• Nenhum resultado encontrado

RADIOFONIA E AS “RAÍZES CAIPIRAS” DA MÚSICA POPULAR URBANA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "RADIOFONIA E AS “RAÍZES CAIPIRAS” DA MÚSICA POPULAR URBANA"

Copied!
29
0
0

Texto

(1)

VIEIRA, Noemia R. As relações entre o conhecimento científico e a realidade imediata do aluno no ensino de Geografia. Marília: UNESP, 2000. Dissertação.

RADIOFONIA E AS “RAÍZES CAIPIRAS” DA MÚSICA POPULAR URBANA Profª. Drª. Maria Inez Machado Borges Pinto.

Livre-Docente do Depto. de História da FFLCH-USP.

O quadro de ampliação constante das formas de entretenimento popular e urbano vinculados à música popular consolidou-se no Brasil nos anos 1930-1940 com a expansão da indústria radiofônica e fonográfica. As empresas radiofônicas tornaram-se os principais eixos da propagação da música popular, alterando de forma significativa a produção artística musical. Assim, na cidade de São Paulo, marcada por diversas transições e fusões das tradições musicais das festas populares (religiosas e profanas), calcadas nas matrizes rurais, bem como envolvendo elementos culturais africanos e indígenas, assim como de imigrantes de várias nacionalidades, sobretudo, italianos, as canções populares começaram a ser produzidas e divulgadas pelos crescentes meios de difusão cultural, que apontavam para um cosmopolitismo bastante tenso e difuso.

Nas décadas de 1930-1940, as emissões radiofônicas paulistas criaram novas formas de produção e recepção cultural, organizando um mercado próprio de bens culturais. Neste sentido, cabe ressaltar que as influências da radiofonia se multiplicaram em inúmeras formas, originando situações ambíguas, contraditórias e conflituosas no contexto cultural paulistano. As tensões desse quadro cultural, nascidos nos anos 1930, com o advento dos meios de comunicação, marcariam de forma permanente o processo de produção, disseminação e consumo da música popular nas décadas seguintes. Os novos meios técnicos de difusão cultural, os discos e radiofonia foram de importância fundamental para música popular na ampliação de seu universo cultural, entre a produção e o consumo. i.

Se, de um lado, o rádio imprimiu um ritmo anárquico, quase industrial, nas produções musicais, com a finalidade de atender às demandas dos emergentes programas radiofônicos; de outro, possibilitou o escoamento de uma rica produção musical existente. Em São Paulo, o rádio nasceu atento a um tipo de cultura que tinha sua origem na oralidade (a canção popular, a narrativa, o humor, a diversidade de sentidos) e que foi transportada para a radiofonia. Mesmo nos primórdios de sua organização como um instrumento de comunicação de massas, em meados da década de 1930, o rádio conseguiu determinar modas e criar gostos, impondo gêneros e certa estandartização na música popular, “regredindo a audição das massas”, na expressão Adorno ii, pois desde o declínio do “vaudeville” todas as carreiras musicais foram feitas através ou com a ajuda das

(2)

transmissões eletrônicas, que podiam alcançar um público mais amplo, um programa no ar, uma menção por parte de um “speaker”, que se tornaram maneiras mais populares de divulgar músico e músicas.

Contudo, relativizando essa “padronização” e redução a certos modelos culturais, o rádio, no Brasil, possibilitou que gêneros e estilos regionais urbanos originários nas camadas mais pobres se difundissem para um quadro regional mais amplo. Tal como ocorreu com o samba, canções sertanejas e os choros, alargando as possibilidades de trabalho dos artistas e o universo de escuta dos ouvintes, ampliando as possibilidades de produção e consumo, disseminando junto ao público ouvinte um certo tipo de cultura que tinha suas raízes na oralidade e particularismos das culturas populares regionais.

Assim, em meio à circularidade cultural, possibilitada pela radiofonia e discografia, emergiu um novo quadro cultural bastante conflitante, pois se a imposição de modelos de escuta ganhou força cultural, com rápido desenvolvimento dos meios de comunicação eletrônicos, também é necessário ter em conta que, inúmeras vezes, os artistas enfrentavam modelos e gostos impostos pelas culturas de raiz e tradicionais, cujos elementos eram considerados intransponíveis pelas comunidades de origem. E de modo inverso, a troca de experiências geradas pela difusão cultural do rádio e dos discos, gerando um profuso contato de estilos e gêneros musicais, possibilitou a transposição dos limites das formas culturais fortemente marcadas por características comunitárias e locais.

Nessa perspectiva, interessa-nos mencionar como “a música negra” – clandestina e mal vista no cenário urbano das primeiras décadas do século XX – estiliza-se paulatinamente dentro dos padrões estéticos do Ocidente, urbaniza-se, invade os espaços elegantes e a radiofonia para espraiar-se pelo Brasil, com o rótulo identificador e genérico de “música popular brasileira”. A ascensão desta música envolve processos de coexistência num universo cultural repleto de outras expressões musicais que definem a variedade e a multiplicidade de alternativas artísticas difundidas pelas emissoras de rádio.

De um lado, estão produções musicais identificadas com fontes culturais estrangeiras, como a valsa, a polca, a mazurca, a quadrilha; ou então, a modinha, gênero sentimental inspirado nas árias operísticas, com profundas influências do cantar italiano e que tinham grande receptividade na poética popular, sobretudo, nas “modinhas paulistas” iii Neste aspecto, cabe destacar a grande presença na radiofonia paulista de composições musicais ligadas aos valores e idéias do Brasil rural. Eram canções dolentes e versos bucólicos, cujo tema central, sem desprezar o amor-romântico, versavam sobre os encantos da natureza pátria e a exaltação idílica da vida campestre em oposição ao viver citadino.

(3)

Assim, por exemplo, “Chuá-Chuá” (1925), de Sá Pereira e Ary Pavão, ilustra o caso de uma morena que abandona a cidade para gozar o seu amor num recanto bucólico do campo, com o murmúrio das águas rolando, murmúrio expresso, aliás, pelo título onomatopéico da canção. Por outro lado, havia ritmos nordestinos (desafio, coco, embolada, toada, etc) que abordavam apologeticamente temas do sertão, sempre em oposição à rotina urbana. Como se observa é a música captando o diálogo entre o mundo rural em desagregação e o mundo urbano em incipiente formação.

Em São Paulo, como também no Rio de Janeiro, desde os primórdios do século XX até os anos 1930, assistiu-se na música e nos elementos culturais diretamente vinculados a ela a criação de focos de resistência de valores ruralistas e de mensagens sonoro-poéticas de nosso sertão. Na imprensa, abundavam noticiais sobre este temática. Durante todo esse período, falar como sertanejo, cantar como sertanejo, vestir-se como sertanejo e usar pseudônimos sertanejos, era mais do que “moda”, pois se tornara uma demanda aos intérpretes e compositores, na medida em que este retorno ao sertão era representado como uma volta às genuínas raízes da brasilidade, descaracterizada pelo universo urbano iv.

De outro lado, como elemento ascendente, começou a ser difundido nas rádios “o samba”, “forma de dança ainda indefinida, de uma extraordinária riqueza de elementos musicais, melódicos e rítmicos, e de movimentos coreográficos...” v originários da cultura dos negros africanos e das danças européias. Ao lado do samba aparecem outros gêneros musicais como o maxixe, a batucada, vi a marcha vii e o choro viii que, embora guardando características próprias que as diferenciam umas das outras, se configuram na visão do consenso popular como expressões artísticas identificadas à tradição negra da cultura brasileira. Em 1930, Paraguassú (Roque Ricciardi), concentrando-se na produção de temáticas brasileiras, gravou canções, modinhas, toadas, sambas, emboladas, como o cateretê “Racha Pé”, de Fernando Magalhães, enaltecendo as raízes bucólicas do campo do ponto de vista do cidadão que se urbanizava:

“Gosto do samba/ Também do cateretê/ É a dança brasileira/ de fazê amanhece/ Eu da cidade/ Você vivê lá no sertão/ Lá não tem tanta vaidade/ Tudo é justo, tudo é bão/ Vou no samba do sertão/ (...)ix

Além deste atribuído rótulo étnico comum, essas formas musicais largamente divulgadas pela radiofonia apresentam outros elos de afinidade. Sua popularização, nos salões de dança e também nas rádios, as transformaram em elementos rítmicos-coreográficos. Sua riqueza e vivacidade as tornavam diferentes, até contrastantes, em relação aos gêneros que até então eram preferidos como música de dança. Ou ainda, quando, paradoxalmente, em oposição aos gêneros musicais em voga, como fox-trote,

(4)

charleston, tango e dobrado, elas se definem como expressões autênticas da cultura

nacional e como intérpretes de uma temática predominantemente urbana. Ao ser identificada como símbolo da autenticidade nacional, essa música popular é parte de amplo, contraditório e efervescente quadro ideológico nacionalista.

