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A aposta na ficção : apresentação, tradução e comentários de Limbes/Limbo - un hommage à Samuel Beckett, de Nancy Huston

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Academic year: 2021

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Advertência...12

Nota sobre a tradução...13

Como usar esta tese...14

Bilheteria...16

Apresentação {A aposta na ficção}...20

1N. do T. {no jogo de imitação}...44

Alfândega Estabelecimento do discurso sobre a tradução...63

Passager clandestin Esgotamento do discurso sobre a tradução...72

2N. do T. {no parque das traduções impróprias}...83

Souvenir... 123 Endgame A decisão da ficção...143 Referências...151 ... Anexos [Fragmentos Traduzidos]...167 [Gabinete de curiosidades]...188 [Glossário]...197 [Cronografia]...227

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Advertência

Está prestando atenção? Que bom. Se não prestar bastante atenção, perderá os detalhes, detalhes importantes. Eu não vou parar, não vou me repetir e você não vai me interromper Acha que só porque está onde está e eu estou onde estou você está no controle dos acontecimentos? Você está errado — eu estou no controle. Porque eu sei de coisas que você não sabe. O que eu quero de você agora é comprometimento. Você vai prestar atenção eão vai me julgar até eu terminar. Se não for se dedicar a isso, por favor, saia agora. Mas se escolher ficar, lembre-se de que foi uma escolha sua. O que acontecer daqui pra frente não é de minha responsabilidade, é sua. Preste atenção.1

1 O JOGO da imitação. Direção: Morten Tyldum. Produção: Black Bear Pictures, Bristol Automotive,

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Limbes/Limbo é um texto com direitos autorais reservados, o que limita sua reprodução e impede o uso da tradução completa, mesmo para fins acadêmicos. Nesta tese, incluí cinco dos dezoito fragmentos que compõem o texto. Os procedimentos que são o objeto dos comentários e das notas aparecem de modo igualmente significante ao longo do texto todo, de modo que a escolha dos fragmentos para incluir aqui seguiu o critério puramente formal da extensão.

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Como usar esta tese

Um texto com uma história tão singular e que toca em questões tão cruciais, como é o caso de Limbes/Limbo, exige uma abordagem que seja, pelo menos, inventiva. O que é bom.

Pensando nisso, e como uma tentativa de traduzir em outras camadas todas as homenagens que o livro rende, proponho uma estrutura que, rendendo ela também uma série de homenagens (Nancy Huston e Samuel Beckett, sim, mas também Jacques Derrida, Julio Cortázar, Jacques Lacan, Jorge Luis Borges…), organiza-se da seguinte forma:

em pedra, o leitor encontra a tradução de cinco fragmentos do texto publicado apresentada em duas versões bilíngues (português – inglês e português – francês);

em papel, o leitor encontra a apresentação do texto de N. Huston, comentários de alguns fragmentos e a aposta numa hipótese da tradução que leva a sério o discurso sofístico;

em tesoura, o leitor encontra tanto considerações acerca da gramática que estabelece os discursos sobre a tradução e que bane (excreve) a autotradução do campo de seus estudos quanto a resposta da autotradução a esse banimento (excrição) que aponta o esgotamento desses discursos ao mobilizar a lógica da excrição.

Um longo comentário anotado sobre a relação entre o inglês e o francês tanto no manuscrito quanto no que gosto de chamar de “programa estético de N. Huston” guia o leitor No parque das traduções impróprias. Como um duplo dessa relação desde sempre formidável, a relação entre o comentário (parque) e suas notas (souvenir) tem a finalidade de funcionar, ela também, como um lembrete de que tudo o que se diz pode sempre ser dito de novo e de outra maneira mais ou menos concorrente e mais ou menos diferente. Lembre-se: a alternância entre comentário e comentário anotado é um lance que pode permitir a captura da peça desejada enfim.

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Gabinete de curiosidades é um lugar híbrido que emerge no meio desse jogo

entre prática e teoria. Nele, o leitor encontra um Inventário que contempla um brevíssimo estudo estatístico do manuscrito Limbes e apontamentos sobre a configuração editorial do texto em seu formato de livro.

Leitores menos familiarizados com os universos culturais das línguas inglesa e francesa encontram refúgio no Glossário, em que as referências culturais, alusões e citações presentes em Limbes/Limbo são anotadas e comentadas junto a traduções consagradas e referencial bibliográfico.

Leitores menos familiarizados com a vida e a obra de N. Huston encontram na

Cronografia um bom lugar para ler um livro.

Assim, os textos que compõem cada “lance” (pedra – papel – tesoura | parque – souvenirs – livro de registros) podem ser lidos separadamente e em qualquer ordem, embora o conforto da leitura linear na ordem em que esses lances são apresentados no

Guião esteja sempre como possibilidade.

Para terminar, lembro as palavras de N. Huston em seu Carnets de l’incarnation: “Livro de carne, dizia o Fausto? Cadernos de encarnação!, respondo eu”. 1

Esta tese, pois, também é uma encarnação do que se passa em Limbes/Limbo, que traduz e comenta, e do que se passa, em todo caso, no ofício da tradução.

Como Cortázar em seu Jogo da Amarelinha, convido, então, o leitor a escolher a leitura que mais lhe agradar.

You to play2.

1 HUSTON, N. Carnets de l’incarnation. Textes choisis 2002-2015. Montréal/Paris: Leméac/Actes Sud,

2016, p. 12.

2 BECKETT, S. Fim de partida. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2002. Hamm abre

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Bilheteria

Em uma entrevista de 2001, N. Huston afirma que Limbes é “um grito de perda da identidade”1. E esse grito, que torna a própria Huston o que ela batiza de

uma “escritora dividida”2, alcança paragens bem mais longínquas do que aquelas que

hospedam confortavelmente os discursos hegemônicos que reduzem o problema de identidade colocado pela autotradução a uma questão de “escrita bilíngue”. É um grito que mobiliza afetos, para usar as palavras de Safatle, que colocam em circulação questões que dizem mais sobre a maneira como lidamos, dentro da universidade e fora dela, com os conceitos de identidade, transmissão e tradução do que sobre o registro estético desses conceitos, por exemplo, na literatura.

É nesse sentido que o pequeno texto de N. Huston publicado em 1998 em versão bilíngue (mas será que é?) emerge como o que chamarei, tomando um conceito da filósofa e filóloga francesa Barbara Cassin, de um “efeito-mundo”3. Pois esse texto

1 YI, M-K. 2001. “Épreuves de l’étranger: entretien avec Nancy Huston réalisé par Mi- Kyung Yi, Horizons

philosophiques, vol. 12, n. 1, pp. 1-16.

2 HUSTON, N. Le déclin de l’identité? In: Âmes et corps: Textes choisis 1981-2003. Arles: Actes Sud,

2004, pp. 57-77.

3 CASSIN, B. O efeito sofístico. Trad. Ana Lúcia de Oliveira; Maria Cristina Franco Ferraz; Paulo Pinheiro.

São Paulo: Editora 34, 2005.

A palavra que circula na experiência estética do poema, na experiência analítica da clínica e mesmo nas conversões de toda ordem não argumenta nem comunica. Ela realiza, mobiliza novos afetos e desativa antigos, reconstrói identificações, em suma, ela persuade com uma persuasão que não se resume a explicitação de argumentos, e isto vale também para os verdadeiros embates políticos.

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realiza o que, de toda sorte, diz ou comenta; implica (e complica) o campo dos estudos de tradução: eis aí o motivo de ser, como todo efeito-mundo, também e, sobretudo, uma questão política e de política. Veremos.

Limbes/Limbo é mais do que o resultado de uma escrita bilíngue, mais do que uma escrita simultânea em duas línguas, como seus comentadores massivamente alegam. Mas o que significam, afinal, essas alegações se não, por um lado, a reafirmação do discurso hegemônico que coloca a tradução um degrau abaixo do original e, por outro, o gesto de banimento (a excrição) da autotradução do reino encantado em que parece viver a ideia de tradução consagrada pela acacademia1.

Não, Limbes/Limbo não é o resultado de uma escrita bilíngue, é o próprio colapso da ideia de escrita bilíngue, de bilinguismo de escritura e de poética do bilinguismo. Isso quer dizer, em outras palavras, que esse pequeno texto fabrica o próprio colapso da ideia de autotradução como apenas um outro original ao festejar a singularidade própria da tradução. É um elogio do que a autotradução tem de tradução, não de original. A ver.

