pela motivação e insistência em não de-sistir nas horas difíceis, pelo enfoque na polissemia das palavras e do mundo, pelo incentivo ao mergulho nos textos em perspectiva histórica e intercultural, sempre guiado por seu leitmotiv: “o pensar é um processo dialógico”.

À minha família, aos meus amados pais, irmãos e sobrinhos, pelo afeto e apoio moral. Ao professor Antonio Dimas, pelas construtivas conversas e sugestões sobre a crônica. Ao professor Hermann Haarmann, pelos valiosos insights sobre a vida cultural durante a República de Weimar.

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“As pessoas não morrem, ficam encantadas.” (GUIMARÃES ROSA, 1967) Para minha amada, entranhável Steffi.

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RESUMO

A presente pesquisa tem como objeto empírico a breve prosa jornalístico-literária de Siegfried Kracauer (1889-1966), publicada, durante a República de Weimar, no suplemento cultural do jornal Frankfurter Zeitung, entre 1925-1933, e reunida em 1964 na coletânea Straßen in Berlin

und anderswo (Ruas em Berlim e alhures). No intuito de rastrear e narrar a realidade da

metró-pole moderna, Kracauer parte da observação insistente e repetida de fenômenos cotidianos, aparentemente insignificantes, do mundo vivido (Lebenswelt) em espaços públicos. Lugares, objetos e tipos humanos, geralmente despercebidos pelo olhar distraído dos transeuntes, são registrados e resgatados pelo caminhante urbano − alter ego do autor − do esquecimento e da marginalidade, e interpretados como manifestações não censuradas do inconsciente coletivo, e também como signos reveladores de profundas estruturas e processos sociais. O objetivo desta pesquisa é analisar a visão da modernidade urbana, ambivalente entre ceticismo e empatia, ins-crita nessas miniaturas em prosa com temática urbana, chamadas pelo autor de imagens urbanas (Stadtbilder), o que corresponde ao termo benjaminiano, imagens do pensamento (Denkbilder), e àquilo que no Brasil se denomina crônica. Para discernir os traços específicos da narração imagética de Kracauer, revela-se esclarecedor o instrumental teórico de Walter Benjamin sobre a narrativa popular e a crônica histórica, e também ideias de pensadores como Simmel, Adorno, Frisby, sobre a representação da metrópole moderna em gêneros épicos. Benjamin constata o declínio da narrativa tradicional, junto com o declínio da experiência, devido a profundas mu-danças no mundo vivido: racionalização, urbanização, industrialização, individualização, a in-formação como forma dominante de comunicação. O presente estudo procura mostrar − com-binando close reading com uma análise de constelação e contextualização histórica − como Kracauer realiza, em sua crônica, ao narrar microacontecimentos na metrópole moderna, uma

Aufhebung (abolição-preservação-transfiguração) da narrativa tradicional e da crônica

histó-rica, integrando elementos do ensaio e da reportagem. Em uma postura comprometida com a tradição do Esclarecimento, ele consegue transmitir experiências e recordações coletivas im-pregnadas de valores éticos, como justiça, tolerância e humanidade.

Palavras-chave: Kracauer. Berlim. República de Weimar. Narrativa. Crônica

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ABSTRACT

The empirical object of the present research is the brief journalistic-literary prose of Siegfried Kracauer (1889-1966), published during the Weimar Republic in the cultural supplement of the newspaper Frankfurter Zeitung, between 1925-33, and compiled, in 1964, in the collection

Straßen in Berlin und anderswo (Streets in Berlin and elsewhere). Kracauer 's intention was to

trace and narrate the reality of the modern Metropolis, captured through the insistent and re-peated observation of apparently insignificant everyday phenomena of life-world (Lebenswelt) in public spaces. Places, objects and human types, usually unnoticed by the distractedly looking passers-by, are rescued by that city walker and narrator, the author’s alter ego, from oblivion and marginality, and interpreted as uncensored manifestations of the collective unconscious, as well as tokens of profound social structures and processes. Our objective is to analyse the am-bivalent view, oscillating between criticism and empathy, of urban modernity, inscribed in these prose miniatures called by the author city images (Stadtbilder), what corresponds to the Benja-minian term thought images (Denkbilder), and to what in Brazil is called crônica (metropolitan miniature). In order to discern the specific traits of Kracauer's imagetic narration, it is useful to have recourse to Walter Benjamin's theoretical instruments about the popular narrative and the historical chronicle, as well as to ideas of Simmel, Adorno, Frisby and other thinkers, on rep-resentation of the modern metropolis in epic genres. Benjamin notes the decline of traditional narrative and of experience, attributing it to profound changes in the life-world: rationalization, urbanization, industrialization, individualization, information as dominant form of communi-cation. The present study seeks to show – combining close reading with constellation analysis and historical contextualization – how Kracauer performs, in his crônica, by narrating micro-events in the modern metropolis, an Aufhebung (abolition-preservation-transfiguration) of the traditional narrative and historical chronicle, integrating elements of essay and reportage. In a posture committed to the tradition of Enlightenment, he manages to transmit experiences and collective memories impregnated with ethical values, such as justice, tolerance and humanity.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 11

1.1 OBJETO,OBJETIVOS, QUESTÕES NORTEADORAS ... 11

1.2 METODOLOGIA ... 20

2 NARRATIVA E CRÔNICA, SEGUNDO BENJAMIN E OUTROS ... 23

2.1 NARRATIVA E EXPERIÊNCIA ... 23

2.2 O DECLÍNIO DA EXPERIÊNCIA ... 27

2.3 O MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO ... 32

2.4 O JORNAL E A INFORMAÇÃO − INIMIGO DA NARRATIVA? ... 40

2.5 SUSCITAR “ESPANTO E REFLEXÃO”− POÉTICA DA NARRATIVA ... 43

2.6 O SENSO PRÁTICO DA NARRATIVA − O NARRADOR COMO CONSELHEIRO...50

2.7 “SE HÁ SENSO DE REALIDADE, TEM DE HAVER SENSO DE POSSIBILIDADE”...52

2.8 “NADA DO QUE ACONTECEU PODE SER PERDIDO”− A NARRATIVA COMO CRÔNICA ... 54

2.9 “O NARRAR−ESTE SIM VAI PERMANECER” ... 61

2.10NOTAR O NOTÁVEL EM UMA FORMA BREVE ... 68

2.11“TIVÉSSEMOS UM NOME PARA ESSA NOVA FORMA” ... 72

3 A REPÚBLICA DE WEIMAR E SUA IMPRENSA ... 79

3.1 MAPEAMENTO SOCIAL, POLÍTICO E CULTURAL DA ÉPOCA ... 79

3.2 A IMPRENSA ALEMÃ: ESTRUTURAS ECONÔMICAS, POLÍTICAS, IDEOLÓGICAS ... 89

3.3 O FEUILLETON EM GERAL E O DO FRANKFURTER ZEITUNG ... 92

4 S. KRACAUER, JORNALISMO E LITERATURA: UMA SIMBIOSE ... 99

4.1 BIOGRAFIA INTELECTUAL ... 99

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5 RUAS EM BERLIM E ALHURES ... 125 5.1 ESTRUTURAS E TEMAS ... 125 5.2 RUAS −STRASSEN ... 129 5.3 LOCAIS −LOKALE ... 136 5.4 COISAS −DINGE ... 139 5.5 GENTE −LEUTE ... 144

5.6 O OLHAR PROIBIDO −DER VERBOTENE BLICK ... 155

5.7 SOBRE REPARTIÇÕES DE EMPREGO −ÜBER ARBEITSNACHWEISE. ... 159

5.8 GALPÕES DE AQUECIMENTO −WÄRMEHALLEN ... 169

5.9 VISTO DA JANELA −AUS DEM FENSTER GESEHEN ... 173

5.10A PASSAGEM SUBTERRÂNEA −DIE UNTERFÜHRUNG ... 181

5.11RUA SEM RECORDAÇÃO –STRASSE OHNE ERINNERUNG ... 185

6 CONCLUSÃO ... 195

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1 INTRODUÇÃO

1.1 OBJETO, OBJETIVOS, QUESTÕES NORTEADORAS

A presente pesquisa tem como ponto de partida e objeto empírico a breve prosa jorna-lístico-literária de Siegfried Kracauer (1889-1966) – publicada entre 1925-1933, no Feuilleton, ou seja, no suplemento cultural do jornal Frankfurter Zeitung – e, mais especificamente, uma seleção dessa prosa organizada pelo próprio autor e publicada em 1964, na antologia Straßen

in Berlin und anderswo (Ruas em Berlim e alhures) 1.