No momento, o que se objetiva destacar é a associação desses elementos musicais com o novo estilo de vida urbano. Neste caso, essas canções passam a integrar um complexo de variações culturais que se produzem em torno de novos focos de inspiração, associados ao cenário urbano-industrial da cultura brasileira. Nestes gêneros musicais, o universo rural é substituído pelos quadros urbanos, onde trafegam personagens genuinamente citatinos, envoltos em contextos e problemas atrelados às condições de convivência nas cidades em franco processo de adensamento populacional, caldeamento e amálgama cultural. No ano de 1917, foi gravada a primeira música com o nome oficial de samba, “Pelo Telefone”, composto pelo mulato Donga e interpretado por Baiano.

Nesta música, o tema é a necessária licença das autoridades policiais para se desfilar em blocos e formar agremiações festivas, no cenário do carnaval carioca. Este samba inspirou muitas paródias, onde a questão central era a crítica à polícia, ao jogo e ao rendez-vouz, ou a pilhéria com personagens da 1ª Guerra Mundial, como o “ladrão Kaiser” e como o “General Foch”. Os agentes publicitários também aproveitaram o samba para avisar que “o chefe da folia (carnaval), pelo telefone, mandou dizer que toda parte há cerveja Fidalga para se beber” x. Devido à popularidade desse samba xi apareceram muitas variantes com o decorrer do tempo, tal como “Pelo Telefone”, publicada na coluna “Pingos e Respingos” do Correio da Manhã, em 1917:

O Chefe da Polícia /Com toda carícia /Mandou-nos avisá /Que de rendez-vuzes /Todos façam cruzes /Pelo carnavá... /Em casas da zona /Não entra nem dona (...) /Converse fiado/No meio da rua /Em porta e janela /Fica a sentinela (...)/Com as arma embalada(...) A lei da polícia/O chefe é ranzinza /No dia de “cinza” /Não quer Zé-Pereira (...) /- Do chefe é orde? /- Não vou, não vou (...) /- Vá pra Avenida /- Não vou, não vou (...) xii

Cabe matizar que nesta fase de intensas mudanças na música popular brasileira, que passam a serem divulgadas pelas emissoras de rádio – quando ocorreu reformulação e cruzamento de novos valores ligados aos interesses urbanos – surgiram composições enquadradas nessas novas tendências musicais citatinas, porém, tematicamente, ainda vinculadas à mística do campo, como os populares e famosos sambas, “Serra da Boa Esperança”, de Ary Barroso e “Rancho Fundo”, de Lamartine Babo. Torna-se claro que o resultado de todo esse processo de recriação musical dinamizado pela radiofonia e a

(5)

discografia não produziu o desalojamento das canções estrangeiras e sertanejas de nosso populário musical. Coexistindo e cruzando-se com os gêneros musicais negros urbanos, continuariam no cenário artístico os “voguismos” musicais, vindos do exterior e as composições de cunho tipicamente rural.

Destaque-se que as programações das emissoras de rádio brasileiras, inclusive, a paulista, expressavam a multiplicidade de tendências e gostos que permeavam a dimensão estético-recreativa da nossa cultura, em que se entrecruzavam num hibridismo sui generis o urbano e o rural, o nacional e internacional, o regional e o cosmopolita, amalgamando-se em gêneros complexos, nitidamente heterogêneos e polissêmicos, com predominância ora de uma, ora de outra matriz musical, que despontam neste ou naquele contexto, muitas vezes sob a ação de fatores meramente circunstanciais. É esse quadro que se pode visualizar no âmbito deste processo múltiplo de recriação cultural que através das “ondas do rádio” transforma uma música local em nacional e a crescente sinonímia entre a música “negra” urbana e “a música popular brasileira”.

Rádio Paulista: interpenetração das Culturas Rurais e Urbanas.

As polêmicas sobre a relevância da cultura/música rural na construção da “cultura nacional” permeavam os debates dos intelectuais e artistas, sobretudo, os modernistas, nas primeiras décadas do século XX. Reelaboradas por diversos compositores populares e eruditos, de perfil nacionalista, elas eram interpretadas como sendo a fonte das mais “autênticas tradições folclóricas” e as mais genuínas expressões das “cultura nacional”, bem como, expressão da alma do homem brasileiro. Essas questões exprimiam os sentimentos ambíguos de nossos escritores, pesquisadores e compositores com referência à cultura popular, pois ao mesmo tempo ela era uma atitude militante de redescoberta do país e nesse âmbito estava vinculada ao projeto modernista, mas também significava a tradição de um passado que se queria superar. No caso da música, processava-se uma “brasilidade modernista”, que expressasse nítidos vínculos entre o passado e o folclore com as linguagens européias mais contemporâneas, estimulando uma espécie de “intertextualidade” xiii, da qual Villa Lobos parece ser a melhor expressão.

Contrapondo ao rigor da música européia o “seu informalismo caótico, jovem e cheio de vida, num vale-tudo experimental antropofágico”, Villa-Lobos intercruza os efeitos do sinfonismo descritivo, os timbres debussystas, os blocos sonoros poliritmicos e politonais (próximos da música de Strawinsky), os temas da música indígena (inspirados nos dados de Jean de Léry ou nos fotogramas de Roquete Pinto), os cantos sertanejos, a música dos coretos de banda, a valsa suburbana, a bateria da escola de samba, etc.xiv Analisar uma

(6)

produção musical híbrida, polissêmica e complexa como a de Villa-Lobos é uma tarefa árdua. Gilberto Mendes sugeriu que o “disparatado” (dos seus altos e baixos e do “mau gosto” produzido da mistura em tais proporções) não é um acidente ou desvio estético, mas uma dimensão da tumultuada busca “do transcendental, do cósmico, através do sentimento nativo”.

Para o autor, todos compositores das Américas, entre eles “Ives, Cowell, Antheil e Villa-Lobos, são de um “impressionismo e politonalismo baratos” frente à técnica composicional de seus contemporâneos europeus: mas há na sua música, principalmente, “naquilo que é ruim, mal feito”, algo mais que torna diferente em autenticidade, uma independência em que se encontra “às raízes tipicamente americanas” de uma vanguarda que se distingue da vanguarda européia. “Só nas Américas poderia surgir uma pop art, o jazz, o “tropicalismo”, a música de Villa-Lobos e Ives. xv Nesse contexto, a musica popular brasileira de forma mais ou menos diluída se transformou na linguagem básica dos modernistas brasileiros, vinculada à civilização urbana industrial, na maioria dos espaços onde penetrou.

A maioria das exóticas linguagens musicais regionais criou para si um corpo de entusiastas que apreciavam essas formas de expressão não só como portadoras de uma nova roupagem musical, mas como arte a ser pesquisada, registrada, como expressão da nacionalidade. As raízes tradicionais, a cultura popular e o folclore ocupavam um espaço privilegiado nos interesses dos modernistas brasileiros, sobretudo, músicos, constituindo-se num dos eixos centrais daquele movimento. Evidentemente, o fecundo material musical proveniente de todas regiões do país, composto por gêneros e matrizes culturais diversificadas, plurais e criativas, muito contribuíram para incentivar o empenho pelo registro, reelaboração, proteção e acentuada exaltação nacionalistas da cultura rural.

Além do mais, as referências rurais, nos primórdios do século XX, como os batuques, cururus, sambas de roda, cocos, etc, permearam intensamente a constituição de múltiplos gêneros musicais e a coreografia urbana popular, fazendo-se presente nos grandes centros urbanos em formação, como Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, através do samba, do choro, do frevo e nas canções sertanejas, etc. E por outro lado, observa-se que em diferentes gêneros a influência da cultura rural torna-se progressivamente rarefeita com o desenvolvimento dos valores urbano-industriais. Cabe destacar a força das raízes rurais nas diversas formas e ritmos da música sertaneja/caipira, no centro-sul, paradoxalmente, na região mais urbanizada e industrializada do país, o Estado de São Paulo.

No sentido amplo, considera-se “sertanejo” o homem que habita no sertão e tem uma vida rústica relacionada à agricultura de subsistência. Contudo, essa amplidão contemplou

(7)

intensas polêmicas. Permeia a visão dos folcloristas e estudiosos da cultura da música nacional um nítido debate em relação a essa temática. Para muitos, o sertanejo é aquele indivíduo “naturalmente puro e simples”, cujas raízes culturais estão no interior ou sertão nordestino, o que o diferencia da cultura caipira, vinculada às regiões Sudeste e Centro-Oeste do país. Para outros estudiosos, quando se trata de música, a sertaneja e caipira tem a mesma matriz cultural e geográfica, centrados nitidamente em regiões do interior do Sudeste, Centro-Oeste e norte do Paraná.

O ponto diferencial entre elas seria que, a música sertaneja já teria suas origens urbanizadas sendo criada nos médios e grandes centros urbanos, principalmente, na cidade de São Paulo, produzida e difundida pelos modernos veículos de comunicação de massa, sobretudo, o rádio. No sentido oposto, a música caipira, estaria mais vinculada às autênticas, instintivas, genuínas e naturais tradições da cultura rural, completamente imune à influência dos meios de produção e difusão de massa e, neste caso, mais próxima da “música de raiz” ou “folclórica”.