Mas se existe (e existe) um quê de autoritário, e de possessivo até (de obsessivo até), no fato de um autor escolher traduzir ele mesmo para outra língua sua obra (isso que se chama, por convenção, de “autotradução”), existem também segundas justificações, como pode demonstrar um rigoroso estudo de textos paralelos (isso que se chama, por convenção, de “paratextos” — capas, prefácios, posfácios, notas, além de cartas, entrevistas, diários…). Indo ter em paragens que uma psicopatologia da vida cotidiana talvez pudesse descrever (não será o caso aqui), essas segundas justificações acabam propiciando, digamos sem temer, mais democracia.

É o que vale a pena ter em conta, creio, diante da afirmação de S. Beckett de que somente escrevendo em uma língua estrangeira (o francês) é que ele seria capaz de desautomatizar a linguagem e encontrar a literatura da despalavra (Literatur des Unworts) que lhe permitiria fazer buracos na linguagem2. N. Huston, por sua vez,

afirma ter encontrado na língua francesa (sua língua de adoção) “a poeticidade viva”, a “musicalidade íntima” que no inglês (sua língua materna) era pura “racionalidade”.

Ocorre que essa “poeticidade”, essa musicalidade íntima das palavras não é simplesmente encontrada quando N. Huston começa a escrever em francês, mas, pelo contrário, irrompe quando ela começa a traduzir. É pela tradução, na tradução, que a poeticidade irrompe enfim. Ou seja: é a tomada de consciência da tradução, sua apropriação e transformação em ferramenta de criação estética o que finalmente liberta

1 Referência ao discurso de Lucky no primeiro ato de Esperando Godot. cf. BECKETT, S. Esperando

Godot. Trad. e prefácio Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, p. 85.

2 BECKETT, S. Carta Alemã de 1937. In: ANDRADE, F. S. Samuel Beckett: o silêncio possível. São

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18 a força inventiva na obra de N. Huston — o que, segundo ela, a torna uma escritora de fato. É essa erupção criadora colocada em circulação pela tradução o que chamarei de “hipótese da tradução”. Quer dizer: a consciência de que a tradução existe, e de que, ao existir como tal, faz coisas, realiza, é um efeito-mundo. Fabrica o mundo. Chegaremos.

Como será o caso de mostrar a partir da leitura da obra de N. Huston, Limbes/ Limbo é a decisão de levar a sério essa hipótese, o epíteto, lugar máximo em que a libertação inventiva acontece. E isso é assim porque é nesse texto mais do que em qualquer outro de N. Huston que os embates linguísticos, pessoais, identitários e políticos que envolvem a escritora e sua obra realizam a performance mais rigorosa que podemos encontrar em todo o seu programa estético — desde os textos feministas escritos na década de 1970 e construídos quase que exclusivamente sobre a musicalidade de sua então nova língua, a francesa, até o espetacularmente perverso Danse noire, de 2013.

Isso levanta questões cruciais no que diz respeito tanto à autotradução quanto ao modo como essa prática tem sido enfrentada pelo (banida do) campo de pensamento sobre a tradução.

Pois se a autotradução é, como Limbes/Limbo sugere temática e formalmente, sobretudo uma ab-tradução, uma sobre-tradução é porque aquele que escolhe traduzir ele mesmo para outra língua sua obra o faz não em virtude de um preciosismo burguês (que existe, Kundera é testemunha) ou de um bilinguismo completamente contingente (que também existe, a literatura catalã autotraduzida está aí dizendo isso1), mas

porque, sabendo ele mesmo traduzir (o que pode com facilidade ser comprovado ou objetado analisando-se com rigor traduções de obras de terceiros), escolhe, no entanto, simplesmente não querer traduzir. Não como se espera, não como se exige — estou falando obviamente daquilo que, por conveniência (a universidade tem dessas), chama-se de tradução ou, pelo menos, de tradução “de verdade”, de tradução propriamente dita, de tradução porreta…

O que Limbes/Limbo sugere (o que, aliás, escolhe) é mostrar não o gênio (a singularidade) que só e somente só um original pode possuir, mas a singularidade (o gênio?) que toda tradução pode (e deve) manifestar. É um manifesto da tradução — que a tradução seja inventiva, pois só a tradução cria2.

E o que isso nos diz? O que isso poderia, enfim, nos dizer?

Bem, muitas coisas, muitas coisas de fato, mas principalmente duas. Primeiro:

1 Cf. PROTÁSIO, L. F. O corpo usurpado ou a dupla lógica e a dupla falácia: da crítica de autotradução.

Revista Lael em Discurso, vol. 6, 2013.

2 “Só a antropogafia nos une” — não foi assim que Oswald de Andrade disse em seu “Manifesto

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que a tradução não deve (não deveria, pelo menos) contentar-se em ser um dizer quase (sempre quase) a mesma coisa, ou seja, limitar-se a um dizer que, ecoando outro, deve dizer de novo e sempre só e somente só um sentido que não é e nem nunca será o seu. É claro que a tradução segue um script, mas isso não quer necessariamente dizer que a performance desse script não seja, em sua natureza, sempre singular.1 E,

em segundo lugar, afirmar que só a tradução cria quer dizer (deveria querer dizer, pelo menos) também, e ainda, que a tradução não se contente em habitar apenas o reino do puramente semântico. Nada é apenas puramente semântico e a decisão do sentido que tanto orgulha o modelo de pensamento ocidental, no fim das contas, é só uma maneira de recortar o mundo. É um corte, uma opinião (a de Aristóteles e da filosofia) entre outras igualmente possíveis (a de Górgias e da Sofística, por exemplo). Experimentemos.

Eis o que Limbes/Limbo grita.

Melhor, então, ouvirmos esse grito sem demora.

1 Essa singularidade cada vez sempre única talvez fique mais óbvia na música do que na literatura. Afinal,

é mais fácil ouvir o mesmo diferente nas duas versões que o pianista canadense Gleen Gould gravou das

Variações Goldberg (1955 e 1981), de J. S. Bach, do que nas duas versões de Limbes/Limbo (o inglês e

o francês). Na música, porém, esse mesmo que é diferente pode apresentar distintas gradações, indo de performances mais reservadas até as mais “autorais”, em que é sobretudo o corpo do artista que ganha o centro da cena. O trabalho de G. Gould com a obra de Bach é exemplar porque pode ser lido como uma dupla tradução: primeiro, há a mudança do instrumento (as obras de Bach foram compostas para cravo e Gould as executa no piano); segundo, há uma variação nas performances, como fica claro quando

consideramos que as versões de 1955 (ouça em http://www.deezer.com/album/11126048) e de 1981

(ouça em http://www.deezer.com/album/11126022) fazem série com as peças de Bach. Assim como

um texto traduzido hoje será completamente outro se for retraduzido (ainda que pelo mesmo tradutor) daqui a dez anos, a performance de G. Gould traz as impressões digitais de seu amadurecimento. Outro exemplo do campo da música da potência criadora da tradução é o trabalho da cantora e pianista americana Tori Amos. Em seu álbum Night of Hunters (2011), T. Amos cria uma variação de Siciliana, de J. S. Bach, para narrar uma história que, de qualquer forma, é totalmente o que se chamaria autoral

(ouça em http://www.deezer.com/album/1261686). Essa singularidade, cada vez única, da performance

de um script (que nada mais é do que um conceito largo de tradução) é levada ao extremo na versão que

T. Amos faz, no álbum Strange Little Girls (2001), da canção ‘97 Bonnie and Clyde (ouça em <http://

www.deezer.com/album/612407>), do rapper americano Eminem. Na letra, Eminem narra para a filha (no carro, a caminho de um rio no qual jogará o corpo) como matou a mãe da garota. No estúdio, T. Amos se fechou dentro de uma caixa para gravar os vocais, de modo a simular o som abafado ouvido pela mulher, agredida e prestes a morrer, conforme o marido conta sua versão do acontecimento para a filha. Em termos de instrumentação, T. Amos abandona o hip hop e aposta em um acompanhamento mais “escuro”. Desse modo, a performance de T. Amos, embora siga o script de Eminem, mobiliza uma cadeia de significação que, na verdade, inverte o que se chamaria de “sentido” da versão original. Seguir o script, portanto, pode ser inclusive questionar o script. No campo da tradução de literatura, um procedimento igualmente radical é o projeto (político) de traduções realizadas em Quebec para o joual.

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Apresentação

{A aposta na ficção}

Pois o texto tal como em formato de livro apresenta uma sintaxe (vamos por enquanto chamar de sintaxe a costura mais ou menos frouxa que ata os blocos no interior do objeto livro) que potencializa as leis insondáveis que regem a língua. E mais: uma sintaxe que concretiza o esgotamento da linguagem ao materializar a precariedade da tradução para além de dizer a impossibilidade da tradução.