O estudo é norteado por dois objetivos: primeiro, analisar a feitura jornalística e poé-tica dessas miniaturas em prosa, suas metas, estratégias e procedimentos; segundo, discutir e mostrar em que medida a breve prosa jornalístico-literária kracaueriana resgata e atualiza tra-dições narrativas em declínio no começo do século XX. As duas questões serão abordadas por via dupla: de modo imanente, através de uma análise textual em forma de close reading, e também através de uma análise contextual, a fim de situar o nosso objeto de estudo no contexto histórico e sociocultural, por um lado, e rastrear o modo de o autor percorrer, explorar e repre-sentar a realidade urbana, por outro lado.

Ao passo que Siegfried Kracauer, hoje em dia, é mundialmente conhecido como his-toriador, romancista, sociólogo, teórico do cinema e da cultura de massa em geral, este estudo se concentra em sua menos conhecida, mas igualmente brilhante, atividade jornalística durante a República de Weimar (1919-1933)2. Época em que, pouco depois da Primeira Guerra Mun-dial, abandonando o ofício de arquiteto, converteu-se num jornalista de mão-cheia, “um homem do jornal” (RUTSCHKY, 1990), um influente representante especialmente do jornalismo soci-ológico, filosófico e cultural, um multifacetado cronista da história contemporânea. Nos anos 1923-1933, tornou-se, também, um mestre da breve prosa jornalístico-literária, dotado de um olhar microscópico, macroscópico, e contextualizador nos eixos sociológicos e históricos, qua-lidades que integrou plenamente no seu trabalho na imprensa.

1 Na presente pesquisa usamos principalmente a edição Kracauer, Straßen in Berlin und anderswo (Ruas

em Berlim e alhures), 2009, da editora Suhrkamp, editada anteriormente em 1964 e 1987. Existem diversas outras edições: Kracauer, Straßen in Berlin und anderswo, da editora Arsenal, 1987; e diversos textos de Straßen in

Berlin encontram-se em outras antologias: Kracauer, Berlin Nebeneinander (Berlin justaposto, 2001); Kracauer, Der verbotene Blick (O olhar proibido, 2001). Alguns textos da coletânea Straßen in Berlin und anderswo

“Ga-roto e touro”, “Dois planos”, “Análise de um mapa de cidade”, “Adeus à Passagem das Tílias”− também foram publicados em Das Ornament der Masse, coletânea organizada pelo próprio Kracauer em 1963, da qual há uma versão em língua portuguesa: Kracauer, “O ornamento da massa”, 2009. A coletânea Straßen in Berlin und

an-derswo, como um todo, ainda não está disponível em língua portuguesa. Citações de textos em alemão, não

publi-cados em português, foram traduzidas por nós, acompanhadas dos originais em nota de rodapé. As citações em alemão foram adaptadas às vigentes regras ortográficas.

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Aquele período de entreguerras, o da chamada República de Weimar (1919-33), foi marcado por profundas mudanças tecnológicas, políticas e sociais, por violentos atritos e con-flitos entre as forças da esquerda, do liberalismo, do conservadorismo e do emergente fascismo, que foi ameaçando de modo crescente a sobrevivência da democracia e do Estado de direito. Uma constelação que deu ao jornalismo da época um papel decisivo na formação das massas, no sentido de cobertura, de análise, esclarecimento, mas também de propaganda e obscureci-mento.

O jornal em que Kracauer publicou quase todas as suas matérias jornalísticas foi o

Frankfurter Zeitung, veículo liberal-burguês, de longa tradição democrática, não ligado a

ne-nhum dos grandes conglomerados do setor da mídia, com sede em Frankfurt am Main e com importante escritório em Berlim, uma das vozes republicanas e democráticas, minoritárias no conjunto da mídia da época, “um pilar do republicanismo” (STALDER, 2003, p. 29-30), “órgão defensor da democracia” (SPÄTER, 2016, p. 59).

A maioria das miniaturas jornalístico-literárias que Kracauer escreveu durante sua ati-vidade na imprensa alemã tem Berlim como palco ou até como tema. Na época, a cidade era o principal cenário das lutas ideológicas, políticas e sociais, como também de inovações tecnoló-gicas, científicas, das vanguardas artísticas, da efervescente indústria cultural e de entreteni-mento. Para a intelectualidade da época, Berlim representava o laboratório da modernidade, com conotações positivas e negativas, uma metrópole pulsante e deslumbrante, um “modelo da cidade moderna” (WAIZBORT, 2000, p. 312).

Nas miniaturas em prosa reunidas na antologia Straßen in Berlin und anderswo (Ruas em Berlim e alhures), Kracauer contempla fenômenos físicos, sociais e mentais nas ruas e es-paços públicos, perfilando-se como um dos grandes e agudos observadores e narradores do

Lebenswelt, do mundo vivido (Später, 2016, p. 17), na grande cidade, principalmente de setores

menos favorecidos da população. Escritos no calor da hora, mas não só para a hora, os textos daquele livro fascinam até hoje, nas diversas reedições, de modo que se coloca a pergunta sobre a sua especificidade, os seus traços distintivos, a sua relação com tradições narrativas, e os motivos de sua atualidade. Há poucos estudos abordando justamente a especificidade e a nar-ratividade desses textos que fusionam qualidades jornalísticas e literárias de uma forma sim-biótica e original. Seu hibridismo e caráter multifacetado colocam problemas de caracterização e categorização, perceptíveis em denominações que realçam unilateralmente determinados as-pectos: miniensaios, minicontos, minirreportagens, relatos de viagens. No fundo, essa prosa kracaueriana filia-se de uma maneira muito original e renovadora na tradição daquilo que em

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alemão é denominado Feuilleton, e que em português corresponde, aproximadamente, à crônica jornalística.3 Walter Benjamin, Siegfried Kracauer, Ernst Bloch, Joseph Roth e outros autores, que se moviam entre as áreas de literatura, filosofia e jornalismo, consideravam o Feuilleton, no sentido de gênero jornalístico-literário, como demasiadamente beletrístico, procurando criar, a partir dele, uma nova forma de prosa em sintonia com as mudanças do mundo vivido da sociedade moderna, no começo da década de 1920.

Pode-se reconhecer na composição e forma da breve prosa kracaueriana que ele seguia os princípios dos grandes autores épicos, contistas e romancistas, os quais, segundo seu con-temporâneo Alfred Döblin, configuram “fortes situações fundamentais”, “situações elementa-res da existência humana”, “posturas elementaelementa-res do homem” (DÖBLIN, 2013, p. 26; tradução nossa)4.