No ensaio sobre a música brasileira (1928), Mário de Andrade afirmava que “nosso populário sonoro honra a nacionalidade”, referindo-se às virtudes “autóctones” e “tradicionalmente nacionais” da música rural. Neste âmbito, sugeria que essa raiz deveria ser cuidadosamente separada da “influência deletéria do urbanismo, em sua tendência à desagregação popularesca e a influência estrangeira” Cabe ressaltar que, no entanto, o pensamento do poeta modernista não é esquemático. Ele procura matizar o seu critério de valorização da música popular rural sobre a música urbana. Segundo Mário, nas regiões mais prósperas do Brasil, “qualquer cidadezinha do fundo do sertão” possuía água encanada, esgotos, luz elétrica e rádio”. Ressaltava, no entanto, que nas cidades maiores, como Rio, Recife, Belém, apesar do progresso, internacionalismo e cultura, encontravam-se “núcleos legítimos de música popular em que a influência deletéria do urbanismo não penetra” xvi, pois havia manifestações muito características, da música popular brasileira que não eram especificamente urbanas, tais como choro e modinha.

Assim, propunha aos pesquisadores discernir no “folclore urbano”, o que é virtualmente autóctone, o que é tradicionalmente nacional, o que é essencialmente popular, enfim, do que é “popularesco”, “feito à feição popular”, influenciada pelas modas internacionais. Sem dúvida a concepção do “sertanejo”, no Rio de Janeiro, das primeiras décadas do século XX, estava marcada pelo viés nacionalista de segmentos da intelectualidade brasileira, fundado nitidamente nas fontes culturais rurais do Norte e Nordeste. As temáticas da “moda sertaneja”, as referências aos espaços naturais, as memórias de uma temporalidade idílica e do ambiente bucólico, com ritmos alegres e soltos

(8)

(como as emboladas) permeavam o universo cultural do Rio. Neste cenário, Catulo da Paixão Cearense se tornou o rei dos cantores e das modinhas populares de inspiração rural (“Luar do Sertão”, “Cabocla de Caxangá”, etc). Naquele espaço tal moda é bem visível, revelando as necessidades e pressões do novo mercado de cultura popular em ascensão, mas também em consonância com a perspectiva predominante dos intelectuais nacionalistas que elegeram a temática da música do campo como a autêntica fonte de brasilidade/ nacionalidade.xvii Nesse período, Afonso Arinos de Mello Franco, que fixara residência em Paris, mas visitava constantemente o país, foi um dos precursores em São Paulo do movimento de “redescoberta do Brasil popular, folclórico” e colonial, em dimensão exótica do passado, dos usos e costumes conservados nas tradições populares rurais, especialmente, do Sudeste e Centro-Sul, tornando-se uma das referências intelectuais da reelaboração nativista da cultura sertaneja pelo movimento modernista

Poucos anos após a morte de Afonso Arinos, que ocorrera, em 1916, toda uma nova geração assumiu o viés nacionalista preconizado por esse autor. Em 1919, um grupo de amadores encenou, adotando uma pronúncia “genuinamente paulista”, sem qualquer laivo de línguas européias ou de lusitanismo, o “Contratador de Diamantes”, obra de Arinos, buscando com atitudes despidas de afetação bem com na pronúncia acentuadamente paulista, um senso de nacionalidade. Toda uma nova geração de membros da elite paulista, ressentida das reviravoltas sociais, num tenso contexto cultural urbano-industrial, acentuado pela ascensão dos imigrantes, buscava na reelaboração das matrizes culturais tradicionais do ruralismo brasileiro um senso de identidade. xviii

Assim, a reelaboração da cultura rústica dos sertões brasileiros perpassou a propagação radiofônica da música popular. Conforme assinalamos anteriormente, tal tendência superou a condição de modismo, adquirindo densidade crescente como catalisadora da cultura sertaneja, sobretudo, paulista, tornando-se quase uma imposição aos intérpretes e compositores, no sentido que o retorno ao popular rústico era um estímulo à fermentação nativista e ao culto da brasilidade, descaracterizados pelo ritmo desagregador da vida urbana.xix

Um dos focos dos sucessos sertanejos, largamente difundidos pelo rádio, despontava conjuntos tocando ritmos e melodias nordestinas. Entre outros, João Pernambuco violinista que tocava choros com Villa-Lobos, parceiro de Catulo nas canções citadas. Organizou com Donga e Pixinguinha, o grupo do “Caxangá”. Na década de 1920, apareciam novos conjuntos, como “Turunas Pernambucanos” (do qual seriam Jararaca e Ratinho), geralmente tocando emboladas e cocos. Em 1929, o “Bando dos Tangarás” (composto por jovens de classe média, originalmente chamado “Flor do Tempo”) usa indumentária típica

(9)

do meio rural para tocar música popular urbana, influenciados por aquele modismo, fazendo lembrar tanto os caboclos nordestinos como os caipiras do Sudeste e Centro-Oeste. Cabe salientar, que os grupos vinculados à metrópole carioca, como “Caxangás” e “Tangarás”, não limitaram seu repertório às singelas canções do campo, tocavam, sobretudo, choros, tangos e sambas, tornando-se mediadores da circularidade e do trânsito cultural rural, urbano e latino-americano da música popular no Brasil.

Na linha dessa moda sertaneja, de ampla vigência social, cabe referir-se a alguns conjuntos que, em 1929, seguiam essas tendências como os “Chorões Sertanejos” e “Turunas Paulistas”. Este último inspirava-se nitidamente nos grupos pernambucanos. No caso dos "Chorões Sertanejos, comandados por Raul Torres (originário de Botucatu, SP), suas composições recordam certo ecletismo e gosto pela fusão e bricolagem de diferentes fontes e gêneros musicais, ao denominar-se, simultaneamente, como tocadores de choros e moda sertanejas, emboladas, cocos, desafios e toadas. Em 1920 Garoto integrou o conjunto.xx

Nesse panorama de fermentação cultural e musical nativista e de reelaboração do vasto material do folclore, a visão dos intelectuais era perpassada por perspectivas diferenciadas como relação ao projeto nacional. Em São Paulo, Oswald de Andrade propunha uma postura mais instintiva, mais intuitiva, em relação à brasilidade, que deveria distanciar-se radicalmente do “ranço” culto e intelectual. Por outro lado, Mário de Andrade postulava que a cultura nacional fosse resguardada, pesquisada e sistematizada, e destas perspectivas, a brasilidade deveria ser filtrada e construída pelo saber erudito dos intelectuais.xxi

As reminiscências de Paulo Duarte revelam como estas perspectivas nacionalistas de transposição erudita, sistemática e “científica” do folclore (a arte nacional presente na inconsciência do povo) estavam solidificadas no Departamento de Cultura. Mário de Andrade, lutando por uma elevação estético-pedagógica e cívica do país, que resultasse da incorporação e reelaboração da rusticidade do folclore, propõe-se realizar no Departamento de Cultura de São Paulo, um estudo do folclore como especialidade científica. Esse órgão da Cultura Municipal, criado em 1935, por Fábio Prado e dirigido até 1938, por M. de Andrade, incorporou a orientação pedagógica de seu diretor de converter o folclore em ciência positiva, assim como sua postura em relação à percepção da missão civilizadora do nacionalismo culto, atribuindo ao meio urbano, contornos institucionais e oficiais a estes projetos. Recebendo “injeções maciças de folclore” xxii, a música nacionalista aproximaria os intelectuais e o povo, separado por um abismo cultural e de classe, assim contribuindo para forjar a idealizada identidade nacional. Estas questões revelam as fissuras e tensões

(10)

dos projetos nacionais, que lutavam pela reconstituição da cultura nacional rural, incorporação das temáticas modernistas contemporâneas, modernização e o papel central do Estado nas mudanças políticas e culturais.xxiii

Cornélio Pires: programas radiofônicos e a cultura caipira na cidade.

Diferenciando-se dos padrões esperados pela intelectualidade modernista e tradicional, as referências rurais se preservaram de modo bastante variado, sobretudo ao transformar-se, confundindo-se e misturando-se com as novidades urbanas, para produzir algo diferenciado e inovador, distante, portanto, dos modelos indicados tanto pela alta intelectualidade como por certa boêmia artística. Em São Paulo, fugindo dos padrões de simples preservação das fontes rurais genuinamente nacionais da cultura, as tensões, ambigüidade e convergências entre as culturas populares urbanas e rurais estabeleceram uma nova combinação social e cultural, que seria bastante aceita pelas camadas populares dos grandes centros e que o mercado fonográfico e radiofônico em crescimento soube muito bem explorar.

Aproximadamente entre as décadas de 1910 e 1920, em São Paulo, já ocorria certa difusão da cultura sertaneja originária da capital do país. Mas certamente as referências ao tom nativista e nacionalista que iniciava a se generalizar no cenário cultural brasileiro e as fortes raízes da cultura regional paulista tiveram um peso relevante nas produções musicais locais, como também nas canções que se irradiavam através do Rio de Janeiro.