Potencialização das leis insondáveis que regem a língua: porque, tal como em formato de livro, o texto interrompe, no leitor, as expectativas diante de um livro bilíngue (quer dizer, de uma edição bilíngue) que a versão não publicada (isto é, a versão do manuscrito publicado somente a posteriori1), com efeito, funda. E isso porque um

texto numa língua responde ao outro mais do que a ele corresponde — como se verá no momento oportuno, que são as N. do T. encartadas nesta tese.

Materialização da precariedade da tradução: porque, na pele do texto (quer dizer, em sua camada textual), um discurso paródico ganha corpo e aciona um torvelinho de citações, alusões e referências que não param de não duvidar da tradução. O que, aliás, fazem traduzindo. Mas o que as palavras que formam o corpo desse discurso paródico traduzem (isto é, o que elas, de fato, dizem de modo todavia narrativo ou fabular) é revogado pela ação narrada, no interior da tradução realizada.

1 Cf. “Gabinete de curiosidades: Inventário” nesta tese.

Fiction is so very much an incarnational art…

Flannery O’Connor

Je préFère la Fiction.

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Portanto: traduzindo, sim, mas falhando, sempre.

Não se trata, logo, de falar sobre a tradução (o que se chamaria, então, uma tarefa crítica), como de fato acontece nos textos de N. Huston reunidos em Nord perdu1

e Lettres parisiennes2; tampouco se trata de propor uma imagem do que seja, segundo N.

Huston, a tradução — algo que uma historiografia das metáforas da tradução (o “limbo” como “entre-lugar” inclusive) estabeleceria. Não se trata, então, portanto, de nenhuma nova teoria da tradução (há muitas já). Não. Trata-se de performance (estou pensando no sentido teatral do termo), de produzir os efeitos da (e de) tradução no texto. E no leitor.

E isso porque, tal como no formato de livro, o corpo textual de Limbes/Limbo causa no leitor inadvertido que entra na leitura tomado por uma bem-aventurada preconcepção do que seja um texto bilíngue e uma tradução (um original e uma tradução, digamos enfim) uma espécie de frustração. E ao frustrá-lo desde o limiar ou umbral do texto (que são as “epígrafes”), e talvez até desde os limites físicos do objeto livro (que é sua capa e o bilinguismo de sua edição), o texto tal como no formato de livro levanta, à revelia de seu leitor, mais e mais, linha a linha, no movimento vertiginoso que impõe aos olhos que vão de um lado ao outro, de uma página à outra, cada vez mais, a desconfiança daquilo que vai se passar: a jornada de um limbo a outro, a viagem beckettiana pelos “limbos dos limbos” será também, de certa forma, do leitor.

“Limbes/Limbo”: o título e o traço que corta em duas línguas o título; “Un hommage à Samuel Beckett”: o subtítulo e o autoridade nomeada no subtítulo — o que não deixa, em todo caso, de ser também uma subordinação ao que é nomeado ali, a saber, “o pai”, o “nome do pai”; “(Édition bilingue)”: a inscrição de certo limite editorial (uma identificação?; uma catalogação?) e, ao mesmo tempo, da ideia (genérica e burguesa) da identidade como experiência de si a si, como se não houvesse o outro, um outro. Dentro de parênteses, essa inscrição quer dizer também — ou, em todo caso, pode querer dizer também — “excrição”, o que transforma esse elemento editorial de outra forma banal na materialização do jogo (de tradução) que, no texto, será em certo sentido desenvolvido: inscreve uma ideia de controle total do texto, sim, mas desde que fora do espaço, digamos, do texto (pois a função do parêntese é reservar uma voz em off). “Desde que fora”: fora do espaço do livro, o que é bastante diferente de anulação.

Ou do banimento que setores hegemônicos de pensamento sobre a tradução imputam a experiências como a autotradução, a pseudotradução e até, em certa medida (em grande medida), a tradução chamada “criativa” ou inventiva. Pois tidas como “rebeldes”, essas experiências são tradicionalmente lidas no campo dos estudos sobre a tradução como casos peculiares, não como tradução propriamente dita (sim, é uma

1 HUSTON, N. Nord perdu: Suivi de Douze France. Arles: Actes Sud, 1998.

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22 alusão). É nesse sentido que, para ler essas experiências, o pensamento sobre a tradução sempre acaba considerando mais (por considerar irrefutáveis) outros fatores (fatores terceiros), a autoridade (quem autoriza?) sendo o mais comum deles.

E, no entanto…

*

{Sobre o leitor}

…e, no entanto, eis que temos diante de nós um texto que, tal como em seu formato de livro, constrói uma jornada que, ela mesma sendo uma representação (da precariedade da tradução, ato), representa (pode, pelo menos pode representar), para o campo do pensamento sobre a tradução (para os estudos da tradução), a incerteza dos fundamentos que sustentam seu grande castelinho de cartas marcadas. Ou seja: uma jornada que pode representar a precariedade da tradução, instituição. É o que, de qualquer forma, será o caso de tentar mostrar.

Mas essa jornada não tem o rosto (não tem o gosto) mítico da epopeia clássica — não há, pois, heróis aqui, de modo que tampouco haverá recompensa ao final. E nem salvação. A língua de N. Huston, diferente daquela de Elias Canetti, não salvará — nem a tradução, ato, nem a auto-identidade burguesa, nem a tradução, instituição. Pois se E. Canetti usa a língua estrangeira (no seu caso o alemão) como meio de se aproximar do pai morto, N. Huston usará a língua estrangeira (no seu caso o francês) para se afastar da mãe viva.

É como se entre os blocos de texto que compõem essa jornada houvesse uma rubrica na qual se lesse algo como “em outras palavras”, “isto é”, “ou seja” que traduzisse incansavelmente o que foi dito — uma voz, que de qualquer forma não está lá, fala, contudo, ao leitor.

Tragadas engenhosamente para dentro do corpo do texto (estou falando do texto publicado), onde aparecem, então, como os espaços entre um bloco e outro marcados com um asterisco (recomendação provavelmente editorial), as pausas entre os blocos (que inexistem no manuscrito) traduzem graficamente o tempo em espaço, espacializam o tempo. São, nesse sentido, pistas para…

…migalhinhas que indicam (indicam?) uma trilha de leitura (mas qual?) que, com sorte, terá significação (promete?).

Mas não vamos tão rápido seguir essa trilha.

Pois como não há segurança em apostar que uma leitura possa, em todo caso, trazer a redenção de uma significação, restam ao leitor os prazeres (se quaisquer) da jornada (o puro prazer do jogo, o prazer contingente do lance, da jogada, do movimento da peça — no caso de Limbes/Limbo, o próprio leitor). Pois se a jornada pode (e de fato pode) ser retraçada, se é sempre possível, ao final, retomar desde o começo, resumir,

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repetir, reformular, redizer… enfim, traduzir, o viajante não pode, todavia, jamais deixar o jogo, não dar o lance, não fazer a jogada. Pois não fazer a jogada significa, no fim das contas, abandonar a leitura. Ele não pode, quero dizer, ser apenas espectador.

Ou juiz.

E mesmo que, como os pares em latência que preenchem o espaço do palco em Esperando Godot1, esse viajante (quer dizer, o leitor) esqueça ao final do dia o dia

anterior, ao final de um bloco de texto lido o caminho percorrido (o que quer dizer o que acabei de ler?), a trilha seguida, obrigando-se, assim, a reviver tudo outra vez praticamente verbatim do outro lado, quer dizer, na outra página (repetição, citação), essa vez (essa segunda vez) já não significará o mesmo que a primeira vez: é o novo de novo. (Nenhuma novidade nisso: é esse o mecanismo que Jacques Derrida terá descrito com sua ideia de “iterabilidade”2.)

E se a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa, como para analisar um famoso golpe de estado3 disse um certo “alemão” citando outro certo alemão (e mais

do que citando, corrigindo, quer dizer, usando mais do que mencionando), então aí a sagacidade em usar a ficção para minar, pela narração, a pretensão de um mito. É preciso inventar-se uma história e contá-la, e recontá-la, e recontá-la de novo — mas isso, afinal, a psicanálise já descobriu, n’est-ce pas?

Hum. Vamos tentar mais um pouco:

e porque o leitor não pode se colocar fora do espaço do texto (pois, no caso de Limbes/Limbo, mesmo o leitor menos advertido é tragado desde o princípio para dentro do limbo a ser construído, quer dizer, narrado), não pode também (não deveria poder também pelo menos) confundir o recomeço aludido no último fragmento (o bloco 18 do texto publicado, o parágrafo 49 do manuscrito) com um eterno retorno, com um tempo mítico que realizasse, enfim, um ciclo sempre repetível, mas jamais alterável. Pois o retorno que lemos no último fragmento de Limbes/Limbo, que é o 18, é qualquer coisa menos inalterável.