Kracauer, nos seus escritos anteriores a 1933, nas reportagens, nas resenhas, nos en-saios, na breve prosa jornalístico-poética, era movido pelo intuito de contar, relatar a história presente, de ser testemunha do seu tempo, principalmente na grande cidade (ZOHLEN, 1980, p. 65). E via, por outro lado, a realidade não só em seu estado contemporâneo, sincronicamente, mas também diacronicamente, em sua dimensão histórica, sua variabilidade, sua mutabilidade, com seu lastro do passado e suas perspectivas para o futuro, com suas promessas, seus perigos, seus déficits, suas possíveis alternativas e melhoras que poderiam ter ocorrido, ou que poderiam ainda ocorrer. De atitude cética com relação às promessas do progresso, principalmente na sua juventude5, Kracauer via claramente as tendências tanto humanizadoras, como também proble-máticas e barbarizantes da modernidade, sem perder totalmente as esperanças de um futuro melhor. Vale para ele o que Adorno reconheceu nos principais romances do século XX:

Essas epopeias compartilham com toda a arte contemporânea a ambiguidade dos que não se dispõem a decidir se a tendência histórica que registram é uma recaída na

3 O termo Feuilleton, de origem francesa, tem, desde o século XIX, basicamente três acepções nos países

de língua alemã: 1. a seção cultural, e a respectiva redação, de um jornal; 2. um gênero textual equivalente à crônica no Brasil, breve prosa jornalístico-literária, que trata de assuntos do cotidiano urbano em sua contínua mutabili-dade; 3. o tom folhetinesco praticado nos diversos gêneros textuais nessa seção, caracterizado por ligeireza, agili-dade, versatiliagili-dade, originaliagili-dade, elegância, humor, efemeriagili-dade, entretenimento, compreensibiliagili-dade, mas tam-bém por crítica e polêmica. Esse tom dá certa unicidade ao Feuilleton, diante da sua extrema heterogeneidade de temas e gêneros textuais. E. Schütz resume as três acepções do termo Feuilleton na fórmula: Sparte, Form, Stil (seção, forma, estilo; SCHÜTZ, 2016, p.11). No Brasil do século XIX, o termo ‘folhetim’ possuía uma polissemia análoga, embora na literatura especializada no Brasil a acepção do estilo é pouco ou às vezes não ressaltada; ver Soares, 2014, p. 143 e seguintes; Candido, 1992, p. 15. Na França, o termo Feuilleton, além disso, podia designar o romance-folhetim, ver Meyer, 1992, p. 99. Sobre a migração do folhetim da França para a Ibero-América, ver Lázaro, 2015, p. 74-93.

4 Starke Grundsituationen, Elementarsituationen des menschlichen Daseins, Elementarhaltungen des

Menschen. Kracauer tinha em grande estima as obras de Alfred Döblin, principalmente o romance Berlin Alexan-derplatz, que publicou em série no folhetim do Frankfurter Zeitung durante a época em que foi chefe do

suple-mento cultural.

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barbárie ou, pelo contrário, o caminho para a realização da humanidade [...] (ADORNO, 2003, p. 62).

Kracauer, ainda que teoricamente versado, autor de importantes ensaios filosóficos e sociológicos, pouco teorizou sobre os princípios e procedimentos do seu próprio escrever entre jornalismo e literatura, crônica e narrativa, tal qual os praticava em Straßen in Berlin und

an-derswo. De um modo geral, se ele não elaborou teorias abrangentes e sistemáticas sobre

jorna-lismo e literatura, era pela preocupação de defender, apesar do seu interesse cognitivo e analí-tico, os direitos do particular e do concreto contra a hegemonia da generalização e da abstração teórica6.

É aqui que recorremos ao filósofo Walter Benjamin, amigo e colega de Kracauer que, embora também avesso a grandes edificações teóricas, dedicou diversos estudos teóricos aos problemas concernentes à inteligibilidade, narrabilidade, retratabilidade e comunicabilidade da realidade moderna, em comparação com épocas pré-modernas. Nesses trabalhos, Benjamin dis-cute temas e formas de abordagem e representação da realidade, presentes também em Kra-cauer, como o registro de acontecimentos e situações na modernidade urbana, da preservação da memória, a relação entre crônica histórica e narração, e a relação de detalhes insignificantes com o curso da história mundial.

Existem notáveis afinidades entre os dois pensadores com respeito a interesses temá-ticos e teóricos, seus métodos cognitivos, sua polivalência transdisciplinar, seu trânsito entre ciências humanas, literatura e artes visuais, também suas inclinações éticas e políticas, seu en-gajamento, embora discreto e não partidário, por princípios do humanismo, justiça, tolerância, esclarecimento. Importantes foram os impulsos e aportes práticos e teóricos que ambos deram na área da mídia, imprensa, filme, fotografia, teoria da história7, sem ter perdido sua vigência na atualidade. Os dois autores prezavam “uma espécie de fenomenologia do detalhe: dando atenção ao “fantasmagórico”, aos “cacos”, ao “extremo”, ao “ornamento”, ao “hieroglífico” – constelações conceituais que aparecem ora na obra de um, ora na de outro” (SANTOS, 2013, p. 490). Unia-os também um amor crítico e, por vezes, ambivalente, por espaços públicos na grande cidade, pelas ruas com suas luzes, brilhos e ruídos, pela moderna cultura de massa, o mundo da mercadoria e do entretenimento, partindo sempre de fenômenos cotidianos, surgidos

6 Stalder ressalta o profundo amor pela realidade em Kracauer, “que não queria se deixar ofuscar,

cor-romper ou prender por nenhuma teoria e também não queria se derramar apenas em hinos subjetivos” (von der tief

verwurzelten Liebe zur Wirklichkeit, die sich von keiner Theorie blenden, korrumpieren oder zurückbinden lassen und auch nicht bloß in subjektive Hymnen ausfließen wollte). (STALDER, 2003, p. 282; também p. 7). Ver também

Vedda, 2010, p. 10; Stalder, 2003, p. 222; e Adorno, 2009, especialmente p. 16.

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sem intenção memorialística8. Tinham também afinidades nas estratégias cognitivas de estudar fenômenos marginais e triviais da grande cidade para chegar assim a estruturas profundas da realidade, através do “método fisionômico” (BOLLE, 1994, p. 42) de Benjamin: “E esta [a ‘assinatura’ dos primórdios da modernidade] que ele queria extrair dos fenômenos mais insig-nificantes intentione recta – determinando-lhes a fisionomia: ao exibir os farrapos, como mon-tagem de resíduos.” (TIEDEMANN, 2018, p. 16).9 Da mesma forma afirma Gilloch (2015, p.

12): “Kracauer is the great physiognomist of the quotidian”.

O objeto de observação e reflexão dos dois era a realidade da vida na sua concreção, o mundo vivido principalmente das classes desfavorecidas, o cotidiano marcado por estruturas econômicas, sociais, institucionais, mas também por fatos e forças existenciais, da vida e da morte, do sofrimento e da alegria, por desejos e necessidades físicas e metafísicas, a busca de orientação, comunicação e cooperação, de um sentido da vida. Ambos foram marcados por leituras filosóficas e religiosas, por pensadores do Iluminismo francês e alemão, Kant, por exemplo, por Marx, Nietzsche, Edmund Husserl, Georg Simmel, Max Scheler, também teólo-gos judaicos e cristãos. Moviam-se na periferia do Institut für Sozialforschung (Instituto de Pesquisas Sociais) em Frankfurt am Main, dirigido por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, publicando em sua revista Zeitschrift für Sozialforschung, (Revista de Pesquisa Social) apoia-dos, pontualmente, por ela. Permaneceram, porém, de alguma maneira outsiders daquele Insti-tuto e da academia em geral (SCHROER, 2009, p. 172), por se negarem a sistemáticas constru-ções teóricas, dando prioridade a um exame aprofundado, insistente, dos fenômenos concretos, por fora e por dentro, “pensando não sobre as coisas, mas através delas”, nas palavras de Kra-cauer (2010, p. 220).

Ambos eram cronistas do seu tempo, primeiramente no sentido de crônica histórica, de registro, testemunho sensível, sismográfico, diferenciado da modernidade urbana, das mu-danças sociais e tecnológicas, que procuravam captar por meio de um tipo de escrita breve que

8 Essa opção pode ser enquadrada na dicotomia entre mundo vivido e monumento, este entendido no

sentido mais amplo, como esforço da sociedade e principalmente das suas elites de criar objetos-signos de autor-representação e de memória, ao passo que os elementos do mundo vivido, do cotidiano, foram criados sem intenção autoencenatória e memorialística, constituindo uma realidade semi-inconsciente, pouco refletida por seus agentes; ver Assmann (org.). Kultur als Lebenswelt und Monument. Frankfurt am Main: Fischer, 1991.