Desta forma é necessário sublinhar que o modelo sertanejo entre os paulistanos essencialmente baseava-se nas fontes e tradições rurais caipiras locais e menos nas nordestinas, como ocorria na capital de República. Nos anos 1910, Marcelo Tupinambá já era relativamente popular em São Paulo no círculo de um público intelectualizado, em decorrência de suas melodias caboclas e atividades no teatro, como “Cenas da Roça” e “Flor do Sertão”, entre outras. Marcelo Tupinambá, pseudônimo de Fernando Lobo, estudante da Escola Politécnica, era um compositor culto, de canções de cunho sertanejo. Na função de diretor musical e das rádios Paulistas, cultivou a música erudita. Musicou composições de autores expressivos, como Olegário Mariano, M, Del Picchia, M. de Andrade, G. de Almeida e Oduvaldo Vianna, entre outros.xxiv

Foi Cornélio Pires quem de fato começou a difundir e popularizou as cenas rurais de manifestações culturais caipiras por São Paulo. Já em 1910, encenou um mutirão e um velório caipira xxv, no Colégio Mackenzie, contando histórias e “causos” da vida roceira acompanhado de violeiros da zona rural, “caipiras de verdade”, tal como no caso de “Lendas e Paisagens da Minha Terra”, que ganhou destaque na grande imprensa, provocando grande interesse do público urbano. xxvi Nos anos 1920, instaura uma prática

(11)

que lhe daria grande popularidade, partindo de viagens nos interiores do sertão paulista, recolhe um vasto material da cultura popular de recorte “sertanejo”, para em seguida relatá-las em bem humoradas conferências e saraus regionalistas, lotando os teatros com um público ávido de ouvir os “causos”, modas e danças da “vida singela” do campo. Neste contexto, convém destacar que Cornélio será um dos pioneiros na gravação desses discos, com suas crônicas humorísticas e anedotas caipiras, como “Musa Caipira”, de 1910, que não exigiam grande reelaboração para radiofoniaxxvii.

A popularização e o sucesso surgiram inesperadamente para Cornélio Pires nesta época passa a publicar em jornais importantes, como “O Estado de São Paulo” e periódicos de vanguarda, como “O Pirralho”, publicou diversos livros de verso e prosa e multiplicou suas palestras remuneradas pela capital paulista, cruzando “causos” com anedotas sempre narradas em “dialeto” caipira. O público que freqüentava seus “saraus regionalistas e humorísticos era diversificado, atraindo a classe média e a burguesia ilustrada. Conforme anunciava “O Pirralho”, esses saraus lítero-musicais, verdadeiras festas de “arte nacional” onde se tem o ensejo de saborear “coisas tão originais e tão nossas”, contava entre o público, além do “Pirralho” em peso com a “jeunesses dorée” do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Esse periódico patrocinaria uma série de conferências sobre os caipiras, “pelos nossos cinemas chics”, dedicando uma parte de suas palestras às moças da elite paulistana, tratando de “scenas de namoro, correspondências amorosas e de tudo que se refere aos amores caipiras.xxviii Suas palestras com temáticas de raízes caipiras paulistas e humorísticas repercutiam em todo o Estado e alcançavam popularidade também no Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1917, ali se fixando até 1919. No Rio, Cornélio Pires também teve uma trajetória artística de sucesso de público e também financeira, lançando uma série de discos que continham referências às anedotas cariocas e “causos” sobre as relações tensas e jocosas entre cariocas e portugueses. xxix Além do mais, freqüentou com assiduidade o denso círculo boêmio carioca, mantendo relações intelectuais estreitas com Coelho Neto e Bastos Tigre. Convém lembrar que neste contexto na capital da República vivia-se aquela voga sertaneja entre os intelectuais nacionalistas, advindo daí a grande acolhida dada a Cornélio Pires e o seu sucesso comercial.

Monteiro Lobato ressalta com sarcasmo o cunho “rendoso” do caipira de Cornélio Pires, respondendo às críticas desse autor, no artigo, “Certos Escriptores”, em que Pires referia-se a “Urupês” como sendo uma obra que criou o Jeca Tatu “erradamente", pois seria uma representação do “caipira caboclo”; Pires acusava Lobato de atribuir ao Jeca Tatu as características do caipira em geral. Em correspondência particular a Godofredo Rangel, escrita em 1915, e não publicada na época, Monteiro Lobato rebate os comentários e

(12)

questionamentos de Cornélio, apontando algumas de suas referências ao mestiço caipira que eram inexatas proporcionalmente e criticamente destacava com ironia como o caboclo de Cornélio era uma estilização romântica, crivada de humor e extremamente lucrativa. Eis algumas considerações de Lobato:

(…) A historia do caboclismo ... Aquilo foi fabricação histórica para bulir com o Cornélio Pires, que anda convencido de ter descoberto o caboclo (…) O caboclo de Cornélio é uma bonita estilização – sentimental, poética, ultra-romântica, fulgurante de piadas – e rendosa. O Cornélio vive, e passa bem, ganha dinheiro gordo, com as exibições que faz do “seu caboclo”Da caboclo em conferência a 5 mil réis a cadeira e o público mija de tanto rir. E anda ele agora por aqui, Santos, a dar caboclo no Miramar e no Guarani. Ora, o meu Urupês veio estragar o caboclo do Cornélio – estragar o caboclismo.xxx.

Diante do crescente êxito da “cultura caipira”, desde os anos 1930, já se encontrava na programação radiofônica paulista alguns números “caipiras”, ou apresentações de artistas cantando modas de viola, cateretês, batuques, etc. Cabe ressaltar que música sertaneja só se popularizou entre o final dos anos 1920 e a década de 1930, sobretudo, por ter ingressado no circuito das gravadoras e do rádio, apesar da presença marcante de Marcelo Tupinambá no cenário musical e teatral paulistano, voltado para um público mais elitizado e as costumeiras apresentações de cultura caipira de Cornélio Pires. Nesse contexto, esse escritor incorporou na sua “troupe” inúmeros músicos amadores, populares em suas regiões de origem. Alguns se profissionalizariam, alcançando bastante sucesso no rádio e nos discos, além de atuarem no teatro. Vários artistas, famosos e populares, do Teatro de Revista, passaram a atuar nos programas de rádio, revelando claramente, a confluência entre teatro, cinema e rádio.

Entre eles podemos citar: Sebastião Arruda, Genésio Arruda, Jararaca e Ratinho, bem como, Ari Barroso e Lamartine Babo, entre outros. Pode-se notar na discografia de Cornélio Pires a atuação de vários desses artistas, como por exemplo, a dupla caipira Mariano e Caçula, que gravou as modas de viola, tais como “Jorginho do Sertão” e “Moda de Pião”xxxi e Sebastião Arruda, que gravou peças humorísticas e anedotas, tais como, “Um Baile na Roça”e “Vida Apertada”xxxii Em 1929, criou a “Turma Caipira Cornélio Pires”, composta por intérpretes e duplas caipiras (Mariano e Caçula, Mandi e Sorocabinha, Arlindo Santana, Zico Dias, entre outros) com o objetivo de realizar apresentações musicais no interior e na capital. Segundo os depoimentos de Mandi, a primeira apresentação dos caipiras de Cornélio Pires foi no Teatro Municipal xxxiii, além de sucessivas apresentações em salões, teatros e cinemas elegantes.

(13)

Com a crescente difusão da “cultura caipira”, mais do que uma aproximação entre o rural e o urbano, assiste-se a uma interposição entre o rural oriundo do interior paulista e as práticas culturais populares da metrópole paulista. Sob o prisma de um nacionalismo impregnado de regionalismo, estas manifestações culturais contribuíram para firmar a posição de São Paulo, com seu modo de vida, suas tradições, seu dialeto e sua música como fonte de brasilidade, distanciando-se das influências européias e do “cosmopolitismo dissolvente” representado pelo Rio. Nesse panorama cultural, a redescoberta das raízes rurais atuava como elemento “purificador do artificialismo decorrente da urbanização”.

Ficavam claras inclusive as dimensões e os embates político-ideológicos dessas produções culturais. São Paulo reafirmava sua liderança econômica, mas também suas conquistas culturais e artísticas, irradiando-as sobre todo país, inclusive sobre o mundo rural representado pelo nordeste, identificado como “passadista”. Em artigo publicado alguns anos antes, em 1917, Alceu Amoroso Lima, na Revista do Brasil, assumiu tal perspectiva em nome da “paulistaneidade”, situando-a como direito histórico ligado aos ciclos econômicos. Assim, igualava os feitos econômicos de São Paulo aos intelectuais, observando, que São Paulo possuindo uma “aristocracia da terra” preparava-se para “a realeza na República” e que:

O século XVI pertenceu a Pernambuco, o XVII à Bahia, o XVIII à Minas Gerais, o XIX ao Rio de Janeiro, o século XX é o século de São Paulo.xxxiv

Neste clima cultural, de exaltação nacionalista, com base no vigor do regionalismo paulista, partilhado por muitos intelectuais, no mesmo ano de 1929, Cornélio Pires tomou uma atitude inusitada no panorama fonográfico brasileiro. Como as empresas resistiam à gravação da música caipira – por questões comerciais – financiou ele próprio a prensagem de cinco discos, denominada “Série humorística, Série folclórica e Série Regional”, Columbia, contendo, modas de viola, desafios, emboladas, valsas, batuques, cururus, declamações de poemas, anedotas, peças humorísticas e narrativas folclóricas, cujos temas versavam sobre raízes paulistas e caipiras, também, referiam-se a temáticas do cotidiano da experiência urbanizadora, tais como “Agitação política em São Paulo”, “Cavando Votos”, “O Zeppelin”, “O Jogo do Bicho” e “Quando as ‘Misses’ Desfilam” xxxv