E não pode também (não deveria poder também pelo menos) confundir com um tempo mítico porque o percurso da jornada, é o leitor quem o escolhe no momento em que decide como ler: se (a) um bloco em uma língua (e qual?) e depois em outra (mesma pregunta) ou se (b) os blocos paralelamente, quer dizer, seguindo, nesse último caso, mais ou menos o padrão de leitura ocidental e “esquecendo”, portanto, que se trata

1 BECKETT, S. Esperando Godot. Trad. e Prefácio de Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify,

2009.

2 DERRIDA, J. Limited Inc. Campinas: Papirus, 1991

3 MARX, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011. Marx

refere-se a Hegel, que teria dito que um acontecimento histórico acontece sempre mais de uma vez, ou seja, que fatos ocorridos no passado tendem a se repetir ao longo da história.

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24 de uma edição bilíngue. Nesse último caso, seria preciso enfrentar não o bilinguismo da escrita, mas o “sobre-linguismo”, o “ab-linguismo”1 do texto (algo que o texto, no

formato de manuscrito, realiza).

Em resumo: não há um censor, nem uma auctoritas2 em qualquer sentido que,

divinos, conduzissem como o leitor, um títere, lerá o texto. E isso quer dizer que, em resumo, não há um censor, nem uma auctoritas em qualquer sentido que, divinos, regulassem como o tradutor, um artesão, traduzirá o texto.

E isso quer dizer, mas em outras palavras, que não há rainha nesso jogo de

homenagens proposto por Limbes/Limbo em que te perdes.3 E não há pelo fato de que não

1 Estou chamando de “ab-linguismo” a retração, a subtração dos “linguismos” (monolinguismo, bilinguismo,

semi-linguismo etc.) que, no meu entender, a tradução mobiliza na medida em que é um “efeito-mundo”. Essa hipótese parte do conceito de “ab-senso” que circula em O aturdito, de J. Lacan, e que Alain Badiou e Barbara Cassin enfrentam em seus comentários sobre esse texto “incontornável” (BADIOU, A.; CASSIN, B. Não há relação sexual: duas lições sobre “O aturdito” de Lacan. Trad. Cláudia Berliner. Rio de Janeiro: Zahar, 2013). É de Badiou, aliás, a explicação que poderíamos chamar de mais didática do que não é o “ab-senso” de acordo com Lacan: “O real, em ‘O aturdito’, pode ser claramente definido a partir da ausência de sentido. Disso resulta que, para pensar completamente o tripleto verdade-saber-real, é preciso fazê-lo mover-se em relação à questão do sentido. Em seu brilhante comentário do livro Gama da Metafísica de Aristóteles, Barbara Cassin fala de ‘decisão do sentido’. Pode-se, com efeito, dizer que ‘O aturdito’ é uma outra decisão do sentido, diferente da decisão aristotélica. Considerando-se essa decisão, o real pode ser definido como o sentido enquanto ab-senso. O real é ab-senso, portanto, ausência de sentido, o que, bem entendido, implica haver sentido. O ponto que tem que ser bem compreendido, no tocante à decisão complexa que Lacan toma aqui, é que o ab-senso tem de ser absolutamente distinguido do sem sentido. A tese de Lacan não é absurdista ou existencial em sentido amplo. Não é uma declaração do sem sentido do real. É uma declaração segundo a qual só é possível abrir um acesso ao real supondo que ele seja como uma ausência no sentido, um ab-senso, ou uma subtração do, ou ao sentido. Tudo gira em torno da distinção entre ab-senso e sem sentido.” (BADIOU, pp. 66-67, ênfases no original). Assim, nas palavras de Cassin: “Com relação à própria linguagem […], o ab-senso fica no próprio lugar da relação entre performance e significante, ou ainda: a relação entre performance e significante define a sofística lacaniana.” (op. cit., p. 56). Partindo dessas considerações, entendo que a performance posta em ato em Limbes/Limbo coloca em circulação antes uma ideia de línguagem que se retrai dos “linguismos” vigentes (justamente o que chamo de ab-linguismo) e coloca em circulação outra maneira que não a aristotélica de decidir sobre o sentido. Nesses termos, uma tal performance, a meu ver, pode ser melhor compreendida a partir não de uma abordagem do bilinguismo do texto (e de seu autor) — obviamente fatos e não “fatos alternativos” —, mas de sua retração dos próprios domínios dos “linguismos”, de sua subtração daquilo que, nesses “linguismos”, pretende-se como “verdade-saber-real”.

2 É. Benveniste, em seu fundamental Vocabulaire des instituitions indo-européennes (Paris: Éditions de

Minuit, 2010), define censor e auctoritas nos seguintes termos: “O censor é um magistrado que se ocupa do recrutamento do senado (lectio senatus); sua tarefa é vigiar os costumes e reprimir os excessos de toda natureza: tanto infrações às regras morais quanto o luxo desordenado – vem daí o sentido moral de

censura. Em resumo, a função do censor é ‘julgar, estimar’” (pp. 144-145). Nesse sentido, a auctoritas é a

“autoridade de que se deve ser investido [por Deus ou pelo imperador, o que dá no mesmo desde o sistema romano até o medieval] para que a palavra proferida tenha força de lei e não, como cremos, o poder de aumentar (augere), mas a força divina, em seu princípio, de fazer existir, dar existência” (p. 143).

3 Em um texto em que justamente presta homenagem a Marguerite Duras, J. Lacan escreve o seguinte:

“Lol V. Sein: asas de papel, V Tesoura, Stein, a pedra — no jogo do amor tu te perdes.” (p. 198). É que, de forma arrebatadora, Marguerite Duras, nesse romance, revela saber sem Lacan aquilo que ele ensina (p. 200). Mas o que é a literatura (e, creio, a tradução) se não sempre justamente isso? Cf. LACAN, J. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. In: Outros escritos. Trad. Vera

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existiria um lugar a partir do qual controlar de forma absoluta os processos de leitura e de tradução — como formas de luto que são, esses processos sempre acontecerão (sempre deverão acontecer) cada vez de forma única, como a expressão de J. Derrida resume.1

Mas dizer que não há rainha simplesmente indica que há maneiras e maneiras de ler um texto bilíngue, de sorte que há formas e formas de ler um texto ab-língue como Limbes/Limbo. E leitores e leitores. Trata-se de um jogo que, segundo regras de eliminação, determina como, quando e se o leitor vai entrar no jogo proposto pelo livro.

Vamos experimentar essa suposição e jogar também nós, você que me lê e eu neste texto, esse jogo da imitação.

Existe a maneira de ler do leitor que conhece apenas uma das línguas do jogo (ou o francês, ou o inglês), sendo ela sua materna ou não. Desconheço a existência de alguma publicação de Limbes/Limbo que contenha apenas uma das “versões” publicadas (quer dizer, apenas uma das línguas), como é o caso dos outros livros e textos de N. Huston2,

de modo que esse primeiro leitor que conhece apenas uma das línguas do jogo e queira, mesmo assim, por motivos x (importa pouco isso aqui) ler o texto de N. Huston, lerá apenas a página que contém a língua que conhece.

E, no entanto, como a língua desconhecida existirá ainda ali, um fantasma assombrando-o, sussurrando em seu ouvido palavras que ele desconhece, esse nosso primeiro leitor, embora não entre no jogo (do livro) como participante de facto, entra, todavia, como defensor. O que não é pouco. E no jogo proposto pelo livro, tem o valor mais ou menos do peão no xadrez, pois, acompanhando unicamente o que é relatado nos

níveis mais elementares e de uma língua apenas, terá seus movimentos restritos a um único eixo (uma linha fabular). O leitor com valor de peão é perigoso porque, suscetível

a informações outras elas já sempre com algum grau de torção, advoga por causas das quais pouco sabe — ou nada mesmo. Por exemplo, a desempenho heroico do autor e a função comunicacional da tradução. Melhor ficar de olho nele, então. Eis a maneira de ler do leitor que conhece apenas uma das línguas do jogo, sendo ela sua materna ou não.

Existe também a maneira de ler do leitor que conhece as duas línguas do jogo (o inglês e o francês). Esse segundo leitor tem a vantagem de escolher, dadas as regras tradicionais e sua abertura pessoal para ousar se lerá primeiro todas as páginas que contêm uma língua para só depois embarcar na leitura de todas as páginas que contêm a outra língua ou se, alternadamente, preferirá se movimentar entre as línguas segundo um método estabelecido (um bloco numa língua e um bloco na outra) e um padrão pré-determinado (sempre do inglês ao francês e vice-versa ou de forma completamente aleatória).