9 Numa resenha sobre o livro Os Empregados de Kracauer, Benjamin também se designa a si mesmo

como “fisionomista” (Benjamin, prefácio para Los Empleados. “Sobre la politización de los intelectuales”, 2008, p. 93), deixando transparecer a grande afinidade entre ele e Kracauer: “Este libro se ha convertido, antes bien, en confrontación con un fragmento de cotidianidad, un aquí elaborado, un ahora vivido. La realidad es acosada tan intensamente que debe confesar sus colores y dar los nombres. El nombre es Berlín, que para el autor es la ciudad

par excellence de los empleados; a tal punto que es plenamente consciente de haber realizado una importante

contribución a la fisiología de la capital” (ibidem 95-96); ver também Später: Kracauer war ein Physiognomiker,

der aus Äußerlichkeiten auf Inneres schloss (Kracauer foi um fisionomista que conclui das exterioridades para o

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Benjamin, algumas vezes, chamou de Denkbild (imagem do pensamento) e Kracauer, Stadtbild (imagem urbana) ou Raumbild (imagem do espaço), combinando “reflexão imagética e imagem reflexiva” (STALDER, 2003, p. 220), na esperança de que a quantidade e qualidade dessas imagens pudessem resultar em um mosaico mais abrangente da realidade. Abordavam frag-mentos da vida urbana com empatia e dissecação, imersão e apropriação, rastreamento da con-cretude e análise histórica, sociológica, filosófica. Tinham ideias afins sobre a responsabilidade do intelectual nas lutas ideológicas do seu tempo no sentido de esclarecimento e emancipação, ainda que rejeitassem qualquer dogmatismo e alinhamento com partidos políticos. Não viam uma contradição entre a qualidade literária e a tendência política, achando que só um texto bem escrito poderia ter um profundo efeito esclarecedor sobre a realidade humana. (BENJAMIN, OE 1, 1985, p. 136; KRACAUER, 2011, p. 578). Contudo, também havia diferenças entre os dois: uma delas era que Benjamin se voltava mais para os primeiros auges da Modernidade, em meados do século XIX, e Kracauer, para o tempo presente. Nessa constelação, o teor jornalís-tico-ensaístico-literário, em Kracauer, e o teor filosófico-histórico-literário, em Benjamin, se complementam frutiferamente para pesquisar, interpretar e narrar a realidade.

Podem-se vislumbrar, nos dois autores, preocupações parecidas, não apenas na inter-pretação da realidade através de fenômenos aparentemente secundários − atitude que desres-peita, de certa forma, a hierarquia estabelecida de pessoas e coisas − mas também nos princípios éticos que defendiam, e que Kracauer formulou alguma vez como uma tríade: “humanismo, justiça e tolerância” (MÜLDER-BACH, 1985, p. 191)10. O que procuravam, em última análise, era algo como “um sentido da vida e do mundo” (SPÄTER, 2016; MÜLDER-BACH, 1985, p. 191). Os dois conseguiam realizar, de modo quase ideal, uma reivindicação que Benjamin ex-pôs no seu ensaio “O autor como produtor”, ou seja, a combinação de “tendência e qualidade”, a conciliação de um ensinamento ético-político e um alto nível estético.

Reflexões escritas por Benjamin no exílio, depois de 1933, sobre a arte de narrar e sobre filosofia da história, especialmente sobre a figura do narrador popular e do cronista his-tórico, proporcionam-nos ferramentas conceituais e metodológicas para discernir com maior clareza a poética jornalística de Kracauer, seus princípios e procedimentos na apropriação e

10 Menschenliebe, Gerechtigkeit, Duldsamkeit. (MÜLDER-BACH, 1985, p. 191); SPÄTER (2016).

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representação da realidade de seu tempo, o seu enraizamento em tradições narrativas e sua atu-alidade11.

O presente estudo pretende, portanto, discutir e analisar os trabalhos de Kracauer como cronista-narrador da modernidade, na antologia “Ruas em Berlim e alhures” (Straßen in Berlin

und anderwo), apoiando-se em diversos estudos benjaminianos, sobretudo, em “O narrador” e

“Sobre o conceito da História”, mas também em outros trabalhos, como por exemplo, os ensaios sobre o escritor Johann Peter Hebel. Também nos valeremos de contribuições de autores con-temporâneos sobre cultura e modernidade, como Adorno, Döblin, Simmel e outros.

O nosso debate gira em torno das seguintes constatações de Benjamin: 1. A arte de narrar, no sentido de uma prática social, está em declínio. 2. O narrador tradicional, popular, oral, tem afinidades viscerais com o cronista tradicional, que registra o decorrer do dia a dia do presente histórico; ou seja, a narrativa não pode ser estudada sem a sua relação com a história. 3. Uma das causas do declínio do narrador e da narração é que a experiência e sua comunicabi-lidade entre as pessoas, os grupos e as gerações, está em declínio. 4. A causa desse duplo declí-nio são as novas condições de vida, o processo de modernização, a urbanização, a divisão de trabalho, os novos meios de comunicação. 5. Existem dificuldades, mas também possibilidades de superação do declínio da narrativa, na imprensa. O próprio Benjamin dá a entender que o declínio da narração e da experiência tem características não de uma extinção e de um ocaso, mas de uma crise12. Embora esta pareça impor certo pessimismo cultural,ela não é necessaria-mente fatal, mas pode obrigar os autores e a mídia a procurar e a encontrar soluções para ga-rantir a sobrevivência da narração e a crônica no sentido de acervo vivo da experiência e da memória coletivas, em novas formas e em modernos órgãos de comunicação.

Ora, o exame de algumas miniaturas em prosa kracauerianas, lidas à luz das reflexões de Benjamin e de alguns outros pensadores, permite levantar a hipótese de que, nesses textos publicados originalmente em um jornal, veículo midiático central do século XX, se processa uma espécie de Aufhebung13, uma transfiguração atualizadora tanto da narrativa popular quanto

11 Sobre a relação intelectual entre Kracauer e Benjamin, ver Vedda: “La gran grieta del mundo”.

Sie-gfried Kracauer, Walter Benjamin y los debates sobre la figura del intelectual (2014, p. 182-204); Mülder-Bach

(1985); Leal, Corpas (2014).

12 O próprio Benjamin fala da “crise do romance”, mas não literalmente da crise da narrativa. Porém a

ideia de crise no sentido de uma situação dramática que exige decisões radicais, mas que não necessariamente está sem solução.

13 O substantivo Aufhebung e o verbo aufheben expressam o caráter tríplice de certas metamorfoses:

eliminação, preservação, elevação. É uma categoria fundamental no pensamento de Hegel e Marx, ver: Entrevista com José Pinheiro Pertille, Revista do Instituto Humanista Unisinos, edição 430, 2013. Pertille formula, com outra sequência e outros termos, mas na essência igual: Superar, aniquilar e conservar. Disponível em: http://www.ihuo-nline.unisinos.br/artigo/5229-jose-pinheiro-pertille-1. Acesso em 19 out. 2018.

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da crônica tradicional, nas condições da Modernidade. Ou seja, na prosa jornalístico-literária de Kracauer, em roupagem moderna, estariam aufgehoben14, preservados-metamorfoseados,

traços da narrativa tradicional e da crônica histórica, integrando também traços de gêneros mais novos como a reportagem, o ensaio e também técnicas modernas como a montagem, que con-vergem na construção dos textos. Assim, a breve prosa kracaueriana aproveitaria as possibili-dades de um importante e moderno meio de comunicação social, o jornal, para resgatar tradi-ções ameaçadas de extinção, praticando a transmissão e discussão de experiências, o registro e a memória do dia a dia concreto e mental da população urbana, promovendo uma interseção dos mundos vividos de diferentes setores da sociedade, e contribuindo para a construção de imagens da sociedade de si mesma. A preocupação, em última análise, não era só de caráter literário-cultural, mas, principalmente, humano-social − era procurar atender a uma profunda necessidade humana e social dos indivíduos e dos grupos, de ganhar e intercambiar experiências e orientação em um mundo em rápida transformação.