Com tiragem por volta de 5 mil cada, totalizaram 25 mil unidades, uma cifra considerável para o mercado fonográfico da época. A série de discos “independentes” produzida pela “Turma Caipira Cornélio Pires” foi comercializada “de mão em mão, exclusivamente nas apresentações no interior e na capital e na casa comercial que abriu na rua 15 de Novembro, em São Paulo, para vender discos e aparelhos eletrônicos. Das duplas trazidas por Cornélio Pires a São Paulo para apresentações e gravações a que produziu

(14)

melhor resultado, obtendo grande sucesso, com crescente produção de discos, foi a Mandi (Manoel Rodrigues Lourenço) e Sorocabinha (Olegário Jose Godoy) xxxvi. Em seus depoimentos, Sorocabinha que “ponteava viola” com apresentações constantes nas festas populares e bailes caseiros, foi convidado para fazer “figuração” nos saraus caipiras para demonstrar o “autêntico folclore paulista”, porque a capital estava “invadida pela música Argentina”.xxxvii

No bojo de suas composições caipiras, Sorocabinha compôs uma moda narrando e criticando a abusiva incidência de impostos sobre os gêneros alimentícios, bens de subsistência produzidos pela economia doméstica dos sitiantes, do artesanato familiar e até dos pequenos produtos coletados pelos caboclos da flora e fauna naturais. Em sua canção ele se refere que o extorsivo “Imposto do Selo”, que já provocara tantos motins e revoltas populares na sociedade brasileira, também incidia violentamente sobre os pequenos produtos de consumo industrializados, as pequenas ocupações autônomas, apesar da estreita lucratividade de certas profissões, como as de violeiros e seresteiros, como também sobre a nova indústria cultural de bens eletrônicos, como a discografia e os programas radiofônicos. Através da letra dessa moda caipira é possível mapear a cultura material, a indumentária, as práticas alimentares e os hábitos de consumo, das camadas populares, quer as rurais, quer dos entornos ruralizados das cidades, bem como, a crítica social desses pequenos segmentos à política de arrecadação fiscal abusiva e arbitrária dos poderes públicos. Assim cantava o trovador do cotidiano popular “Sorocabinha”, em uma moda gravada “No Mercado dos Caipiras” (anedotas), numa das séries da discografia produzida por Cornélio Pires:

“Paga imposto pra caça/também pra vendê melado/paga imposto... vendê palmito no mercado/cargueiro e carro de boi/tudo tem de sê selado... balaio, peneira.../quem vende queijo sem selo/ corre risco de ser multado/ farinha de milho e polvilho.../ até as minhoca do sítio/ tem de ser arregistrado/ gente vê selo do governo/ em toda parte grudado/ nas meias, nos guarda-chuva/ no chapéu/... esta viola que está tocando tem um selo inutilizado/...este disco que está tocando não escapo do marvado/ arreio e pito de barro/ algodão, brim e riscado/ garrucha, coberto e sanfona/ tem o papel esverdeado/ já vi um caixão de defunto/ com selo depindurado.../ qualquer dia sela as criança/ na hora do batizado xxxviii

No decorrer dos anos, o Tesouro Nacional buscou reduzir a sua dependência dos direitos de importação e esse fato, como testemunha a “Moda do Selo”, levou o Governo Federal a entrar em conflito com São Paulo. Em 1918, o governador Altino Arantes queixou-se de que o novo imposto de consumo federal incidia nefastamente sobe a

(15)

indústria e comércio paulista. Nos anos 1920 e 1930 o governo federal arrecadou 1/3 à metade da renda anual total do imposto de consumo em São Paulo. Com efeito, um imposto de renda federal seguiu o imposto de consumo em 1918, e São Paulo contribuiu com cerca de 30% do total das receitas do imposto de renda federal até 1940.xxxix Tudo faz crer que São Paulo fosse o principal contribuinte, não obstante o governo federal fornecer a São Paulo muito mais do que ali arrecadou em impostos, subscrevendo a valorização cambial, mantendo as políticas cambiais favoráveis ao complexo cafeeiro até 1931, e assegurando o favoritismo de São Paulo nos empréstimos do Banco do Brasil. Destaque-se que o maior item da dívida do governo paulista ao Banco do Brasil foi um empréstimo de 200000 cotos para resgate das dívidas do Estado durante a Revolução Constitucionalista de 1932 contra Vargas. xl

A voracidade arrecadadora e centralizadora do Governo Federal, assim como suas tensões como os regionalismos, não deixou de ser notada pelas diversas classes sociais, traduzindo em temáticas para a produção cultural da época, expressando jocosamente em contos, “causos”, peças de teatro populares, “desafios” e modas de viola. Como foi visto, algumas dessas canções foram gravadas por Cornélio Pires, notando-se que as tensões sociais e resistências da época atravessavam a reelaboração das tradições, atualizando antigas memórias, cujos motes datavam de tempos coloniais e imperiais, possibilitando a crítica social no presente, como nos das modas viola que faziam a crítica da arbitrariedade das leis e das instituições republicanas desorganizando a improvisação da sobrevivência cotidiana da população pobre:

“Essa lei que vem agora/ é ruim pros pai de famia;/ vivem c’ao cabeça quente/ sem poder ter alegria/... Pra se escapa dessa lei/ O casá num tem valia/ Inté que eu vi na listra/ É um home pai de famía.”xli

Essas gravações, que abriram caminho para outros lançamentos, formavam um conjunto bastante heterogêneo, e dela faziam parte, tanto recitativos, “cousas” caipiras, anedotas e histórias de conteúdo políticoxlii, como modas de viola, músicas tradicionais do interior paulista e do nordeste, valsas, canções sambas e suas variações, marchas, e até peças tradicionais recolhidas, como as toadas de mutirão e outras. A novidade maior que a série trazia era a gravação de moda de viola e outras peças do cancioneiro rural paulista xliii. No caso de São Paulo, com a presença multiétnica de negros, mestiços, brancos e índios nas “bandeiras” dos “desbravadores paulistas”, a repercussão da mitologia européia e indígena, amalgamada pelas crenças africanas, tão bem reelaborada por Cornélio Pires em sua vasta produção discográfica, teve irradiação muito ampla, como muito bem ilustram seus discos: “Astúcias de Negro Velho – Rebatidas Caipiras” (humorismo)xliv “Simplicidade de Caipiras

(16)

– Numa Escola Sertaneja” (humorismo)xlv, “Jorginho do Sertão” (moda de viola) (Mariano e Caçula)xlvi

Nas fronteiras pioneiras de entrada para o sertão os mitos são extremamente recorrentes, sem grandes distinções de fronteiras regionais, “batendo mato e subindo”, essa população migrante recorria ritos mágicos de sobrevivência, utilizando-se de mandingas, patuás, sururucas e cuités, buscando obter proteção de seres sobrenaturais, que poderiam potencializar as suas energias de sobrevivência no duro cotidiano de suas atividades, valendo-se disso para um largo aproveitamento da fauna e da flora circundantes para fabricação de mezinhas, graças às experiências de um contínuo peregrinar por amplos territórios xlvii

“Fui no mato catá lenha/ Santo Antonio me chamo/ Quando o Santo chama gente,/ Qui fará os pecadô!”xlviii

O senso prático dos colonizadores, o apego à experiência e ao imediato, possibilitou a incorporação de práticas costumeiras de sobrevivência e da cultura material dos índios e negros, explicaria a sua capacidade de sobreviver nos sertões, em meio às ameaças de um meio hostil, onde se nota que a caça e a coleta assumem conotações de expedientes férteis e divinatórios xlix. O processo intenso de interação e convívio entre eles possibilitou aos sertanistas paulistas saturar-se de sua cultura material, mesclando-a com costumes de raízes ibéricas, transformados em processos de mudança cultural no novo mundo. O folclore paulistano, fruto do impacto de culturas, com algumas variantes, apresenta elementos comuns a São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Goiás.