1 DERRIDA, J. Chaque fois unique, la fin du monde. Paris: Éditions Galilée, 2003.

2 Danse Noir (Actes Sud, 2013) inclui, em lugar de nota de rodapé (mas será que é?), a tradução de partes

do texto, mas não é, de forma alguma, o que se poderia chamar de um texto bilíngue. Comento esse caso

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26 E tem mais.

Pois ocorre que, conhecendo as duas línguas, esse leitor assim descrito pode ter uma delas como sua materna. E tendo nascido num país monolíngue de uma das línguas do jogo (inglês ou francês) e aprendido, ao longo da vida e de modo formal a outra língua do texto (que para ele será, então, segunda e estrangeira), esse nosso segundo leitor terá de enfrentar a dúvida schleiermacheriana1 (é inevitável, meu caro) de escolher entre a

garantia e o conforto da casa ou a incerteza e o imprevisto do alheio. Logo, nada de novo de novo: qualquer que seja sua escolha, esse leitor entrará no jogo do texto com o valor que um cavalo tem no jogo de xadrez. Pois se no xadrez o cavalo pode, de fato, ir para

frente e para trás, para a esquerda e para a direita e, em todos esses sentidos, caminhar uma ou duas casas (o que quer dizer pular etapas — etapas talvez importantes, como a biografia do texto e a formação de seu contexto), restringe-se, todavia, ao movimento imediatamente anterior (quer dizer, à primeira escolha entre casa ou não).

Da mesma forma, portanto, funcionará no jogo do texto esse leitor: embora conhecer as duas línguas (sendo uma delas a sua materna) propicie a ele a possibilidade de, desejando, mover-se entre elas (ou seja, querendo, fazer o cotejo — e seria preciso falar melhor sobre o cotejo, mas aqui não), esses movimentos serão determinados pelo engajamento (ou não — a ver) a uma concepção (e qual?) de língua, leitura e tradução que, ao fim e ao cabo, divide o mundo entre o que pertence ao doméstico e o que é, de todo resto, do domínio do estrangeiro (pois uma das línguas, nesse caso, como disse, é materna desse leitor). Eis a maneira de ler do leitor que conhece as duas línguas do jogo e que tem uma delas, qualquer que seja, como sua materna.

Mas ocorre que esse nosso segundo leitor (que conhece as duas línguas do jogo) pode, ainda, ser um sujeito bilíngue no sentido forte do termo, um bilíngue “verdadeiro”2

(quer dizer, ter sido alfabetizado nas duas línguas do texto – supondo que no texto haja apenas duas línguas). Nesse caso, estará mais próximo do chamado “leitor-modelo” ou “ideal” — mas não é nada disso3. Pois isso, depois de tudo, não garante sua vantagem

no jogo sobre um leitor que, conhecendo as duas línguas, não tenha nenhuma como sua materna (nós no Brasil, por exemplo). E isso porque existem outros fatores e um deles é determinado pelo conhecimento ou não dos detalhes da biografia do texto e da formação de seu contexto, fato que pesará no momento de calcular mais ou menos a gravidade

1 SCHELEIERMACHER, F. Über die verschiedenen Methoden des Übersetzens / Sobre os diferentes

métodos de tradução / Sobre os diferentes métodos de traduzir / Dos diferentes métodos de traduzir. In.

Scientia Traductionis. n. 9, 2011, pp. 3-70.

2 Cf. HUSTON, N. Le faux bilinguisme. In.: Nord perdu. Suive de Douze France. Arles: Actes Sud, 1998,

p. 53 et seq.

3 Sobre o leitor-modelo, cf. ECO, U. Seis passeios pelo bosque da ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994. Sobre o leitor ideal, cf. COMPAGNON, A. Le lecteur. In.: Le Démon de la

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do lugar e do estatuto das línguas no texto e não na vida particular do leitor. E se é sempre possível que esse leitor, bilíngue no sentido forte do termo, acredite no mito do falante nativo, esse fato, sendo em si algo que só podemos lamentar, não cabe, portanto, apreciar- afinal, isso é, em resumo, apenas uma curiosidade biográfica que, do ponto de vista do texto (quer dizer, do que interessa), é completamente indiferente.1 Outro fator é

a forma como esse leitor bilíngue “verdadeiro” enfrentará o problema metodológico de, podendo inegavelmente ler as duas páginas, como proceder. Eis a maneira de ler do leitor que é bilíngue “verdadeiro” das duas línguas do jogo

Mas não é só.

Pois eis que surge a complicação (ah, Aristóteles, não conseguimos mesmo te abandonar…) e, dado que os fatores acima mencionados guardam inúmeros desdobramentos possíveis, cito dois que, a princípio, dependem de uma série de escolhas que, embora realizadas pelo leitor, não dependem unicamente dele. Pois é preciso dizer primeiro que esse segundo leitor (e isso conta para todas as suas variações — quer dizer, bilíngue verdadeiro ou não) pode ou não ser cultivado nas letras, o que quer dizer que pode ou não conhecer a estrutura e o funcionamento do objeto livro.

Em caso negativo (quer dizer, no caso de não ser cultivado nas letras ou

1 O “mito do falante nativo” é, poderíamos dizer, uma instituição nos estudos linguísticos, como esclarece

Rajagopalan: “Sem sombra de dúvida, a ideia de que um falante nativo conhece sua língua, e conhece-a perfeitamente bem está entre as poucas noções que sobreviveram ilesas na linguística ao longo das mudanças avassaladoras de paradigma que, eventualmente, abalaram o campo. De fato, o conhecimento que o falante nativo tem de sua língua é tomado como inquestionavelmente perfeito; de tal forma que a consideração mesma da hipótese de diferentes línguas poderem ser classificadas diferentemente em uma escala de complexidade estrutural é tida como equivalente a considerar a perigosa possibilidade – política e ideologicamente falando – de que os seres humanos possam ter dotações diferentes em termos de sua capacidade mental. Como poderiam diferentes línguas ser mais ou menos complexas em suas configurações estruturais, a menos que os seres falantes sejam também dotados diferentemente da capacidade de aprendê-las? Ou seja, quanto mais complexa for a língua, mais dotado deve ser o falante a fim de dominá-la. Já que a conclusão é ideologicamente inadmissível, a premissa também não deveria ser cogitada.” (RAJAGOPALAN, K. Linguagem: o santo graal da linguística. Trad. Daniel do Nascimento e Silva. In: SIGNORINI, I. (Org.). Situar a lingua(gem). São Paulo: Parábola, 2008). O problema, a meu ver, é que não são pouco frequentes os casos em que setores dos estudos da tradução partem da hipótese de que “o conhecimento que o falante nativo tem de sua língua é […] inquestionavelmente perfeito” para alegar que a tradução realizada por falantes bilíngues (que preferem rebatizar com o nome de “escrita bilíngue”) seria, ela também, vamos dizer, “perfeita”. Irretocável e intocável. Ocorrer que, por trás desse raciocínio, há ideias profundamente problemáticas (inclusive politicamente falando) que, a meu ver, precisam ser enfrentadas de modo mais consequente se quisermos, de fato, consolidar os estudos da tradução. Entre essas ideias estão duas que, parece-me, demandam respostas mais urgentes, dado o contexto contemporâneo. A primeira delas é a ideia de que uma língua “recobre” a outra (e, portanto, a traduz completamente). Essa ideia levanta à questão, política e econômica, por exemplo, da tradução automática. A segunda ideia por trás do mito do falante nativo é a de que a tradução é algo “inata” (não é a melhor palavra) num sujeito bilíngue, pois seu laço fundamental é o conhecimento natural (novamente, “perfeito” e/ou “intocável”) das línguas. Essa segunda ideia, por sua vez, levanta a questão das políticas de uma pedagogia da tradução, já que deixa implícito o fato de que não é a tradução que se ensina (ou que, em todo caso, pode-se ensinar), mas as línguas — o que, de meu lugar de não bilíngue nativo e tradutor profissional já há alguns anos, só posso entender como uma falácia.