Assim, a presente pesquisa pretende mostrar em que medida as miniaturas em prosa de Kracauer – que nos permitimos chamar de ‘crônicas’, também no sentido jornalístico, já que na língua alemã falta uma denominação consagrada – apresentam, embora com temas e recursos expressivos modernos, características da narrativa-crônica tradicional, no sentido benjamini-ano. Pois, elas reúnem memória, conselho, elementos de sabedoria, em uma linguagem com traços dialógicos, capaz de captar a realidade urbana, mediante o olhar envolvente, aprofunda-dor e reflexivo que um narraaprofunda-dor-caminhante lança para objetos, espaços e pessoas aparente-mente insignificantes no espaço público.

Que interesse podemos ter, hoje em dia, cerca de noventa anos depois, nos textos jor-nalístico-literários de Kracauer? Certamente, são depoimentos da vida urbana, verdadeiras crô-nicas em dois sentidos: crônica histórica e crônica jornalística – do clima mental, cultural e até político em Berlim, na Alemanha e na Europa, antes de 1933, inclusive, das sequelas da Pri-meira Guerra Mundial, e dos prenúncios da catástrofe do fascismo. Sem dúvida, o caráter desses textos como fonte histórica e cognitiva sobre uma época importante da história se tem intensi-ficado com a distância temporal. Pode-se perguntar em que medida o ‘método’ kracaueriano tem validade trans-histórica e caráter exemplar, podendo talvez inspirar jornalistas hoje em dia, ou seja, o ‘método’ de um jornalista que conseguiu realizar a fusão metamorfoseante de

14 Aufgehoben é o particípio perfeito do verbo aufheben, que significa, portanto, algo como ‘eliminado’,

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narrador, cronista, repórter e ensaísta, de pesquisar e retratar a moderna metrópole, sempre com vivo interesse humano pelos sofridos desta terra.

Podemos nos perguntar também, se hoje não estaríamos em um momento de transição comparável ao do começo do século XX, outro período de rupturas radicais no mundo vivido das pessoas e nos modos de comunicação, que coloca o jornalismo diante de novos desafios, mudanças nas tecnologias e nos hábitos de comunicação. Pois continuam a demanda e a neces-sidade por um jornalismo de qualidade, que não transmita apenas informações, mas também experiências esclarecedoras, por um fórum de debates e diálogos que ajude as pessoas a se orientarem num mundo em rápida transformação. Pode-se perguntar, finalmente, se a revolução tecnológica daquela época, dentro e fora da mídia, dos anos 1920, a impressão offset, o filme, o rádio, a automação, a linha de montagem, têm analogias com a revolução digital da nossa época. Nosso estudo se desdobrará da seguinte maneira:

Depois da introdução que apresenta o objeto, os objetivos e as questões norteadoras da pesquisa, assim como a metodologia, o capítulo 2 desenvolverá o arcabouço reflexivo e teórico que nos ajudará a situar e analisar os textos de ‘Ruas em Berlim e alhures’. No capítulo 3 será apresentada a República de Weimar e sua imprensa, entre brilho cultural e declínio político, com Berlim como ponta de lança das tendências da época. O capítulo 4 será dedicado a Sieg-fried Kracauer, seu perfil e sua biografia intelectual, como pensador transfronteiriço entre jor-nalismo, literatura e filosofia, e como inovador do jornalismo cultural assim como da pequena prosa jornalístico-literária. O capítulo 5 tratará de ‘Ruas em Berlim e alhures’, analisando al-guns textos representativos dessa coletânea à luz de categorias sociológicas, históricas e estéti-cas de Benjamin e Kracauer, e outros pensadores, concentrando-se em tópicos como narrativa, experiência, memória, esclarecimento, tendência política e qualidade literária. Este capítulo apresenta dois tipos de análises: uma caracterização geral, com análises pontuais, das cinco partes de Straßen in Berlin und anderswo (5.1-5.5); e em seguida um close reading de seis textos representativos das partes “Ruas” e “Locais” (5.6-5.11).

A conclusão resume os resultados da pesquisa, principalmente da análise microscópica de alguns textos representativos de Kracauer. Porém, de acordo com o próprio método kracau-eriano, que procurou respeitar a integridade de seus objetos de estudo, sem dissecá-los demais, os resultados das nossas análises são desenvolvidos junto com a descrição e, de certa forma, renarração da caminhada espacial, mental e estético do narrador kracaueriano.

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1.2 METODOLOGIA

A metodologia do presente estudo resulta do seu objeto – um conjunto de textos jor-nalístico-literários sobre a grande cidade, escritos por volta de 1930, reeditados em forma de livro em 1964 – e do nosso interesse cognitivo na construção desses textos, nas condições da sua gênese, no seu significado no contexto social, político, cultural por volta de 1930 e na his-tória da recepção posterior, principalmente sob a questão central da presença de elementos da narrativa-crônica tradicional dentro da prosa breve na imprensa do século XX.

A análise textual inspira-se no procedimento intelectual e investigativo kracaueriano que o próprio autor condensou na fórmula: “Denken durch die Dinge” – pensar através das coisas; o que significa para o nosso estudo: pensar através dos textos e suas camadas de signi-ficância. Valemo-nos, como ferramentas, de conceitos estéticos e histórico-filosóficos de Wal-ter Benjamin: o narrador, a narrativa, a experiência, a crônica, a rememoração, a modernidade. Aplicar o método epistêmico kracaueriano para a análise textual corresponde à reivindicação de Adorno, que, partindo do princípio da “unidade de execução e reflexão” (Einheit von Vollzug

und Reflexion), reivindica do intérprete “a capacidade de ver obras de arte por dentro, na lógica

do seu estar produzido” (die Fähigkeit, Kunstwerke von innen, in der Logik ihres

Produzi-ertseins zu sehen; ADORNO, 2003, p.159). Transposto para o presente estudo, significa rastrear

o movimento do caminhante urbano no espaço e do narrador-cronista dessa realidade, por meio das palavras e da composição dos seus textos. Uma vez que, estes são, de certa forma, um protocolo dos seus passos pela cidade, das suas impressões e reflexões, simultâneas e posterio-res.

Pretende-se mostrar como o autor realizou a sua intenção central, a de descrever e narrar, numa intenção comprometida com as Luzes, o Iluminismo e a Emancipação, a vida dos seres humanos em sua constelação contemporânea, vista como parte de processos históricos. Assim, o presente estudo combina duas abordagens que se complementam, com a finalidade de elucidar textos que por um lado têm função poética15, com certa autonomia e autorreferência, e que por outro lado têm funções referencial e apelativa, uma vez que se referem a uma realidade extratextual e se dirigem diretamente a determinado público-alvo:

a) Análise imanente, microscópica de trechos-chave através de um close reading, lei-tura atenta para desvendar a feilei-tura dos textos, a lógica da sua produção, a

15 Referimo-nos ao modelo de comunicação desenvolvido por Roman Jakobson no ensaio “Linguística

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construção da trama, o foco narrativo, a função de palavras-chave e recorrentes figuras expressivas. Este método proposto por A. Richards e desenvolvido por Em-pson Williams, René Wellek e outros no chamado New Criticism16, propõe uma análise imanente que se concentra na tessitura e feitura do texto, no estilo, na forma, detalhes de composição, do enfoque narrativo, trata-se de uma:

[...] leitura de pormenores, atenciosa, minuciosa, estreita, próxima, investigativa, ri-gorosa, cautelosa, detalhada, analisada, meticulosa. [...] delicadamente, desnudamos o texto, ao retirar camada por camada de sua significância. Além de provocarmos uma autópsia no texto, esse processo de descoberta e ampliação de significados é uma im-portante ferramenta para o desenvolvimento da argumentação lógica e do pensamento crítico, além do exercício da fundamentação das opiniões. (PEDERSON-TORTELLA 2016, p. 57)

b) Análise de constelação, para situar os textos nos contextos, no mundo vivido, nas circunstâncias sociais, culturais, filosóficas, políticas da época; procedimento que permeia o percurso do estudo de modo geral.