Tanto mais isso é verdadeiro que a toada “Prenda Minha” com registros iniciais no Rio Grande do Sul do século XIX, foi reproduzida por Mário de Andrade, em São Paulo, sendo acolhida por gaúchos residentes no Rio de Janeiro. Apesar das toadas refletirem as peculiaridades musicais de cada região, as toadas do Centro-Sul, com raras exceções têm textos curtos, de matizes amorosos, líricos e cômicos, procurando fugir da forma romanceada, ficando no quadro geral das modas ou modinhas matutas, que andam anônimas pelo interior do país, propiciando constantes reelaborações:

“Vou me embora, vou me embora/ Prenda Minha,/Tenho muito que fazer/ Tenho de ir para o rodeio/... Quando foi de madrugada/ Prenda Minha/ Foi se embora e me deixou/ Troncos secos deram frutos/ Prenda Minha...”l

Na rota da busca de espaço das realidades movediças dos sertanistas paulistas e das roças volantes do seu processo de infixidez no meio natural, de onde recolhia os recursos vitaisli, muitas vezes, como durante os períodos colonial, imperial e, mesmo republicano,

(17)

fugindo do recrutamento compulsório, cuja violência ficara marcada na memória das camadas populares, alimentando com esse tema a reelaboração de suas tradições, como no caso das referências à prestação do serviço militar. No livro “Sambas e Cateretês”, há referências de modas em que o caipira procura escapar ao serviço militar obrigatório, utilizando subterfúgios improvisados, inclusive, aproveitando-se do próprio estigma de ignorância, do descuido com normas higiênicas, do matuto brutalizado, fingindo, inclusive, demência:

“Os rico é que inventa as coisa/...depois é o pobre quem paga/ estes são sem garantia/...Vô fazê u’a carta farsa/ pra mandá pro presidente;/ queu não sirvo pra sordado/ que tenho farta de dente/ num corto mais meu cabelo,/ nem corto mais minha unha:/pensarão que tô demente...”lii

Essa relação movediça das populações foi captada e expressa nos registros discográficos de Cornélio Pires, expressando-se em modas e toadas tradicionais, com estórias que narravam as relações das atividades cotidianas dos sertanejos com seu meio ambiente, refletindo-se, inclusive, nos títulos dos discos: “A fala de nosso bichos” (imitação de animais) – “Danças Regionais Paulistas, Cana Verde e cururu” (canto típico)., “Toada de Cateretê – Toada de Samba – Toada de Mutirão”, (folclore), “Moda do Rio Tiête” (moda de viola), “Boiada Cuiabana” (moda de viola), “Recrutamento” (samba) e “Incruziada” (canção) “No Mercado dos Caipiras” (humorismo), “Astúcias de Negro Velho – Rebatidas de Caipiras (humorismo) liii.

Neste contexto, Cornélio Pires recolheu, entre outros, inúmeros “causos” “fantásticos”, com elementos fabulosos que apontam os percalços tangíveis, que ponteavam esse contato tenso e ambíguo entre o homem e a natureza, além da visão de paisagens idílicas. Aspectos da mentalidade mágica característica da época, como “o montão de assombros” que assinalavam as vicissitudes deste convívio, o impacto provocado pela paisagem inóspita sobre o imaginário e a reelaboração de antigas superstições populares européias. Nos caminhos da hierarquia de saberes que permeavam a configuração do universo das práticas mágico-religiosas presentes em São Paulo havia aquelas práticas e crenças que chegavam na bagagem dos imigrantes europeus. Essas práticas e crenças eram similares às das religiosidades já existentes numa São Paulo que mantinha aspectos socioculturais acaipirados, entre as múltiplas e ritmos sociais que perpassavam o seu tumultuário processo de urbanização. Essas práticas e crenças trazidas pelos imigrantes aproximavam-se das sínteses elaboradas entre o catolicismo ibérico e as tradições africanas e indígenas, cujos complexos de símbolos e representações participavam do tenso processo de hibridismo cultural das tradições da sociedade brasileira, datando do período colonial.

(18)

Era o caso dos relatos de “casas assombradas” e manifestações de “almas penadas”, comentados no cotidiano dos paulistanos.liv

Numa passagem da obra “Quem conta um conto” elenca as inúmeras assombrações que permeavam o tecido mental dos caipiras paulistas, mineiros, etc. Nessa geografia mitológica sobrevive uma fauna fantástica de entidades assombradas:

“Eu juro! Quando fui buscá remédio na vila, tive que vortá.../ Eu vi u’a porca deste tamanho, sortando fogo pr’os óio e pr’o nariz.../ - Nas noite de vento, do arto da Samambaiá, a gente ove uns grito à meia noite... É o Caipira./ -Deus te livre!/ O majó Lucio tamêm jura que viu lubizome pr’aquelas banda.../ - Na sexta-feira-maió, um tropêro vortô. Diz que ... saci dançando cu’a perna só in roda de uma veia dos óio vermeio e de nari arcado. Diz que é a Veia-de-máqualidade.../...Um cavalo-sem-cabeça ponoteando c’o Demônio in riba no meio dos bitatá e sortando fogo p’ras venta.../ Defunto Nhô Tomé que era home de sangue-de-peixe, pôco ante de morrê, conto que u’a feita viu o Cuiza-ruim, tocano viola, num catira, dançando infrente à cruis, por u’a Mãe d’Àgua, a Mãe de Oro... o Lobo-do- Mato, a Arma-do-Padre-Aranha...lv

Essas gravações serão com muita freqüência transmitidas pelas emissoras paulistas nos seus programas de cultura sertaneja, como na Rádio Educadora e Rádio Cruzeiro do Sul.

Ao lado dos músicos amadores da “Turma Caipira de Cornélio Pires”, apresentavam-se artistas mais consagrados como Paraguassú, com o pseudônimo de Maracujá, Raul Torres, como Bico Doce, além da participação de números humorísticos e recitativos de Sebastião Arruda, ator de cinema e teatro. Freqüentemente, além das gravadoras e do rádio, os músicos “caipiras” tiveram uma atuação expressiva no cinema. Foram lançados no decurso da década de 1930 inúmeros filmes com intensa popularidade e atração comercial. Como o famoso “Acabaram-se os Otários”, com Genésio Arruda e participação de Paraguassú, em 1929, tendo temáticas do cotidiano roceiro, os costumes, crenças e canções dos habitantes da roça como foco central; tradição essa retomada de certa forma por Mazzaropi. O sucesso e prestígio desses temas e “cousas” do sítio e os impasses e conflitos entre a rotina tranqüila do “caipira e o ritmo acelerado da vida na metrópole, inspirou grande parte da produção cinematográfica de Mazzaropi.

Cornélio Pires não tinha como objetivo realizar sínteses intelectualistas ou eruditas; gravou tanto modas de viola, com cantores do interior, como emboladas e composições de autores conhecidos com cantores já com sucesso no rádio, teatro e no cinema paulista. Sua preocupação central era vender discos, e não só preservar esta música, tarefa na qual foi muito bem sucedido. Numa de suas crônicas publicadas no Diário Nacional, Mário de

(19)

Andrade, criticou uma das gravações da “Série Regional”; “Escoiendo Noiva”lvi (gravação no 2001B, com a Caipirada Barretense). Neste artigo, procurou delimitar as fronteiras em que se poderia produzir uma “documentação rigidamente etnográfica” ou uma gravação mais cuidadosa da música popular de caráter folclórico. Com relação à esta última, propunha que “a intromissão da voz tem de ser dosada para evitar o excesso de repetição estrófica. Os acompanhamentos tem de variar mais na sua polifonia, já que não é possível na sua harmonização, o que os tornaria pedantes e extra-populares. E variar também na instrumentação.”lvii

Já com relação às cantigas e danças com viola de Zico Dias, Mário de Andrade tecia elogios, referindo-se “ao delicioso cantar do piracicabano Zico Dias”, acentuando que nesta gravação “a Victor conseguiu algum equilíbrio e discos bons” lviii.

O êxito da série caipira de Cornélio pela Columbia, bem como, de algumas duplas, estimulou o interesse das gravadoras concorrentes. A RCA Victor, logo em seguida, passou a investir nesta música regional paulista, formando a “Turma Caipira Victor”, convidando Mandi para organizá-la a despeito do ciúme de Cornélio.

Não há menor dúvida que a iniciativa de Cornélio Pires abriu um fértil mercado pra gravações regionais. Em junho de 1930, a Parlaphon anunciava, com destaque, no jornal “O Estado de São Paulo”, entre outras gravações, duas de Mandi e Sorocabinha: “A Crise e a Caninha Verde” (moda de viola). No mês seguinte a Victor publicava uma relação dos seus primeiros discos brasileiros gravados em São Paulo. A Columbia anunciava o lança,mento de “Scena de Feira Nortista” ( humorístico), “Que Moça Bonita”, com letra de Cornélio Pires, “O Jeca Tatu” e “Afinado” e “Notícias da Roça”, com a dupla Jararaca e Ratinho.lix

Convém destacar que além das gravadoras e do rádio, os cantores de música “caipira” ocuparam espaço no cinema. Filmes de grande apelo popular e comercial, como o famoso “Acabaram-se os Otários", com Genésio Arruda e participação da Paraguassú, de 1929, foram lançados ao longo da década de 1930, tendo caipiras ou a temática sertaneja como eixo central, cuja tradição continuada por Mazzaropi, num outro momento de migração e expansão urbana, em tempos mais recentes. Na esteira desses filmes, Cornélio Pires, em 1934 filmou “Vamos Passear”, uma espécie de documentário da cultura rural paulista, gravado sem cenário, nos arrabaldes, vizinhanças, entornos do Jabaquara, com o objetivo de coletar sambas genuinamente rurais, o cancioneiro rústico danças e “causos da roça”, que seriam registrados como sendo as autênticas raízes da arte brasileira. No filme participa parte da “Turuna Caipira” e “Sorocabinha”, interpretando danças, procurando divulgar, num movimento próprio das modas de viola, ligadas às características de comunicação folclórica, as circunstâncias poéticas, cuja circulação nota-se nas tradições orais ou mesmo

(20)

em manuscritos e impressos, reelaborando o patrimônio cultural das regiões de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Historicamente essas regiões foram marcadas pelas frentes pioneiras da mineração, da agricultura agro-exportadora e da economia de abastecimento interno, envolvendo, inclusive, a circularidade cultural no trânsito das tropas de muares.