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28 desconhecer a estrutura e o funcionamento do objeto livro), a escolha por uma ou outra língua dependerá completamente de fatores pessoais, o que escapa de quaisquer tentativas de compreensão. Logo, esse leitor assim descrito (conhecedor das duas línguas, bilíngue ou não) e nessas circunstâncias (desconhecedor da estrutura e do funcionamento do objeto livro), também jogará o jogo do livro com valor de cavalo. O leitor conhecedor

das duas línguas (bilíngue verdadeiro ou não), mas que joga com valor de cavalo talvez seja a maior vítima, pois é vítima de sua própria liberdade. Eis a maneira de ler do leitor que conhece as duas línguas do jogo (sendo bilíngue “verdadeiro” não) mas que, em todo caso, desconhece a estrutura e o funcionamento do objeto livro.

Em caso afirmativo (quer dizer, no caso de ser cultivado nas letras e conhecer a estrutura e o funcionamento do objeto livro), esse nosso segundo leitor (que conhece as duas línguas, sendo bilíngue verdadeiro ou não) saberá (deverá, pelo menos, saber) que uma edição bilíngue convencionalmente traz, nas páginas à esquerda (que são as páginas ímpares), o chamado original e que, portanto, nas páginas à direita (que são as páginas pares), fica a chamada tradução. Esse conhecimento ou informação possibilita a esse leitor dois tipos de lance. Pois examinando sua cópia de Limbes/Limbo, esse nosso segundo leitor (conhecedor das duas línguas e da estrutura e funcionamento do objeto livro) notará que, nas páginas ímpares, está o texto em inglês e, nos pares, o texto em francês.

De acordo, portanto, com as regras tradicionais do mercado editorial (e que são mais ou menos acidentais1) e com a estrutura e o funcionamento do objeto livro, em Limbes/Limbo o inglês é o original e o francês é a tradução. Essa constatação poderá ainda ser confirmada por esse leitor por outros signos editoriais (eles também pura convencionalidade) espalhados aqui e ali no texto: estou falando do uso do recurso do itálico e do “redondo” no corpo do texto (o itálico, entre outras coisas, põe em destaque o que, no texto, é a ele estranho). Eis a maneira de ler do leitor que conhece as duas línguas do jogo (sendo bilíngue “verdadeiro” ou tendo uma delas como materna) e que, em todo caso, conhece a estrutura e o funcionamento do objeto livro.

Até aqui, ainda nada de novo.

E eis que, diante dessas circunstâncias assim descritas, nosso segundo leitor (conhecedor das duas línguas do jogo) se vê diante do momento de escolher entre o original e a tradução, qual primeiro. Esse momento, cuja gravidade poderá ter o brado

1 E, como V. Veras lembrou, ocidentais. Mas é sempre bom lembrar (já que sempre esquecemos) que

ocidental não quer dizer (não deveria querer dizer, pelo menos) natural. No Japão, por exemplo, o uso de edições bilíngues segue, além de outros interesses (em geral, didáticos), também outras estruturas. Em vez das páginas espelhadas características do mercado editorial ocidentais, as edições bilíngues japonesas tendem a apresentar, numa metade do livro, o texto em língua ocidental (inglês, francês, alemão…) e, na outra metade, o texto em japonês. Dessa forma, ambos os textos, tradução e original, ocupam o mesmo lugar de “original” (dependendo do leitor, que lerá em uma direção ou outra o texto). Esse uso estranho ao ocidente interrompe a tomada de decisão (qual é a tradução e qual é o original?) até que se saiba, por fontes terceiras (paratextos), qual texto é qual e se possa decidir seu sentido.

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de um hino e o peso de uma bandeira (pois ocorre que pelo menos uma das línguas é sua materna), determinará o valor desse nosso leitor assim descrito e nessas circunstâncias no jogo do livro.

Se, por fatores variados que não seria possível enumerar aqui, escolher ler primeiro o que, de toda forma, é apresentado como tradução na versão publicada (o francês), mas que (preste atenção), de toda sorte, ocorre de ser sua língua materna, nosso leitor poderá subscrever à tradição, embarcar na corrente e reforçar, ainda que inadvertidamente, o status quo defendido no campo de pensamento sobre a tradução. E isso é assim porque, nesse caso, terá sido a autoridade de nativo (de falante nativo) que, então, para esse leitor, terá pesado. Seu valor ao entrar no jogo do livro, sendo esse o caso, será o de bispo. E isso

porque, embora sua condição assim descrita (conhecedor das duas línguas e tendo pelo menos uma, mas talvez as duas, como sua materna) e as circunstâncias dadas (conhecedor da estrutura e do funcionamento do objeto livro) ofereçam a oportunidade de movimentos de fato livres entre as línguas (quer dizer, “transversais” de uma língua à outra), a escolha (baseada na suposta autoridade de nativo) restringe esses movimentos a uma determinação externa ou, de qualquer maneira, formal (no jogo do texto, uma língua de cada vez e, na imagem do xadrez que estou tentando construir, uma e mesma cor de cada vez — afinal, o que, no xadrez, determina o lance do bispo é a cor de sua casa, e só isso).

O mesmo vale para se, por outros fatores variados igualmente impossíveis de enumerar aqui, nosso suposto leitor escolher ler primeiro o que, em todo caso, é apresentado como original na versão publicada (o inglês) e que, de toda forma, ocorre de ser sua língua estrangeira. E isso é assim porque, nesse caso, é a autoridade do original que, então, terá pesado. O mesmo valor de bispo nesse caso então.

E existe o último tipo de leitor enfim: o que conhece as duas línguas e que não tem nenhuma delas como materna. Nós, quero dizer, provavelmente, nunca se sabe. E se esse leitor assim descrito for ainda cultivado nas letras e conhecedor da estrutura e do funcionamento do objeto livro escolher, diante das possibilidades dadas, ler primeiro o que, em todo caso, é apresentado como original na versão publicada (o inglês), entrará no jogo com o valor que a torre detém no xadrez. O mesmo vale para se, por outros

fatores variados etc., escolher ler primeiro o que, em todo caso, é apresentado como tradução na versão publicada (o inglês). Pois como a torre no jogo de xadrez, também esse leitor no jogo do texto poderá, desejando, movimentar-se entre as línguas paralela e horizontalmente (a decidir), operar o cotejo e empreender leituras simultâneas (uma língua depois a outra e vice-versa) de acordo com um método que será informado, ao fim e ao cabo, se não por um hino e por uma bandeira, então pela estrutura formal do próprio texto. Eis a maneira de ler de um leitor que, conhecedor das duas línguas do jogo sem que nenhuma delas, no entanto, seja sua materna, reconhece também o que, na estrutura e no funcionamento do objeto livro, fala.

(30)

30 E o que o texto tal como no formato de livro fala (o que ele grita) é uma ficção do corpo traduzido — uma fábula da tradução.

*

{sobre a linha fabular}

E, no entanto, o que se passa no corpo a corpo com o texto é inteiramente estranho à ideia corrente de tradução.

Pois os dezoito fragmentos que compõem a versão publicada de Limbes/Limbo flutuam no espaço material da página (e ficcional da narração) como blocos de tempo ou blocos de fala. Regida por uma gramática de lacunas (espaços) que estabelece um ritmo em staccato (quer dizer, um ritmo marcado pela duração não da nota em si [do bloco em si], mas pela duração daquilo que suspende a nota, seus silêncios, suas pausas), a articulação desses blocos é executada (1) pela repetição de elementos fônicos inscritos no nível frasal (cadência, assonâncias, aliterações, consonâncias etc.) e (2) por “motores” semânticos reativados, cada vez de forma única, na “linha fabular” (palavras, frases, sequências, motivos, conceitos etc.). Essa articulação dupla compõe o que chamarei de “série textual”. Voltarei a isso adiante, espere.

Estou chamando de linha fabular o eixo mais ou menos identificável que atravessa uma língua de cada vez — um eixo elementar que sustenta, digamos, a narração mínima em uma língua (vamos dizer inglês) que é (ou pode ser) atualizada, do zero, como eco ou como duplo, em outra língua (vamos dizer francês). Em seu grau zero (isso é uma alusão), essa linha fabular (série textual) pode ser reduzida à fórmula

uma voz falando (em fluxo contínuo) sobre o esgotamento da existência implicado na precariedade da linguagem

e que, consideradas as condições em que se inscreve o livro (uma edição alegadamente bilíngue), ecoa, figurativamente (isto é, metaforicamente), em:

Nancy Huston/um narrador falando a Samuel Beckett/um leitor sobre o esgotamento das línguas implicado na precariedade da

tradução.