Cunhado nos anos noventa pelo filósofo Dieter Henrich, esse método:

[…] trata de seguir los pasos de la paulatina elaboración de pensamientos y presupo-siciones filosóficas de numerosos autores a partir del intercambio de ideas que se haya podido dar entre ellos dentro de un espacio de tiempo rico en acontecimientos rele-vantes. (FRANK, 2016, p. 312)

Hoffstadt resume essa abordagem da seguinte maneira:

O espaço intelectual da pesquisa constelacional é, portanto um espaço imaginado em que diversos gêneros de textos respectivamente textos, autores, autoras e aconteci-mentos são relatados em sua coincidência para tornar explicável uma conjuntura ou situação em um determinado momento ou período. [...] Pode se dizer portanto que a pesquisa constelacional tenta descrever uma conjuntura histórica em que elementos biográficos e textuais são re-ponderados e re-situados em sua reciproca relação. (HOFFSTADT, 2009, p. 85; tradução nossa)17

Valemo-nos também das ideias dos Estudos culturais britânicos, com seu enfoque na relação entre literatura, mídia, cultura popular, estruturas econômicas e políticas, analisadas com um interesse emancipatório (ESCOSTEGUY, 1998). Em suma, olhamos para a estrutura interna dos textos e também para a rede de correspondências, relações e diálogos que os textos mantêm com a realidade extratextual, que é o principal enfoque jornalístico.

16 Ver também Teixeira (1998 p. 34-37)

17 Der Denkraum der Konstellationsforschung ist also ein vorgestellter Raum, in dem verschiedene

Textsorten bzw. Texte, Autor(inn)en und Ereignisse in ihrem Zusammentreffen dargestellt werden, um eine Lage oder Situation zu einer bestimmten Zeit/einer bestimmten Zeitspanne erklärbar zu machen. […] Man kann also sagen, dass die Konstellationsforschung versucht, eine historische Lage zu beschreiben, in der biographische und textuelle Elemente in ihrer Beziehung zueinander neu gewichtet bzw. verortet werden.

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2 NARRATIVA E CRÔNICA, SEGUNDO BENJAMIN E OUTROS

Vida vivida – essa é a matéria de que se formam as histórias.

Benjamin

2.1 NARRATIVA E EXPERIÊNCIA

Grande parte do pensamento benjaminiano gira em torno de uma faculdade e, até ne-cessidade elementar do ser humano e da sociedade, que é a narração, sua história, suas funções, suas formas, características e transformações através dos séculos até a atualidade. Pois para Benjamin, narrar não é apenas um fenômeno literário, estético e cultural, é uma prática social, com uma dimensão epistemológica, uma maneira de perceber e abordar a realidade, um recurso para indivíduos e grupos se situarem na sociedade e na história. Narrar faz parte do modo de pessoas, grupos, ou sociedades inteiras se comunicarem, de conviverem, de cooperarem, de construírem uma autoimagem e uma memória, sendo, portanto imprescindível para criar e man-ter uma identidade individual e coletiva. Certamente Benjamin man-teria assinado o enfático louvor à narrativa proferido por Roland Barthes:

Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há, em primeiro lugar, uma variedade pro-digiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sus-tentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura, [...] no vitral, no cinema, nas histórias em qua-drinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as socie-dades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há, em parte alguma, povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, e frequentemente estas narrativas são apreciadas em comum por ho-mens de cultura diferentes, ou mesmo opostas; a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura: internacional, trans-histórica, transcultural; a narrativa está aí, como a vida. (BARTHES, 2011, p. 19)

Tanto Benjamin como Barthes − e outros pensadores − atribuem à narrativa um lugar central na vida do ser humano, pois sem a narração em palavra, texto e imagem, o mundo não existiria como tal. Ele não seria nomeável, reconhecível nem palpável sem a ação humana que lhe dá forma narrativa. Poder-se-ia dizer, variando Descartes: Historias narramus, ergo

sumus.18 A reflexão sobre a narração, que é tema de teorias historiográficas e poéticas desde

18 “Narramos histórias, portanto somos”, in: KUCZNIERZ, “Das Wort macht die Welt. Wir erzählen

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Aristóteles, ganhou especial intensidade nas primeiras décadas do século XX. Período marcado por importantes rupturas e convulsões no mundo vivido das pessoas e nações, em diversas par-tes do globo, acarretando forpar-tes impulsos de modernização, progressos espetaculares e fatos catastróficos, que repercutiram na literatura, nas artes, e também nas ideias sobre narração e a narrabilidade do mundo moderno, como se pode ver em ensaios de Georg Lukács, Alfred Döblin, Bertolt Brecht, Ernst Bloch e outros.

Walter Benjamin registrou sua preocupação com o declínio da narrativa em diversos escritos entre 1913-1940, principalmente em seu famoso ensaio “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” (BENJAMIN, OE 1, 1985)19,em que reuniu e desenvolveu

suas ideias sobre a narração e sua crise na modernidade, configurando elementos de uma “teoria da narração” (GAGNEBIN, 1985, p. 7). Embora o ponto de partida e o foco principal de Ben-jamin seja a narrativa tradicional, pré-moderna, de caráter oral e popular, ele não se restringe a ela, relacionando-a com a narrativa escrita por autores ‘eruditos’, com outros gêneros de texto, outras áreas do saber humano, outras formas de apropriação da realidade, como a notícia e o jornal, o romance, a historiografia, a crônica histórica, tecendo reflexões teóricas relativas à antropologia cultural, crítica literária, “estudos jornalísticos e historiográficos, complexo temá-tico que o ocupou por décadas” (SCHÖTTKER, 2011, p. 557). No referido ensaio, publicado em 1937, no exílio parisiense − longa resenha de uma coletânea de contos, em tradução alemã, do referido escritor russo do século XIX,20− Benjamin principia seu raciocínio com uma

cons-tatação provocadora, categórica, e aparentemente nostálgica ou até pessimista:

Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva.21 Ele é algo de distante e que se distancia ainda mais. [...] Uma

experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância [...]. É a experiên-cia de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. [...] É como se estivéssemos privados de uma

Zeitung, 24/12/2016. Disponível em:

https://www.mittelbayerische.de/kultur-nachrichten/das-wort-macht-die-welt-21853-art1466701.html. Acesso em 14 fev. 2019.

19 Publicado em uma revista de língua alemã na França, Orient und Okzident, Sommer 1937. Outros

ensaios sobre o narrar: Das Taschentuch (O Lenço; GS 4, 1972, p. 741; não traduzido ao português); Die Kunst zu

erzählen (A Arte de narrar; GS 4, 1972, p. 436); “Sobre o conceito da História” (OE 1, 1985, p. 222-234).

20 Nikolai Lesskow [!] (1831-95). Gesammelte Werke, 9 vols, editora Munique: C.H. Beck, s.a.

Benja-min não indica o tradutor.

21 No original alemão a frase não soa tão categórica quanto na tradução, pois ‘durchaus’, que foi

tradu-zido aqui por ‘de fato’, pode significar também ‘plenamente’, de modo que o narrador não estaria mais presente plenamente, mas talvez sim parcialmente. Além disso, gostaríamos de comentar que a palavra traduzida aqui por ‘devidamente’, ou seja, rechtschaffen, é adjetivo ou advérbio um tanto antiquado, mas com carga moral e emoci-onal forte, que significa em primeiro lugar ‘honesto’, ‘probo’, ‘honrado’, ‘sincero’, o que dá desde o início ao raciocínio do autor um toque quase conservador, não no sentido político, mas no sentido ético e cultural. Desde o início, a atividade narrativa está ligada a uma atitude moral, de seriedade e confiabilidade.