Para alguns escritores, como Amadeu Amaral, Afonso Arinos de Mello Franco, Mário de Andrade e Cornélio Pires, entre outros, nesse cenário de “cosmopolitismo dissolvente”, as tradições populares tinham o excepcional poder de enraizar o indivíduo, identificando-o com seu “torrão nativo”, sendo que nada poderia pulverizar o poder nacionalizador e vital das tradições, dada a plasticidade notável da cultura cabocla de se adaptar às condições e circunstâncias mais diversas, pois essas tradições, através da transmissão oral e anônima, teriam a virtude de “preservar” raízes luso-castelhanas, indígena e africana, que viria a ser largamente divulgada, quer pela literatura folhetinesca, jornais e cinema, quer pela discografia e programações radiofônicas.

As várias ilustrações da imprensa, como a charges e caricaturas, bem com as imagens filmicas produzidas no período, procuram apresentar os contrates de paisagens pastoris bucólicas e da vida pacata das pequenas cidades interioranas com o caos avassalador da vida urbana paulistana. Inspiravam-se, de um lado, em obras românticas, como a “O curandeiro”, “A Capirinha”, “A Casa do Caboclo” e “Cousas Nossas”, para recriar uma visão sentimental e mítica de formas de convívio social mais estável e, de outro, nos horrores das notícias sensacionalistas e de folhetins, que forneciam, com suas narrativas trágicas e bombásticas, vasto material para uma produção fílmica.

Essas notícias envolviam as grandes e pequenas tragédias e vicissitudes da experiência urbana, gerando melodramas, de bandidos sanguinolentos, mas românticos, de inocentes mocinhas desencaminhadas por ricos rapazes, de milionários decaídos na pobreza pelos vícios, que se regeneram posteriormente, maridos que desgraçam suas famílias pelos brilhos dos cabarés, de assassinatos misteriosos e de cadáveres esquartejados, como no caso dos filmes “O crime da mala”, “O crime de Cravinhos”, “Dioguinho”, “Acabaram-se os Otários...”, “Vício e Belleza”, “Enquanto São Paulo dorme...”, em que se destacavam as transposições para um ambiente brasileiro de narrativas do cinema estrangeiro, mas que, todavia, ganhavam coloração local, inclusive em sua relação com a imprensa escrita.lx

Exprimindo o movimento cultural de “redescoberta” do Brasil popular, “folclórico”, em 1917, surgia, assim, “O Curandeiro”, direção de Antônio Campos, uma comédia baseada num conto de Cornélio Pires, “Quem Conta um Conto...”, que em torno de um enredo cujas tramas envolviam as práticas “primitivas” de um curandeiro da roça, eram

(21)

retratados, a partir de uma visão exótica, usos e costumes da cultura caipira, preservados na tradição popular urbana ou rural. É interessante destacar que as cenas da vida rural desse filme foram captadas no entorno da cidade de São Paulo, nos bosques do Jabaquara e de Pirituba, que permitia a reprodução de paisagens “naturais”, afeitas ao estilo de vida pacata no campo e rotineira das pequenas cidades interioranas, bem como, dos arredores da cidade de São Paulo.

Convém lembrar que, nas primeiras décadas do século XX, Cornélio Pires instaurou uma prática de relatar em bem-humoradas conferências e saraus regionalistas, com grande audiência, “causos”, lendas, danças, músicas e costumes autênticos das roças, preservados na tradição popular rural paulista, muitas vezes, encenadas por “caipiras de verdade”, apresentando danças e cantorias, profanas e religiosas, como o cururu, uma das mais antigas danças rurais, já existente no tempo dos jesuítas, que a empregavam na prática da catequese dos indígenas, em que os participantes se movem em uma coreografia variada entoando desafios, seguindo uma seqüência ritual em direção ao altar, onde se localizam as imagens dos santos, mas que ao se urbanizar configurou-se um desafio entre repentistas, que tiram os versos de improviso dependo da natureza do tema.

Essas apresentações de cunho integralmente nacional, com raras influências européias do teatro urbano, destacavam-se pelo realce da pronúncia “genuinamente” paulista, em vez das línguas européias do português lusitano, que, inclusive, os atores profissionais e amadores brasileiros assumiam nos palcos. O sucesso desse “saraus regionalistas” foi tão grande, que após sucessivas apresentações esse tipo de evento acabou sendo uma prática habitual em comemorações mundanas, festas filantrópicas ou quermesses, geralmente, com a exibição dos dançadores, violeiros e cantadores, autênticos da roça.lxi Dessa forma, o cinema se inspirou fartamente no sucesso desse filão, investindo maciçamente na reelaboração visual de cenas de uma cultura popular “evanescente” de raízes rurais.

Todavia, havia outras influências que perpassavam esse tipo de produção fílmica regionalista, seja do ponto de vista da improvisação técnica, seja do ponto de vista do hibridismo de seu conteúdo. Em “A Caipirinha”, filme do gênero “falante-cantante”, produzido em 1919 e exibido 1922, com atores e atrizes que “dublavam”, falando e cantando, nos bastidores ao lado do projetor, por de trás de um tecido transparente, cenas representadas em filme mudo - cuja inventividade expressou uma particularidade do cinema brasileiro - retratava-se quadros de cantos e danças sertanejas, expressando, assim, a simplicidade mítica dos ambientes rurais do interior e da cultura rústica do Estado de São Paulolxii Esse filme, baseado numa comédia de Cesário da Mota, é considerado, por alguns autores, como a primeira película verdadeiramente regional.

(22)

Em sua exibição, no Cinema Congresso, em São Paulo, os atores e atrizes foram acompanhados nas músicas pela orquestra da Rádio Cruzeiro do Sul. Note-se que nessa exibição a simplicidade das cenas da vida roceira apresentadas contrastava com o luxo do acompanhamento musical sofisticado. Além disso, deve-se salientar que, paradoxalmente, esse filme foi editado em estilo norte-americano e determinados personagens masculinos adotavam vestimentas aparentadas ao estilo do exótico “cowboy” que se configurava no cinema hollywoodiano. Na construção das tradições nativistas paulistas almagamava-se matrizes culturais rurais tradicionais e elementos modernos internacionais, sinalizando o hibridismo cultural polissêmico do cinema brasileirolxiii.

No cenário da produção fílmica paulista, além da apresentação dos usos e costumes roceiros, suas canções, danças e música, nota-se o imbricamento da produção da literatura regional com a nascente narrativa fílmica, bem como de outras linguagens. É interessante assinalar os deslizamentos e reagregações dos conteúdos míticos difusos pelo imaginário social, que perpassa esse imbricamento. Em “A Casa do Caboclo”, na segunda versão, do ano de 1931, drama baseado na canção homônima de Hekel Tavares e Luiz Peixoto, de grande audiência popular, pode-se observar o entrelaçamento das produções de diversas linguagens de difusão cultural, tal como rádio e a discografia. Assim, idealizando-se, romanticamente, a vida singela do campo são encenadas algumas canções roceiras de grande sucesso, bem como, apresentadas as danças de cateretê, umbigadas e congadas, executadas por autênticos dançadores e músicos da roça, com seus instrumentos característicos, violão, cavaquinho, flauta, atabaques, tambores, chocalhos, reco-reco, “genuínas” expressões culturais das raízes da brasilidade. Como por exemplo, o “Cateretê de Piracicaba”, em que temas da sociabilidade cotidiana das camadas populares afloram como mote das cantorias, como no caso do consumo de aguardente:

Vô largá da pinga/ Vô largá por nada/ Eu não bebo mai/ Essa pinga marvada/ Ela é agradave/ mais muito marvada/ Ela é agradave/ mas muito marvadalxiv

Ainda na perspectiva do nacionalismo cultural dos anos 1930, que seria largamente ampliado durante toda Era Vargas, cabe destacar o filme “Cousas Nossas”, do americano Wallace Downey, de 1931. Trata-se de um filme que integra números musicais com esquetes humorísticos, que foi grande sucesso de bilheteria e considerado, por alguns autores, como o segundo longa-metragem sonoro brasileiro, ainda pelo sistema “vitaphone”. Em sua realização foi utilizada a aparelhagem da produtora e distribuidora de disco Colúmbia para gravação dos discos. Há que se destacar que nessa película, a narrativa fílmica se transforma num veículo capaz de revelar a peculiaridade e a originalidade da

(23)

cena brasileira, seguindo uma tendência predominante na Europa de recuperação da cultura popular local e regional, como expressão suprema da nacionalidade.

Nessa fita cinematográfica, o conhecido poeta Guilherme de Almeida, um mais dos mais contundentes representantes do ufanismo da modernidade paulista, defensor de um “cinema à americana”, que deveria mostrar ao mundo as belezas naturais de nossa terra e o progresso de nossa pujante metrópole, considerando, índios, pretos, sertões e bairros humildes como tabus cinematográficos, faz uma aparição, apresentando e comentando, números musicais, em que se apresentaram artistas cancionistas do folclore brasileiro, como Stefania de Macedo e intérpretes de “modinhas” do interior paulista como Paraguassú lxv

, bem ao gosto de nossos intelectuais modernistas, que valorizavam ideologicamente essas manifestações locais como símbolos vitais da “genuína” cultura brasileira e da coesão político-ideológica da nação. As tendências desse gênero musical se firmariam no gosto do público brasileiro ao longo dos anos dando origem, a partir de 1943, à produção das chanchadas da Atlândida, que mesclavam música, cantores e humor brasileiros.