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puramente biográficos com dados simplesmente técnicos do produto editorial. É nesse sentido, portanto, que surge o que nomeio “série editorial” e que se escande em dois momentos: o texto escrito em meados de 1997 e publicado em 2006 na revista de tradução Palimpsestes3 e os textos publicados em 1998 pela Actes Sud no formato de

livro4. Essa série editorial tem a função de tabuleiro no qual o jogo da imitação que

proponho se desenvolverá. De natureza estritamente espacial, esse tabuleiro se limita a aceitar ou interditar (mas, em todo caso, receber) os lances das peças que compõem a série textual e seu eco figurativo – o “tema” do texto, para dizer de um modo ruim, e, portanto, bastante acessível.

Mas não é só isso.

Pois quando lidos em conjunto, quer dizer simultaneamente ou respectivamente, os textos que compõem Limbes/Limbo informam um segundo eixo, um espectro da linha fabular que, tortuoso e fantasmático, atravessa ambas as línguas (o inglês e o francês) de uma só vez como se o livro fosse, enfim, um único e só (e não é?). E se não surpreende que essa outra linha fabular fantasmática guarde mais ou menos a mesma sequência narrativa daquela que se lê ou só em inglês ou só em francês (as fórmulas referidas acima), chama a atenção o fato de ela suportar um efeito de estrutura cujo resultado é, voilà, outra linha fabular: agora, porém, a ficcionalização ou, em todo caso, a paródia, da primeira. É essa outra linha fabular (quer dizer, a linha fabular fantasmática ou espectral) que implica, de forma direta, creio, o campo do pensamento sobre a tradução — chegaremos aos porquês no momento oportuno, melhor compreender primeiro os “como”.

E como?

Assim: tomando apenas uma língua de cada vez, identificamos uma linha fabular determinada (a aludida mais acima), ao passo que, tomando as duas línguas simultaneamente, é possível identificar outra linha fabular, uma que estou chamando de linha fabular fantasmática. Mas se essa segunda repete a primeira (da qual é eco e traduz), também inclui elementos que a primeira não contém — elementos que, em certo sentido (num sentido formal, linguístico mesmo — eles existem, derretem em nossa boca antes de serem engolidos5) precipitam-se de uma língua para a outra no momento da tradução.

E é por causa desses elementos que se precipitam de uma língua para outra, de uma página à outra do texto tal como no formato de livro, que essa linha fabular fantasmática,

1 Cf. “Gabinete de curiosidades: Cronologia” nesta tese.

2 Cf. “Gabinete de curiosidades: Inventário: Série Gráfica” nesta tese.

3 Cf. Palimpsestes, n. 18, 2006. Disponível em URL: http://palimpsestes.revues.org/547. Acesso 27 mar. 2017.

4 Huston, N. Limbes/Limbo: un hommage à Samuel Beckett. Arles: Actes Sud, 1998. O texto tal como no

formato de livro possui duas edições: a referida e uma de 2000 pela editora canadense Leméac [Huston, Nancy. Limbes/Limbo: un hommage à Samuel Beckett. Montréal: Leméac, 2000]. Comento os aspectos formais das duas edições em “Gabinete de curiosidades: Inventário: Série Gráfica” desta tese.

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32 sendo causa de ruído no sistema, emerge, de fato, como uma paródia da primeira.

Assim, a linha fabular

uma voz falando (em fluxo contínuo) sobre o esgotamento da existência implicado na precariedade da linguagem e que ecoa metaforicamente em

Nancy Huston/um narrador falando a Samuel Beckett/um leitor sobre o esgotamento das línguas implicado na precariedade da

tradução. na linha fabular fantasmática transforma-se em

realização do esgotamento da existência e da precariedade da linguagem encenados pela tradução.

Interessa, portanto, observar os momentos em que essa linha fabular fantasmática “cruza” o limite material (da página) e abala a unidade ficcional (da narração), perturbando o que na outra língua e tradicionalmente de outro modo seria outro eixo, outra linha fabular — o eco da linha fabular “original”, sim, mas “outro” original de todo modo.

É preciso lembrar que, se a edição bilíngue por um lado imita a estrutura de espelho (inclusive num nível figurativo) que serve de modelo para o pensamento sobre a tradução desde sempre e, nesse sentido, presta-lhe uma homenagem, por outro, ao final da leitura de toda a série editorial (quer dizer, dos textos publicados e do manuscrito), essa manutenção acaba se revelando uma potência irônica: afinal, o que a série editorial revela é que o texto tal como no formato de livro é nada menos do que uma paródia dessa estrutura de espelho, uma vez que comenta, transforma e critica, em seu interior (quer dizer, no texto e não no paratexto), os fundamentos que sustentam o pensamento sobre a tradução, a saber: a ideia de separação entre original e tradução (principalmente por conta de um conceito mal resolvido de tempo) e a ideia de que, de uma língua a outra, o que passa é tudo que não seja do corpo, mas sim do espírito e da letra. Em outras palavras, a edição bilíngue desautoriza as bandeiras da correspondência e da comunicação como os avatares do pensamento que, tradicionalmente, funda (afunda?) o campo do pensamento sobre a tradução.

Parece um pouco complicado agora, dizendo isso assim de forma tão imediata e concentrada, mas no momento de comentar ponto a ponto a linha fabular e suas precipitações na linha fabular fantasmática as coisas devem se desembrulhar. Tomara.

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perturbação essas precipitações que a tradução arranja) não é possível ter uma imagem de toda a exuberância da obra, uma vez que não fica claro aquele que, creio, seja o lance crucial de Limbes/Limbo (e que será o caso, aliás, de mostrar), a saber: o fato de esse texto, escandido numa série editorial que acontece como performance, concentrar toda a potência de um programa estético que, embora à revelia, orienta a produção teórica e ficcional da obra de N. Huston.

Vamos continuar e ver de que formas. *

{sobre as formas do texto}

Mais ou menos inscrito no indecidível espaço entre ensaio, artigo crítico, autobiografia ficcional e ficção curta, o discurso apresentado em Limbes/Limbo como homenagem a Samuel Beckett é, acima de tudo, um “elogio da tradução”. Essa expressão feliz que dá título ao recente livro de Barbara Cassin1 parece dizer bastante, pois o texto

de N. Huston realiza (como performance) a homenagem a Beckett. Ou seja: desempenha, como num teatro cru e mínimo (são, afinal, fragmentos flutuantes nas páginas), um roteiro (um script) que, referindo-se textualmente à existência, à linguagem e à tradução (o que se chama “tema” ou “temático”), expõe os cacos da existência, o impasse da linguagem e a precariedade da tradução (o que se chama “quadro interpretativo”). Logo, Beckett de um limbo ao outro.

Se é assim, o texto de Limbes/Limbo, como fragmentos flutuantes nas páginas líquidas do livro poderiam ser lidos como uma outra representação (uma “montagem”) da peça para televisão Quad, escrita por Beckett em 1981 e descrita por ele como “uma peça para quatro atores, luz e percussão”.2

Os quatro atores no caso de Limbes/Limbo: N. Huston e S. Beckett divididos, sim, mas mais do que isso suas línguas duplicadas, as experiências entre as línguas e com as línguas — que, como em Quad, entrelaçam-se numa dança sistemática (“um balé para quatro”3), entram e saem de cena, cruzam o espaço do quadrante que é o palco,

mas em momento algum se tocam, permanecendo cada um deles sempre único em sua jornada única infinitamente. A luz: nós, leitores que, participando da gênese dessa cena,

1 CASSIN, B. L’éloge de la tradiction: Compliquer l’universel. Paris: Fayard, 2016.

2 BECKETT, S. Collected Shorter Plays of Samuel Beckett. London: Faber and Faber, 1984, p. 291. É possível assistir a um registro da versão completa da peça (Quad I + Quad II) no YouTube em <https:// www.youtube.com/watch?v=4ZDRfnICq9M> (Acesso em 22 mar. 2017). A direção dessa versão é do próprio Beckett e foi transmitida pela primeira vez na Alemanha pela Süddeutscher Rundfunk no dia 8 de outubro de 1981.

3 ACKERLEY, C. J. & GONTARSKI, S. E., (Eds.) The Faber Companion to Samuel Beckett. London:

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34 só podemos escolher o que iluminar. Afinal, tal como descrevi antes e nas circunstâncias que ilustrei, ao navegar de uma língua à outra nas páginas líquidas do livro, tornamo-nos, nós, o motor do jogo.