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faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiên-cias (BENJAMIN, OE 1, 1985, p. 198)22.

O uso da primeira pessoa do plural, ‘entre nós’, estabelece logo uma comunidade entre o autor e seu público, de diálogo e de destino, um recurso narrativo que antecipa, de certa forma, um elemento do conteúdo do ensaio, ou seja, certa proximidade entre o narrador e seus ouvintes ou leitores. ‘Entre nós’ remete também ao tempo atual da época, concretamente: o mundo con-temporâneo, moderno, industrializado, racionalizado, urbanizado nas primeiras décadas do sé-culo XX, o que pode ser considerado como uma das causas do fenômeno observado.

Esse declínio da arte de narrar é definido como uma “experiência”, uma lição que a vida dá aos contemporâneos, um fenômeno marcante que os processos modernizadores propor-cionam à população nas metrópoles do século XX. Ou seja, uma experiência importante da atualidade daquela época é que a experiência está ameaçada. Assim, desde o início da exposição de suas ideias, o autor estabelece uma conexão, até uma simbiose, entre narração e experiência, de modo que uma não pode existir sem a outra. Isso significa que aspectos estéticos e literários são a outra face de aspectos antropológicos e sociológicos, espécie de leitmotiv no pensamento benjaminiano.

O termo ‘narrador’, aqui, não designa a instância narradora, relativamente autônoma com respeito ao autor em qualquer narração ficcional: “Importante ressaltar para toda a discus-são narratológica que Benjamin não trata no ensaio (O Narrador) a questão do narrador fictício no contexto da estrutura narrativa. O ensaio não é uma contribuição narratológica stricto sensu” (PRESSLER, 2006, p. 321). Em Benjamin, a palavra ‘narrador’ tem praticamente a acepção de ‘contador de histórias’, podendo ser um personagem real, idêntico a um falante oral, ou um autor de uma narrativa escrita, por exemplo, Leskov,23 ou um personagem fictício, eventual-mente também no sentido narratológico – distinções ausentes no ensaio benjaminiano. O que importa é que esse narrador conte uma história oral ou imaginada como tal, de caráter ou de

22 Pode-se vislumbrar nessa constatação, feita nos anos 1930, um certo eurocentrismo, uma vez que em

outros continentes, por exemplo na América Latina e na África, a “arte de narrar” estava bem menos ameaçada, bem mais viva do que na Europa, uma vez que nesses continentes a cultura popular oral tinha maior vitalidade, de modo que ainda no século XX, muitos autores bebiam na oralidade do povo, por exemplo Guimarães Rosa. Porém, a tendência histórica, do declínio da narrativa oral, deve ser a mesma no mundo inteiro, com certas defasagens.

23 Quando Leskov escreveu os seus contos nos moldes da literatura oral russa, a figura do narrador

popular oral já estava em declínio, ou seja, o conto leskoviano, de certa forma, já era um anacronismo, ver Lavelle, 2017, p. 841). Por outro lado, ele realizava um resgate de práticas culturais que satisfazem necessidades da vida e do convívio dos homens, que são as de contar, ouvir, intercambiar estórias, experiências. Um resgate da narrativa em novas formas e em novos contextos sociais, tecnológicos, midiáticos.

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origem popular − rural ou artesanal − de certo apelo dialógico, em contato com um público que aprecia ouvir ou ler tais narrativas24.

Com isto, Benjamin aponta para o declínio da experiência como causa do declínio da narrativa:

Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olhar-mos um jornal para perceberolhar-mos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. (BENJAMIN, OE 1, 1985, p. 198).

O declínio da experiência, por sua vez, é provocado pelas “transformações” do “mundo exterior” e também do “mundo ético”, das estruturas econômicas, sociais e técnicas, do modo de vida, das regras de convivência, dos costumes, normas e mentalidades, mudanças que, por sua vez, se manifestam na imagem que a sociedade faz de si mesma, ou seja, no jornal. Portanto, a degradação da narrativa tem causalidade tríplice: 1. a experiência minguante; 2. o mundo social e cotidiano mutante; 3. a imprensa informante25, vista num primeiro momento como es-pécie de caixa de ressonância de tendências da realidade, e mais tarde, no mesmo ensaio, como corresponsável pelo declínio da narrativa.

Se inicialmente temos a impressão de certo alarmismo benjaminiano, diante do suposto fim iminente da narrativa, uma leitura mais atenta mostra que o autor deixa vislumbrar saídas dessa situação crítica, perspectivas que o presente trabalho procura rastrear e apreciar. No ori-ginal alemão, a oração parcial da primeira frase: “o narrador não está de fato presente entre nós” não soa tão categórica quanto na tradução, pois o advérbio durchaus que foi traduzido por ‘de fato’, significa mais bem ‘plenamente’ ou ‘inteiramente’, o que permite uma leitura segundo a qual o narrador não está mais plenamente presente, em outras palavras: ele parcialmente está presente ainda.

De modo parecido, a oração “a arte de narrar está em vias de extinção” aponta para um processo em andamento, que ainda não chegou ao fim, ou seja, essa arte não foi extinta de fato, ela está terminando, mas não terminou ainda. Se o declínio, como Benjamin afirma mais tarde (BENJAMIN, OE 1, 1985), já começou com a invenção do prelo e os primeiros romances,

24 Talvez até fosse mais apropriado traduzir Erzähler por “contador de estórias”. “Estória” é um termo

antigo da língua portuguesa caído em desuso e revitalizado sob influência de story, do inglês. Foi usado, por exemplo, por Joao Ribeiro e por Luís da Câmara Cascudo para designar um conto breve da tradição oral popular (CASCUDO, 1968, p. 23). João Barrento, em sua antologia de ensaios benjaminianos, novamente traduzidos para o português, traduz Erzähler como ‘contador de histórias’. Ver Benjamin, 2015, p. 140 e seguintes).

25 Tanto a imprensa como o romance foram, segundo Benjamin, primeiros indícios de um

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por volta de 1500, é claro que, na extinção da narrativa, trata-se de um processo secular, se não milenar, que vem de longe e que pode se arrastar por muito tempo ainda, o que dá a essa frase certa abertura e vagueza, e, portanto alguma esperança26.

2.2 O DECLÍNIO DA EXPERIÊNCIA

Benjamin discorre sobre Erfahrung,27‘experiência’, em diversos trabalhos, principal-mente nos ensaios “Sobre alguns temas em Baudelaire” (1940), “Experiência e pobreza” (1933) e em “O Narrador” (1937), sendo aquele termo, como já apontamos, uma categoria transdisci-plinar, não só da história literária na visão benjaminiana, mas também da filosofia, da antropo-logia e da vida real, prática, concreta:

A narrativa, [...] é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunica-ção. Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (BENJAMIN, OE 1, 1985, p. 205).

A narrativa, diferente da efêmera e impessoal informação, é uma instância histórica, intersubjetiva, que gera uma relação pessoal com o narrador, assentando e fincando nele a “coisa”, a matéria vivida, isto é, a experiência. Esta é trabalhada e transfigurada em uma narra-tiva, na qual o narrador deixa sua marca pessoal e da qual ele mesmo recebe uma marca na ação narrativa, no contato com o público. A narrativa é mais do que um texto falado ou escrito, é um elemento central e dinâmico de um contexto social e comunicativo. Diferentemente de um ob-jeto material doado por uma pessoa a outra, a narrativa, quando ‘doada’ pelo narrador no ato narrativo-comunicativo, continua ‘morando’ no ‘doador’, apesar de ter chegado no ‘recebedor’, ou ouvinte. A narrativa, portanto, enriquece não só o ouvinte, que pode, se quiser, renarrá-la, mas também o próprio narrador, que pode descobrir novos aspectos na estória por meio do processo narrativo que sempre tem aspectos dialógicos. À narrativa, como configuração de uma experiência, própria ou alheia, compartilhada, dialógica, Benjamin contrapõe a informação de

26 A mesma tendência se manifesta na experiência, pois se na tradução “tudo indica que [as ações da

experiência] continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”, o texto em alemão reza, literalmente tra-duzido: “tudo indica que ela [a cotação da experiência] continua caindo “ins Bodenlose” (no chão, no sem-fundo). Ou seja, o processo da decadência poderia ser infinito.