Das programações radiofônicas já incluíam algum tipo de “sertanejo”, variando dos contos, “causos” a esquetes humorísticos à música sertaneja. Aparecia também a música popular de influência nordestina, sobretudo, emboladas e sambas. Isso tudo mesclado com música instrumental, clássica ou popular; e a programação também se vinculava às múltiplas colônias da cidade cosmopolita. Toda essa variedade e polifonia musical vinha a princípio estruturada nos “quartos de hora”, contrastando essa organização com a desestruturação e improvisação dos primórdios da radiofonia.

Gradativamente, foram se firmando enquanto programas mais definidos, gravitando em torno dos nomes de alguns artistas que agregavam em torno de si um círculo de outros cantores e compositores, tais como, Cornélio Pires, Raul Torres, Ariovaldo Pires, entre outros, havendo mesmo recomposição de duplas e trios originais. Alguns programas procurando seguir o ritmo de trabalho e lazer das camadas urbanas de trabalhadores e setores médios, por volta de 1942, eram apresentados à noite ou pela manhã, mas a maioria das emissoras iniciava a programação por volta das 8:00 hora, ou no início da tarde.

Contudo, nem sempre os horários eram constantes. Freqüentemente, esses “programas sertanejos” ou “programas caipiras” eram anunciados nos grandes jornais, sempre sob a direção de um artista ou dupla de sucesso reconhecido. Programas como de “Nhô Totico”, o “Arraial da Curva Torta” e “Serra da Mantiqueira” faziam enorme sucesso nas rádios paulistas e eram dirigidos a um público eminentemente urbano que se interessavam segundo a imprensa por “coisas nossas”, portanto eram veiculados como programas regionais folclóricoslxvi. Assim, em 1940, o jornal “O Diário de São Paulo”

(24)

anunciava um programa de rádio com cultura popular rural rústica como apresentando “esplêndidos números de música nossa, entremeados de anedotas”, danças e “ditos caboclos” lxvii, repleto de brasileirismos e expressões, hábitos que dão novo vigor e colorido, “ao falar de nosso povo “com suas tradições e emoções genuínas”, sem os travos do classicismo lusitano estilo e as “claudicâncias esdrúxulas da sintaxe sertaneja”, como apontavam alguns estudiosos da “língua brasileira”lxviii

Em 1936, Sorocabinha também teve seu próprio Programa na Rádio Difusora, com cantos e tendo seus discos sertanejos no ar até 1940. Era prática corrente que as músicas sertanejas fossem veiculadas através da discografia por algumas questões evidentes; apesar da expansão do setor, não havia duplas/músicos caipiras profissionalizados suficientes na cidade para se apresentar “ao vivo” nos inúmeros programas radiofônicos; além do mais, era mais econômico para as emissoras tocar discos do que contratar músicos. lxix

Muitas programações, apesar de carregar na identificação de “caipiras”, diversificavam seu repertório, mesclando, com criatividade, personagens imigrantes com os caboclos da roça e, em decorrência disso, atingindo maior audiência de entre os ouvintes urbanos. Assim, quando a radiofonia passa a irradiar uma linguagem própria, rápida e integrada à rotina diária, sensível de “registrar o efêmero do cotidiano”, ela estabelece ligação com “a mistura, a incorporação anárquica de ditos e refrões” familiares a amplas parcelas de uma população multiétnica e policlassista como a de São Paulo.lxx Essa linguagem além de retratar a composição multiracial de São Paulo nos anos 1930, incorpora à programação radiofônica o caldo cultural que as criações humorísticas já haviam anteriormente produzido em estreita conexão com o teatro musicado, o teatro de revista, as gravações fonográficas e as primeiras produções cinematográficas. A concisão, o ritmo veloz e a fluência dos trocadilhos e jogos de palavras, a habilidade na produção de versos adaptados à música, aos ritmos ágeis da dança e aos anúncios publicitários, que a linguagem radiofônica incorpora da linguagem humorística, amplia o potencial do rádio de aproximar do “amigo ouvinte” cosmopolita de São Paulo.

É verdade que um dos fatos que um dos fatos responsáveis pelo estrondoso sucesso dos discos, programas e artistas “sertanejos” foi o vertiginoso crescimento dos surtos de migrantes, provenientes, sobretudo, do interior do Brasil (SP, MG, além de, substancialmente, a predominância na corrente migratória do Estados do Nordeste Norte), em busca de trabalho na metrópole industrial. Pouco a pouco, nos anos 1930, o contingente de migrantes, fruto do grande êxodo rural, sobretudo do nordeste, já ultrapassava consideravelmente o número de migrantes estrangeiros. Esses “desenraizados” faziam de vida cultural intensa uma forma de atuação dentro da comunidade: conjuntos musicais,

(25)

cordões carnavalescos, teatro amador, clubes dançantes, cantigas e festas religiosas, e foram decisivos na formação e expansão do público do mercado de bens culturais, atrelado aos ritmos sertanejos na capital, pois se identificavam profundamente com essa cultura e música que falavam sobre o mundo rural. Desse modo, ficavam pouco a pouco delimitados e hierarquizados os espaços de pobreza e de convívio cultural, de uma sociabilidade peculiar à cidade cosmopolita, criando-se novos focos núcleos de vida cultural e comunitária em São Paulo, vinculados aos contingentes de migrantes desenraizados.lxxi

1

HOBSBAWM, Eric. J. História Social do Jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1990. p. 189-212.

1

MORAES, José Geraldo Vinci. Rádio e Música Popular nos anos 30. In: Revista de

História nº 140. São Paulo: Humanitas, 1º semestre de 1999, p. 75-93.

1

ANDRADE, Mário. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962. p 15. FONTES, Hermes. A modinha brasileira In: Ilustração Brasileira, Rio: 07 set. 1922. 1

ALMIRANTE, No tempo de Noel Rosa Rio: Francisco Alves, 1963. p.p. 11-100. A popular canção “Luar do Sertão (1915), de Catulo da Paixão Cearense, ilustra bem este tipo de música, que era expressão sertaneja da nacionalidade. Alguns títulos de música relacionadas à temática sertaneja que faziam sucesso: “Luar do Sertão”, “Coração Sertanejo”, “Matuto Alegre”, “Tristeza de Caboclo”, “Canção Cearense”, “Cabôca di Caxangá”, etc. Alguns nomes de cantores então adotados: Paraguassu, Zé Portêra, João Pernambucano, Mané do Riachão.

1

ALMEIDA, Renato de. História da Música Brasileira. 2ª ed. Rio.. F. Briguiet, 1942, p. 193. BORGES. João B.P. Cor, Profissão e Mobilidade. O negro e o Rádio de São Paulo, São Paulo, EDUSP, 2001, p.p.193-194. Samba, “expressão musical que nasceu na batucada dos pretos e nas chulas dos acompanhamentos de cortejos e onde a letra tem menor interesse do que a música... onde os versos são quebrados, a linguagem chula, dominando as expressões de gíria”. Segundo J. B. P. Borges, esta definição de Renato de Almeida, não consegue apreender a forma musical que na atualidade é chamado de “samba”, principalmente, depois do movimento musical da “bossa nova”.

1

ANDRADE, Mário, Música, Doce Música, São Paulo: Livraria Martins Ed. 1945, p. 23. 1

Como observa Lúcio Rangel. Sambistas e Chorões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1962. A compositora e maestrina Chiquinha Gonzaga, depois de acurada observação da música e dança dos negros, lançou, em 1889, a sua marcha carnavalesca “O Abre Alas”, e depois disto este gênero musical consagrou-se como música da carnaval.

Referências

Documentos relacionados

Utilizando os dados contidos no Balanço Social de 16 empresas, este trabalho testou quatro hipóteses sobre o sentido causal entre lucros e salários visando clarificar a relação

A análise complementar através da evocação de palavras dos 99 questionários aplicados a estudantes do curso de Química e Biologia do Centro Universitário

Entre as diferentes regiões de captura e colheita de amostras de sangue de gambás (Didelphis albiventris), não houve diferença significativa quanto à ocorrência

O verbo aceitar poderia ser admitido como variante conversa de ‘receber’ em casos muito particulares, com os Npred ‘devolução’ (Ana aceitou a devolução [de

Impianto Simplebus 2 B/N o Simplebus Color con Art. 1252 derivato dal morsetto Art. B/W Simplebus 2 or Simplebus Color system with Art. 1252 branched from terminal Art.

Neste estudo, observou-se ainda que houve comportamento semelhante entre grupos, não sendo observada diferença estatisticamente sig- nificante entre os grupos em relação ao tipo de

Em abordagem histórico-antropológica, este artigo enfoca os povos indígenas em suas complexas e fluidas relações entre si e com os europeus, das guerras de conquista ao século

Bendito és Tu, ó Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que nos deste a vida, nos mantiveste e nos fizeste chegar até a presente época.. O pai abençoa a família e seguem à