E a percussão, em Quad como em Limbes/Limbo, marca o tempo dessa navegação. Pois se em Quad cada ator é assinalado por uma cor distinta (branco, azul, amarelo, vermelho) e acompanhado por um instrumento de percussão diferente, em Limbes/Limbo cada língua tem, também, sua marca, sua marcação de palco. E não há só o inglês e o francês, mas também cada uma continuando a outra, atravessando a outra e vice-versa. E tudo marcado pela musicalidade das palavras, pelo puro prazer sonoro de brincar com o que se escuta do que se fala e de deslizar uma língua na outra — fator crucial tanto para N. Huston quanto para S. Beckett.1

Seja como for, importa dizer sem demora que o texto realiza aquilo que, de todo modo, comenta: por um lado, homenageia Beckett imitando Beckett, parodiando-o (principalmente no que diz respeito à temática do universo do irlandês, que é o nascimento para a morte materializado no fracasso da linguagem 2) e, por outro lado, homenageia a

tradução fazendo uma tradução (pois vamos chamar, sim, de tradução o que ela faz). Só que não tradução, não a Tradução com letra maiúscula, essa arte. A tradução à qual N. Huston rende homenagem e, ao mesmo tempo, desampara e despreza em Limbes/ Limbo é a tradução que se marca no corpo (tanto no biológico quanto no literário, quer dizer, no linguístico). É a tradução que, como a de Beckett bien sûr, é o motor não de uma poética, mas de um programa verdadeiramente estético que ordena a obra desses autores, desses artistas. E que, além disso, faz circular uma crítica ao pensamento sobre a tradução realizando um “estudo” (íntimo, como todo bom estudo deve ser) do pensamento sobre a tradução. Metonimicamente, portanto, Beckett tem a função, em Limbes/Limbo, de nomear a tradução e a tradução (a tradução realizada, a autotradução), por sua vez, a função de nomear sua própria precariedade: eis as passagens (quer dizer, as metáforas ou caminhos) que se dão em Limbes/Limbo a decifrar.

Homenagear Beckett é, nesse sentido, enfrentar e afrontar Beckett, de igual forma que fazer um elogio da tradução é afrontar e incomodar a tradução. Desconstruir (cito a palavra aqui como termo e essa será a única vez que a citarei assim). Uma bela – talvez a mais bela — homenagem que se possa fazer. Em todo caso, no meu entendimento, a forma mais relevante de leitura.

E que, aliás, dá resultados.

1 Comento o lugar fundamental do som e da música na vida e na produção literária de N. Huston em “2N.

do T. {No parque das traduções impróprias}” desta tese.

2 Cf. ANDRADE, F. S. op. cit., 2001. A própria N. Huston, entretanto, faz essa constatação em pelo menos

dois momentos: no ensaio “La râle vagi: Samuel Beckett” (In: Professeurs de désespoir. Arles: Actes Sud, 2004, p. 71-91) e em Bad girl: Classes de littérature (Arles: Actes Sud, 2014, p. 101 e p. 104).

(35)

Pois basta ver a intranquilidade com a qual o pensamento sobre a tradução lida com a experiência da autotradução: deslocando-a para um espaço de exceção (um limbo) reservado para padrões inadequados — um grande depósito de exemplares “com defeito”, um curioso parque de traduções impróprias que pode ser visitado, sim, mas…

… desde que com…

o objetivo pedagógico de aprender e ensinar o que, em todo caso, não é, propriamente, uma tradução, e sim…

“um outro original”.

Das visitas guiadas a esse parque advém, por exemplo, a mania de submeter a autotradução ao bilinguismo, de relacionar a pseudotradução a um projeto literário extravagante e de atrelar a tradução inventiva (a chamada recriação) à hipótese romântica do gênio da língua.

Vamos visitar esse parque, mas ainda não agora.

Por enquanto, basta dizer que, como homenagem à tradução, o que Limbes/Limbo faz acima de tudo é um elogio da inventividade da tradução.

E isso tem determinados efeitos no mundo: por exemplo, fazer circular, no interior do campo dos estudos da tradução, uma critica aos fundamentos que o sustentam.

E como?

Colocando em operação o que gostaria de chamar aqui de ficção da tradução. Apostando na ficção.

Pois o desenho cênico desse texto, desse script é, ele próprio, uma encenação daquilo que, em sua obra, S. Beckett, sendo ele o espectro que habita esses limbos (quer dizer, esses textos) fundara. A novidade, se é preciso apesar de tudo haver alguma enfim, está no fato de esse desenho cênico ser oferecido ao leitor embrulhado em um papel de repetição que ecoa em vários níveis ou momentos da obra — desde os mais formais (procedimentos textuais fonéticos e linguísticos) até os mais estruturais (elementos narrativos e editoriais).

Nomeio esses níveis ou momentos de “séries” e justifico da seguinte forma essa escolha:

ancora-se no fato de, no interior de cada nível ou momento da obra, haver um encadeamento mais ou menos sequencial e mais ou menos gradual de elementos que, aproximados temática ou formalmente, constituirão, tomados num só-depois, uma espécie de cadeia significante que implica, de forma direta, aquilo que chamo de “programa estético” de N. Huston; trata-se de uma maneira, entre outras, de homenagear, aqui, tanto S. Beckett

quanto N. Huston.

(36)

36 especialistas na obra de S. Beckett1, a obra do irlandês é povoada de “séries” cuja função, entre outras coisas, é precisamente agenciar o esgotamento da linguagem e conduzir uma crítica aos sistemas filosóficos totalizantes (Descartes em especial) e políticos totalitários (o nazi-fascismo nomeadamente). É o caso da talvez mais famosa série da trilogia do pós-guerra, a cena das pedras de chupar em Molloy2.

E há outras:

em Watt3, o trajeto realizado no quarto entre a cama, a janela, a porta e a lareira;

em Malone morre4, a série das histórias contadas por Malone, a série da sopa, a série da viagem à ilha;

em O inominável5, os personagens de livros e peças anteriores reaparecem todos como “séries”;

em O despovoador6, o espaço é serializado a partir do ponto de vista de quase-personagens que, num espaço-quase-tubo, realizam ações serializadas: esperar a vez na fila de uma escada, subir a

1 Imensa como ela é, seria certamente um ato desmedido pretender fazer aqui a referência a toda a crítica

especializada na obra de Beckett. Restrinjo-me aos trabalhos de ANDRADE (2001) e SOUZA (2006), certamente os especialistas mais conhecidos no meio acadêmico brasileiro, além de tradutores de várias obras do irlandês (portanto, nomes que colocam em prática suas elucubrações teóricas — algo que é preciso louvar num meio povoado por especialistas de manual). Em seus trabalhos fundamentais, ambos os acadêmicos oferecem uma compilação da produção resultante da indústria acadêmica que gira em torno do nome e da obra de S. Beckett.

2 BECKETT, S. Molloy. Trad. e Prefácio Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2007.

3 BECKETT, S. Watt. New York: Grove Press, 2009.

4 BECKETT, S. Malone morre. Trad. e Prefácio Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2014. Além

dessa de Ana Helena Souza, há outras duas traduções de Malone morre no Brasil: uma de Roberto Ballalai, publicada em 1973 pela editora Ópera Mundi e uma de Paulo Leminski, publicada em 1986 pela Brasiliense e reeditada em 2004 pela Códex. Como lembra Ana Helena Souza no prefácio de sua tradução, “Roberto Ballalai tomou como texto fonte Malone meurt, a de Paulo Leminski usou o texto francês e, concomitantemente, o inglês” (p. 19). A tradutora explica, também, que Malone morre foi “o primeiro texto a ser completamente traduzido do francês para o inglês por Beckett” (Molloy fora traduzido em colaboração com o escritor sul-africano Patrick Bowles) e que “o escritor fez vários cortes ao traduzir”. Ana Helena Souza parte do texto em francês e, embora tenha o cuidado para compará-lo com o inglês, essa comparação “limitou-se a escolhas específicas nos casos em que o mesmo trecho está presente nas duas línguas.” (p. 20). P. Leminski, por sua vez, explica que, durante sua tradução (“primeiro caso de uma

bitradução simultânea”), mantinha “à esquerda, o texto francês, à direita, o texto em inglês”, o que leva

a crer que, no fim das contas, para ele também, Malone morre primeiro no original apesar de tudo. O que gostaria de sublinhar, no caso da tradução de P. Leminski, é a estratégia editorial de colocar, na folha de rosto, a informação “tradução do francês e do inglês”, como que para dizer que aquela, mais do que a outra (na época, havia apenas a de Roberto Ballalai), é uma tradução autêntica. Veremos adiante que esse tipo de estratégia não tem nada de ocasional. Cf. LEMINSKI, P. Beckett, o apocalipse e depois. In: BECKETT, S. Malone morre. Tradução do francês e do inglês, notas e posfácio de Paulo Leminski. São Paulo: Códex, 2004, p. 149.

5 BECKETT, S. O inominável. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2009.

6 BECKETT, S. O despovoador/Mal visto Mal dito. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Martins

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