27 Etimologicamente, o termo alemão Erfahrung remete ao movimento no espaço e àquilo que se

ob-serva, vive, aprende e adquire durante esse movimento, já que o verbo erfahren, significava ‘adquirir através de uma viagem’; hoje em dia, os significados predominantes são ‘vivenciar’, ou ‘chegar a saber’. O substantivo

Er-fahrung significa, portanto, etimologicamente, ‘aquisição/ aprendizagem através da viagem’, pois remete ao verbo fahren (viajar, navegar, andar), sendo que o prefixo ‘er-‘, geralmente, se refere a um processo de alcançar alguma

coisa. Ver o dicionário dos irmãos Grimm (DWB), que traduzem os significados de Erfahrung ao latim:

ERFAHRUNG 1) peragratio, pervagatio. 2) scrutatio, inquisitio, erforschung, 3) experientia. Disponível em:

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jornal – produto industrial, efêmero e impessoal – desconexa de outras informações, e em geral sem vínculo pessoal com o autor e com o leitor (BENJAMIN, OE 1, 1985, p. 202)28.

Experiência se nutre do viver e do conhecer aprofundado de situações fundamentais e representativas da condição humana pelas quais o narrador passou pessoalmente ou das quais teve conhecimento íntimo por outras pessoas.

Assim, experiências no sentido pleno da palavra precisam ser transmitidas ou inter-cambiadas não só “de boca em boca”,29 mas também de grupo em grupo, de geração em

gera-ção, de cultura em cultura. Para Benjamin, o conteúdo da experiência é a vida vivida, comen-tada, interprecomen-tada, compartilhada, são conhecimentos e ensinamentos, sabedorias, recordações e expectativas comuns ou potencialmente comuns, enraizadas na tradição. Uma experiência puramente individual e silenciada dificilmente seria chamada de experiência por Benjamin, po-deria ser eventualmente um Erlebnis, uma vivência, mais acidental, rasa, individual. Não há narração totalmente monológica; a não ser no romance, o qual, segundo Benjamin, no fundo já marca um começo do declínio da narração no sentido de um costume social, o que não exclui a possibilidade de alguns romances, sim, transmitirem experiências, os de Proust ou Döblin, por exemplo.30 Trocar experiências parecia, em outras épocas, prática social imprescindível e ina-lienável pela sua qualidade e utilidade comunicativa, reflexiva, didática, e até pela sua impor-tância para o trabalho e o sustento da vida. As narrativas enriquecem a vida das pessoas com outras vidas: “Vida vivida – essa é a matéria de que se formam as histórias” (Gelebtes Leben –

das ist der Stoff, aus dem die Geschichten werden; BENJAMIN, GS 2, 1977, p. 449; tradução

nossa). As narrativas formam o imaginário e a memória da coletividade, imprescindíveis para o autoconhecimento e autoentendimento da sociedade, uma ideia realçada por Ricoeur quando fala da narrativa como laboratório de ideias:

O ato de fé de que a capacidade de metamorfose da narrativa permitirá, ainda por muito tempo, que esta última esconjure o cisma. [...] Em nenhum lugar se verifica melhor a função da ficção, que é servir de laboratório para experiências de pensamento em número ilimitado. É para outras instâncias de vida, religiosa, ética e política, que

28 Benjamin usa o termo informação como sinônimo de notícia, pressupondo-lhe características que

Nilson Lage define assim: “O universo das notícias (e, quase sempre, o da informação jornalística em geral) é o das aparências do mundo: o noticiário não permite nem persegue o conhecimento essencial das coisas, objeto do estudo científico e da prática teórica, a não ser por eventuais aplicações a fatos concretos. Por trás das notícias corre uma trama infinita de relações e percursos subjetivos que elas, por definição, não abarcam. Isso explica o custo social menor da especialização do jornalista, se comparado com a transformação do especialista em jorna-lista.” (LAGE, 2001, p. 49). Disponível em: http://nilsonlage.com.br/wp-content/uploads/2017/10/A-reporta-gem.pdf. Acesso em 27 fev. 2019.

29 Von Mund zu Mund (BENJAMIN, GS 2, 1977, p. 439), que significa literalmente “de boca em boca”,

foi traduzido como ‘de pessoa a pessoa’ (BENJAMIN, OE 1, 1985, p. 198), o que denotativamente é correto, mas conotativamente problemático, pois enfraquece a dimensão da oralidade e da corporeidade da comunicação.

30 Para situar Benjamin no pensamento filosófico europeu e norte-americano sobre o conceito da

(31)

uma escolha se impõe: o imaginário não tolera censura. (RICOEUR III, 1997, p. 458-460).

Experiências, embora se originando nos indivíduos, têm uma significância que trans-cende os limites da individualidade, são capazes de tocar, mover, esclarecer outros indivíduos, grupos, a humanidade, sendo ou podendo ser transindividuais, transgrupais, transnacionais, pro-curando respostas na busca de orientação e de sentido.

In particular, however, Benjamin sought to investigate an important dimension of the experience of modernity: the radical discontinuity of experience that is implicit in the fleeting, transitory and the fortuitous and is manifested as the shock or sensation of the ever-new. In a sense, therefore, his prehistory of modernity was to embody reflec-tions on the social origins of the transformation of the structure of experience. Benja-min’s argument rests upon a distinctive conception of experience as being embedded in tradition and therefore connected with historical memory. For him, ‘experience is indeed a matter of tradition, in collective existence as well as private life. It is less the product of facts firmly anchored in memory than of a convergence in memory of ac-cumulated and frequently unconscious data.’ The latter is the product of the fusion of ‘voluntary and involuntary recollection’ that is rooted in concrete lived experience in which ‘certain contents of the individual past com bine with material of the collective past’ (FRISBY, 2013, p. 261).

A rapidez das mudanças do mundo vivido na modernidade dificulta a manutenção dos hábitos e costumes, que são, de certa forma, experiências sedimentadas, ajudando as pessoas a dar conta dos afazeres cotidianos, como Benjamin argumenta numa crítica a Nietzsche que recorre ao eterno retorno31, no plano cósmico, quando justamente não há mais retorno no plano

social e cotidiano, o que dificulta a organização do dia a dia das pessoas, por causa das perma-nentes mudanças no mundo vivido, como no caso de Baudelaire:

Esta [a ideia do eterno retorno] manifestou-se no momento em que a estabilidade das condições de vida foi drasticamente reduzida pela sucessão acelerada das crises. A ideia do eterno retorno devia todo seu esplendor ao fato de não ser mais possível con-tar com certeza com o retorno de certas situações em prazos mais curtos do que aque-les oferecidos pela eternidade. Paulatinamente, as constelações cotidianas começaram a tornar-se menos cotidianas. Seu retorno foi-se tornando cada vez mais raro e com isso surgiu um sombrio pressentimento de que seria preciso contentar-se com conste-lações cósmicas. Em suma, o hábito dispôs-se a ceder alguns de seus direitos. Nietzs-che diz: “Amo os hábitos breves”, e Baudelaire foi incapaz, a vida inteira, de criar hábitos estáveis. Os hábitos são a armadura da experiência, enquanto as vivências os desagregam (BENJAMIN, 2018, J62a, a).

Há certa ambiguidade em relação à crise da experiência, ou seja, para saber se o seu declínio se refere à própria gênese da experiência ou à capacidade das pessoas de intercambiá-la. Parece que os dois processos vêm ocorrendo, condicionando-se mutuamente. O próprio Ben-jamin abre o seu ensaio “Experiência e pobreza” com uma narrativa-experiência exemplar:

31 Sobre a crítica de Benjamin e de Kracauer a esse conceito de Nietzsche, ver Machado, 2015, p. 137

Referências

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